O Livro é Passaporte

2
O LIVRO É PASSAPORTE, É BILHETE DE PARTIDA Bartolomeu Campos Queirós Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta do leitor ceder-se à escrita do outro, inscrevendo-se entre suas palavras e seus silêncios. Texto e leitor ultrapassam a solidão individual para se enlaçarem pelas interações. Este abraço a partir do texto é soma das diferenças, movida pela emoção, estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e escritor. Cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o projetar seus sonhos. As palavras são portas e janelas. Se debruçamos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo, é iluminar-se com a claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida. A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriar-se de sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos. Há trabalho mais definitivo, há ação mais absoluta do que essa de aproximar o homem do livro? Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para um repouso. O corpo vivo vive em permanente e vários níveis de leitura. Não há como ausentar-se, definitivamente, deste enunciado, enquanto somos no mundo. O corpo sabe e duvida. A dúvida gera criações, enquanto a certeza traça fanatismo. Reconheço, porém, um momento em que se dá o definitivo acontecimento: a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente. Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirar-se dela. Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o encontro. Acredito que ler é configurar uma terceira história, construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na fragilidade humana, quando dela se toma posse. A fragilidade que funda o homem é a mesma que o inaugura, mas só a palavra anuncia. A iniciação à leitura transcende o ato simples de apresentar ao sujeito as letras que aí estão já escritas. É mais que preparar o leitor para a decifração das artimanhas

Transcript of O Livro é Passaporte

O LIVRO PASSAPORTE, BILHETE DE PARTIDA

O LIVRO PASSAPORTE, BILHETE DE PARTIDA

Bartolomeu Campos Queirs

Desconheo liberdade maior e mais duradoura do que esta do leitor ceder-se escrita do outro, inscrevendo-se entre suas palavras e seus silncios. Texto e leitor ultrapassam a solido individual para se enlaarem pelas interaes. Este abrao a partir do texto soma das diferenas, movida pela emoo, estabelecendo um encontro fraterno e possvel entre leitor e escritor. Cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o projetar seus sonhos.

As palavras so portas e janelas. Se debruamos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler somar-se ao mundo, iluminar-se com a claridade do j decifrado. Escrever dividir-se.

Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estao. E os olhos, tomando das rdeas, abrem caminhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro passaporte, bilhete de partida.

A leitura guarda espao para o leitor imaginar sua prpria humanidade e apropriar-se de sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua experincia. A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos.

H trabalho mais definitivo, h ao mais absoluta do que essa de aproximar o homem do livro?

Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para um repouso. O corpo vivo vive em permanente e vrios nveis de leitura. No h como ausentar-se, definitivamente, deste enunciado, enquanto somos no mundo. O corpo sabe e duvida. A dvida gera criaes, enquanto a certeza traa fanatismo.

Reconheo, porm, um momento em que se d o definitivo acontecimento: a certeza de que o mundo pessoal insuficiente. H que buscar a si mesmo na experincia do outro e inteirar-se dela. Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o encontro.

Acredito que ler configurar uma terceira histria, construda parceiramente a partir do impulso movedor contido na fragilidade humana, quando dela se toma posse. A fragilidade que funda o homem a mesma que o inaugura, mas s a palavra anuncia.

A iniciao leitura transcende o ato simples de apresentar ao sujeito as letras que a esto j escritas. mais que preparar o leitor para a decifrao das artimanhas de uma sociedade que pretende tambm consumi-lo. mais que a incorporao de um saber frio, astutamente construdo.

Fundamental, ao pretender ensinar a leitura, convocar o homem para tomar da sua palavra. Ter a palavra , antes de tudo, munir-se para fazer-se menos indecifrvel. Ler cuidar-se rompendo com as grades do isolamento. Ler evadir-se com o outro, sem contudo perder-se nas vrias faces da palavra. Ler encantar-se com as diferenas.

(Texto extrado do livro : A formao do leitor/ Pontos de vista Organizadores:Jason Prado e Paulo Cndini/ Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobrs 1999)

PROGRAMA PASSAPORTE PARA A LEITURA

SEDU/SEFAZ/CCL