O livro

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Copyright © vários autoresEdição e revisão: Hélio Consolaro

Capa: Hugo Santos RochaEditoração gráfica: Celso Nicolete

CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790

Secretaria Municipal da CulturaRua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280

Araçatuba - [email protected] - (18) 3636.1270

concursodecontos.blogspot.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

Contos vencedores 2013. -- 1. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2013. Vários autores. “26º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba”.

ISBN: 978-85-60886-69-2 1. Contos brasileiros - Coletâneas.

13-09081 CDD-869.9308

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Vários autores

Araçatuba, 2013

Contosvencedores

2013

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Prefácio

Emília Goulart*

O concurso de Contos Cidade de Araçatuba em 2013 nos surpreendeu com o grande número de participantes, mas não foi apenas o número. A quali-dade também está chegando junto. Tive o privilégio de ler ótimos contos,

a certeza de que o concurso caminha para ocupar lugar de destaque no âmbito internacional.

Sou veterana em concursos de contos, participo para vencer, mas, ganhar nem sempre é possível. Há dois anos não participo deste, pois venho participando de sua Comissão Julgadora, mas concorri em outros.

Bebi “Licor Beirão”, mas era dia de “A Borboleta Azul” fazer sua festa. Ado-rei ver a “Mariposa” pousar ao lado “Da Joana. Só...”, ambas estavam no mesmo “Navio”. “O Salto” para “A Terceira Conexão” me permitiu numa “Fotografia Antiga” rever “O Chão Longínquo das Quimeras”. Era um “Santo Feriado”!

Sim, bebi desta fonte enriquecedora, ver no mesmo gênero de literatura, estilos diferentes disputarem o primeiro lugar. Outro prazer que desfrutei nestas leituras foi constatar de que os contos regionais têm condições de concorrer com os internacionais e nacionais. Um bom conto é aquele bem apresentado, sem gor-duras expostas, sua estrutura vai se adequar ao regulamento sem perder a estéti-ca. Ótimo conto é aquele que vai além, prende a atenção do leitor, cria expectativas e surpreende no final. Encontra-se tudo isso nos vencedores. Não apenas neste, mas, em todos os concursos. Não é tão fácil ser classificado num concurso de con-tos, porém vale ouro participar. Parabéns aos vencedores, parabéns aqueles que receberam menção honrosa e parabéns a todos aqueles que participaram.

Já estamos na 26.ª edição do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, desde 1985. Tomara que ele nunca saia das ações da Secretaria Municipal de Cul-tura de Araçatuba-SP-Brasil. Por ele, muitos ganham visibilidade e consagração.

* Emília Goulart, escritora, contista, participante do concurso por várias vezes, atualmente sendo membro da Comissão Julgadora, membro da Academia Araçatubense de Lertas e da União Brasileira de Escritores.

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Sumário

Categoria regional

1.º lugar - O navioCarlos Eduardo Marotta Peters - Araçatuba-SP ............................................... 12

2.º lugar - MARIPOSAMaria Luzia Villela - Araçatuba-SP .................................................................. 18

3.º lugar - Joana, só ...Regina Ruth Rincon Caires - Araçatuba-SP .................................................... 22

1.ª menção honrosa - Cachos de meninaBreno da Costa Alves - Penápolis-SP ............................................................. 29

2.ª menção honrosa - Coisas de DiárioLarissa Ruffato de Angelis - Araçatuba-SP ...................................................... 32

3.ª menção honrosa - Conto de um amor sem limitesMarcelo Otávio de Souza - Birigui-SP ............................................................. 35

4.ª menção honrosa - Relógio de pênduloPedro César Alves - Araçatuba-SP ................................................................. 40

5.ª menção honrosa - Tiros de pólvora na boca desarmadaValdecir Roberto de Oliveira - Araçatuba-SP ................................................... 44

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Categoria nacional

1.º lugar - A Borboleta AzulAndreia Fernandes Soares Leite - Rio de Janeiro-RJ ....................................... 46

2.º lugar - O SaltoAndré Silva Pomponet - Salvador-BA .............................................................. 52

33.º lugar - A Terceira DesconexãoHilário de Sousa Francelino - Cerqueira César – SP ........................................ 56

1.ª menção honrosa - Sobre Velhos e Pombas Marcelo Lilla - São Paulo-SP ......................................................................... 60

2.º menção honrosa - A margem opostaGilson Borges Corrêa - Rio Grande - RS ......................................................... 64

3.ª menção honrosa - Em fogo baixoIvane Laurete Perotti - Sete Lagoas-MG ......................................................... 69

4.ª menção honrosa - Hassan-i SabbahArthur Cristóvão Prado - São Paulo-SP ........................................................... 74

5.ª menção honrosa - Mistérios do IndizívelValmir Luís Saldanha da Silva - Araraquara-SP ............................................... 81

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Categoria internacional (mundo lusófono)

1.º lugar - A fotografia antigaDaniela Macário Resende - Vila Nova de Paiva - Portugal ................................ 86

2.º lugar - O chão longínquo das quimerasRui Miguel Dias Carvalho - Alfornelos Amadora - Portugal ............................... 95

3.º lugar - Santo FeriadoMarcella Rodrigues dos Reis - Queluz - Portugal ........................................... 102

1.ª menção honrosa - Depois do escapeAntônio João Maduro Guerreiro - Peniche - Portugal ..................................... 108

2.ª menção honrosa - Licor beirão Teresa de Jesus Ferreira Teixeira - Vila Nova de Gaia - Portugal ..................... 115

3.ª menção honrosa - O Anjo Purificador Joaquim Bispo - Odivelas - Portugal ...........................................................................121

4.ª menção honrosa - Sombrinha ColoridaSolange Fischer Bernardino - Balingen - Alemanha ....................................... 125

5.ª menção honrosa - Vista para o rioMaria de Fátima Correia Santos - Lagos - Portugal ..................................... 128

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Contos da comissão julgadora

O bilheteAntonio Luceni ............................................................................................ 134

O Cão e o chapéuEmília Goulart ............................................................................................. 137

Dados sobre o concurso de 2013

Comissões julgadorasComissão A - Comissão B ........................................................................... 142

HomenageadoCÉLIO PINHEIRO – “UM HOMEM ABSORVIDO PELAS LETRAS” ....................... 143

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Categoria

regional

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O navioCarlos Eduardo Marotta Peters – 1.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP

O navio ancorou no porto às cinco da manhã. Seu apito agudo acordou a cidade. O negrume da noite ainda era intenso. A chuva não dava trégua. O vento frio sibilava por entre as ruelas estreitas, filhas de uma arquitetura

antiga que se mantinha de pé a duras penas e conseguia ainda estabelecer limites para o fluxo intenso de homens dos novos tempos. E, no entanto, quão desertas permaneciam no raiar do dia. A ausência de pessoas permitia aos caminhantes noturnos observar o brilho da fraca luz dos lampiões refletir na pedra negra das calçadas. As fachadas de pedra lavada pareciam túmulos grosseiros, cuja solidez era vez por outra interrompida por portas e janelas de tamanhos e estilos variados, colocados ali, como podia perceber qualquer observador atento, muito tempo de-pois das construções terem sido erigidas.

Pouco a pouco, entregadores, padeiros, quitandeiras, carteiros, pedreiros, engraxates, sapateiros, domésticas, andarilhos, policiais, taberneiros, médicos, ad-vogados; toda a gente da cidade saiu da toca. O sol não estava no céu para recebê--los, nem o dia se fez belo, com aromas primaveris e pássaros em êxtase sobre as árvores. O dia nasceu no prolongamento da noite; um irmão mais novo que imita seu ídolo como uma sombra exígua.

Os passageiros do navio começaram a se preparar na noite anterior. Esta-vam espalhados pelos hotéis vagabundos próximos do cais do porto, vigiados de perto por policiais elegantemente trajados com uniformes negros. Eram policiais diferentes. Não estavam ali para combater nenhum crime ou evitar tumultos à beira da praia. Sua função era vigiar e propiciar um embarque eficiente no gigante ancorado solitário no porto. Eu, por outro lado, pude escolher uma pensão distante, apesar de ser também passageiro do navio. Acordara por volta das quatro da ma-drugada, incomodado com o miado dos gatos do beco. Minha pequena mala ficou pronta poucos minutos depois. Havia pouca coisa para levar. Havia muita coisa para esquecer.

Na noite anterior, contatei uma dessas mulheres que fazem ponto nos ba-res da orla. Eram raras nesses dias, e também caras. Sua profissão já quase se

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extinguira e seu medo de ser flagrada fez o acordo demorar longos e preciosos minutos para ser fechado. Armamos um grande esquema e ela conseguiu entrar pela janela de meu quarto modesto. Era já uma mulher madura, experiente nessa vida das ruas. Conservava ainda certo frescor no corpo, mas seu rosto carregava marcas indeléveis de anos de incertezas e frustrações. Ela chegava a ser bela, mas daquelas belezas tênues, que já parecem prontas para evanescer com um sopro sutil. Vou carregar na memória a imagem de seu corpo nu diante da luz amarela da lâmpada empoeirada e os gestos gentis e suaves que fez ao deitar-se na cama. A pobre mulher deve ter se surpreendido também, mas com meu nervosismo e cavalheirismo. Ela foi para mim uma espécie de prêmio antes da partida. Dei a ela quase todo o meu dinheiro. Teria dado tudo, se não tivesse que pagar pelo quarto e comer na manhã seguinte.

Após sair da pensão, pela manhã, caminhei pelas cercanias do porto por um tempo. Dali observei a cidade que se projetava morro acima. Não era grande. Era um amontoado escuro e ensebado de construções velhas e anacrônicas, que permaneciam em pé não se sabe bem por que, enquanto as ruas se enchiam de coisas que lembravam vários tempos. Aquilo parecia um amontoado de memórias bêbadas, arranjadas de súbito para alguma festa, mistura intragável de cores, sa-bores e formas. Carruagens elegantes e roupas francesas não combinavam com aquele monstro antigo e cascudo. Mas estavam lá, pavoneados displicentemente por quem pudesse pagar por eles. Eu também era antigo e anacrônico. Era um filho da cidade, daqueles que nascem, crescem e morrem com ela. Não gostava da agitação e das novidades da metrópole, mas era um não gostar arrependido, preguiçoso, fruto da falta de vitalidade ou de educação adequada. Não gostava de luzes incisivas que não deixavam espaço para sombras e nuances.

Naquela manhã cinzenta, a cidade pareceu excessiva para o número de ha-bitantes. Com muita dificuldade eles ocupavam seus espaços. Pareciam os homens dali pequenos diante das construções mais verticalizadas. O silêncio era solidário com a insuficiência de homens. A cidade funcionava com murmúrios. Fazia anos que a cacofonia local havia arrefecido. Sequer a feira semanal era capaz de desper-tar um velho de sono leve. Cidade estranha, cidade tornada estranha.

Aquela caminhada foi minha despedida. O navio partiria em uma hora. Fu-mei meu último cigarro em terra. A fumaça que saía dele era mais viva que aquele céu enegrecido. Aquelas pequenas nuvens tóxicas lembravam-me que ainda esta-va vivo. Tomei um café horrível no bar mais próximo. Folheei o jornal do dia sem in-

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teresse. Eram todos iguais esses jornais matutinos, assim como eram iguais quase todos os dias. Tirei do bolso papéis velhos e inúteis (bilhetes de trem, anotações de itinerários, uma carta mal lida de um parente distante...) e joguei no lixo.

Na escada de acesso para o navio todos estavam mudos. Chapéus, casacos e guarda-chuvas disputavam espaço com uma civilidade fria e distante. O silêncio só era maior na via de acesso. Poucas pessoas acenavam. Ninguém realmente se despedia. Parei por um instante para fitar os rostos. Nenhuma esposa, nenhum filho, nenhuma lágrima verdadeira ou falsa...

O navio partiu como chegou. Solitário e sorrateiro. Apitou como quem o faz por pura obrigação. Seu casco avermelhado contrastava com a água escura do mar. Então, uma multidão silenciosa se aproximou sorrateira do porto. Para os mais atentos no interior do navio, o espetáculo era bizarro. A cidade parara. Quedara em silêncio total diante da partida. Milhares de cabecinhas estáticas podiam ser vistas nas janelas, nas varandas do alto da colina e na praia. Durante alguns minutos o tempo deixou de existir. A cidade era só despedida, mas uma despedida seca, de soslaio e vergonhosa. Até mesmo os animais pareciam ter emudecido ou sumido dentro de si. Não havia gaivotas no ar, nem golfinhos na baía. Não vi cães naquele dia, esses seres de alegria estúpida e constante. Aquele não era um dia para eles.

O sol não nasceu naquela curta viagem. Permaneceu ausente, escondido atrás de nuvens grossas e ameaçadoras que pareciam querer desabar sobre o mundo como um deus primordial. O vento não esquentou nas manhãs e as águas do mar não se fizeram plácidas para os viajantes. Todos saíam pelo convés ao amanhecer trajando roupas pesadas e escuras. Os homens com casacos, coletes e sapatos lustrosos; as mulheres com vestidos longos, luvas, chapéus e sombrinhas. Não houve conversas nos primeiros dias. Fumar, passear a esmo pelo navio, fitar o horizonte ou simplesmente esperar o tempo passar eram as únicas atividades dos viajantes. Eles mal se olhavam nos olhos. Nem sequer se cumprimentavam.

Permaneci sentado num canto do convés todo o tempo. Organizava pen-samentos e contabilizava desventuras. Saía dali apenas para me alimentar com a parca ração do refeitório ou descansar num dormitório que mal acomodava minha pequena mala. Interessei-me, vez por outra, por uma daquelas figuras espectrais e silenciosas: uma mulher pálida, de olhos verdes; uma menina com um bichinho de pelúcia nos braços e uma velha senhora, agitada e provavelmente falastrona, mas que mantinha o silêncio à custa de soluços e lágrimas. Mas não me aproximei de nenhuma delas. Aqueles dias não haviam sido feitos para conversas pequenas.

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Eram dias de perplexidade e resolvi ficar assim, perplexo, ainda que com pouca convicção.

Era o grupo de pessoas mais eclético que a cidade mandara para o navio desde o início do fenômeno. No início, as autoridades locais faziam grande alarde de suas decisões. Convocavam representantes dos sete departamentos para parti-ciparem dos debates e das cerimônias públicas; faziam ver suas ideias no jornal e nos editais pregados nas paredes dos bares, tavernas e prostíbulos; apresentavam as soluções do momento como racionais, morais, benditas, fruto da evolução do espírito humano e da higienização do espaço urbano.

A primeira leva de passageiros foi composta basicamente de detentos e egressos das cadeias locais. Depois foram as prostitutas, os andarilhos, os bê-bados e os estrangeiros. Lembro-me de um navio recheado de ciganos, homens, mulheres e crianças que, por azar, se fixaram nas cercanias do município. A cidade reluzia com fogos, fogueiras e festas de júbilo e purgação. Sacrifícios eram sempre penosos, mas serviam para salvar almas e propiciar certeza de salvação aos vivos.

Então veio a escassez de homens maus. A escolha ficou mais difícil, sor-rateira, interessada. Quilos de documentos e horas de discursos foram produzidos nas dependências da câmara local. Alianças foram feitas, nomes e parentelas fo-ram blindados e as listas ficaram cada vez mais surpreendentes e obscuras. Crian-ças sujas, mulheres faladeiras, homens puídos, apostadores, dizimistas relapsos, doentes de febre tênue...

De cem a cem foram embarcados. Não sei se faz meses ou anos que tudo começou. Minha memória já anda falha. Sei que meu nome apareceu na lista no último mês. Eu, homem de cinquenta e poucos anos, solteiro, escriturário, solitário e resguardado. Talvez minha vida incomodasse os membros daquela câmara ou seus olheiros. Talvez eu precisasse de um defensor naquela casa. Talvez não fosse possível ser excluído. Talvez os critérios fossem técnicos demais para serem divul-gados. As reuniões da câmara se tornaram cada vez menos públicas. As listas já nem eram justificadas. Formou-se um conselho de homens bons, supostos repre-sentantes da comunidade para assessorar e dar apoio aos membros da câmara. O conselho era composto por líderes espirituais, juízes, representantes do comércio, latifundiários e professores antigos. Também estavam lá agiotas, militares e mé-dicos.

Meu nome apareceu na lista. Ela chegou a mim pelas mãos de um Oficial de Comunicações. Ele pediu minha assinatura e afixou na porta de meu quarto na

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hospedaria um documento público. Nenhuma outra satisfação me foi dada. Meu nome estava na lista, que agora tremulava na praça central como uma

bandeira, para que todos pudessem ver. Meu privilégio de não ser vigiado foi dado pela herança que dispunha aplicada no banco local. Em caso de fuga, meu dinheiro seria confiscado. Mas sei que não conseguiria fugir. Nem tentei isso. Fiz um docu-mento deixando tudo para um parente distante, mas a cidade provavelmente iria engolir o documento e expelir outro de suas entranhas. E agora me restava apenas um canto no navio. Um canto e uma espera.

No último dia daquela viagem de três dias, a menina da boneca se aproxi-mou de mim. Tentou conversar algo, mas não foi capaz de articular bem as frases. Abri um sorriso por pura cortesia, mas ela deu as costas e foi embora. Foi o último contato que se pode dizer humano que tive. No final da tarde uma nuvem rasteira nasceu no horizonte. Seus raios eram estranhos, horizontais e furiosos. Sua cor era ainda mais pesada do que a das nuvens do céu. Era uma nuvem ameaçadora e linda. Senti pavor diante de sua aproximação, mas um pavor misturado com deleite. O navio balançou diante da força dos ventos que saíram da nuvem. Os marinheiros abandonaram o navio horas antes e foram resgatados não se sabe bem onde por outras embarcações.

Estávamos sós. Cem almas diante de uma nuvem ancestral e faminta. To-dos saíram para o convés. Ninguém gritou. Nenhum choro foi ouvido. De súbito, a nuvem projetou seus monstros. Navios de casco verde apareceram como que por encanto. Eram de diversos tamanhos e tinham uma aparência agressiva. Pareciam ser alongados, pesados, maciços e possuíam canhões e torres. O pânico se alas-trou no nosso navio. Matou o silêncio sem piedade.

A morte daquelas pessoas não foi plácida e honrosa. Não foi um sacrifício frio e rápido. Os homens daqueles navios eram cruéis e violentos. Prolongaram o sofrimento enquanto puderam. Riam de choros e de pedidos de clemência. Um homem que portava uma estranha insígnia no braço subiu a bordo com seu rosto autoritário. Gritou alguma coisa numa língua que não consegui entender e fez ges-tos indicando que os soldados deveriam separar os sobreviventes em pequenos grupos. Depois veio a triagem. E novo massacre. Velhos e doentes foram mortos. Não sei por que fui poupado. Levei apenas uma coronhada na cabeça. O sangue jorrou sobre minhas costas e cai pesadamente no chão. Meus companheiros de navio me puxaram para cima. Sussurraram que se permanecesse deitado seria executado.

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Embarcaram-nos então naqueles navios espectrais. Era o fim. O sacrifício se completara. A vida daquelas pessoas seria tragada pouco a pouco por aqueles monstros sanguinários. Nossa cidade estava salva por mais alguns meses. O ritual estava completo. Havíamos sido trocados por uma trégua humilhante. A cidade alimentava aquele minotauro faminto em seu labirinto político. Em contrapartida, permanecia formalmente livre.

Acordei no dia seguinte com gritos ameaçadores. Eram os soldados. Nossa jornada chegava ao fim. Pela fresta do compartimento onde estávamos presos, pude ver um campo de trabalhos forçados. O som de tiros esporádicos cortava o silêncio daquele lugar de tempos em tempos. A certeza da morte calava meus companheiros de cárcere. Eu olhava para os lados procurando um interlocutor, mas ninguém mais se dispunha a abrir a boca. Agora éramos todos iguais: velhos, doentes, ciganos, radicais, críticos, hereges, mendigos, artistas de circo, bêbados, amantes da liberdade, jornalistas, escritores, catadores de lixo, prostitutas... Não tínhamos mais futuro ou esperança.

Carlos Eduardo Marotta Peters é professor universitário, Araçatuba-SPE-mail: [email protected]

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MARIPOSAMaria Luzia Villela – 2.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP

J oão da Silva Homem, homem bom. Melhor não havia. Talvez alguns como ele. A beleza o avassalava, quiçá por ser destituído dela. Seus olhos negros, de órbitas pequenas e redondas, davam-lhe uma expressão de boneco, os

cabelos também negros, tinha-os crespos e desalinhados: resultado do mau hábito de enfiar os dedos tortos pelo reumatismo na densa cabeleira - em gestos de aca-nhamento, pensamentos de saudades ou perturbadores - e a guedelha, amansada ao se levantar de manhã com água e pente, ia-se eriçando. Vivia onde sempre vivera: na velha casa, sede da fazenda da família.

Após a morte do pai, vira a fazenda ir-se desmanchando, vendida a nacos, a cada aperto financeiro. A mãe gerindo como podia. Primeiro se foi a metade dela, depois, para tentar sorte na cidade grande, os irmãos, mal raiada a maioridade, iam se desfazendo da herança. Era quase como o pombal do Raimundo Correia, só que não havia volta, filosofava João.

Ele não. Ficou, onde tinha fincadas as suas raízes. Nas tardes, na varanda, sentava-se na velha cadeira de balanço, toda de madeira, que já resistira a dezenas de anos e ainda muito serviria. Naquele dia, como nos outros, nela se aboletou.

Alisou os braços da cadeira, como se acariciasse a mãe. Ali, ela embalara as crianças. Netos não. Que morrera sem tê-los! Nova ainda! Deixando-o só, diziam os outros... Ele não se dizia só, pois tinha os livros por companheiros fiéis, e a terra, e a paisagem... Tudo nutria sua alma. E a saudade... Sentado costumava olhar o dentro e o fora.

Entre duas mangueiras de frondosas sombras, rasgava-se um palco de luz e azul esgarçado deixando ver o Sol explodindo em cores, emagrecendo no hori-zonte, já não esfera, como roído por seu próprio exibicionismo. Cruzes voando vol-tavam aos ninhos. E das mangueiras vinha a “canção” das boas vindas: em pipilos, trissos e chilreios. O fora era lindo! O dentro... Agridoce. Numa tarde assim, o pai caíra do cavalo e uma costela perfura-lhe o pulmão; numa tarde assim, a prima Cotinha dera-lhe seu primeiro beijo... Ainda presente em seus lábios toda vez que nela pensava. Numa tarde assim Cotinha... Rechaçou o sombrio pensamento.

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Passado e presente, preto e vermelho, luz e sombra se alternando. A boca de João, polpuda e pequena, apinhou-se como um beijo lançado,

fazia isso com frequência. Tique: diziam uns, outros, nem reparavam, tantos anos de convivência. Aquilo começara depois do beijo de Cotinha. Como uma busca. Gostaria de não pensar nela, mas vinha de assalto! E agora mais que nunca. A carta, entre a frente do bolso e o tecido da camisa, queimava-lhe a pele.

Ali, balançando-se na cadeira, olhava o poente e pensava na carta que recebera há seis dias! Tiago, seu irmão, ditara o conteúdo. Dizia-se fraco até para escrever-lhe... Doente, sem dinheiro, com esposa e duas filhas, precisava dele, do seu teto e de seu braço.

Seria transtorno em sua vida de solteirão. Que nenhuma mulher lhe fora como Cotinha, seu primeiro e último amor!

Vida arrumadinha! Ordem e silêncio para ler, cochilar e o fazer seus próprios horários. Não queria, mas precisava ajudar o mano. Renda alta, para mandar-lhes sustento contínuo, não tinha. Verdade que, de insignificante sitiante, transformara--se em “rico em potencial”. A cidade crescera e batia às portas da sua proprieda-de. Era lotear e encher-se de dinheiro. Mas vender pedaços de terra seria como vender-se em açougue!

A carta da sua indecisão, ainda no bolso da camisa, era como brasa. Tocou--a novamente. A delgada foice do Sol no horizonte já anunciava a extinção do dia. A noite era iminente.

Eis que, porteira adentro, avançou um automóvel, com o “TÁXI” bem desta-cado na capota. Parou ao pé da varanda. João, apinhando os lábios em contraturas sequenciais, desceu devagar os poucos degraus indo ver quem chegava. Distin-guiu o vulto de uma mulher curvada falando com o motorista e junto a ela: duas meninas. O chofer desceu, abriu o porta-malas, começou a tirar a bagagem; as mulheres arrepanhavam no interior do veículo casacos, revistas, sacolas e por fim emergiram.

A mulher falou às meninas, que prontamente obedeceram:- Peçam bênção pro tio.João ficou uns momentos como não entendendo.- Cunhado! Não está me reconhecendo? Sou eu! Não posso ter mudado

tanto!A voz e os olhos eram os mesmos. Mas a cintura delgada, o longo e frágil

pescoço e a pele translúcida haviam desaparecido. Pensou numa frase de sua

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mãe: “A gordura sepulta a beleza”.- Você? - Eu mesma. Essas mocinhas são minhas filhas. Essa é Patrícia, de 12 anos

e esta Amélia, de 10. Mandei-lhe uma carta há uma semana, recebeu?- Sim recebi, estava a pensar sobre ela... Mas diga-me: e o mano? Por que

não veio?- João! Desligado como sempre foi... Não percebeu que estou de vestido

preto? É luto. Escrevi-lhe que Tiago estava muito mal e que precisávamos de sua ajuda. Sem sua resposta optei pelo: “quem cala consente”.

Fez uma pausa deixando tempo para João dizer alguma coisa. Mas ele digeria novidades devagar.

Em seguida, a cunhada emendou, com sinceridade, que realmente não ha-via outro modo: era a fazenda ou debaixo do viaduto.

João gaguejava, que ansiava muito por mandá-los vir, mas a carta, só lhe chegara às mãos há poucas horas. Piedosa mentira. Ainda encolhia-se, timorato, a mulher era... Era a prima Cotinha, que numa tarde de igual fulgor o beijara. A mão levantou-se, como um ser independente e acariciou os lábios que ardiam como se o beijo fosse ali e agora. Também se fez presente a angústia que sentira quando ela, numa outra tarde esplendorosa, lhe dissera: “Não quero nada com você. Você é feio! Estou namorando Tiago”.

O motorista, em pé ao lado das malas, pigarreou.- Oh! Esqueci-me do motorista. Pode pagar o táxi? Não tenho dinheiro. Pensou em mandá-la embora. Dezoito anos sem vê-la, já não sentia o co-

ração disparar, coisa que acontecia com frequência quando ela vivia apenas na sua saudade! Sentiu-se roubado, perdera o sonho! Também se sentiu liberto. Era um embaraçado novelo de sentimentos. Mas as sobrinhas eram belas e pareciam meigas. Tão parecidas com a Cotinha que morara em sua lembrança! E o sangue? O irmão...

João pôde se aproximar da beleza, tocá-la. Estendeu a mão nodosa e a escorreu, leve e cariciosa, pelos cabelos loiros e brilhantes das sobrinhas que lhe sorriam. Os últimos raios de sol rebrilhavam neles. E João os viu como emitidos por elas. Encantado, girou em translação, como mariposa na luz!

A luz o aceitou. Sentiu. Pequenas mãos enlaçaram sua cintura e doces cabeças nele se apoiaram. Foram momentos de grande emoção e da descoberta de quão solitário e infeliz inconfesso ele era! Dominou a emoção que lhe trancava

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a garganta, como se um nó ali estivesse, tornando dolorida a passagem da saliva,Estendeu a carteira para que a cunhada pagasse o táxi; curvado pelo peso

das malas, levou- as para dentro da casa. Já vassalo. As mulheres o seguiram. Lágrimas de alívio por terem a certeza de um lar

desciam lentas e nublando-lhes a visão as faziam tropeçar na escada às escuras. João estendeu a mão ao interruptor: opondo-se ao céu que enegrecera, a

casa brilhou como se sorrisse ao recuperar a vida e dinâmica que a juventude lhe trazia.

*Maria Luzia Villela é professora aposentada, acadêmica da Academia Araçatubense de Letras. E-mail: [email protected]

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Joana, só ...Regina Ruth Rincon Caires - 3.º lugar – categoria regional – Araçatuba-SP

F inal da primavera de 1951. Madrugada de lua cheia... Pela janela aberta, a claridade prateada inunda o quarto. Sentada ao pé da cama, encostada na parede, abraçada às pernas e com o queixo recostado

sobre os joelhos, Joana observa o rosto sereno do filho que dorme feito um anjo. Por que tinha que ser assim? Por que a vida tomou esse rumo?

Olha do lado, na outra cama, e vislumbra por entre as cobertas os rostinhos das duas filhas. A mais velha, de cabelos dourados, fartos cachos que com a luz da lua cintilam feito uma nuvem de vagalumes, e a mais nova, de pele alva como leite e cabelos negros azulados, ambas dormem profundamente, alheias aos percalços que a vida silenciosamente arquiteta.

Tudo começou naquela triste tarde, quase noite. Antônio ainda não havia chegado da roça. Joana acabara de banhar as crianças, sentia-se enjoada com o princípio da nova gravidez, e fazia um esforço tremendo para esquentar as panelas no fogão de lenha, no preparo da comida, quando de repente ouviu o estampido, um tiro.

Correu para perto das meninas, e assustada olhou pela janela da cozinha sem compreender o que estava acontecendo.

Ficou por um tempo agarrada a elas, e assim que recobrou o tino, perce-bendo que havia barulho de choro abafado, pediu para que as meninas ficassem quietinhas, e foi olhar o que acontecia.

Já na varanda, olhou para a direção da casa do pai de Antônio, e com certa dificuldade por causa da penumbra que a noite trazia, percebeu que havia movi-mento de pessoa e constatou que o choro vinha de lá, e as vozes também.

Atônita seguiu na direção dos sons e assim que chegou perto parou petrifi-cada. Na entrada do alpendre da casa do pai de Antônio, perto da cisterna, estava um homem estirado no chão, rodeado por uma poça de sangue.

Joana forçou as vistas e percebeu que se tratava do colono Malaquias, homem forte, queimado de sol, e de poucas palavras.

O choro que ouvira era da mãe de Antônio. Ela chorava, lamentava, implo-

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rava aos céus por orientação, estava completamente desnorteada, e andava de um lado para o outro perguntando ao marido o que deveria fazer...

Olhando mais adiante, perto da porta da cozinha, Joana viu o pai de Antônio parado junto à parede, e mais atrás estava Seu Avelino, que tinha o rosto crispado, os olhos fixos no homem estirado no chão.

Seu Avelino estava com os braços caídos rentes ao corpo, e trazia em uma das mãos uma carabina.

Num sobressalto, Joana percebendo que o colono estava morto e sem dizer qualquer palavra, entendeu que o tiro havia partido daquela carabina e que, prova-velmente, Seu Avelino teria feito o disparo. E acertou.

Mais tarde soube que o colono teve um desentendimento com o pai de Antônio há algum tempo, que a mágoa foi se avolumando, e que naquela tarde, por causa de uma pendenga sobre uma saca de feijão, o colono armado com um facão foi até lá, e depois de uma nova discussão, investiu contra o pai de Antônio jurando que o mataria.

Seu Avelino era outro colono da fazenda, casado com Dona Célia, um ho-mem calmo, sério, pai de oito filhos, compadre e amigo do pai de Antônio, contou que durante toda a tarde ouviu Malaquias esbravejar exaltado, praguejando e ar-quitetando a ida até à casa do pai de Antônio para fazer o que dizia ser o “ajuste final das contas”.

Percebendo que algo muito sério estava por acontecer, Seu Avelino ficou à espreita, e quando viu que Malaquias se armou e seguiu para a sede da fazenda, não titubeou e numa corrida desenfreada esgueirou-se por entre os pés de café, chegando à casa do pai de Antônio minutos antes de Malaquias.

Entrou pela porta da sala, sabia que o compadre estaria sentado no alpen-dre dos fundos, como sempre, fumando seu cigarro de palha, com um cotovelo apoiado no canto da mesa.

Seu Avelino passou pelo corredor que ladeava o quarto principal, pegou a carabina carregada que ficava costumeiramente dependurada atrás da porta deste quarto, e seguiu para a cozinha. Nem teve tempo para explicar ao pai de Antônio o que estava para acontecer porque antes de chegar ao alpendre, antes mesmo de atravessar a porta da cozinha, Seu Avelino avistou Malaquias no terreiro, chegando ao degrau do alpendre.

Seu Avelino parou, percebeu que o pai de Antônio ficara assustado com a chegada intempestiva do colono Malaquias vociferando transtornado.

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A discussão foi rápida, quase só Malaquias falava, esbravejava. E quando o colono fez menção de se jogar contra o pai de Antônio com o facão em punho, Seu Avelino mirou a arma e atirou no peito do colono.

Foi um único e certeiro disparo, o mesmo estampido que assustou Joana e que fez com que a mãe de Antônio saísse correndo do galinheiro, onde recolhia os ovos daquele dia, e sem entender o que estava acontecendo, caísse em prantos e clamasse aos céus por clemência e orientação.

Tudo foi muito rápido. Aconteceu e estava feito. Não tinha volta. Agora era a realidade e não havia nada a fazer para consertar.

Aos poucos Seu Avelino foi recobrando os pensamentos, estava trêmulo, com os olhos vermelhos, e continuava calado.

O pai de Antônio, depois de ralhar com a mulher exigindo que ela parasse com o choro e com as lamentações, virou-se para o compadre e pegou a arma. Disse a ele que ficasse calmo, que fosse para casa, e que não comentasse nada sobre o ocorrido, nem mesmo com a Dona Célia.

Seu Avelino olhou mais uma vez para o corpo daquele homem imerso numa poça de sangue, rodopiou sobre os calcanhares e, mecanicamente, saiu pelo mes-mo lugar por onde havia entrado momentos antes.

Ninguém viu Joana ali, e ela calada, sem fazer qualquer ruído, voltou para casa.

A noite havia chegado de vez, e com ela Antônio chegou ao terreiro. Estava todo suado, com a roupa suja de terra, resultado de um dia de trabalho pesado na roça de café.

Era costume ao final do dia, quando voltava da roça e antes de se recolher, passar pela casa dos pais para tomar a bênção. E aquele dia não foi diferente.

Foi sim... Naquele dia tudo foi diferente.Antônio chegava com o corpo cansado, mas com a alma leve, estava tran-

quilo, feliz com mais um dia trabalhado, feliz de voltar para a sua família, feliz como há muito tempo se sentia, ou como sempre se sentiu. Mas, a cena que encontrou foi como um nocaute. Seus miolos não conseguiam atinar o que havia acontecido ali.

Olhou aquele homem caído, mais adiante viu seu pai sentado no canto do alpendre, apoiado na mesa, o brilho da lamparina clareava seu rosto abatido, os olhos assustados, o cigarro de palha apagado no canto da boca, e ouviu o choro abafado da mãe que vinha da cozinha.

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O pai, vendo o espanto do filho, chamou-o para perto, explicou o acontecido, e pediu a ele que preparasse um cavalo, que fosse na vila providenciar o sepulta-mento e comunicar o acontecido para a autoridade do Cartório.

Explicou a Antônio que Seu Avelino atirara para protegê-lo, que o compadre não poderia ser envolvido no caso, que ele tinha oito filhos para criar, e que não havia testemunha do disparo a não ser ele mesmo, o pai de Antônio.

Então, Antônio foi orientado a dizer para a autoridade na vila que ele mesmo, Antônio, havia disparado o tiro para proteger seu pai.

E assim foi feito. No escuro da noite, montado no seu cavalo de lida, Antônio foi até à vila que era razoavelmente próxima. A autoridade providenciou a retirada do corpo poucas horas depois, e como não havia delegacia e nem delegado na vila, não havia telefone e nem telégrafo, a comunicação foi feita por carta para a central regional da polícia, e dessa maneira, só restava esperar a chegada da autoridade competente para que fosse enfrentado o desdobramento do caso.

O pai de Antônio explicou a ele que como o tiro fora disparado para defender a vida do pai, Antônio certamente, assumindo a culpa como fizera, seria apenado com poucos meses de prisão, e que tudo seria resolvido rapidamente. Pena que certamente seria muito mais severa se fosse aplicada para Seu Avelino, que não seria beneficiado por não ter grau de parentesco com o pai de Antônio. Era assim que o pai de Antônio pensava, e foi nisso que Antônio acreditou.

Antônio estava desarvorado. Temia pelos filhos, pela mulher e por ele mes-mo. Nunca saíra do seu canto. Nunca acordara em outro lugar. Suava frio quando pensava que teria que viajar para longe, sozinho. Nunca fizera isso! Mas, sabia que teria que resignar-se, aliás, já estava resignado, e não falava sobre isso. Nem com Joana. O que seu pai decidiu era o mais correto a ser feito. Afinal, poucos meses passariam rapidamente, e não seria justo que Seu Avelino ficasse preso. Como poderia sustentar a mulher e seus oito filhos?

Antônio nem conseguia dormir tamanha a insegurança que tinha na alma, e sabia que Joana, mesmo quietinha na cama, também não conseguia, e a cada dia que se passava a agonia dos dois se avolumava. Não falavam sobre isso. As coisas seriam como deveriam ser, e pronto.

Depois de duas semanas sofridas, o jipe da polícia chegou. O delegado conversou com o pai de Antônio, entregou uns papéis, e Joana foi destacada para ir até à roça para chamar Antônio.

Vieram em silêncio, vagarosamente, como não querendo chegar. Joana ar-

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rumou a mala com as poucas roupas, e Antônio vestiu-se com a melhor troca, despediu-se discretamente diante das crianças, e seguiu no jipe da polícia junta-mente com o delegado e o milico. Estava calado, com os olhos apavorados, mas não chorava.

O choro ficou apenas para as mulheres. A mãe de Antônio, vendo o jipe sumir por entre os pés de café e a nuvem de poeira, enxugou os olhos na ponta do avental e voltou para a cozinha.

Joana, segurando as meninas pelas mãos e carregando o mais novo na barriga, com a alma em soluços, rumou para casa. Meu Deus, como seriam esses meses?

E as noites foram longas... E as lágrimas não cessavam... E a barriga cres-cia cada vez mais, feito a saudade.

Não chegava carta. Antônio não sabia escrever, e nunca pediria para que alguém o ajudasse. Imagina se ele contaria alguma coisa para qualquer estranho!

E o filho nasceu... Um menino grande e forte, como o pai. A ele foi dado o nome do avô. Joana sabia que Antônio, distante, estaria aflito, apavorado e muito triste por não estar junto dela naquele momento. Pelas contas deles, quando a criança nascesse, certamente a pena de Antônio já estaria cumprida, ele já estaria em liberdade. Mas, isso não aconteceu. A pena estava sendo muito maior que o esperado.

Era a vida... E um ano se passou...Nada de Antônio ser colocado em liberdade, e então Joana foi informada

pelo pai de Antônio que ele fora condenado a uma pena total de três anos de prisão.Quanta dor! Apenas um ano havia se passado, e havia mais dois pela frente.

Quanta solidão!As meninas, com quatro e dois anos, o menino com seis meses, e a vida

precisava seguir em frente. E seguia, só Deus sabe como...Joana contava os dias, calada. Conversava com os pais de Antônio apenas

o trivial, o corriqueiro, era o costume. Não se falava em tempo de espera, em sau-dade, em dor.

Todos sentiam tudo, mas ninguém falava...A mãe de Antônio cuidava de ajudar Joana nas tarefas, principalmente no

cuidado com as roupas e no preparo dos pães. Era bondosa, de olhos mansos, piedosa, mas submissa. E Joana, também.

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Apesar de forte, de extremamente organizada e generosa, a mãe de Antônio era devotadamente submissa ao marido. Não exigia explicação alguma, não ques-tionava nada, não contestava, apenas vivia, ou melhor, respirava...

Passados três longos anos, a colheita de café agitava os colonos num vai-vém incessante, o sol estava começando a declinar naquela quarta-feira, quando Joana ouviu o som de uma condução que se aproximava.

Com o coração aos pulos foi para a janela e avistou o jipe da polícia. Nem sabia o que fazer. Queria estar bem bonita para o reencontro com Antônio, mas num ímpeto, nem se lembrando disso, correu para o terreiro, sem mesmo tirar o avental.

E viu Antônio... E se assustou...Antônio estava magro, excessivamente magro, amarelo, olhos fundos, en-

tristecido, curvado, abatido, com uma palidez macilenta, e quando falou seu nome, Joana percebeu sua voz muito fraca. Só o carinho que Joana viu em seus olhos lembrava o seu Antônio que havia partido há três anos.

Antônio estendeu a mão num cumprimento, e procurou rapidamente, com os olhos, os seus filhos. Eles vinham correndo buscando a mãe. As meninas não reconheceram o pai, e o menino ainda não havia sido apresentado a ele.

Antônio despediu-se dos policiais, pediu a bênção dos pais, pegou a mala e rumou vagarosamente para casa, seguido por Joana e pelos filhos.

Os policiais ficaram conversando um bom tempo com os pais de Antônio, e depois se foram.

Antônio entrou em casa e ficou um bom tempo olhando para as paredes como se estivesse matando a saudade que sentia no peito, e demorou a soltar a mala.

Joana estava feliz com a chegada do seu Antônio, mas o coração apertado tentava contrariar a sua vontade, e colocava uma névoa de preocupação na sua alegria. Sentia que Antônio não estava bem.

E não estava mesmo. Na prisão Antônio havia contraído várias doenças, e a tuberculose havia minado suas forças quase por completo. A falta de sol, a falta de se exercitar como fazia na roça, a alimentação precária e a solidão daqueles anos todos lhe roubaram a saúde.

E mesmo feliz por estar de volta, Antônio não conseguia reagir aos males do corpo. A febre não cedia, a prostração o dominou. Antônio foi se finando, foi se esvaindo, até que a vida lhe escapou das mãos.

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Foram dias difíceis, angustiantes. Na verdade, nesses dias Joana teve a impressão de ter sido levada, de ter sido arrastada porque não se lembra de muitos detalhes.

Depois de tanta espera, depois da volta, em apenas poucos meses Joana se via novamente só. Não havia o que esperar. O seu Antônio não voltaria mais, havia partido para sempre.

Agora ali, olhando os rostos serenos dos filhos, com o coração enlutado, com as forças querendo abandoná-la, relembra tudo e nem revolta sente. Não re-clama, não blasfema, não se insurge, não maldiz, não se inflama. Continua apática, abatida, resignada. É o costume...

Queria apenas entender...Assim que amanhecer irá de mudança para a vila. É chegada a hora da filha

mais velha começar na escola. O pai de Antônio arrumou uma casa na vila para ela e para as duas meninas. O menino ficará ali, com o pai e com a mãe de Antônio. Será criado por eles no costume do sítio para pegar gosto pelo trabalho na terra.

Joana está amargurada com mais esta separação. Assim foi decidido e assim será...

O sol clareou o terreiro, a parca mudança foi colocada num velho caminhão que chegara. Joana e as meninas amontoaram-se na pequena cabine juntamente com o motorista, e o choro gritado do filho, que se contorcia para sair do colo da mãe de Antônio à procura dos seus braços, entrava por seus ouvidos e parecia querer explodir seu peito com tamanha aflição.

A dor que Joana sentiu ao parir foi infinitamente menor comparada a essa que apertava seu peito nessa separação. Era agora como uma lança em chamas a rasgar sua carne, seu ventre, retirando seu filho do seu convívio. Não iria mais estar presente nos dias da vida dele, não iria acompanhar seu crescimento, não iria mais velar seu sono, não estaria presente para aliviar seu medo nas noites de chuva...

Mas, era a sua vida... O caminhão seguiu pela estrada poeirenta.Joana também deveria seguir em frente... E seguiu...

*Regina Ruth Rincon Caires é bancária aposentada, Araçatuba-SPE-mail: [email protected]

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Cachos de meninaBreno da Costa Alves - 1.ª menção honrosa - categoria regional - Penápolis-SP

N otaram a presença de Raquel pela primeira vez no ato de seu nascimento, quando, após um trabalhoso parto, chorou. Um choro de estranhamento e graça. Criança formosa, rechonchuda. Os familiares e vizinhos encantavam-

-se com a pequena criatura. Tão inocente, tão pura. Cinco anos após o nascimento, os parentes do sul estavam hospedados

na casa de Ícaro e Mabel, pais da criança, para comemorar o aniversário da pe-quenina. Porém, para espanto de todos, algo inusitado aconteceu naquela noite. Os cabelos da adorável criança iniciaram um processo de metamorfose repentina. Tornaram-se encaracolados o que antes eram lisos e sedosos.

Os distantes familiares aproximaram os olhos para compreender melhor o ocorrido, espreitando os cabelos em busca de um ensejo perfeito. Entreolharam-se. Suspiraram desconfiados. Tossiram para disfarçar. Em vão culparam a genética, o DNA. Mas a prova ali estava; visivelmente real e encaracolada. Encaracolados fizeram-se os cabelos. O primeiro cacho saltou envergonhado. O segundo menos tímido. Os demais, desesperados. A saleta inundou-se num profundo e inconforma-do espanto. Aproximando-se, disse Dalton:

- Curioso este fato, Ícaro – estranhou Dalton, irmão de Ícaro, em um suspiro demorado e autêntico.

Falava em segredo:- A criança em nada lhe parece. Nem pés chatos, cor mediana, olhos ca-

ramelos, rosto magro. Nem as mãos, nariz ou testa... Em nada! E agora, até o cabelo se transfigura. Meu irmão, que as acusações estejam distantes de minha boca, mas tal dessemelhança apavora-me. Há em nossa família alguém, por mais remoto, com parecidas características? Custo a acreditar. Conheço seu amor por Mabel, a ponto de reconhecer sua extensão desmedida, e, também, compreendo as mudanças provocadas pelo tempo nas pequenas criaturas. Porém, não é preciso ser médico como és para entender que o filho deve se parecer com o progenitor. Não cometa enganos. Poupe-se dos sórdidos afazeres de pai.

Ícaro fitava a menina estarrecido. Percebeu algumas distinções a partir do cochicho alheio.

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Tadeu aproximou-se falando em tom baixo:- Caro sobrinho, percebo a inquietação da sua alma e entendo bem os

motivos. Esta sala transborda em maus pensamentos e acusações extremamente desconfiáveis, que certamente o levará à meditação incômoda. Não medite. As circunstâncias esclarecem nitidamente o verdadeiro. Acostume-se.

Havia uma serenidade impaciente em sua voz. As palavras vinham à boca e extravasavam sombriamente nos olhos:

- Veja meu exemplo: meu filho, Pedrinho, é bastardo. Sou estéril. O sangue que corre em suas veias difere, em sua totalidade, daquele que preenche as mi-nhas, mas incomodar-me com pormenores jamais me importunou. Pedi para um amigo fazer aquilo que é impossível a mim. De bom grado, aceitou. Minha falecida esposa concordou igualmente. Após o menino nascer agradeci aos céus por ele não ter herdado a cor escura do pai, afinal, desconfiariam.

Afastou-se Tadeu. As vozes confundiam Ícaro e a movimentação tonteava-o a ponto de causar-

-lhe vertigem. Chamou Mabel para acompanhá-lo até o cômodo adjacente. Na saleta, os comentários continuaram.

- Muitas discussões assolaram meu casamento, contudo por motivos mais relevantes que um mísero cacho de cabelo. As crianças são arteiras; correm pela casa, pelo quintal. Sujam a roupa, suam... Suor, talvez esse seja o motivo da rebel-dia no cabelo – Pronunciou Tadeu em sua calmaria atrevida e insolente.

- Suspeitei ao ver a menina no colo. Nem de longe possuía a audácia, a perspicácia de nossa família. Entretanto, estou a recordar algo que muito me cha-mou a atenção: o umbigo. Sim, o umbigo da criança é perfeitamente idêntico ao de meu menino. Poderia compará-lo e chegaríamos a um resultado satisfatório. Como não notei antes? – Enquanto falava, Dalton olhava a menina.

Repentinamente, Ícaro voltou à saleta com duas malas em suas mãos. Anunciou uma viagem repentina à África. A convite de um grupo de estudiosos iria exercer medicina preventiva, desenvolvendo no continente africano um antídoto para a Malária. Saiu despedindo-se razoavelmente. Mabel chorava descompas-sada.

Todos, boquiabertos, preocuparam-se com o futuro da família.Meses depois, Mabel estava mais magra, mais pálida, menos viva. Recebeu

a notícia da morte de Ícaro com grande pesar. Na noite da viagem, a mecânica falhou. O céu caiu e o sonho audaz também. Fatal. O avião caiu no mar, levando

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à morte todos os passageiros. A criança ficou sem o pai e a África sem a cura da malária.

Esquelética e desgostosa, Mabel dizia à filha:- Não corra pela casa, querida. Seu suor é mortífero e vai desmanchar a

chapinha.

*Breno da Costa Alves é estudante universitário em Araçatuba, 19 anos, mora em PenápolisE-mail: [email protected]

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Coisas de DiárioLarissa Ruffato de Angelis – 2.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP

E ra meu segundo dia na Holanda e, sinceramente, já contava as horas para o dia acabar. Os passados em Paris foram encantadores. Sei que esse encanto deveu-se ao fato de a cidade e eu não termos nenhum compromisso entre

nós. Mas, ao fim dos cinco dias, juntei-me a uma excursão. Paguei essa parte da viagem em prestações de um ano e meio. “CONHEÇA O MELHOR DA EUROPA EM 10 DIAS!” Não preciso nem dizer o quanto desesperador e decepcionante é tentar atravessar uma parte que seja do velho mundo em um espaço tão curto de tempo. Somos arrastados por caminhos que não escolhemos e, na ânsia de vermos tudo, acabamos muito mais perdendo de vista. Mas, quando seu desejo pelo universo é intenso, então ele se digna a compaixão. Não sei se é uma regra, mas... Parto amanhã, e agora sem nenhuma decepção.

“Deus criou o mundo, mas a Holanda foi criada pelos holandeses.” Desco-nheço o autor. Ouvi dizer que era uma terra coberta por água, tomada pelo mar. Mas os seres humanos que cá vivem, decidiram viver aqui e assim o fizeram a todo o custo.

Prometeram-me flores. Vi poucas. Tudo bem. A história me encantou. Di-zem-se um povo livre. Acredito porque me disseram e talvez o sejam por dizerem. Dar-me-ei ao luxo de contar uma história que talvez seja verdade apenas porque a conto.

Foi-nos prometido conhecer os frutos proibidos no “nosso mundo”. Fazia parte do itinerário, conheceríamos as drogas e as putas de Amsterdan. As drogas que abrem o corpo para outras sensações quase tão proibidas quanto. E as pu-tas... Bem, as putas, o mundo inteiro sabe bem, mas que eu vi como nunca havia imaginado.

O caminho era longo. Várias belezas se espalhavam por esse país encan-tadoramente estranho. Muita gente, o que em sinceridade não me agrada. Alguns passavam habitualmente, outros fingiam encantos ou se encantavam mesmo, não me preocupei em lhes observar a autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram que elas cresciam aos montes naquela época do ano, belas e livres. Não sei se foi

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mentira ou ilusão alheia, sei que me esforcei na procura.Meu corpo já estava cansado. Se eu resguardava alguma expectativa, ela

com certeza me escorregara dos bolsos. Já andava com os olhos baixos. E me ob-servando, acredito que o universo teve compaixão: encontrei a flor. Sim, em artigo definido, pois sei que era ela que no fundo eu esperava encontrar entre milhares. As milhares não vieram, mas ela foi fiel, jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde veio. Se caiu de um cesto, se cresceu ali ou se despencou do céu. Só estava lá. Lin-da, viva, vermelha, livre. Livre para crescer e ser onde tudo simplesmente passava. Mas, assim como eu, com meus olhos baixos de cansaço, ela deixava escapar de si uma tristeza involuntária, talvez por ser demasiadamente livre e, portanto, solitária.

Tomei uma corajosa decisão: parei no meio da rua apressada e colhi a flor de sua liberdade. Abraçamo-nos como dois queridos reencontrados. Quando me dei conta, estava diante das drogas e das putas. O Bairro Vermelho, onde o pecado merece respeito.

A rua era comprida, dividida por um canal como é em toda a parte por aqui. Tudo muito amontoado: cores, cheiros, sons e até as vontades. Parecia que, ao mesmo tempo, tudo e todos buscavam a liberdade esguia naquele asfalto cru. De minha parte,

não me senti mais livre, nem menos também.As putas ficavam dispostas em vitrines exibindo seu produto, à espera de

um desejo que se desatasse de todo o emaranhado e as viesse convidar. Havia poucas, quase nenhuma. Ainda era cedo para aquele tipo de comércio. Vitrines eu vi aos montes, porém vazias, pedindo aos meus olhos um significado. Eu poderia elaborar muitas comparações para aquela situação peculiar aos olhos ingênuos e adestrados. Mulheres e vitrines. Corpos e vitrines. O desejo podendo observar pelo vidro o desejado. Mas, metaforicamente, é mais capitalismo do que minha poesia pode suportar. Fui dando aos meus passos o consentimento para seguirem distraídos enquanto me dedicava à flor. Nessas excursões quase nunca se para. Nem para ver. E tão cegamente meus pés obedeceram que subi os degraus de uma charmosa soleira, assim por acaso, por distração. Só percebi quando meu corpo tocou desastrosamente aquela puta:

- Perdão! – num susto.Ela não respondeu. Olhou-me esguia como quase nem se olha. Manteve a

face e o corpo voltados para algo que parecia uma procura; uma espera. Acele-rei meus movimentos desencontrados para escapar àquela cena, mas a ingênua

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curiosidade me conteve e eu gaguejei meu comentário tão desnecessário:- Você não está em uma vitrine...Não me passou pela cabeça a possibilidade de ela não entender o meu

inglês mal treinado. Recebi um sorriso sem o seu olhar. E por um instante, dei conta de que eu deitava meus olhos sobre ela no seu corpo desnudo paradoxalmente vestido de puta. Não sei quanto tempo me demorei olhando e nem se ela se inco-modava, mas a inércia da situação me impulsionou uma atitude – desnecessária? Estendi-lhe a mão que guardava a flor:

- Isso não me paga. – sorriu com desdém, de lado.- Estava no chão. – minha voz eram cacos, meu corpo se encolhia em sub-

missão a algo que ela parecia possuir e a tornava superior.Silêncio.- Não me pertence. – quebrei.- Nem a mim.- Pode pertencer se você aceitar. – os cacos se juntaram firmes e o corpo

tomou a coragem do desvendar.Pela primeira vez, ela me olhou e eu olhei seus olhos em resposta. Dessa

vez, sorrimos pelo olhar.Ela me convidou para entrar. Eu disse que não podia pagar. Ela deu de om-

bros. Eu sorri minha timidez com os lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele morna na minha fria. Ela me puxou para perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a face. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Tragou o ar feito uma droga, carregado do sentimento que criamos. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela aceitou a flor, é tudo que sei, mas, quando penso, gosto de acreditar que também tenha chorado e não trabalhado aquele dia.

Depois disso, para mim, mesmo nos dias de trabalho, ela não era mais puta. Era mulher. A falta do vidro entre nossos corpos permitiu que eu enxergasse nos olhos dela a vitrine de sua alma. E tudo o que eu vi é segredo.

Larissa Ruffato de Angelis é professora de Inglês, Araçatuba – SPE-mail: [email protected]

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Conto de um amor sem limites

Marcelo Otávio de Souza – 3.ª menção honrosa – categoria regional – Birigui-SP

F altavam poucas horas para tudo, definitivamente, acabar. Poucas horas, en-tão, tudo aquilo se transformaria em lembranças. Boas. Ruins. Mas, somente, lembranças.De repente, tudo desapareceria. Para sempre. Todo sempre. As ruas. As

casas. As praças. Tudo seria engolido pelas águas. Logo, a cidade transformar-se--ia em história. Submersa. Solitária no fundo de uma imensidão sem fim de água.

O progresso é cruel. Não há sentimentos, portanto, não há compaixão. O país precisa de energia elétrica. Precisa crescer. A usina hidrelétrica estava pronta. Em poucas horas as comportas se fechariam. E tudo o que ali estava, desaparece-ria por completo. Desapareceria para sempre. Tudo se transformaria em um mar de água doce. Um grande mar de água doce que traria conforto e progresso para milhares, milhões de pessoas.

Por isso, a cidade estava fazia. Totalmente deserta. Só restavam lembran-ças. Histórias passadas. Vividas. Fantasmas de um povo que viveu por centenas de anos, e, que foi obrigado a abandonar as suas casas. Seus lares. Suas vidas. Suas histórias.

No silêncio da cidade morta. Um barulho. Um barulho?Dona Menina está sentada em sua cadeira de balanço, na varanda de sua

casa. O barulho é do balanço, que, incansável, vai de um lado para o outro. De um lado para o outro. De um lado para outro.

O tempo passa. Esgota-se. E Dona Menina a balançar. Alheia a tudo, Dona Menina vai de um lado para outro, de um lado para outro.

Mas, há um problema, Dona Menina não está alheia a tudo. Pelo contrário, Dona Menina está muito ciente de tudo. Sabe que o tempo é curto. Sabe que em horas, tudo não passará de história. Lembranças do que um dia foi. Mas, mesmo assim, esta lá, sentada em sua cadeira de balanço indo e voltando, indo e voltan-do, a balançar. A esperar. Ela não espera a morte. Apesar de a morte ser um ser

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iminente, ela, não a espera. Ela espera algo mais importante. Algo que esperou por sua vida inteira. E não arredará o pé, antes, que este chegue.

Vizinhos. Amigos. Os poucos familiares que lhe restaram. Até o prefeito veio até Dona Menina a fim de persuadi-la a sair dali. Mas, em vão. Então, sendo mulher feita, consciente e sabedora dos infortúnios que a aguardam, foi abandonada à própria sorte, ou, a sua própria vontade. Afinal só ela pode se salvar.

Aos 75 anos, Dona Menina passará a sua vida inteira, ali, sentada na varan-da a esperar. A olhar para o horizonte perdido. Em sua cadeira de balanço de um lado para outro, de um lado para outro.

Olhando o horizonte, relembra os bons e maus momentos que vivera. Lem-bra-se do amor de sua vida. Aquele a quem ela se entregou, de corpo, alma e coração. Aquele a quem amou todos os dias da sua vida. Aquele, que, por covardia, perdeu.

Olhando para o horizonte sem fim, espera. Espera a chegada daquele que foi o fruto do seu amor. Resultado de um amor que nem o tempo conseguiu apagar.

Dona Menina era jovem e bela, a mais bela da cidade. Naquela época era a única mulher na cidade com formação superior, fruto de vários anos na capital do estado. Bom partido, o melhor da cidade, vivia sendo cortejada pelos homens. Homens ricos, influentes. Homens considerados de bem.

Mas, Dona Menina não podia mandar no coração, aliás, ninguém consegue fazê-lo, por isso, apesar de inúmeros pretendentes, Menina apaixonou-se por um homem de fora da cidade. Um forasteiro como diziam os moradores.

Foi amor à primeira vista.De repente, estava apaixonada.Estavam apaixonados. Perdidamente apaixonados. A guerra começou. Todos eram contra o namoro de Menina que brigou,

lutou, fez chover, mas, não conseguiu demovê-los, não conseguiu a aprovação da família quanto ao seu namoro e as reais intenções de seu namorado.

- É um vagabundo! – dizia o pai – Uma pessoa sem eira nem beira!- Ele só quer brincar com você, Menina. – completava a mãe – Será que só

você não vê? Será que você não percebe isso?Mas, Menina não queria nem saber o que os pais diziam, por isso come-

çou a encontrá-lo às escondidas, na calada da noite. Com a desculpa de ir à reza na casa de uma ou de outra amiga, saía e se encontrava com seu grande amor. Perdidamente apaixonada, entregou-se a ele, no dia, a que considerava o dia mais

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feliz da sua vida. O dia que nunca se esqueceu. Mesmo com o passar dos anos. Os muitos anos, sem que nunca, por um dia sequer, se esquecesse daquele dia.

Um dia, a notícia, ele iria embora. Teria que ir embora. Por causa do seu envolvimento com Menina, ele fora despedido do emprego, e, ninguém, ninguém na cidade tinha coragem de lhe contratar, ou melhor, ousava contratá-lo, pois, todos tinham medo do pai dela.

Naquele dia, ele estava triste, arrasado. Definitivamente acabado. Sem di-nheiro e sem posses teria que ir embora. Deixar a cidade em busca da sua sobre-vivência.

Pediu, para que Menina fosse embora com ele. Disse que a amava e queria casar-se. Menina pensou, pensou, mas não foi. Não teve coragem de abandonar sua vida, sua família. Amava aquele homem, era verdade. Amava-o mais do que qualquer pessoa pudesse imaginar. Mais do que a própria vida. Menina não con-seguiu desafiar o pai. Não tinha forças para isso. Na verdade, não fora criada para isso.

Chorando, Menina viu-o partir. Para sempre. Viu seu amor, sua felicidade escapar pelos dedos das mãos como areia fina. Viu-o partir, para nunca mais voltar.

Aquilo foi demais para Menina, que passou duas, três semanas sem ao menos sair do quarto. Não conversava com ninguém. Não ouvia ninguém. E comia pouco, muito pouco. Comia o suficiente para manter-se viva.

De repente, percebeu que algo estranho estava acontecendo com ela. Sen-tia fraqueza. Enjoos. De repente percebeu estar grávida. A princípio ficou feliz. De-pois, desesperada. Grávida. Sem um marido. Aquilo seria seu fim. Uma vergonha, para si, e, principalmente para a sua família.

Devia ter ido embora, mas, não fora, agora, teria que enfrentar aquela situ-ação de frente.

A noticia da gravidez caiu como uma bomba na família. Menina foi ofendida, humilhada pelos pais. Se perder a virgindade antes do casamento já era motivo de vergonha na família naquela época, imagina uma gravidez.

Dias depois, Menina e sua mãe deixaram a cidade com destino à capital. Para que Menina estudasse, disseram. Meses depois, ela deu a luz a um menino. “A cara do pai” – pensou – ao receber o filho pela primeira vez em seus braços. Nesse momento, chorou de alegria. Chorou, também, por lembrar-se dos momen-tos maravilhosos que vivera com o pai dele.

Após o nascimento da criança, Menina e a mãe viveram por um tempo na

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capital. Tinham uma vida boa, mas, silenciosa, Menina vivia quase o tempo todo em silêncio. Quase não conversava com a mãe ou com qualquer outra pessoa que viesse visitá-las. Vivia para o filho: banhava-o, amamentava-o, dedicava-se completamente a ele. Que era a sua alegria. A única alegria que tivera, naquela infeliz vida.

Em uma manhã, sua mãe, pediu para ela arrumasse as malas, pois volta-riam para casa. Menina arrumou tudo e pôs-se a esperar, brincando com o filho que insistia a sorrir-lhe o tempo todo.

Horas antes de partir, uma tia chegou a casa. Friamente sua mãe pediu-lhe para a filha dar o menino à tia. A partir daquele momento ela seria a mãe do filho de Menina.

Aquilo deixou Menina desesperada. Ela chorou. Pediu. Implorou. Ameaçou fugir. Mas, não demoveu a mãe da decisão.

Sem qualquer ressentimento a tia pegou o filho dos braços de Menina e se foi. A criança chorava desesperadamente, mas, nada fez com que desistissem de toda a maldade para com Menina e seu filho.

Ao ver o filho partir, Menina ainda correu atrás do carro onde estavam a tia e o filho. A tia parou o carro e por um minuto Menina olhou a criança chorando, que, ao sentir um leve toque das mãos de sua mãe no rosto, parou de chorar. Me-nina sabia que aquele seria a ultima vez que veria seu filho, então fez um pedido a tia; Pediu para que ela falasse ao seu filho sobre ela. Que dissesse a ele que ela o amava, e que ele nunca fora abandonado. Pediu a tia para que um dia ela o deixasse conhecê-la. Vendo o desespero da sobrinha ela aceitou. Fez-lhe uma promessa. E se foi.

Desde então Dona Menina vive ali, sentada a esperar. A esperar pelo filho que nunca veio. Não até aquele momento, mas ela sabia que um dia ele viria. Viria vê-la. Então, abraçá-lo-ia. Beijá-lo-ia. Far-lhe-ia inúmeras declarações de amor.

Esperando pelo filho, Menina foi vivendo ali, dia após dia, todos os dias de sua vida.

Acompanhou a morte dos pais. Dos irmãos mais velhos. E esperou.Sempre olhando o horizonte e a balançar. Vai e vem. Vem e vai. Sempre

olhando o horizonte e a esperar. Esperar, pelo filho amado. Único fruto de um gran-de e verdadeiro amor. Único fruto do seu amor.

E mesmo com a iminência da morte, não conseguia sair dali. “E se ele viesse logo hoje. E não me encontrasse? Poderia achar que eu não

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o amo. Poderia pensar que eu realmente o abandonei”.Nada passava na sua cabeça, além da volta do filho para os seus braços.

Aquela criatura frágil, pequena, tão indefesa. Que agora, imaginava, seria um ho-menzarrão. Lindo, forte, cheio de saúde. Com uma família linda. Filhos. Netos. Logo ele estaria ali, no seu portão. Então, este, seria o dia mais feliz da sua vida. Mais feliz. Por isso, não podia sair dali, prometera que estaria a sua espera. Prometera. E promessa é dívida.

Não quebraria uma promessa. Principalmente a promessa feita ao seu filho tão amado.

De repente, no meio daquele silêncio todo, um barulho ensurdecedor. De-pois, outro. E mais outro. O fim se aproximara. O fim da cidade. Da história. Dos sonhos. O fim de Dona Menina estava chegando.

Então, uma criança chega ao seu portão. Ela olha e sorri. Um sorriso lindo. Cheio de vida. O menino abre o portão e corre para os braços de Menina, que o abraça e o beija amavelmente.

- Eu sabia que você viria... – diz ela aos prantos – Eu sabia.Outro barulho, então, o fim! A água toma conta de tudo, sem dó, nem pie-

dade. Em segundos, tudo se esvai para sempre, submerso na imensidão azul de água doce.

* Marcelo Otávio de Souza é funcionário público, mora em [email protected]

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Relógio de pênduloPedro César Alves – 4.ª menção honrosa –categoria regional – Araçatuba-SP

O tempo corria silenciosamente – a leve brisa passeava pela sala, às vezes no sentido da cozinha para a rua, às vezes no sentido contrário. Quando vinha da rua, trazia o suave perfume das rosas vermelhas, colhidas do próprio

jardim, e no oposto trazia o suave aroma do café.De tempo em tempo era ouvido um murmurar: o desfiar das rezas em inten-

ções da alma que partira e, segundo os mais religiosos, fora em vida uma pessoa de bom coração, caridosa por excelência. Os mais próximos diziam que a falecida ia diretamente ao descanso dos justos.

Logo se silenciava tudo. Olhares contristados. O pesar continuava e era quebrado, às vezes, por:

- Servido de um cafezinho?E o tempo corria silenciosamente, fazendo a noite chegar envolta em seu

manto escuro, salpicado de estrelas cintilantes. As pessoas iam, aos poucos, se ausentando prometendo voltar ao amanhecer para acompanhar o féretro ao seu destino final antes do sol estender plenamente o seu cetro, que se faz ao meio-dia.

Aproximavam-se os ponteiros do relógio de ficarem sobrepostos na marca inicial do novo dia – como muitos dizem. Em volta da avó, do corpo da avó coberta de flores vermelhas cultivadas há muito tempo por ela mesma e seu desejo cum-prido, apenas os mais próximos: filhas, genros, netos, dois ou três bisnetos – não tivera filhos. Num canto da sala uma belíssima coroa de flores enviadas pelas Mu-lheres da Glória – uma associação religiosa que ajudara a criar e que auxiliava os menos favorecidos. Nos castiçais velas iluminavam – simbolicamente – o caminho daquela alma bondosa.

Anos antes, naquela mesma sala, o corpo do avô fora velado. Mas naquela época, sobre os castiçais, na parede, o velho relógio de pêndulo de hora em hora emitia o seu som. Mas naquela madrugada de seu funeral soou até quatro horas da manhã – o restante da madrugada fez-se silencioso – e continuou por todos aqueles quinze longos anos que os separavam.

Tempos depois fora colocado, a pedido da avó, em seu quarto, o primeiro da

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casa e que dava para a sala de visitas – casa antiga. A avó, quase sempre perdida no tempo, parecia contar o tempo junto com os ponteiros, que pareciam não se cansarem de subir e descer.

As filhas quiseram tirá-lo dali, mas nos poucos minutos de lucidez pelo qual passa a avó, não deixava. Alegava grande estimação por ele. Quando começava a atrasar, pedia que renovassem as forças do mesmo – e não importava que meca-nismo fosse que o fizesse funcionar. Era assim feito – quando demoravam a fazer o pedido, começava a não passar bem.

Nos dois últimos anos as filhas revezavam para cuidar da mãe. Os espaços de falta de lucidez eram bem maiores. A idade, que não era tanta ainda, mas era, respondia a todas as indagações de seu estado de saúde.

No último semestre, com os netos e bisnetos precisando de mais cuidados, as filhas contrataram enfermeiras para cuidarem da avó. Com todas as recomen-dações feitas, as filhas passaram a frequentar a casa alternadamente.

Madrugada fria. O tempo corria silenciosamente fazendo-a tornar-se mais gélida. Alguns, recostados nas poltronas próximas do féretro, ressonavam; outros, servidos a café contínuo, papeavam sobre os mais diversos assuntos. Outros, ain-da, haviam procurado um dos quatro quartos da casa para recostar em algum leito – principalmente os mais jovens.

Entre os poucos presentes, acordado àquela hora e sem bocejar nenhu-ma vez, estava ele: Toninho. Apesar do nome carinhoso, passava de um metro e noventa, de corpo atlético, solteiro, e com mais de sete décadas de existência. Parentesco longínquo da falecida. Criado, quando jovem, no mesmo pedaço de chão – aquela pacata cidade interiorana. Pouco se sabia dele, ou quase nada, pois costumava passar longas temporadas fora da cidade e, quando era anunciada a sua chegada, comentavam:

- Alguém vai partir!E era sempre alguém ligado a ele – mesmo que em grau de parentesco dis-

tante. Parecia um enunciador da morte; um anjo torto e negro. Chegara, em ambos os casos – do avô e da avó – dois dias antes destes partirem para o outro lado da vida. E os mais maldosos de alma diziam que o dia dele também chegaria – e ele tinha consciência do fato. Pressentia a partida dos mais próximos, tanto dos que odiavam como dos que amavam – e daquela casa pressentiu os dois lados: tanto pelo que odiava como pelo que amava. E ela fora a única que amou em vida.

A avó fora o único grande amor em sua vida, mas que não fora correspon-

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dido – o avô chegara de outro vilarejo e na época a tomara para si. Na época não lutara pelo seu amor, mas durante toda a vida não se afastara dali – mantinha casa ali e à beira-mar, sua segunda paixão.

A madrugada corria silenciosamente, assim como a brisa...O relógio de pêndulo ecoou o seu som: quatro horas da manhã! Todos se

entreolharam arrepiados e nada disseram; apenas Toninho disse:- É o avô chegando – em tom muito baixo, que apenas os de perto ouviram,

e com certa dificuldade.Levantou e postou-se à cabeceira direita do féretro, e resmungou em meio

tom:- Eu não disse para você não voltar?- ...- Eu sei que você não prometeu, mas podia dar-me a honra de não ter este

desagravo com você.- ...- Sim, eu sei. Sei que fui covarde. A minha covardia fez com que o respeito

estivesse presente durante todos os dias de nossa vida.- ...- Entendo. Então vou partir agora...- ...- Claro que vou! É o meu desejo que eu faço valer agora – o que não pude

exercer a vida toda por ser um covarde.- ...- Não adianta falar mais nada, pois se é assim que você quer, assim vai ser

a nossa batalha final...E largou a posição que se encontrava e dirigiu-se à cozinha – e foi acom-

panhado por mais alguns que estranharam a atitude. Na sala, a filha mais velha que conhecia toda a história do ‘tio’ Toninho – pois era assim chamado por todos da casa, disse:

- Só pode estar ficando louco!Foi um alvoroço só na cozinha. Alguns gritos se ouviram no quintal, pois

seguiu para este – e o som de espadas era ouvido. Vários homens da casa tentavam chegar perto para segurá-lo, mas não

conseguiam. A velocidade de seus braços e pernas era intensa – não parecia, naquele momento, ter a idade que tinha.

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E durante meia hora a batalha prosseguiu. E palavras incompreensíveis eram ditas pelo tio Toninho. Os que tentavam acalmá-lo, depois de quase dez mi-nutos, desistiram e passaram a contemplar a luta – e comentavam entre si que era uma luta espiritual.

Exausto, tio Toninho caiu ao chão. E simplesmente disse:- Ele venceu mais esta vez.Entreolharam-se – alguns entenderam, outros não. E acrescentou:- Na próxima vida não darei chance a ele, pois me persegue há mais de

três gerações.Em poucos minutos estava de pé novamente – como se nada tivesse acon-

tecido. Retornaram para perto do féretro. Na sala o silêncio era quebrado apenas pelo som do pêndulo do relógio que começava a ranger cada vez mais com a proximidade do raiar do dia...

*Pedro César Alves é professor de Português, membro do Grupo Experimental da Acade-mia Araçatubense de Letras e filiado à União Brasileira de Escritores. E-mail: [email protected]

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Tiros de pólvora na boca desarmada

Valdecir Roberto de Oliveira – 5.ª menção honrosa – categoria regional – Araçatuba-SP

S e escondia ao meio fio da pilastra de uma casa antiga no meio do quarteirão. Boca nervosa, o perigo na vidraça. Lá de cima alguém olhava... Holofotes, sirenes se ouviam do outro lado da cidade, que repartia o céu escuro em

crimes e aviões noturnos. A fumaça subia em círculos, o lábio escarlate o salto alto.

Um gosto de Cibalena mastigada amargamente para aliviar a dor que casti-gava o diafragma. Uma lua prateada feito papel alumínio em um cenário de teatro pendurada, a imagem de um deus Jorge matando o dragão sem a espada. Um homem de pulôver vermelho rondava na madrugada.

A rua deserta, o medo de ser descoberta aquela hora depois da meia noite. Mas ali estava. Queria carne na carne, mão na virilha, amor na casa antiga. Ela espiava.

Chegou do nada. Um aroma Chanel, um vento do atlântico, lascou-lhe um beijo molhado, língua na língua, um arrocho de motel. Quebrou-se a vidraça. Ne-nhum pároco, nenhum ateu, apenas uma bala perdida e dois corpos na calçada.

*Valdecir Roberto de Oliveira é professor de Português, Araçatuba-SPE-mail: [email protected]

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Categoria

nacional

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A Borboleta AzulAndreia Fernandes Soares Leite – 1.º lugar -categoria nacional – Rio de Janeiro-RJ

A estação do metrô, cheia. Os trilhos vibram e, em instantes, o facho de luz surge, os faróis saltam do túnel negro. O trem aproxima-se, veloz. Pessoas se aglomeram e se empurram. Uma mulher de cabelos compridos, pretos,

blusa branca, na beirada da plataforma. Santiago a vê, de costas. Vê também o esbarrão, proposital. Ela cai. Agonia de ferros. O ruído estridente. Faíscas. Tudo escurece. Uma borboleta azul voa em meio ao breu.

A visão ocorreu pela primeira vez, quando Santiago atravessava a Rua Ba-rata Ribeiro, na faixa de pedestres. De repente, o chão se rasgou, ele despencou. Nas profundezas, crimes e borboletas. E já estava de volta à rua. Mas entre buzinas e gritos. As pernas trêmulas, vertigem. O sinal tornara a abrir e ele parado, no meio dos carros. No meio do tumulto. Com esforço chegou até a esquina, sentou-se numa lanchonete. Pediu um café.

Permaneceu quieto, deixou a bebida esfriar. Pensou que estava enlouque-cendo, pensou em ir à polícia, pensou em procurar um pai de santo. Deixou-se ficar no bar, olhava as pessoas, os carros e, quando o tremor das pernas e a vertigem passaram, pagou o café que não tomara e foi trabalhar.

Alguns dias depois, o crime no metrô apareceu estampado nos jornais. A imagem, captada pelas câmeras de segurança, idêntica à que ele vira. Apenas duas coisas não coincidiam. A manchete noticiava a morte como acidente. E a borboleta azul não aparecia na foto.

Após esse incidente, outras visões aconteceram. Foram poucas, mas tudo se concretizava conforme previa. Não foi à polícia. Marcou e desmarcou algumas vezes a consulta com o psiquiatra, tinha no celular o telefone de um pai de santo. Resolveu, sozinho, investigar. Da última vez, não impediu a tragédia por alguns minutos. Faltou acreditar o suficiente.

No momento, Santiago observa a Praça do Lido. Não tem certeza. Nunca tem. “É nessa praça”, pensa. “Passava aqui quando aconteceu.”

Uma mulher caía do alto de um prédio. Nítido, somente os cabelos pretos sobressaindo nas paredes brancas de um edifício velho. Mas na Praça do Lido, são

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muitas as construções antigas, com paredes brancas. Santiago olha o relógio. Deveria estar no metrô, a caminho do escritório.

Deveria. Cumprir horários. Deveria também parar com toda a insensatez, a in-consequência. Já era homem de paletó e gravata, tinha importância atestada em inúmeras contas a pagar e conta bancária no vermelho. No entanto, sua pressa é somente descobrir de onde cairia o corpo. A premonição lhe aparece com apenas dias de antecedência. Precisa agir rápido.

A praça, cheia de gente. Nos pontos de ônibus, nos bares, nas calçadas. Segunda-feira. Extremamente sem importância, com dúzias de pessoas que do-bram esquinas, acertam o ritmo no compasso dos ipods. Apressam-se. Ele imagina quantos, entre tantos, são assassinos. Se suas almas nunca ficaram perdidas em alguma noite tenebrosa. Se os sonhos não escaparam em remotas madrugadas. No entanto, a rua fervilha de insignificâncias.

Os olhos se dirigem instintivamente para as sombras que se movem no apartamento do oitavo andar de um edifício antigo. Na janela aberta, uma colcha grená serve de cortina. Uma figura feminina aparece rapidamente. Santiago tem um sobressalto, o coração dispara. Um leve tremor nas pernas, vertigem. A mulher fecha os vidros, ele demora em recompor-se. Olha toda a volta e outras janelas estão abertas. “Calma. Não se precipite”. Vai até um bar. Pede um café.

No botequim da esquina, senta-se numa mesa, à calçada, sem perder de vista os prédios. Desistira de ir ao escritório. Com um suspiro de alívio, lembra que não é mais imprescindível. Ninguém sentiria sua falta. Somente ele, no dia do pagamento. Propôs-se a ficar de guarda, iria até o fim. Quem sabe possa impedir alguma coisa.

É uma segunda-feira nublada, de céu carregado de nuvens feito chumbo. Fecha os olhos e o corpo que cai surge, nítido. Na praia, o Atlântico ruge. Ressaca. Rostos e restos de uma vida sem grandes atribulações atravessam a cabeça.

Marisa, linda. O pai, o irmão, Vinícius, a borboleta azul, a moça no metrô. Uma garota, desconhecida e nua na sua cama. Vinícius no caixão. Marisa, sempre linda, com as malas e as crianças no aeroporto. O embarque para Uruguaiana. A borboleta, Marisa grávida dos gêmeos. Os faróis do trem, faíscas azuis. Toma um gole do café, frio. A bebida desce amarga. Marisa levara para o Sul, os filhos pe-quenos. A falta dos meninos espatifou-se na calçada.

Vinícius. Madrugadas inteiras a pretexto de estudar. Não abriam o livro. O silêncio entrecortado por música e mar. Vinícius tocava piano, violão e flauta trans-

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versa, de ouvido. Santiago não tocava nada, era incapaz de juntar duas notas sem desafinar. Mas ouvia de qualquer lugar de Copacabana, o Atlântico.

Enquanto Vinícius compunha, Santiago escutava o bramido do oceano. Foi quando compreendeu o rugido que, de vez em quando, ouvia. Desde menino. Ama-nhecia e os dois saíam com cara de ontem, a espantar o mundo.

— Somos espantalhos de nós mesmos — dizia Vinicius. — Precisamos nos defender dos pássaros agourentos que nos vêm devorar a alma...

Veio o namoro com Marisa. Linda, parecia de outro mundo.Vinicius avisou:— Cuidado. Uruguaiana não é outro mundo. Mas pode ser o fim do mundo.“Ciúmes!”, pensou Santiago. Tornou-se advogado, casou-se. E com o ami-

go, brincava: — Inveja sua, porque ela é mais bonita que você!Vinícius continuou nas madrugadas, vivendo na beira do mundo, pendurado

em um instrumento. E, com cara de ontem, espantava o mundo e os corvos prontos a devorá-lo. Mas foi um caminhão que engoliu Vinicius por inteiro. Um dia, Santiago passeava com a mulher e os filhos na praia e percebeu as ondas longínquas, dis-tantes. Já não retumbavam no peito. Desacostumara-se ao mar, perdera a afinação com o oceano. Ele não sabe se foi antes ou depois do acidente. Entretanto, só com a separação, Santiago foi até o fim do mundo.

Após a faculdade, prestou alguns concursos, fez carreira, ficou importante, lidava com o alto escalão. De repente, abandonou tudo. Foi também nessa época que não só o chão, mas a terra inteira rasgou-se. Santiago foi atirado às pedras e depois ao mar. Braçava afogado, no fim do mundo. Tentava alcançar a mulher, porém ela foi embora com as crianças para o Sul. O pai suicidou-se, o irmão pirou, porque as desgraças andam todas de braços dados, irmãs que são.

Navegou em profundezas, fez algumas descobertas. Dentro dele, habitavam muitos. Um entrevia fantasmas, outro nadava ao lado de Janaina. Havia ainda um poeta que sabia de cor versos de Camões. Um chato, leitor assíduo de José de Alencar. E um louco ouvia o Oceano Atlântico de qualquer lugar de Copacabana. Não cabiam dentro do paletó.

Então tangenciou a correnteza e voltou para casa. Sozinho. Voltou também a escutar o bramido do oceano. E como as desgraças ora vêm em torrentes, ora em conta gotas, mas nos rodeiam todos os dias, largou o emprego público.

— Ficou maluco, Santiago? — perguntaram os amigos.

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— Não. Afrouxei o nó da gravata.Absorto em pensamentos, ele não percebe as nuvens mais carregadas no

céu. Toda a Praça acinzentou-se, escura. Apesar do mau tempo, agita-se. É vés-pera de Natal. Só então olha para cima e percebe a janela do oitavo andar. Está aberta de novo.

O coração dispara, as mãos tremem. Tenta segurar a xícara, derruba o café. Outras lembranças o assaltam. Ana. O rosto desfocado. Anucha. Nas feições difu-sas, só os olhos. Negros.

“Misturas que dão encanto à vida...” a frase dita há muitos anos. Ana não deixou de ser um resto, um ponto, um nó. Uma mancha quase apagada. Quase. Há vinte anos. Nunca mais se viram.

O corpo dele encolhia-se quando ela sentava-se ao seu lado, no banco da escola. Ele, um dos melhores alunos da classe, ela, uma das últimas. Ele destinado a uma carreira promissora, ela desde os tempos de colégio, a saia curta, as pernas cruzadas, os botões da blusa abertos no limite do sutiã, além do permitido.

— Ana não é para você. — diziam os colegas.Mais tarde descobriu o contrário. Encontraram-se numa festa de Ano Novo,

ele casado, ela divorciada pela segunda vez. Dançaram juntos, uma única música. — Você tinha medo de mim — ela lhe segredou ao ouvido.— Claro. Seus olhos misturavam todas as loucuras do mundo. A solidão

gelada e devastadora das estepes russas e o calor dos corpos suados em pleno bloco de carnaval.

— Que loucura, Beto! — Beto era o apelido de juventude.— Para um garoto de quinze anos, assustador. Ainda não sabia que são

essas misturas que dão encanto à vida. —Mesmo que junto do encanto venha a insanidade?— A loucura chega de um modo ou de outro. Santiago lembra-se do instante em que se olharam. A fagulha da adoles-

cência teimava nalgum canto dos olhos. No rosto, ranhuras leves de alegrias e de-cepções. Nos ombros, já pesavam traições, remorsos e outras pequenas tragédias.

Ana se tornara bailarina, integrava uma companhia no exterior. Naquela noite, Santiago soube que o caso duraria enquanto durassem as férias no Brasil. Soube também, que começava naufragar. Imaginou o que teria sido deles se no lugar de se assustar com os seios, tivesse mergulhado em seus olhos, aos quinze anos. Separaram-se. Nunca mais a viu.

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Ele espanta a imagem de Ana, mas a lembrança ressurge. Ela o deixou a ver navios e o gosto do sal deixado na boca, despertou um mar inteiro. Com o tempo, certas coisas voltaram a ter sabor de infância. O caldo verde de um botequim perto de casa. Tomado lá pelas três da manhã, curtido no fogo. Nas madrugadas de sábado, chegam os travestis, as putas, mendigos de rua, curiosos e desavisados. Ao meio-dia ainda tem gente bebendo, comemorando não se sabe o quê. Falando bobagem. Ou delirando, sonhando, enlouquecendo.

No oitavo andar, a janela aberta. A cortina grená balança. Santiago sente o coração disparar. A visão da mulher caindo do alto atravessa os pensamentos. Os cabelos negros, no branco. O cérebro apressa-se. Sente a urgência, quase certeza. Levanta-se, paga a conta, cruza a praça. Segue em direção ao edifício, sem desviar os olhos da janela aberta, a cortina grená. No caminho, certifica-se da antiga arma no bolso do casaco, comprada quando era delegado de polícia. Está um pouco enferrujada, mas ele não presta a menor atenção a este pormenor.

Na portaria, um turbilhão de pessoas, fazendo as últimas compras. O prédio é um misto de residencial e comercial. Analisa a posição da janela, sobe ao primeiro andar. Procura a loja correspondente: é a de número 111. Retorna. O porteiro entre confuso e espantado diz que a moradora do apartamento 811, chama-se Teresa.

O elevador lotado é lento e para em quase todos os andares. Santiago sente a pouca certeza desaparecer. “Você é mesmo louco”, pensa. “Filho e irmão de maluco”. Imaginou-se tocando a campainha, a porta se abrindo. “Dizer o quê? O melhor é ir embora.” Um leve tremor nas pernas, vertigem. No elevador fechado, o mar ruge. Rostos e restos na cabeça. O pai, o irmão, Marisa, os filhos. Anucha. Ana alguma coisa. Criada pela avó, imigrante russa. Decide saltar no próximo pavimento e descer pelas escadas. Justamente o oitavo andar parece não ser o destino de ninguém. Todos se entreolham. Santiago, ainda meio tonto, sai do elevador.

No corredor escuro, escuta vozes sobressaltadas. Corre. Vêm exatamente do 811. A porta escancarada aumenta o tremor, a vertigem. Ele pega o revolver, avança com a arma em punho. Roupas e objetos pelo chão. No quarto conjugado, um homem tenta sufocar uma mulher, na cama.

— Parados!O homem se assusta. Empurra o suposto policial de encontro à parede e

desaparece pela porta aberta. Santiago aproxima-se da mulher, imóvel. De repente, para, incrédulo, diante do que vê.

Ana Teresa abre os olhos, zonza. Respira com dificuldade. Mal consegue por

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em ordem os pensamentos. Um homem há pouco tentava sufocá-la e agora outro, armado, está diante dela. O rosto desfocado, adquire nitidez. Murmura:

— Beto...— Anucha... — ele balbucia. A expressão de horror, o olhar fixo para o lado

de fora.Ela vira-se para janela. Do outro lado da Praça, o corpo de uma mulher

despenca do alto de um edifício. O cabelo preto sobressai nas paredes brancas.

*Andreia Fernandes Soares Leite, profissional do teatro, Rio de Janeiro – RJE-mail: [email protected]

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O SaltoAndré Silva Pomponet – 2.º lugar – categoria nacional – Salvador-BA

Q uando chegou ao alto do monte, sobre as pedras, resfolegava. Uma cabra berrava, diminuta, num capinzal verdejante no sopé do monte, na periferia de Itaberaba. Alguns sujeitos corriam atrás de uma bola de couro, num

campo de barro, dezenas de metros abaixo. Um caminhão engendrava manobras difíceis na estrada estreita, barrenta, lá embaixo. Mais distantes, luzes se acendiam em casebres pobres, no Jardim das Palmeiras. Sons alcançavam o cume do mor-ro, distorcidos. Eram imprecações, canções, conversas em tom rude, ralhos com crianças, resmungos.

Atrás, fincadas no solo ressequido do monte, repousavam imponentes tor-res metálicas. Quando a noite caía, acendiam-se no topo pequenas lâmpadas ver-melhas, muito vivas. Contrastavam com a luz alaranjada das lâmpadas dos postes da iluminação pública.

As imensas rochas escurecidas pelo limo eram imponentes. No sopé do monte, disputavam estreitas faixas de terra fértil com o capim viçoso. O tempo aplainara a aspereza das pedras, arredondando-as.

Suspirou. Fechou os olhos. As têmporas latejaram. Olhou a vegetação ras-teira dos morros em volta. O sol repetia o imemorial mergulho no horizonte. Nuvens róseas e azuladas acumulavam-se no poente. Aves brancas voavam com sincronia sobre a cidade.

Precisava dar o salto definitivo. Não havia jeito, era uma questão de honra. Ainda que não o testemunhasse, ainda que não colhesse o olhar de espanto e res-peito dos que o conheciam. Por que permanecer na interminável roda, amando e odiando, comendo e bebendo, sofrendo e rejubilando-se, observando impassível ou agindo febrilmente, perpetuando o ciclo, o interminável fim e o eterno recomeçar? Por que testemunhar sorrisos e lágrimas, expectativas e frustrações, desprendi-

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mentos e iniquidades, triunfos incontestáveis e derrotas acachapantes?

Melhor o salto. Mas e os sofrimentos decorrentes? Maria e as crianças... Seus pais... Seus irmãos... Os companheiros de jornada... Pensava demais nos outros, era um defeito imperdoável. Carecia da objetividade, do egoísmo material. A abnegação é a virtude dos fracos, dos pusilânimes. Sempre tão correto, tão auste-ro, tão movido por uma força interior, tão racional, tão previsível, tão agradável, tão cheio de virtudes, de preocupações com o próximo. Um fraco, um decadente, um cristão, um enamorado por uma humanidade utópica, inexistente.

Dois passos e o salto, a Liberdade imperdível, completa, sem concessões, sem subterfúgios, sem máscara. E o grande momento, o instante mais marcante, o corpo caindo e o êxtase arrebentando no peito, arrebentando o próprio peito em alguns segundos, abrindo-lhe perspectivas, caminhos jamais trilhados, desafios inimaginados, mesmo que o mergulho o afunde no Grande Nada, na ignorância que transcende a indiferença mineral, na absoluta solidão da inexistência, cuja sutileza escapa às limitações do seu cérebro humano. Como equiparar seus preconceitos a este grande momento?

A mulher. Os filhos. Os pais. Amigos, colegas. A opinião pública. A religião. Os preconceitos. Os dogmas. A ideologia cristã. Nada se equiparava, nada. Nada. O Grande Nada era a ideologia das possibilidades, o último refúgio, o refúgio eterno.

Mas e a coragem? Faltava-lhe... Um choque na rocha a uma velocidade crescente destroçaria o frágil corpo, torná-lo-ia irreconhecível. Bombeiros prague-jariam, escalando o penhasco, para resgatá-lo e conceder-lhe um enterro cristão. Enrubesceu ao pensar que arranjaria tarefa embaraçosa para outros, mesmo de-pois de morto. E se prosperasse a versão de que ele caíra acidentalmente? E se dissessem que foi empurrado, talvez vítima de um criminoso ignóbil? Não trouxera papel, não poderia escrever uma mensagem lacônica despedindo-se, não com-binava com a postura despojada que pretendia adotar, partindo sem despedidas prévias, sem os grilhões das explicações corriqueiras, das inevitáveis e penosas justificativas. Só que lhe faltava a coragem, a insensatez de romper, de revoltar-se.

O salto era a redenção, a suprema inspiração, um momento brilhante res-

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plandecendo em meio à mediocridade da vida cotidiana. Carecia daquele instan-te notável, que o redimiria de todos os pecados anteriores. Comia. Bebia. Fodia. Suportava a mulher, que suportava-o. Educava os filhos com preceitos vagos, esquecíveis. Demonstrava amabilidade com os pais. Era um amigo prestimoso. Nos eventos sociais, desfiava conceitos respeitáveis. Não apregoava revoluções. Respeitava a propriedade privada dos meios de produção. Concordava com os editorialistas dos jornais, que coincidentemente pensavam o mesmo que a classe patronal. Entretinha-se com as reportagens banais e absorvia vorazmente os con-ceitos implícitos que exaltavam e exultavam o despertar de uma cidadania aleijada. Enfim, era um pústula, como todo mundo.

Aos domingos visitava shoppings com a mulher e os filhos. Bebericava chope, enquanto as crianças devoravam sorvetes. Depois comprava uma camisa colorida, demonstrando sua perfeita sintonia com a vida. Íntimo da vida, alegre com a vida. Celebrando a vida através do consumo. Gozava as férias em janeiro, partindo para destinos que sua respeitabilidade previa, mergulhando no turbilhão de consumo que sua condição social impunha, extasiando-se com as mesmas interjeições dos que frequentavam seu círculo e até mesmo enfastiando-se com o mesmo fastio dos que vivem sob confortáveis condições materiais.

Depois, a rotina, o repetir das manhãs e tardes da repartição, o aconche-gante repouso noturno em seu lar burguês, a manhã e a tarde seguintes, as reu-niões familiares nos finais de semana e o aguardar ansioso das próximas férias, que seriam precedidas por projetos sustentados com os mesmos argumentos das férias dos anos anteriores. Por fim, era o suceder dos anos e as preocupações de cada faixa etária e a inquietação crescente à espera do momento definitivo, de ajustar contas consigo mesmo e resvalar para a cova.

Eis o resumo da ópera. E eis o epílogo a ser transformado com mais dois passos. Um pequeno e inexplicável passo para a humanidade, mas o passo mais importante de sua vida insípida. Mas cadê a coragem? Cadê a intrepidez dos gran-des espíritos que praguejaram contra a mediocridade, a rotina, o corriqueiro? Fra-quejava! A ideia atiçara-lhe o espírito, mas ele fraquejava, covardemente.

Recuou. Recuou dois passos. Alguns passos. Muitos passos, até chocar-se

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com uma rocha e agarrá-la com firmeza, como se estivesse à beira do precipício. Galgou-a, contornou a igreja que não frequentava por desleixo havia meses, come-çou a descer a ladeira íngreme que conduzia à cidade, de retorno. Mas foi caute-loso, porque havia lama acumulada e ele temia machucar-se, caso escorregasse e caísse...

André Silva Pomponet é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria do Planejamento da Bahia, mora em SalvadorE-mail: [email protected]

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A Terceira DesconexãoHilário de Sousa Francelino- 3.º lugar – categoria nacional – Cerqueira César – SP

P ostagens na tela do memorímer mostram-me a calorosa discussão sobre anencéfalos, na aleatoriedade da rede social. Conceito de vida em furiosa construção. Não que as publicações polêmicas sejam incomuns, mais do

que isso; a discussão do que define tudo o que é animado me devolve a memória dos tempos em que Fabrisbão e eu éramos bons amigos. Embora eu fosse de esquecer essas notícias, senti-me particularmente ofendido por minhas ações sem pensar, sem razão: haveria pena de morte sobre mim? Houve um tempo em que impunha minhas definições, a troco de relações, no câmbio desumano. Desânimo do desnecessário: agora meus conceitos eram outros, e tenho uma amizade a menos. Pago sempre pela forte opinião.

No entanto, nem mesmo a memória de Fabrisbão desviou minha mente das então atormentações do amor, há muito tempo sido ideais. Mandei uma mensagem para Evania, a saber, qualquer coisa sobre a vida; buscando conciliação? Hoje o conceito de amor, inabalável, estava como de costume, nas indefinições de tudo o que é contemporâneo. A tela movia-se ao sabor dos meus dedos sequiosos por atualizações do perfil público de Evania, pertencida. Não a mim. Será? Desfiz-me do luxo de generalizar o território de seu reinado, somente porque a idade trouxe al-guma espécie de cautela. Alguns toques, os dedos: eslidando, deslisandinos. Des-deslizes. Naquela hora eu não sabia dizer se eu estava na faculdade, no trabalho, ou no quer-que-seja, tão repentinas foram as mudanças, e tão atemporais também, como em mesma intensidade a minha atenção foi escassa. Falafael, de sobrenome impronunciável, pregava um grande respeito às mariposas de refeitório, que não aterrissariam na cafeteria ao acaso. As das asas de ramos desenhadas. Dizia que sempre houve os mensageiros borboletais, cuja presença na mente do homem era fato previsto e certo. Missões advisórias, ofuscantes de calma. Contudo novo, elas estariam completando a atualização que permitiria acessar o cerne humano via telefone móvel, ou memorímer - que se usa mais. É que não se pode mais fazê-lo diretamente, desde uns anos. Procurando pelo fluxo, corpos de pessoas numa massa só, certeiras, compassadamente: era, sem dúvida, o fim do meu dia

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na voz das tarefas. Eu bem provável. A qualquer momento um sorriso que fosse, Evania transmutaria bites em batimentos do meu coração, ou o que fossem os reais químicos correspondentes a caracteres. Desentendemo-nos e ela demarcou distância, já faz dois tempos. Viver perde muito do sentido na falta de Evania, manti-das minhas definições, as biológicas, o fundo do respirado, uma vez reprovadas na fala de Fabrisbão. Há, e o que acho, pistas e só, e termina que vida não se define; mas este sou eu. O que mais se antagoniza? Demanda de me informar. Nem isso. A discussão tomou rumos adolescentes, naquela época, e agora não posso pousar olhos adultos sobre minhas ações se meus dedos atualizam irracionalmente uma tela de rede social; embaralhamentos.

Um olho no memorímer e outro no braço sem relógio. Banco de trem finje que não sai do lugar. Assim, sentei como se normalmente não mais, nem um trem comporta, em alternações, o padrão preenchido, povoado; bilhete na mão, sorriso cerrando. Muito embora cansaço por cansaço, admitido na precipitação do segun-do. A voz e a vez, como o cobrador recebe o bilhete no cru daquele instante, e eu sentindo falta de antigamente. Não quis saber o destino, como eu bem poderia a princípio. Que Evania não me ignorasse mais... Senti que desejáveis. Nem dei atenção para os computadores, informamundos, cheios de itinerários, mas sem informações de consolo. Servidores. Embarquei para procurá-la ou, menos preci-samente, rumei à casa; a minha? Contei nos dedos os pontos negativos que enfei-tavam as chances de eu encontrar alguém; acertos de que mesmo? Atualmente, a meada já vem desfiada. Quando criança, o medo de se perder estava estam-pado no bilhete do trem. Os anos passaram sem esforço; as provisões acabam, e desapercebe-se, negligenciadas, tornando-se ilusões do inútil. Os mais novos retiram o néctar do momento, minutórios. As previsões são madrastas, cabalísticas; mas ignoradas, em um balanço penoso. Não andei tanto, mas para a frente que fui, eu iria virar para trás, voltarrego, desistente? Funciona, porém; então deixai a continuação das gerações tomarem suas formas. Sem reserva de baterias, uma esperança baseada em razão para não enlouquecer em aguardar uma mensagem--resposta. A tela alheiava-se. Com esperança, peço aos céus um retorno certo, preciso. Dança de trem no verso dos trilhos com a barra do dia. Tardezarrão que puxa a noite pelos cabelos e eu só vendo, no balanço do coletivo. Pensamento no intangível, eu esqueceria o bocado demorado, para mais um desencontro? A bordo de ti, conquanto longe? Trendências. O amor renova as esperanças na entidade do erro, instigando novas tentativas ininteligíveis. Inquietação maior foi aquela, no

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anoitecer, darquescente, frio. Lençol não esfria pé de pessoa acordada. Antemão, pré-exponho a sabedoria de Prestinosa, mãe de Antecelso: de que sou antes tei-moso. Não concordo e insisto, mesmo com sábias repreensões, ainda que seja oriundo de corretos princípios, como quiser. Forço, em luta pelo foco, uma batalha pela concentração; soluço destacado, perturbante, num pensamento desregrado, confundido. Os traços belos que vêm à mente desafiosos, entorpecentes: Evania. A última vez que alguém se concentrou, há muito tempo, já não jazia bem do coração. Autossolidarizo. Diagressivo como todo pensamento perfurante, eu amava mais o incerto do que o anjo que me aguardava, talvez, em prescrito endereço.

A certeza é uma armadilha para a sequidão da mente por constância. Fe-chei os olhos passageiros e lembrei da feira de Sabugo. Dona Prestinosa sempre criticava eu não trazendo tomates, copiosa. Eu vegetava. Meu amor estava em toda a parte, paz do meu sono, saudações, em abrupto, sede de só acordar em teus bra-ços, uma vez mais saudável. Não sou de comer salada. Assim argumentos, as bri-sas da noite iam e voltavam, resistindo, brisandinas. Minha mente no destino, meu corpo fora do sono e o trem trabalhando para juntar as peças, na recomposição do corpo-e-alma. A minha vida-poesia já não parecia intrínseca, como concebida, e o mundo respondia com inúmeros falsos poetas publicando, infestando, e as-solados, desolados pelos próprios frutos. Poemas estranhos, frases alheias, olhos mundanos, mil contextos, duas mil interpretações! Agora, finalmente, eles sabem o que é vida? Eu titubeio, vós titubeais: conjulgamento. Viagem ao lugar-comum do cultismo superficial. Eu no amargo da ideia, por dentro. “Você vive um sonho”- mais velha, Rosalinda faz seu curioso papel de irmã, colocando fim, conclusosa, às minhas frases. “Não e nem vivo sonhando também” - minha oposição -, “mas ando devaneando sobre a vida, apostadamente”. Agora, descarregado e desviado do assunto-tal, não acho esse caminho todo estranho. Essas pontes... Turbilhona--se-me de volta cinco, dez, doze lembranças; confuso que sinto, mas sabendo, instantâneo, que estou indo para casa. Evania muito frenquentemente se guardava de tomar um partido numa discussão, fazendo questão, porém, de manter sua autenticidade, não clareando a ideia. Dessa forma, despedia uma não-opinião: “O que eu acho do seus olhos? São desconcertantes sem medida conhecida” e sorria, emanando a vitória retórica de não alinhamento a nenhuma das partes. Desconhe-ço estas ruas, total, porém a vontade de ir só em frente é-me completamente fami-liar. Busco a tela do memorímer, inútil: sem carga na bateria, tenho nem mesmo a conexão natural das mariposas de Falafael. Já sem a patronagem da internet, vejo

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um duplamente desconectado do outro. Se somente os telefones e computadores ainda fossem separados. Eu antiquado?

Comecei a puxar fios de memória das últimas horas, no que de importante só soube foi da energia, incontível, de Evania estabelecendo não-contato comigo. Iria viajar. Discutimos ao sabor do orgulho e foi a nossa primeira desconexão. Eu deslizava os dedos para catalogar as fotos de seu começo de férias do trabalho e de mim, devidamente detalhado na rede; na outra vida? A dualidade é que mais fortemente traz Fabrisbão à mente, falando-me de umas energias guardadas nas pessoas. Fui tão incompreensível quanto o monte de células que estava tentando definir como o princípio do ser. Não era o caminho de casa? Entre achar o trem de volta e vomitar, precisava encontrar um telefone público. A camada de poeira do orelhão, denunciando anos de desuso, deu um toque concreto ao meu mal-estar. Quaisquer que fossem os conceitos, senti forte obrigação de dizer-lhe que a amava, olhando em seus olhos, já virtuais, como só antes fora no primeiro dia. Ela viajaria para onde não houvessem trens? Do impulso orgânico, senti o gosto de morte na garganta, refluxos. Seriam as muitas energias indo embora? É da ponta do fósforo que se faz o uso: o telefone chamou. Rosalinda sempre divulgou a necessidade de pôr os pés no chão, o que para mim era tirar os dedos do memorímer. As vidas são todas conectadas como nas redes sociais? “Alô?” Caiu. Exercitei minha teimosia, os dedos agora sujos de um grude preto; veio vindo o sentimento de peso no cora-ção, e na mão, o de sustentar o fone.

Ela não foi quem atendeu. Sucedeu-se a conversa que explicou o absoluto do tudo sobre as todas áureas energéticas, aquelas que não se definem, e eu sentia. Embora acontecido e feito, como coisa pronta, ainda sinto o direito de pesar total. De asas graúdas, uma mariposa sentou no meu braço, coberto de lágrimas, trazendo atrasada a informação sobre a terceira desconexão. Evania desdefiniu-se, escapou a qualquer conceito de vida, num acidente grassento, tão inacreditável, que perdi firmeza na base das pernas. Teimei em trilhar o mesmo caminho de volta para a estação, despedindo à mariposa o recado de que adeusdesse, se possível. Interfaces.

*Hilário de Sousa Francelino é estudante de medicina, morador de Cerqueira César-SPE-mail: [email protected]

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Sobre Velhos e Pombas Vi tudo o que se faz debaixo do sol,

E eis: tudo vaidade, e vento que passa.ECLESIASTES 1,14

Marcelo Lilla – 1.ª menção honrosa – categoria nacional – São Paulo-SP

E le olhava os velhos sentados na praça jogando milho para os pombos ou len-do resignados seus jornais e invejava as amarguras e as desilusões que eles carregavam por toda parte atrás de si, como se fossem pesadas e desajeita-

das bagagens. Invejava seus olhos apagados — oposto exato do brilho infantil que ilumina as crianças pequenas — cicatrizes de uma vida inteira de experiências, boas ou ruins, não importa, e lembranças de pessoas, lugares e momentos mar-cantes e cotidianos. Invejava seu ócio, sua abundância de tempo, aquela sensação que devia ser deliciosamente monótona de já estar vivenciando uma sobrevida, esquecidos pela morte e por Deus. Pensava que talvez fosse por isso que os velhos eram em geral tão discretos em seus modos, como se estivessem sempre bus-cando caminhar nas pontas dos pés, camuflados pela sombra de suas velhices, temendo que a qualquer gesto mais largo ou ruidoso os holofotes celestiais ime-diatamente recaíssem sobre eles, os abduzindo repentinamente daquele mundo.

Na semana seguinte, ele faria trinta anos, e não podia escapar do sentimen-to de que seu corpo não era mais do que um saco vazio. Seus autores favoritos já tinham escrito uma parte importante de suas obras com aquela idade. Já haviam deixado sua marca indelével no mundo. Seus amigos, muitos já estavam casados, com filhos. Não lhes invejava a sorte. Não se tratava disso. Tratava-se de existir, propriamente. Por mais que as vidas de seus colegas de trabalho ou de seus ami-gos mais próximos fossem tão esvaziadas de sentido quanto a dele, talvez pela própria falta de consciência dessa falta de sentido, essas pessoas conseguiam es-crever de uma forma ou de outra seus roteiros neste mundo impossível. Realizavam coisas, faziam planos, encaixavam-se sem dor no esquema social e cumpriam os papéis que lhes eram designados sem fazer perguntas, felizes.

Às vezes, ponderava se não estava adentrando um quadro de depressão. Mas sempre que pensava nisso achava que se tratava de algo mais próximo da

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melancolia. Uma falta de entusiasmo aguda, quase imobilizante, mas que não tra-zia consigo nenhuma espécie de nuvem negra. Era algo que o obrigava a pensar cada vez mais, questionar as coisas, os porquês das pessoas agirem da forma que agiam, e a buscar inutilmente desvendar os mecanismos ocultos do universo. Mis-turado a tudo isso, havia um certo toque de orgulho e narcisismo também, pois era verdade que se considerava algo superior enquanto observava do alto os pequenos mortais levando suas vidas de formiga, medíocres, trombando uns nos outros, em direção ao vácuo.

Antes, costumava ler livros difíceis, cujas lombadas largas gostava de exibir em público, como se este simples gesto o reafirmasse como diferente, separado. Por muito tempo buscou refúgio nas artes, na literatura em especial. Afundava-se na leitura de clássicos, buscando uma erudição que o colocasse numa posição de prestígio e que na verdade não era valorizada ou percebida por nenhum de seus pares. Estranhamente, esta falta de reconhecimento era parte do prazer, o prazer de ser o senhor absoluto de uma ilha onde vivesse sozinho. Deleitou-se no dia em que abriu a primeira página do Ulisses de Joyce, sentindo-se, aos vinte e cinco anos, finalmente preparado e maduro para o desafio maior de todo literato. E qual não foi sua alegria ao percorrer com ansiedade as últimas páginas do vasto cata-tau, plenamente consciente da vitória iminente, uma alegria de alpinista, sentindo que os últimos grãos de areia daquela ampulheta de papel se esvaíam lentamente da mão direita para a esquerda. Não ousava admitir a si próprio que o êxtase maior de toda a experiência foi o fechar final do livro, após intermináveis semanas de luta contra um texto hermético e arisco. Mas em seu íntimo sabia que era exatamente aquele misto de alívio e orgulho que sentiu ao chegar à linha derradeira que justifi-cava todo o sangue e suor da batalha. Poder finalmente dizer: Eu li o Ulisses!

Num determinado dia, sentou-se na frente do computador, decidido a es-crever o romance extraordinário pelo qual o mundo ansiava e que, sabia, apenas ele poderia escrever. Embriagado por seu próprio talento, ao quarto capítulo, página 78, pediu demissão de seu emprego para se dedicar exclusivamente ao livro. Um ano mais tarde abandonou a obra, que, apesar de ter começado bem e claramente possuir algumas qualidades notáveis, acabou chegando a uma encruzilhada inso-lúvel. Definitivamente, aquele não era o livro que ele havia se proposto a escrever. Depois disso, viveu, por um período, alheio ao mundo e às pessoas, como um viúvo saboreando o luto (não pelo fracasso do livro, mas pela morte do escritor genial que um dia ele imaginou ser). Arranjou um emprego numa empresa que pagava bem e o trabalho voltou a ocupar a maior parte de seu tempo. Quando chegava em

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seu pequeno apartamento, ao final do dia, não encontrava mais nenhum prazer nos livros. Na verdade, passou a odiá-los, a odiar os autores que podiam produzir aquilo de que ele não era capaz. Podia ouvir os livros sussurrando entre si nas pratelei-ras e no criado mudo, zombando dele, de sua falta de talento, de sua arrogância, de sua prepotência. Aqueles autores, muitos deles mortos, não o aceitavam em seu clube restrito. Aos poucos, sua pequena ilha foi sendo engolida e, de repente, assombrado, ele se percebeu comum, apenas mais um dentre aqueles que, com suas braçadas patéticas, não faziam mais do que revolver as águas turvas de um oceano de mediocridade.

Se, por um lado, ele descobriu não possuir o talento que o destacaria da multidão, tornando-o especial, diferente, único, por outro, continuava absolutamen-te incapaz de ser como os demais, de ser como seu vizinho de apartamento ou seu vizinho de baia. Habitar este limbo o fez mais ensimesmado, mais voltado para den-tro de si, o que equivaleria a dizer, mais excêntrico e extravagante aos olhos daque-les que conviviam com ele. Esse seu distanciamento lhe conferia um ar misterioso, e curiosamente muitas mulheres se sentiam atraídas por isso. Seria mais preciso dizer, talvez, que havia um tipo especial de mulher que se sentia compelida a des-vendar os segredos que ele apenas insinuava através de seus gestos comedidos e seu olhar melancólico. E ele sempre as recebia de braços abertos, abatendo-as em seu apartamento, sem nenhuma espécie de romantismo, e elas se surpreendiam com a intensidade com que ele as dominava e, invariavelmente, acabavam se en-tregando a ele com sofreguidão e abandono. Ele praticava um sexo cheio de fúria, e cada movimento de seus quadris era uma estocada violenta, mortal, repleta de ódio, como se neste momento ele estivesse se vingando do mundo inteiro.

Ele não deixou de escrever, muito pelo contrário, apesar de que, com o tem-po, o fizesse buscando exclusivamente aplacar a solidão que o engolia. Não raro, passava noites inteiras sem dormir, rabiscando versos ou inventando histórias que eram tão tristes que muitas vezes faziam até ele mesmo chorar. Para ele, estes tex-tos não passavam de escotilhas ou válvulas de escape para aquilo que sentia que já transbordava de dentro de si. Não eram destinados aos olhos de mais ninguém. Além de serem confissões extremamente íntimas e pessoais, ele não tinha dúvidas de que, na mesma medida em que levava uma vida em grave desarmonia com o resto do mundo, seus textos também seriam dolorosamente incompreendidos. Sua incapacidade como escritor era reflexo de sua absoluta incapacidade para viver.

No âmbito profissional, ele se saía satisfatoriamente bem, porém tinha di-ficuldade em estreitar qualquer laço, fosse ele amoroso ou de amizade. Almoçava

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com o pessoal de seu departamento e de vez em quando comparecia aos Happy Hours que aconteciam após o expediente, mas, ainda assim, sentia-se absoluta-mente incapaz de qualquer tipo de identificação com aquelas pessoas. Pouco lhe interessavam o futebol, as gostosas da vez ou as intrigas e fofocas da empresa. Participava, movido mais por um indefinido senso de dever e adequação do que por algum desejo genuíno de se divertir, e sempre terminava a noite entristecido.

Gostava de fazer longas caminhadas e era freqüente que voltasse a pé para casa. Muitas vezes, sentava-se no parque e ficava assistindo como as pessoas iam, sem perceber, se ocupando de atividades tolas, camundongos num labirinto. Olhava as crianças brincando, inocentes, e sentia por elas algo muito próximo da pena e da comiseração. Os idosos, ao contrário, ele observava com uma espécie invejosa e rasteira de admiração. Intuía que algo estava fora do lugar, mas não podia evitar. Às vezes, ficava sentado por horas nos bancos da praça jogando milho e miolo de pão para as pombas, buscando, através da simulação simples, alcançar aquele estado de resignação e desesperança que via emanar dos velhos a seu redor. Era um arremedo imperfeito, ele sabia, uma vez que o gestual não abarcava o essencial. Mesmo os velhos, em momentos remotos de suas vidas, tinham se encaixado no grande esquema do mundo. Tinham formado suas famílias, tido es-posas, filhos, netos, haviam um dia trabalhado em empresas e conversado sobre fofocas, mulheres e futebol. Mas talvez, agora, no fim de suas vidas, esses velhos finalmente percebessem aquilo que ele jamais deixara de perceber, que a vida era um livro grande demais e incompreensível demais, e então ficava claro que o que ele invejava neles sempre havia sido aquela satisfação aliviada de quem chega às últimas páginas do Ulisses.

Ele gostava de pensar assim. De alguma forma, este pensamento o recon-fortava. Examinava as expressões ruminantes dos velhos sentados nos bancos, via seus olhos vidrados em um ponto qualquer, e os imaginava embasbacados, deslocados, perdidos, se deparando de repente com o completo absurdo que é a vida. Então, sentindo-se um pouco menos só, ele arremessava mais um pequeno punhado de milho sobre o chão da praça, competindo com seus únicos cúmplices pela atenção das pombas acinzentadas.

Marcelo Lilla mora em São Paulo-SP.E-mail: [email protected]

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A margem opostaGilson Borges Corrêa – 2.º menção honrosa – categoria nacional – Rio Grande - RS

P assei a viver assim calado, taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escu-ras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na

poltrona, esperando que sacuda o pó e o leve comigo. Este frio que me atazana, que me dói as carnes, que me comprime os ossos, que me deixa zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma. Melhor ficar em casa tomando caldo ver-de ou chocolate quente. Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar--me do mundo. Mas preciso ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assola e me deixa assim, desconsolado. Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem conseqüência. Qual-quer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa. Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de seus pares, afastado de sua vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir. Caminhada infér-til, estéril, vazia. Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.

Agora, desço correndo as escadas e me deparo com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar. Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que ou-tra, motivadas pelo vento. Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seus olhar sagaz nas sombras da noite. Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Mas ao contrário, o que faço é afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas. Mulheres que passeiam pelo cais, acenam, gesticulam obscenas. Soturnas, tristes, sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia. De repente, as luzes parecem mais intensas, vibrantes, coloridas, movimentos giratórios, alucinantes. Sons que emergem, línguas de fogo ágeis passeiam por bares soterrados, pessoas

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que correm, sons delirantes, ruas apinhadas, trânsito parado. Fecho a gabardine até o pescoço. Puxo a touca até os olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados. Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaio passos pela cal-çada lateral. Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dá náusea. Me apoio e sinto doer as costas no muro de pedras. Tenho vontade de perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto. Tudo me vem à mente, mas pouco se transmuta em meus lábios. Raramente falo, fico assim, aquietado, alienado, mudo. Temo ser mal interpretado. Temo respostas. Compartilhamento. Parcerias. Acho que temo viver. Olho em torno, a gordura se mistura com a fumaça do cigarro do homem que passa sorrindo, resmungando coisas sem nexos, iluminado no néon do bar. Uma mulher se aproxima e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu cora-ção saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora. O frio fez-me bater dentes. Talvez pela ansiedade. Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso. Entrei distraído, olhando pro nada. Mas vi uns balões pendurados no teto, então lembrei das noites de São João, fo-gueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu puro, abrilhantado de estrelas. Quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos. Depois, olho pro solo e vejo a lajota rugosa, petrificada, envelhecida, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos cheios de vida. Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão. Um copo de cachaça bateu no balcão de granito danificado. Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar negro, a ponta de alegria que personificava a máscara. Olhei para um, para outro. Aceitei o drinque. Ela perguntou, voz fina, esganiçada. _Tá procurando diversão?

Diversão? Era só o que eu procurei em toda a minha vida. A cachaça escor-reu pela goela, um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo. Tentei afastar-me, foi só um gesto. Ela segurou meu braço, precisa. _Tá muito frio lá fora, moço. Aqui dentro tá gostoso, não acha? – apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. Gesto estudado, sedutor. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e

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macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna. Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo. O ho-mem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, ingerindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos. As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes. De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.

_Você não é o Gomes?Balbuciei qualquer coisa, desconfiado. Ele nem me ouviu. Prosseguiu, in-

quieto. _Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – e antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes tá aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, tudo mentira.

_Não, não sou o Gomes. A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas

isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores. O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto, fazendo-se ouvir. _Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara tá vivo, não é? –Continuou o discurso, animado. Voltei-me para a mulher, afirmando--lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita. _Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.

Tentei argumentar, afastar-me, minhas pernas bambolearam. O banco es-tremeceu, quase desandando ao solo. A mulher segurou rapidamente, auxiliando--me com exorbitante solicitude. Abraçou-me, enquanto dezenas de freqüentado-res se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele. O Gomes. A bebida rolava no bal-cão. Até um cigarro de maconha me ofereceram. _Sei que tu é da lei e não é destas coisa, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa. Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme, grave, voraz. Um silencio sepulcral se fez no ambiente. Pesado, absurdo. Até o funk parou. Mas o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele. Minha testa tinha gotículas, a dele,

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rios de suor. _Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! –e todos gritaram em uníssono. Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhá. É o seu carma, não tem jeito.

Então, ingeri o conteúdo restante do copo. E mais enchiam, mais tomava. O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho, contornan-do a boca de maneira concomitante. Fiquei parado, estático, patético, no meio da roda. O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, misturado a festa, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade. Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpen-te, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo. Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no solo, desajeitados, filhos pró-digos de um pai atencioso. Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool. Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”. Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra. E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda. E o povo gritava, vai Gomes, mostra teu babado. Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes. O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço. Comecei a abraçar Marielsa, a beijá--la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”. Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma. Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiram para contar como me livrei do afogamento. Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário. Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente. O anel se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro. De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do

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saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção. Eu parei, tranqüilo, ousado. Até sorri. Ele colocou uma mão na cintura, talvez identificando uma arma. Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode que havia me oferecido a cachaça, logo que cheguei. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos. Eu segurei-me impávido, nas pernas finas, rijas, seguras no solo, soltas dentro das calças. O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de cha-mas o mar escuro. _Você é o Gomes?

Confirmei, firme, quase arrogante. _Sim, sou o Gomes.Puxou a arma disparou um, dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo.

Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença. _Paguei a minha dívida. As pernas fraquejaram. Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos

braços, como a Virgem. Os outros como pingüins em bando, me acercaram. Então pensei estar cruzando para a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, som abafado acordando a noite. Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder--me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não sou o Gomes.

Gilson Borges Corrêa é bibliotecário e licenciado em Letras, mora em Rio Grande-RSE-mail: [email protected]

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Em fogo baixoIvane Laurete Perotti – 3.ª menção honrosa – categoria nacional – Sete Lagoas-MG

A s tiras escuras desprendiam-se caprichosamente do corpo carnudo. Avo-lumavam-se sobre o mármore branco em cadência ritmada. O corte fino, de medidas exatas, ia e vinha sulcando a travessia da faca afiada. De baixo

para cima. Da parte mais fina para a parte mais grossa. Recheava a mão que a sustentava com delicada leveza. A casca arroxeada deitava-se aos pares expondo o interior verde acinzentado. Verde caminho para a lâmina livre.

Amarilda retirava a casca leguminosa sem alterar o seu formato alonga-do. Exímia cozinheira entrava dia e saía noite no preparo das berinjelas. Assadas, escaldas, marinadas, levemente refogadas. Era uma arte cozinhar para os quatro homens de sua família. Marido e filhos exigiam dela mais do que se poderia espe-rar. Fazer o quê? Cumpriam com o que determinava a lei das grandes famílias e a ela cabia dar conta de atendê-los de forma vistosa. Vistosa sim, porque não queria que seu esforço passasse despercebido aos olhos daqueles homens exigentes. Aprendera com a mãe de sua mãe que toda mulher deve sacrificar-se, e ao fazê-lo, deve assegurar-se de que o sacrifício fique bem visível. Visível, mas nunca, nunca audível. Reclamar jamais. Fazer por ser vista sim, mostrar-se sem deixar que se comprovasse sua estratégia também. Importante obedecer a tais ensinamentos. Garantia-se o equilíbrio do casamento e da família. Fazia bem ao estômago e ao coração, além de peculiar economia.

A cada dia, Amarilda esmerava-se como se fosse o último de sua vida de sessenta anos gastos à beira do fogão à lenha. Dever de mulher é sagrado e está escrito que se há de encher o bucho dos seus até vê-los enfastiarem-se pela repetição da delícia ofertada. Ela cozinhava bem e sabia disso. Cozinhava desde muito pequena. Mal alcançava o fogão, aprendera a usar a colher de pau com o cabo corroído pelo manuseio de outras mãos. Mãos femininas. Mãos torneadas a mel, óleo, canela, açúcar, farinha de todos os tipos, fermentos inventados, folhas colhidas em canteiros preparados perto da janela da cozinha. Mãos que recebiam os filhos do útero disponível e se lhes ofereciam, elas próprias, pelo resto dos dias de todos os dias. Crescera uma menina prendada. Mas a especiaria era um sinal da

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fartura que reinava em sua casa bem provida. O marido era um criador de cavalos de raça: fazia riqueza com facilidade. Prerrogativa que não lhe indicava esbanjar na cozinha. Nunca! Cozinha, lugar sagrado, facilmente se transforma em escoadouro das moedas juntadas a suor e calos. Não era exatamente o caso de seu marido que, suor, pouco vertia e calos, suas mãos eram substituídas pelos inúmeros peões que lhe faziam o trabalho pesado. Era um homem alto e bem apessoado. Bonito, acreditava, com certo cuidado em expressar suas opiniões. Nada deve ultrapassar o limite do bom senso, nem mesmo um mimo como esse de deixar a descoberto que admirava a pele clara do marido, as sardas avermelhadas que lhe cobriam o torso, as pernas bem feitas, os pelos do peito e... era uma mulher comedida. Po-deria se dizer tal acerca de tudo o que lhe dizia respeito. Era comedida nos gastos, nos temperos, nos arroubos de carinho, nos dengos a distribuir com parcimônia entre os quatro homens aos quais servia.

Diante do fogo aceso, Amarilda divagou pelas memórias que guardava. His-tórias de família, boas ou más, devem estar a salvo de formigas e camundongos. As primeiras são atraídas pelo doce aroma das coisas boas; as segundas, inde-pendente do quanto tragam de tragédia e dor, atraem os roedores mais do que qualquer sabugo de milho seco. A vida humana era um grande paiol onde deveriam ficar em separado os acontecimentos comuns. Assim Amarilda classificava e cata-logava as memórias mais caras e até as que gostaria fossem roídas até o caroço pela rataiada, ratada, rataria, ninhada de ratos vorazmente esfomeados. Sua vida moderadamente comedida e econômica tivera episódios amargos feito fel de ga-linha choca. O fogo puxava essas lembranças que ficavam tampadas e na parte mais distante de seu paiol pessoal, mas as labaredas ardentes lhe fizera mergulhar na noite em que encontrara seu robusto marido deitado com a ajudante dos ser-viços domésticos. Nada dissera. Não reclamara. Suas lágrimas de dor e rejeição foram colocadas uma a uma nas colheres que durante dias inteiros afundavam em geleias, doces e compotas. Não havia fruta que chegasse. Não havia lenha suficien-te para alimentar o fogo do fogão aceso. Não havia medida para as lágrimas que derramara sozinha sobre a chapa quente do fogão. O marido, como que sabedor de seus direitos destacados de garanhão da família, não pedira desculpas, não fizera menção de falar sobre o assunto, não se mostrara contrariado, pesaroso ou com remorsos maritais. Remorsos. Esse era um sentimento que ela não via despontar nos quatro homens da casa. Talvez o do meio, mais sensível, mas certamente já recolocado sem eu lugar pela voz firme do pai. Era assim. O fogo lambia as feridas

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que estavam mais próximas, mas também garantia que nenhuma delas virasse um cancro fatal. Estava de bom tamanho.

Das berinjelas lavadas de pouco escorria a água retirada do poço. Poço aberto em uma vertente antiga, descoberta pelo pai de seu pai. Limpa. Água pura e fresca, assim como já quase não se encontrava mais. Ela mesma esticava a corda e mergulhava o balde recolhido com a força da manivela. Manivela de metal pesado e cabo de madeira grossa. Manivela que puxara a água para os primeiros banhos de seus filhos, para encher os jarros que levava para o quarto de dormir de cada um deles antes que fechassem a porta para ela. Não aceitara as modernidades da vida em sua cozinha. Lá não. Bem que insistiram a tempo e no tempo em que canalizaram água para as cocheiras. Aceitara a custo abrir mãos de sua vontade para a comodidade dos banheiros. Esses sim faziam jus ao gasto com os metros e metros de canos que traziam água de outra vertente. Era um desperdício, mas lhe custara um tempo a menos na lida e um cadinho a mais de horas à beira de suas panelas. Pois exemplo tivera o suficiente para não contratar nenhuma ajudante a mais depois que aquela dita partira ela própria, movida pela vergonhosa vergonha do pecado cometido. Preferia suar até a sola do pé do que aceitar outrazinha dentro de casa. Esse não foi um assunto discutido. Passou batido para todos os outros a falta da ajudante. Mas ela sabia onde ardiam suas costas depois de limpar a casa inteira, lavar as roupas pesadas e passar a ferro as camisas de gola dura. Ainda assim, melhor a dor nas costas do que a dor nos cornos, dor de cornos, dor de chifres, nos chifres e nas guampas. Era direta. Com ela mesma não havia lenga-lenga. Aranzel era coisa para mulher fraca, sem educação que vinha de berço e de geração para geração.

As berinjelas secavam ao ar livre para manterem o gosto e as propriedades intocadas. Era capaz de aguardar ao lado delas para proteger-lhes a saúde e a limpeza. Berinjelas, santos legumes colhidos da horta que mantinha a custo nos últimos tempos. Um pouco pela terra fraca, outro pouco pelas ardências nas ancas envelhecidas. Mas ninguém lhe ouviria dizer qualquer palavra. Até o final de sua vida estaria ali, fazendo o prato principal daquela família de homens fortes. Berin-jelas inventavam-se em horas para todos os gostos. Harmonizava com a carne de boi que o marido trazia ainda cedo, amanteigava com o pão que o filho mais novo preferia comer de pronto, recém-assado no forno de barro; bastava para o filho mais velho quando esse decidia empanturrar-se com ovo frito e queijo derretido em leite de cabra. Servia sempre para o do meio que comia o que lhe servissem.

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As berinjelas coroavam a sua vida, amaciavam as mazelas naturais das passagens que todas, todas, todas as mulheres precisam atravessar. As berinjelas nasciam sob o empenho de suas mãos e ainda elas separavam-lhe a casca amarga. Amar-ga, mas não de todo desprezada. Haveria de se saber passar a fina lâmina entre aquela pele que a recobria e a carne que lhe recheava o corpo. Legume fácil de plantar, rápida para cozer.

Amarilda tinha uma receita guardada a muitas tampas e lacres no mais profundo de seus conhecimentos culinários: berinjela à telha. Era uma suculência que alimentava os olhos e a boca deixava afogando-se em desejo aguado. Quem tinha lombrigas passava longe desse prato se não lhe fosse permitido devorá-lo por inteiro. Muitas comadres embarrigadas lhe pediam em estado de piedade que lhe passassem a receita. Qual o quê. Amarilda se colocava a fazer uma telha atrás da outra para satisfazer os desejos das grávidas suas vizinhas. Mulher pejada era mulher em estado de aflição. Não seria ela a deixar uma comadre na mão, ou me-lhor, sem a berinjela feita em telha de tijolo envelhecido, escorrendo aquele azeite virgem colocado depois. Não! Ela não tinha estômago para tamanha maldade. Fazia berinjelas até a vizinha botar o rebento para fora, ou enquanto durasse o desejo das ditas, pois isso de estar embarrigada era uma coisa por demais delicada. Dizia sua mãe, em tempos de grande sabedoria que, quando as vacas estavam prenhes, deitavam pular a cerca em sinal de agonia. Conhecimento inquestionável. Fazia ela as vontades das mulheres que lhe pediam a berinjela na telha. Mas a receita não. Essa não fazia parte do desejo nem que dele se fizesse uma questão de vida e morte. Isso não.

A cozinha de Amarilda lembrava uma antiga arena. Dispunha-se em um círculo quase perfeito e possuía aberturas por todos os lados. Aberturas para os outros, para ela, eram apenas lugares de passagem para chegar ao poço, para alcançar os temperos, para jogar as cascas das berinjelas no espaço da forragem, pois melhor adubo não havia do que aquele feito com as próprias cascas dos legu-mes. Era assim que facilitava a batalha de cozinhar e cozinhar e cozinhar. Baseada nesse princípio entendera que, a água encanada nos banheiros da casa lhe daria mais tempo com a barriga encostada no fogão. Que viesse a água. Que viesse! Mas que não invadissem os limites de sua cozinha impecavelmente limpa e funcionando a contento de todos.

Uma passagem estranha se dava na vida de Amarilda. Sabia ela do gosto de seus homens para a comida farta, mas jamais lhes ouvira tecer elogios acerca de

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um prato ou outro. Eles comiam e comiam bem. Então, comedida e conhecedora de seu lugar, entendia que a rapidez com que o prato desaparecia do centro da mesa era suficiente para amaciar o ego e indicar a sua vitória sobre as demais iguarias.

Amarilda convivia há tanto tempo com as berinjelas que passara a desen-volver um conhecimento incomum sobre as leguminosas. Sabia sem o menor erro o tempo de crescimento das plantas, da explosão dos brotos, da floração e por aí afora. Cronometrava e nominava cada nova leva que separava em canteiros devi-damente marcados com a data do plantio. Dava-se ao trabalho de conversar com as plantas mais fracas para motivar seu crescimento e produção.

Os sessenta e nove anos de Amarilda passaram despercebidos para todos. Sem grandes dores para ela, não seria a primeira vez que a data de seu nascimento mergulhava em esquecimento. Mas estranhou dessa vez que, à mesa do jantar, pela primeira vez ouvia seus quatro homens trocarem conversas entre si. E dizia o mais novo: “A mamãe se foi já faz um ano e eu ainda sinto aquele cheiro enjoativo das berinjelas sobre o fogão.” O comentário era emendado pelos outros que até faziam ares de enjoo controlado à menção do conhecido legume. Um atrás do outro disse de si o que nunca lhe falaram.

Amarilda não vira a luz no final do túnel. Não lhe falaram sobre túneis du-rante seus quase setenta anos. Então? Então cozinhara em vão todas aquelas be-rinjelas? Fizera-se especialista em um prato que lhe deixara oblonga, oblonga, oval e esverdeada?

Acometida de todo o furor que pode atar-se aos seres apanhados em suas próprias armadilhas, Amarilda prometeu a si mesma que continuaria ali, naquela cozinha, fazendo berinjelas atrás de berinjelas, na esperança de que o cheiro delas penetrasse, impregnasse cada um deles. Não descansaria, a não ser que a tal luz do final túnel adentrasse por uma daquelas aberturas e lhe tomasse de susto, como lhe tomavam as cores aqueles quatro marmanjos sentados à mesa sem um único prato de berinjela.

*Ivane Laurete Perotti é linguista e terapeuta, Sete Lagoas- MGE-mail: [email protected]

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Hassan-i SabbahArthur Cristóvão Prado – 4.ª menção honrosa – categoria nacional – São Paulo-SP

A llah – O Deus; Al Rahman – O Compassivo, O Beneficente; Al Rahim – O Clemente, O Misericordioso; Al Malik – O Soberano; Al Quddus – O SagradoComeçou no Cairo. Fui encontrar um velho colega que conheci na década

de 80, da Golden Dawn e de meia dúzia de outras ordens esotéricas menores. Tratamos do que íamos tratar, tomamos chá de jasmim e lamentamos o estado das coisas. Ele estava deixando o Egito para peregrinar pela Índia. A Primavera Árabe havia destituído os antigos ditadores e estava lentamente expulsando muitos dos caciques da velha guarda. A nova ordem do capitalismo estava chegando lá também, e não era seguro ficar. Ele achou melhor sumir por uns tempos. Não voltei a vê-lo.

Al Salam – A Fonte da Paz; Al Mu’min – O Guardião da Fé, A Fonte da Fé; Al Muhaymin – O Protetor; Al ‘Aziz – O Poderoso (Onipotente); Al Jabbar – O Irre-sistível, O que Compele

Antes de partir, disse que estava se livrando do velho acervo e entregou-me uma parte. Tomei um voo noturno sem conexões para São Paulo, pensativo. O baú de meu colega tinha algumas preciosidades: um Torá bilíngue (em hebraico e latim) de 1214, um estudo detalhado de todos os familiares de Crowley, uma página arrancada do Necronomicon original. Um volume mais recente, de 1967, enca-dernado em couro cru e bronze, chamou-me a atenção. Estava em português do Brasil. Em princípio, parecia um conjunto desconexo de relatos em primeira pessoa, narrando as viagens de um ancestral do autor, que saía de Makkah, passava trinta e três anos viajando pela Síria, Líbano, Irã, França, Espanha, Mônaco, cruzava o mar para o Caribe, se estabelecia por sete anos como vendedor de textos religiosos no Peru, abria uma biblioteca em um vilarejo colombiano chamado Macondo, voltava para a Espanha e finalmente se instalava em São Paulo, na década de 30. Em cada um dos lugares, assumia uma identidade diferente. Intrigou-me o nome que o autor assinava, no final: Hassan-i Sabbah, o mesmo do fundador da ordem dos Hashashiyyin, origem etimológica do termo “assassino”.

Al Mutakabbir – O Majestoso; Al Khaliq – O Criador; Al Bari’ – O que faz

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evoluir; O que Concebe; Al Musawwir – O Formador, O Modelador; Al Ghaffar – O que Perdoa

Voltando a São Paulo, fechei o livro e mantive-o fechado por alguns me-ses, mas não o tirei da escrivaninha. Trabalhei normalmente naqueles dias áridos e monótonos, frequentemente visitado por velhas memórias. No quarto mês, voltei para casa em uma tarde de outono e encontrei uma aranha morta sobre o volume, ainda fechado sobre a escrivaninha. Não pude ignorar aquilo que, para mim, era evidentemente um presságio. Guardei as roupas de domingo, calcei botas, e fui investigar.

Al Qahhar – O Dominador; Al Wahhab – O Doador; Al Razzaq – O Provedor; Al Fattah – O que abre; Al Alim – O que Tudo Sabe, O Omnisciente

Decidi começar pelo sebo de Paulo Goldschmitt, um judeu cabalista que tinha comprado o pequeno negócio na Peixoto Gomide em 72 ou 73, não me lembro. Eu evitava aquela região. A energia de lá ainda não havia se recuperado da tentativa desastrosa de invocação de Uriel que os herméticos haviam feito em 1969, levando ao incêndio no Edifício Grande Avenida. Procurei me proteger com algumas preces e entrei. Não encontrei Paulo, mas seus filhos Ricardo e Leonel, que haviam assumido o sebo desde a morte do pai. Eles me conheciam, e me tra-tavam por um nome que usei em alguns círculos sociais da década de 90, mas que julgava já perdido. Os rapazes não herdaram a acuidade de Paulo, mas puderam, com seu conhecimento limitado, me indicar que o volume fora encadernado por uma editora na Mooca que fechara em 95. Rastreei os donos: eram de uma família de velhos fidalgos que caíram na ruína financeira, de sobrenome Azevedo. Os dois últimos sócios da editora haviam tentado vendê-la para um grupo maior em 94. Faliram em 95 e, curiosamente, cometeram, ambos, suicídio em 96, com um mês de intervalo um do outro, precisamente no começo e no fim do Ramadan.

Al Qabid – Aquele que Constringe; Al Basit – O que Expande, O Magnânimo; Al Khafid – O que Rebaixa; Al Rafi’ – O que Exalta; Al Mu’izz – O que Honra

Meus contatos na polícia disseram que os registros da investigação feita da morte dos dois tinham sido roubados em uma invasão dos arquivos em 97. Eu achei que tivesse chegado a um beco sem saída e suspendi a questão. Mais alguns meses se passaram. Viajei para Buenos Aires e fiquei lá por três semanas, na casa de Carlos Argentino e de sua família. Carlos era mais jovem que eu, e muito mais vigoroso. Longe de querer se aposentar, ele fazia planos para o futuro. Falou-me da Era de Aquário, de transcendência pela tecnologia, da expansão da mente. Fiquei

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tão impressionado com sua energia quanto com sua ingenuidade, mas falei-lhe com o mesmo respeito que tive por ele durante toda sua vida. Voltei para São Paulo e tive um mês de reclusão em meu apartamento, relendo velhos textos e escreven-do memórias, talvez para que me livrasse delas. Lembrei-me dos olhos claros de Helena, e dos olhos castanhos de Clara. Senti-me vigiado e não soube se isso era bom. Foram memórias amargas, quase todas, mas com respingos de doçura aqui e ali. No fim do mês, incinerei tudo o que escrevi. Veio o ano novo, veio meu ani-versário e, três dias depois, recebi um telefonema de Carlos. Ele soou preocupado. Disse que havia recebido um telegrama informando sobre uma reunião que acon-teceria em Veneza, e que várias das tradições europeias enviariam representantes. Consultando uma de suas agendas para transmitir a notícia a alguns dos velhos contatos, ele havia encontrado o nome de um certo Cristiano Ortega, o mesmo nome que (e eu lhe havia dito isso) o ancestral de Hassan havia usado no Brasil. Ele se apresentava como farmacêutico e representante de um círculo esotérico com sede na Liberdade. Vesti novamente as minhas botas, passei um dia reaprendendo sutras que poderiam ser úteis, carreguei minha pistola Smith & Wesson e fui até lá.

Al Mudhill – O que Desonra; Al Sami’ – O que Tudo Ouve; Al Basir – O que Tudo Vê

Al Hakam – O Juiz; Al ‘Adl – O Justo O prédio estava vazio e sofrendo rápida degradação. Os resquícios de um

encanto colocado sobre o lugar fazia com que ele fosse convenientemente igno-rado pela maioria dos transeuntes, apesar de ficar a poucos metros da Praça da Liberdade. Influências pérfidas o envolviam. Seus vizinhos eram uma boca de fumo, dois cinemas pornográficos, um restaurante da máfia taiwanesa (constantemente em guerra com a de Cingapura, e ambas contra a de Pequim, sob a proteção dos Yakuza) e um boteco de um demonologista aposentado. Engatilhei a Smith & Wes-son

Al Latif – O Sutil; Al Khabir – O Ciente; O Desperto; Al Halim – O Clemente, O Delicado; Al ‘Azim – O Magnificiente, O Infinito; Al Ghafur – O que Tudo Perdoa

Tive que forçar a porta da frente. Ninguém percebeu. Reconheci a arqui-tetura, extremamente sofisticada para uma ordem tão pouco notória. A base era a de uma loja maçônica, com pesadas influências árabes e até princípios do Feng Shui. Pelas marcas de uso, deveria estar desocupada desde o começo da década passada, pelo menos. Três guardiões espirituais ainda o habitavam, manifestando--se materialmente como gárgulas. Os nomes de dois deles estavam perdidos, pelo

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menos para mim, mas reconheci o terceiro como um elemental, muito cultuado, outrora, na Síria, chamado Ali Nur ad-Din. Assustei-me e quis fugir, pois duvida-va que minha meia dúzia de sutras seria suficiente para proteger-me contra um guardião da magnitude de Ali Nur, mas optei por continuar. Eles não me notaram ou não quiseram reagir, pois terminei de explorá-lo sem interrupções. No segundo andar, encontrei um escritório. Dentro do escritório, havia um cofre com uma caixa contendo um endereço em uma folha de papel. Peguei o endereço e saí de lá.

Al Kabir – O Maior; Al Hafiz – O Preservador; Al Muqit – O que Sustenta; Al Hasib – O que Reconhece

Percebi que as pistas haviam sido colocadas lá de propósito. Aquilo era premeditado e temi estar entrando em uma armadilha, mas agora era tarde para parar. Lembrei-me da aranha morta e julguei estar sendo protegido. Antes de che-gar em casa, naquele dia, uma mulher velha com olhos vivazes parou-me e quis ler minha sorte. Neguei. Ela propôs de novo, agora no idioma dos Ashanti que foram trazidos da África como escravos. Anuí. Ela tomou minha mão com sua mão negra e enrugada, olhou em meus olhos e profetizou que o caminho que eu percorria tinha 99 degraus, e o último degrau levava Deus ou ao Diabo, dependendo de a escada subir ou descer. Agradeci. Quando cheguei ao meu apartamento, queimei um in-censo e rezei uma velha prece Ashanti em pagamento ao favor que tinha recebido. Dormi e tive sonhos turbulentos.

Al Jalil – O Sublime; Al Karim – O Generoso; Al Raqib – O Vigilante; Al Mujib – O que Responde

Na manhã seguinte, saí para a Luz. Desci do metrô e tomei a Rua Aurora. Fumavam crack mesmo àquela hora. Passei por um grupo de prostitutas que me abordaram. A mais velha aparentava ter cerca de 35 anos, então talvez tivesse seus 25. Recusei e segui meu caminho até a Rua Guaianases. Procurei o número 11 e encontrei um sobrado com janelas bloqueadas por pranchas de madeira. Um ho-mem estava desacordado sobre a pequena escada de tijolos que levava à entrada. Outro, deitado ao lado daquele, tinha os olhos abertos e um semblante extático, e parecia sonhar. A porta estava destrancada. Entrei.

Al Wasi’ – O que Tudo Abarca; Al Hakim – O Sábio; Al Wadud – O Amante; Al Majid – O Glorioso

Lá dentro, vi um espetáculo de depravação que me lembrou rituais babi-lônicos que só conheci por livros. Era um grande salão. Dezenas de mulheres nuas se ofereciam a homens de pele morena e olhos muito escuros, decerto árabes. Eles

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usavam drogas também, mas não crack grosseiro. Tinham pós e líquidos refinados, de tipos que não se encontrariam nos becos de São Paulo. Engatilhei o revólver. Passei por eles, desci a escada e me vi em um porão.

Al Ba’ith – O que Ressuscita; Al Shahid – A Testemunha; Al Haqq – A Ver-dade, Aquele que é Real; Al Wakil – O Confiável; O Depositário

Havia um homem no porão. O que aconteceu em nosso encontro im-primiu-se eternamente em meu cérebro e continuará nele além de minha morte. Lembro-me de cada palavra que foi dita.

Al Qawiyy – O Mais Forte; Al Matin – O Firme, o Leal; Al Wali – O Amigo Protetor, O Patrono e Ajudante; Al Hamid – O Digno de Louvor

—Você é Hassan-i Sabbah?Al Muhsi – O Calculador, O Numerador de Tudo; Al Mubdi’ – O que Dá Ori-

gem, O Produtor, O Originador e Iniciador de Tudo; Al Mu’id – O Restaurador, Que Traz Tudo de Volta; Al Muhyi – O Doador da Vida

O homem sorriu. Ele tinha robes cerimoniais muçulmanos, com um bra-são no centro. O brasão ostentava o termo “Asas” escrito em alfabeto arábico. Asas era a fundação da fé, e dele derivava o nome “hashashiyyin”, “os seguidores da fé” (e não de hashish, como alguns historiadores obtusos escreveram, embora fosse verdade que os assassinos usassem hashish, e que Hassan-i os levasse a um transe induzido pelas drogas como parte do ritual de iniciação).

Al Mumit – O Criador da Morte, O Destruidor; Al Hayy – O Eterno Vivente; Al Qayyum – O Auto-Subsistente, O que a Tudo Sustém; Al Wajid – O que Encontra, O que Percebe, O Infalível

—Por que você me trouxe aqui?—Você está aqui porque vai escrever a história de Cristiano Ortega, o nome

que usei no Brasil.—Por que você está no Brasil?—Porque quis deixar aqui um capítulo de nossa ordem.—Então os hashashiyyin não desapareceram?—Não. No século XIII, a ordem sofreu grandes perdas com as invasões

mongóis e foi forçada a desaparecer do público. Continuamos agindo, quase sem-pre com outros nomes. Viajei muito, primeiro pelo Oriente, depois, a partir do século XVII, na Europa e, finalmente, na América. Temos estado em grande atividade.

Al Majid – O Nobre, O Magnificente; Al Wahid – O Único, O Indivízível; Al Samad – O Eterno, O Impregnável; Al Qadir – O Capaz

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Hesitei. Sabia que poderia fazer poucas perguntas, sabia que aquela con-versa estava nas mãos dele e que um deslize de minha parte poderia fechar a janela de oportunidade que ele havia concedido.

Al Muqtadir – O Mais Poderoso, O Dominante, O que Tudo Determina; Al Muqaddim – O que Adianta, O que Apressa; Al Mu’akhkhir – O que Atrasa, O que Retarda; Al Awwal – O Primeiro

—Que tipo de atividade?—No Brasil, nossa ação mais notória foi o assassinato de Tancredo Neves.

Houve outras.Al Akhir – O Último; Al Zahir – O Manifesto; Al Batin – O Oculto; Al Wali – O

que Governa, O Patrão Percebi que estávamos falando árabe antigo.Al Muta’al – O Mais Elevado; Al Barr – A Fonte da Bondade, O Mais Ge-

neroso e Correto; Al Tawwab – O que Aceita o Arrependimento; Al Muntaqim – O Vingador

—Por que você quer que sua história seja escrita?—Porque a ordem irá se reerguer, e, quando isso acontecer, quero que

sua crônica esteja pronta para que seja lida pelas crianças que quiserem se tornar seguidores da fé. Você escreverá a história de Cristiano em um livro encadernado em couro cru e bronze. Depois guardará o volume em uma estante secreta sob a Biblioteca Mário de Andrade, preparada para isso.

Al ‘Afuww – O que Perdoa; Al Ra’uf – O Compassivo; Malik al Mulk – O Detentor de Toda A Majestade, O Eterno Detentor da Soberania; Dhu al Jalal wa al Ikram – O Senhor da Majestade e da Generosidade

Restava uma pergunta a ser feita, que temi perguntar. Percebi, entretanto, que não tinha mais nada a perder, e disse:

Al Muqsit – O Equitativo; Al Jami’ – O que Reúne; o que Unifica; Al Ghani – O Auto-Suficiente, O Independente, O Possuidor de Todas as Riquezas; Al Mughni – O Enriquecedor, O Emancipador

—E como você alcançou a imortalidade?Al Mani’ – O que Impede, O que Defende; Al Darr – O que Causa Preocupa-

ções; Al Nafi’ – O que Beneficia; Al Nur – A Luz Hassan-i Sabbah sorriu, depois tirou de dentro dos robes um medalhão

que estava pendurado em seu pescoço.Al Hadi – O Guia; Al Badi – O Incomparável, O Originador; Al Baqi – O Per-

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pétuo; Al Warith – O Herdeiro Supremo—Dentro deste medalhão, há um leão de ouro. Dentro do leão, há um bode

de prata. Dentro do bode, há uma escama que cortei de Oroboro, a serpente que engole a própria cauda. Na escama, está inscrita uma palavra.

—Qual palavra?Al Shakur – O Apreciador; Al ‘Ali – O Mais Alto; Al Rashid – O Guia para o

Caminho Reto, O Professor Infalível, O Conhecedor; Al Sabur – O Paciente, O Eterno Então Hassan-i Sabbah pronunciou o centésimo nome de deus. Tirei meu

chapéu, fiz uma reverência e voltei para a minha casa. Escrevi a história de Cristia-no Ortega em primeira pessoa, fiz uma introdução dizendo ser ele meu ancestral, assinei como Hassan-i Sabbah e a guardei em uma prateleira secreta na Biblioteca Mário de Andrade. Sei o que devo fazer. Comprei o cianeto e tirei da cristaleira minha melhor taça. Falta uma semana para o Ramadan. Sei o que devo fazer, e não estou mais desesperado. Que deus me perdoe por tudo. As-Salaamu ‘alaykum wa rahmatullaah!

*Arthur Cristóvão Prado é estudante de Direito, mora em São Paulo-SP E-mail: [email protected]

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Mistérios do Indizível(Uma vida em três atos)

Valmir Luís Saldanha da Silva - 5ª menção honrosa - categoria nacional - Araraquara - SP

“Você que me lê que me ajude a nascer”Clarice Lispector

COMO SE CRIA UM AUTOR

Antes de qualquer escrita era sempre a mesma coisa, ela sorria para o sol pintado num quadro em seu quarto. O astro-rei sempre a lhe iluminar a face. A quinta grandeza que esperava atingir assim, do “nada”, num estalo; como uma en-tidade mítica ele estava ali e a encarava sorridente e benevolente com a condição humana, com a ambição humana. Ela ambicionava, mas sua ambição era, antes, outra coisa: queria chegar ao que alguém já chamara de “it” das coisas. Mas não era bom dar nomes – não – nem mesmo “it” lhe parecia um bom nome; havia nisso a intenção de se chegar ao indizível, ao indizível... ao que só se chega dizendo de tudo, experimentando e deglutindo as palavras,esvaziando-as do sentido aparente e carregando-as do “pluri”, do “multi”, do “bi”, do “di”, do caminhar lento e suave do girassol: a vida: o sol.

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Não conseguia se concentrar; aquilo era um suplício para ela. Escrever es-tava se tornando cada vez mais penoso, o que antes vinha fácil como se debruçar na areia e sentir a água do mar, agora exigia força sobre-humana, descomunal.

Na verdade, seu maior problema era escalar os confins da alma (de sua própria alma), os confins da vida (o que era a vida?). Perguntas. Tudo lhe parecia de uma dificuldade assustadoramente elevada. Ah, o eterno pensar! Pois não seria isso? Estava pensando demais, analisando demais: a mecanicidade. Era isso. Só podia ser isso, não havia outra explicação plausível (não, não havia).

Gostava de escrever, queria, mas não assim! Ela gostava da liberdade, de deixar o pensamento voar livre por sobre as cabeças (as cabeças que pensam demais...). E agora isso!, essa coisa maquinal, sem fibra, essa coisa... Sempre

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soubera o que escrever, antes era ela própria a escrita. Nunca fora de sentir medo e isto agora começava a mostrar um eu diferente do que ela conhecera, um “ela” – na verdade – que desafiava a olhar para dentro e analisar as coisas todas, o motivo das coisas todas, o porquê das coisas todas, o silêncio das coisas todas. Levaria uma vida toda? Era à tarde... bem tarde, tarde.

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Havia algum tempo que não se ouvia o barulho da máquina de escrever. As únicas coisas que pareciam fazer barulho naquela casa eram os pensamentos e as angústias e as desilusões, tudo o que ela havia escondido durante todos estes anos (e como lhe doía aquilo). Sua dor, áspera, não lhe cabia no peito. O vazio que sentia era imenso... Não sabia o que era nem por que era, o que ela sabia não se consegue colocar em palavras: o indecifrável. A vida passava através de sua me-mória: seus erros, acertos: tudo! Era demais (a inutilidade da vida?)... era demais (a covardia na morte?)... conviver com ela mesma (e como lhe doía tudo aquilo). A alma, a entrega, as flores sobre a mesa, o jantar à luz de velas (para dois); sua dor, áspera, não lhe coube no peito e saiu... o grito surdo, abafado, destituído. Não soube, nunca saberia: o indecifrável.

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Voltara! Não parecia muito decidida a isso. Entretanto, sabia que há coisas que não se explica e não se entende: faz-se, vive-se, elucida-se, morre-se e não pode haver explicação nem entendimento. Pensava no “isso” e no “nada disso”: buscar o ínterim.

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Pusera os pés para fora depois de muito tempo. Qual a surpresa! Nada mudara (nada do que interessa muda). De fora, sua casa aparentava ser menos aconchegante do que realmente o era. Roçava as flores (murchas) de seu jardim; o tempo passara também para elas (nada do que interessa fica). Pousara um olhar, sereno e silencioso, sobre os escombros. Interrogava-se. Contemplara ainda por um tempo aquela paisagem; ficaria ali se quisesse, ficaria ali a sustentar-se (e ao jardim), ficaria ali imóvel, calada, como que a provar que não fora nada (as lágrimas), que havia passado (como passam as chuvas nos poemas ruins), que ela era forte (como fortes são os que aguentam a cruz), ficaria ali se quisesse, imóvel, estupefata, patética, calada.

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(Nunca morrer assim, numa noite assim! Quando é a palavra que se cala, não se morre; quando é a palavra que se cala, quem fala é o coração. E aqui dentro, o silêncio... nós dois: a entrega, a conversa (abafada, destituída): o indecifrável.)

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À máquina... Tecl, teclas. Passeara. Ninfas e dragões, máquinas, gentios, homens e mulheres, traições, amores e ódios. O caminho percorrido, a travessia agora era a tristeza de um quarto minguante. As palavras, rareadas, minguaram ainda mais com o caminho... o astro-rei ao quarto; dentro dela, escasseadas, as palavras mínguam ainda. O sorriso dos que não sabem e o necessário não-saber: mínguam. As dores, os amores e as inquietações, mínguam. Pousara e pausara a mão à máquina. Levara uma vida toda para voltar a escrever. O eterno retorno. Que se escrevesse: Lua: Nova.__________________________________________________________

DIA 02 DE NOVEMBRO

Ontem o dia foi laminha. Pensei em você quase que o tempo todo. Na verdade, entre um que tinha posto uma tampa de caneta no nariz aqui e outro que tinha engolido um botão acolá, eu pensava em você. Também, não é fácil pensar em você o tempo todo.

Pensei chegar a casa, tomar um banho e ver se saía comprar um vinho... é muito estranho não te ver falando devagar e ficando toda vermelha depois de uma tacinha... Dormi com meia taça.

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Acordei de sobressalto no meio da noite. Seu nome da ponta da língua, engoli de volta.

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De manhã, uma ressaca daquelas. Olhei para o lado e vi que aquela meia taça só podia ser “tamanho família”, tomar um banho é sempre uma decisão acer-tada numa hora dessas. Não segurei o choro no banheiro, mas fingi que não era nada, que era a água quente do chuveiro.

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Decidi ir te ver hoje, espero que não estranhe a descompostura – é que ando meio atribulado.

Não, agora não adianta mais, a decisão está tomada: vou te ver hoje! Só tenho que me recordar do caminho...__________________________________________________________

Dia 31 – TRAVESSIA

Não posso lhe dizer como é estar aqui onde estou. Gostaria de poder lhe dar garantias, caminhos, trilhas, percursos, dicas, mas não tenho como fazê-lo. Espero que você encontre uma direção. Busque observar as estrelas, elas ajudavam os antigos navegadores a ter rumo.

Para que você não diga que não lhe mando nada, envio este cartão postal e algumas coisas que rabisquei para tentar me compreender. Sei lá, pensei em escrever uma poesia, mas não tenho meios intelectuais para isso. Lamento não ter mais, mas esse é o máximo de mim que posso lhe doar. Tomara que lhe seja útil:

Antes aprendi que tinha de ser assim: primeiro se observa bastante o ho-rizonte, cruza-se a linha do tempo, lamenta-se o vento e faz-se uma despedida.

Depois – não espere muito por esse “depois” – parte-se – de preferência, sem muito destino. Essa fase não pode demorar muito, nem pouco, mas o suficien-te para lamentar-se do tempo perdido com a despedida e cruzar a linha do vento.

Constata-se, em seguida, que não há tempo que exceda... e, em tempo, que é necessário buscar o equilíbrio entre os azuis. Essa fase pode ser afetada por rumores, que escurecem e clareiam o azul... por humores, que desmistificam e mitificam-se ao sabor do vento... por atores, que desumanizam a experiência e que, com suas máscaras, pregam a perfeição... por senhores que lhe chegam... por favores que lhe pedem... por horrores que não lhe deixam. O fim dessa fase dá a sensação de que não há mais o que aprender, e isso é ilusório.

É preciso suportar também esse momento e partir para o último desafio, o aprendizado impõe uma atitude interna. Enfim, deve-se olhar para dentro – é con-veniente analisar o tempo e sentir o vento ainda uma vez – e, diante do precipício, seguir a linha do horizonte para nunca mais... dar o próximo passo (em frente, com autoridade, sem medo do destino), e VOAR.

Valmir Luís Saldanha da Silva é professor, mora em Araraquara-SPE-mail: [email protected]

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Categoria

Internacional (mundo lusófono)

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A fotografia antigaDaniela Macário Resende – 1.º lugar – categoria iternacional – Vila Nova de Paiva - Portugal

E ntre as penumbras, através da luz pardacenta dos candeeiros, vislumbro o frontispício de casas que certamente atravessaram gerações. O meu cami-nhar ao longo da rua, por certo, pisa o rastro de milhões de outros passos,

esquecidos, e não consigo evitar sentir-me entre dois tempos díspares, o que po-voou, e o que povoa, ambos no mesmo espaço.

Na certeza que o meu olhar posto nas toscas construções, de alguma forma, quase se cruza com os longínquos olhares, que algures no passado percorreram estas ruas, e o tempo funesto não apagou por completo, pois apesar de inominá-veis pairam adornando o meu encalço. Bem sei, não pairam tais olhares, não ouço o rumor das vozes e dos passos que preencheram estas ruas, inatingíveis para mim pela linha reta e irreversível traçada pelo tempo, mas imagino e isso me basta.

O inverno apesar de brumoso, do nevoeiro, do céu carregado de um manto ininterrupto de nuvens plúmbeas, e da monotonia de uma chuva miúda e constante tem nestas ruas uma atmosfera de mansidão, não brame o vento, não corta o frio, e assim nesta indolência invernal é inevitável não nos habitar uma nostálgica tristeza. A monotonia sobrevém, além deste clima que atribui tons cínzeos à atmosfera, das nuances de cinza, que as repetidas construções em granito exibem ao longo deste ensarilhado de ruas e guetos, dos quais nascem as embocaduras de mais guetos e ruas, ladeadas de pétreas habitações cor de cinza.

Algures embalada pela ideia de outra época, uma idade porventura mais estreme, as longínquas estações de esmeradas paixões, desce outro inverno sobre estas ruas, séculos voaram, e antes despovoadas fervilham agora de gente. Mu-lheres de vestes longas e escuras, nos homens calças e capas de burel. O início de fim de tarde permanece anuviado, e a chuva constante não parece interferir na fremência aparentemente errática das ruas, pois apesar de se cruzarem as gentes, cada uma para a sua direção, têm certamente um destino e hora marcada.

Eu permaneço imóvel sobre as mesmas pedras da calçada onde me en-contrava no futuro, e agora num tempo que não é o meu, não sei que senda dar

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aos meus passos, nada do que antes nestas ruas eu conhecia é agora um possível rumo. A mercearia das irmãs Cremilde por certo não está lá, nem o café da es-quina com o letreiro luminoso onde se lê café da esquina, nem a longeva escola de música, nem a loja de flores da Carminho, e se me dirigir até a casa com as janelas emolduradas de caixilhos vermelhos, lá dentro, certamente não me espera a tia Belarmina, nem no muro estará a gato siamês da vizinha Cacilda. De todos os destinos que neste passado em que me situo, por mais voltas que dê, o tempo, prisioneiro, não me permite encontrar, aquele que deixa em mim uma fagulha de desamparo, é lá para o fim deste enleio de ruas íngremes e casarios angulosos, para os lados da agora inexistente estrada nacional, que dava entrada à povoação, que ao invés de erguido um bloco de prédios novos de três andares, ladeando um carreiro, há somente uns terrenos de cultivo e um denso matagal. Ora sem casa para onde orientar os meus passos sobejam-me as ruas onde deambular, desven-dado o que nelas é a marca distinta do passado. Resta-me algum tempo antes de fazer-se noite, o desalento de não ter onde pernoitar é ainda uma assombração distante.

Decido subir a rua onde se lê no seu limiar, numa inscrição feita em azulejo, a indicação “Rua Direita”. Manteve-se o nome da rua anos a fio até ao tempo que nomeio de meu, sendo este o meu antigo presente, o tempo de que parti, quando sobre mim, sobre o casario pousou outra idade, uma idade passada. Neste então atual presente antigo imagino haver por certo quem notasse a ironia de ter o nome de direita uma rua tão enviesada e curvada. A inscrição, no entanto, passará no meu tempo a constar numa placa de mármore.

Reparo com um ténue prazer que a calçada de paralelos e as casas são de facto as mesmas, apesar dos melhoramentos a que no meu tempo foram sujeitas, são de outros materiais as molduras das janelas, os telhados apesar da cor de bar-ro, pelo tempo que dista entre o meu antigo presente e o meu atual presente, são certamente outros, as paredes foram reforçadas entre as juntas, as portas são de maior robustez do que neste passado em que existo. Porém nas paredes repousam as mesmas pedras sobre pedras, e não são raras as casas que mantêm o mesmo gradeado de floreios nos varandins.

Não foram poucas as vezes que interrompi o intento do meu caminhar para deixar-me render pela alucinação da imagem. Retornando ao meu tempo a casa encontrava-se em ruínas, sem teto, portas ou vidraças, o interior ocupado de ve-

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getação inculta. Desses escombros que restaram, quem observasse do exterior, parecia a casa invadida pelo azul do céu, numa visão absurda em que o azul trans-bordava pelas janelas. Neste passado de agora que visito a mesma casa encontra--se de pé, em bom estado, por certo habitada.

Um pouco mais acima, na esquina, de onde surgia a boca de outra vereda, o mesmo espaço onde será ou era o café da esquina, está ocupado por uma loja unicamente de botões. Mais tarde ou amanhã, se durar esta incursão neste pas-sado, meu inverosímil presente, hei de encontrar algum tempo para analisar estas pequenas relíquias que lá se encontram à venda, de certo por tostões. Não fosse a imprecaução de o dinheiro que trago na carteira não valer absolutamente nada neste passado, e não voltaria ao meu tempo, porque creio entretanto voltar, sem alguns desses botões, que de resto serviriam de prova que esta minha viagem ao passado não é um devaneio.

Suspendo a minha ascensão da rua principal, indecisa que caminho trilhar, são tantas as pequenas ruas que nascem da rua mãe ou central, como os estrei-tos afluentes que têm origem de uma grande rio. Tomo a direção da rua à direita, alguns metros à frente deparo-me com o inusitado acaso ou não de confirmar que é a sapataria do meu tempo exatamente no mesmo domicílio onde no passado presente é o sapateiro, sem no entanto as vitrinas onde se expõem os calçados. Espreito para dentro pelo postigo, e lá se encontra curvado sobre o seu labor um homem de cara franzida, cabelos gris por baixo da boina, e as mangas da grossa camisa de estopa arregaçadas. Quem sabe apesar de não me serem familiares os traços do seu rosto não seja ele avoengo de um contemporâneo meu, que habite ou ao menos de quando em quando cruze estas enredadas ruas.

Numa azáfama de femininos passos curtos seguem meia dúzia de mulhe-res, que interrompem a sua pressa para cochicharem umas com as outras. Entre novas e velhas levam véus rendados a cobrir suas faces. Curiosa sigo o rastro dos seus passos que culminam na capela de São Francisco, onde se dava início ao ter-ço. Sem interesse na salvação da minha alma dou meia volta e tomo outra direção, ouvindo ao longe o sussurrar uníssono das rezas e ladainhas.

Detenho-me por um instante com o pensamento, do qual se esboça quase um esgar na minha face, o passado é agora o meu presente, e o que deveria ser o futuro é agora o meu passado, o meu alvedrio foi tão impetuoso, que troquei as vol-tas às voltas do tempo. Este pensamento é interrompido pelo vislumbre de um certo

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jeito de caminhar que me é familiar. Numa reflexo maquinal o meu olhar perscruta a direção daquele hirto caminhar, e a silhueta de costas, apesar da característica indumentária, traz-me vagamente a tua imagem à memória.

Aturdida por instantes irrompe em mim uma certeza absurda de seres tu. Como poderias ser tu, neste tempo tão distante daquele que coabitamos. Dessa certeza inefável sou tomada pelo desespero de te perder entre as gentes. Lesta percorro com o olhar os restantes vultos, que nesta tarde que se ausenta, ainda vão a caminho de suas casas, e já a alguma distância lobrigo-te, ou pelo menos al-guém com esse mesmo modo distinto de andar. A passos estugados, que me tiram o fôlego, sigo a silhueta em tanto semelhante a ti. Ao virar uma esquina a silhueta expõe o seu perfil, é o teu perfil, o nariz adunco, o queixo estreito, o desenho fino dos lábios, o tom lúrido do rosto. Encontras-te tão perto. Voltas a cabeça para trás e diriges-me nitidamente o olhar, e esse olhar expressa suspeição, dúvida, talvez tenhas-te apercebido que seguia os teus passos, talvez tenhas-me reconhecido – e se me reconheceste porque não me vieste falar - ou foi simplesmente um olhar casual, como olharias qualquer pessoa, talvez nem me tenhas visto.

Não, estou certa, era um olhar de censura, e mesmo no que havia de re-púdio nesse olhar, podia reconhecer aquela fundura obscura que os teus olhos sempre tiveram, esse olhar que fazia os teus olhos castanhos quase negros, e me faziam estremecer perante a evidência de neles perceber o túrbido interior que escondiam. No entanto, com esse mesmo obscuro olhar, pousado da janela na vas-tidão da serra na lonjura, ressumbrava uma veemência de vida, uma sofreguidão que se completava na paisagem que te transcendia, e sempre que perante uma paisagem te sobrelevavas. E tão facilmente olvidavas essa sofreguidão, essa ânsia da alma, e descansavas teus olhos sobre os meus incautos passos, e na ternura desse olhar com que me velavas, eu sabia que eras ledo, que se aplacava a tua inquietação e por instantes achavas paz. Quantas vezes, no mais espontâneo do meu ser, eu ansiava por pertencer à ternura desse teu olhar.

Sem teres voltado a lançar-me outro olhar, teus passos culminaram numa casa de granito de dois andares, com umas escadas que ligavam o segundo an-dar à rua. Entre muros, flanqueando a casa, um pequeno quintal, e galgando os muros a toda a volta roseiras espinhosas, que o inverno despiu de flores. Subiste as escadas, teus passos hesitaram por um instante na ombreira da porta, acalen-tando a minha esperança que me viesses falar, mas acabaste por entrar sem virar costas, e eu deixei-me ficar em frente à casa, do outro lado da calhe, enquanto

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me questionava se serias mesmo tu. Ponderava a possibilidade de ser somente alguém parecido contigo, mas caso assim fosse a semelhança era inconcebível. Neste passado, neste tempo que não é o meu, a casa que habitas, comparada com as casas ao redor e as que se estendiam ao longo do enredo das ruas, seria uma casa de alguém com uma boa posição social.

Enquanto matutava tais conclusões, surgiste, num esquivo lance, numa ja-nela do segundo andar, e arremeteste-me um olhar claramente reprovador, agora estava certa esse olhar era destinado a mim. Apesar de me ter constrangido a rejeição com que me olhaste, eras tu, o mesmo caminhar hirto, apressado, a mes-ma postura severa, os mesmos traços acavaletados, o mesmo assombroso olhar, por mais que me sentisse uma intrusa, pela reprovação que havia no teu olhar, não arredaria pé dali, não enquanto lá te encontrasses. Passado talvez meia hora sem sinais de ti, cansada de estar de pé, sentei-me no chão húmido, encostada ao muro da casa em frente. O meu olhar ansioso oscilava entre as janelas e a porta da entrada, na expectativa de te rever.

Apareceu na janela uma mulher nova e bonita, de cabelos claros, apanha-dos na nuca, deixando alguns fiapos circinais e quase louros caídos sobre as ore-lhas, que com um olhar interrogativo me analisou. Ao lado desta mulher surgiu uma velha com um olhar carrancudo, que inicialmente me vexou, e logo em seguida despertou o meu desdém. Ambas voltaram para dentro, eu aguardava sem tirar os olhos da casa e ninguém assomava às janelas, tu não voltaste a aparecer.

Retive-me a refletir sobre estas duas aparições à janela. Acerca da primeira, a jovem loira e bonita, despertava-me uma sensação de distante familiaridade, e por instantes as suas feições pareceram assemelhar-se a alguém que eu conheça da televisão, no meu presente agora passado.

No que diz respeito a imagem da velha carrancuda, esta surgiu-me em traços um tanto indefinidos, como se a sua expressão existisse algures entre uma névoa a cobri-la e ao mesmo tempo se resumisse a traços muito vincados, como uma caricatura. As reminiscências de que estava acercada induziam um estranho estado de existência, até que me aproximei da fonte de tal recordação vaga, esta personagem era literária, reconhecia-a de alguma descrição feita em palavras, nal-gum livro esquecido.

Enquanto me perdi em tais pensamentos a escuridão da noite apoderou-se de repente dos espaços, a humidade ao meu redor era agora álgida e incomodati-va, e como se através da roupa se tivesse arreigada no corpo, sentia-me estreme-

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cer de frio. Estava exausta e mal conseguia manter os olhos abertos. Ali mesmo no chão encostada ao muro de pedra da casa em frente, deixei-me cair, e encolhendo o corpo na posição fetal, fui arrebatada pelo sono. Nele aos poucos o meu corpo aquecia, e não se fazia sentir nem o frio, nem a humidade da noite.

Gradualmente, como se fosse constituída mais de alma do que de corpo, habitava-me uma imensa brandura, e embora pressentisse a solidão, não havia nela qualquer receio, como se o teu olhar fosse omnipresente, planasse sobre o meu corpo adormecido, e mesmo sabedora da tua ausência física me protegesses. Assim com o sentimento do teu olhar pousado sobre mim dormi tranquila.

Acordei ouvindo a tua voz, que vinha de dentro de mim. Entre a consciên-cia e o sonho, enrevesando no sonho a tua voz real que me chamava, despertei descansada, apesar de me ter parecido dormir apenas breves instantes. Emergia a primeira luz da madrugada, e descerrei os olhos para a bonança e familiaridade de te encontrar diante de mim. Cutucavas-me com o pé e dizias: - Ei tu, acorda, acorda. Não deves estar boa da cabeça, passaste a noite aqui ao relento, a dormir no chão. Porque raio me seguias ontem.

E deixei de te ouvir, continuavas a falar e a gesticular aziumado, mas eu não ouvia uma única palavra que saísse da tua boca. Estava abismada, eras tu, vivo, apesar que mais novo do que a última imagem que tenho de ti. Eras tu, mas jovem, como naquela fotografia antiga de um tempo em que não supunhas que me irias conhecer, de um tempo que não era o meu, e os caminhos que porventura traças-ses poderiam levar a minha inexistência. Afinal o que somos antes de nascer?

Não fosse essa fotografia antiga, e eu por toda a minha vida julgaria, que antes de mim e da minha memória de ti, simplesmente não existias.

E voltei a ouvir-te: - Então, és surda ou o quê. Já te disse, não te conheço, não sei quem és, nem te vou dar esmola, vai-te embora, não te quero ver perto da minha casa, vai-te embora. Pensei que talvez dizendo-te o meu nome te recorda-rias de mim.

- Chamo-me Clara, mas se tivesse nascido rapaz o meu nome seria Daniel.- Deves ser doida, nunca conheci nenhuma Clara, nem nenhum Daniel, vai-

-te mas é embora daqui.Intentava dizer-te o teu nome, para te provar que te conhecia, estranhamen-

te, por mais que tentasse, não era capaz de rememorar o teu nome.Por fim mandaste-me embora com tanta rispidez, que imersa numa tristeza

com que me sentia abandonada, virei as costas, e somente por já não veres o meu

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rosto, irrompi num choro, num soluçar que não controlava, enquanto a passos one-rosos, como se o meu corpo resistisse a deixar-te ficar para trás, me afastava de ti com o pensamento que te estimo apesar de me rejeitares.

Vaguei pelas ruas, almejando um recanto onde me pudesse esconder, e deixar-me ficar até morrer. A luz da manhã, inicialmente indecisa, firmou-se. O arruamento, as casas, as pessoas, deste tempo passado que não é o meu, não mais me enlevavam, vejo agora o quanto tudo é dolente, nesta atmosfera invernosa e lôbrega. Estava encarcerada num passado, no qual não tinha destino, e tu que deverias ser meu amparo, meu ensombro, esqueceste-me. A tristeza agudizou-se e transformou-se numa amargura, esta deu lugar a uma agonia incisiva como uma dor.

Incompreensivelmente amanhecia outra vez, não distinguia com clareza a luz inicial, mas sentia-a na minha face, uma claridade muito branca e baça era percebida sob os meus olhos fechados, que aos poucos perdiam o peso, e como se a agonia em que deambulava presa àquelas ruas, num tempo longínquo, se tivesse tornado insustentável para a minha mente suportar, fui invadida pela suavidade do amanhecer, que culminou no despertar, os olhos se abriram, retomei consciência, era manhã, alvorada ainda, e eu encontrava-me na minha cama, no meu quarto, na minha casa, todo o meu corpo fremiu de um alivio ininteligível.

Numa reação maquinal dirigi o meu olhar para a fotografia na cómoda, o teu rosto distante, por mim já quase esquecido, o nariz adunco, o queixo estreito, os lábios finos, a palidez dos traços, a veemência do olhar, eram neste amanhecer vivos e presentes na minha mente. Eras semelhante a outro alguém que eu conhe-cia, embora não fosse capaz de recordar-me quem. Foram tantas as vezes que, perscrutando o teu retrato, me sentia omissa de perante a tua imagem seres para mim quase como um desconhecido, foi já há muito tempo.

Rememorei o teu olhar, a ânsia de mundo do teu olhar, onde as coisas do mundo fulgiam, assim como nele ressumbrava perante a vida que se estende até ao horizonte, a morte infalível de toda e qualquer existência, inclusive a dele e a mi-nha. Olhar, por sua vez, pleno quando velava os meus passos. Soube tantas vezes em criança, que ao me olhares eu dependia de ti, pertencia-te, e agora uma tanto abandonada por ti sou saudosa dessa infância, saber o cuidado que o teu olhar me devotava, permitindo-me ser criança, livre das contundências da vida.

Levantei-me, dei uns poucos passos, e olhei a lonjura, a amálgama do ca-

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sario de pedra, a parte mais antiga da povoação, e que era o panorama central que se estendia além desta janela.

A tua lembrança permanecia no meu pensamento, latejava a tua imagem

na minha mente. A mãe contou-me mais tarde, que quando eu nasci tu ansiavas que fosse

um rapaz, a que chamarias Daniel. Enquanto crescia, várias vezes eu me questio-nara se não seria melhor ter nascido rapaz, meramente porque para os homens a vida é mais fácil.

Depois a angústia daquele dia, estavas inclinado sobre o parapeito, com a janela aberta para a primavera ainda fresca, que naquele ano havia chegado antes do seu tempo, a luz era clara, o céu povoado de pequenas aves agitadas, fragorosas.

Sem perscrutar o fim no teu rosto, estavas de costas para mim, desmaiaste. Perante o teu corpo caído desabou a simplicidade do meu mundo, e eu gritava com toda a força que tinha, rasgava o mais fundo das entranhas. Foi a última vez que te vi, como pode ter sido, assim de súbito, a última vez que te via.

Quando entrei na igreja, todo aquele ritual aparatoso ao redor do teu corpo ausente paralisou-me, a ambiência do luto era demasiado acerba, dei meia volta, e assim não guardo memória da morte encarnada no teu corpo, por vezes, absorta na rotina noto a tua ausência, sem no entanto ela significar que morreste.

Entretenho-me a pensar que o céu deveria ser à medida dos desejos de cada um, deveria ser a encenação do mais íntimo talante de cada pessoa. Para uma criança céu deveria ser porventura um agigantado parque de diversões, com barracas de pipoca e algodão doce, para mim seria talvez uma biblioteca, com estantes do chão ao teto, preenchidas de inumeráveis romances, que pudesse ler por toda a eternidade, e para ti seria a vastidão da serra, uma extensão infindável de montes e vales que percorrerias, numa eterna primavera. Gosto de pensar que existes numa eterna primavera. Assim engano a arbitrariedade da perda.

O zelo do teu olhar existe pendente da minha vontade. Penso poder nomeá--la saudade, a carência da atenção que o teu olhar me dedicava.

Da vida restam na memória um compêndio dos melhores e piores momen-tos. Falta-me o teu olhar, para aquietar, agora mesmo, a amarga evidência que me

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surge tantas vezes, como um assombro, a pequena morte tão triste que é esquecer. Serão menos as recordações de ti do que o esquecimento, no entanto, como um instinto da alma, algures da tua constante primavera, que a minha mente urdiu por querer idear-te feliz, pousa jubiloso sobre cada gesto meu o teu ávido olhar, e me sacio com esse teu amor erguido em mim, de mim. Sei agora, e sei-o para sempre, fazes parte da minha vida.

*Daniela Macário Resende é portuguesa. E-mail: [email protected]

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O chão longínquo das quimeras

Rui Miguel Dias Carvalho – 2.º lugar – categoria internacional - Alfornelos Amadora - Portugal

A li esta eu, à porta, hirto, tal qual um inseto temporariamente imóvel, fin-gindo-me morto, naturalmente anestesiado perante tal circunstância. O reboliço no interior da pastelaria consumia a minha energia, amachucada

como um papel atirado ao lixo. Os clientes, elegantes e senhores dos seus narizes, encaminhavam-se para as mesas, aguardando ser servidos, como se não se com-portassem como simples formigas encadeadas pelo cheiro, e a memória do sabor pleno, do açúcar refinado que ansiavam reviver... O meu narcisismo impedia-me, porém, de me considerar parte desse grupo... e por este motivo, ao entrar naquele espaço de ilusão não assumida, sentei-me numa mesa próxima da saída e pedi uma garrafa de água com gás. Sem açúcar, evidentemente. Só que o meu cha-péu de feltro, poisado sobre o sublime tampo, de padrões geométricos, a branco e negro e veias de pedra, daquela mesa, me colocava involuntariamente lado a lado com a sofisticação inútil da restante clientela. Eu sabia, pensava eu, ao ser cumprimentado à média distância com um aceno de um cliente com uma camisa encimada por uma gravata de cor azul cobalto, e continuava a pensar, não passo de um mosquito apanhado numa teia de aranha, coberta de pequenas gotas de orvalho, brilhantes, que a deveriam ter sinalizado não fosse a reduzida dimensão do meu cérebro não me permitir compreender para onde me dirigia... Estava zangado comigo próprio.

Levantei-me, num ato de revolta interior, deixando as moedas dispersas sobre a mesa e metade da água ainda dentro da garrafa, esquecidos, como des-pojos deixados para trás por soldados esfarrapados pertencentes a um exército em fuga apressada. A cada passo dado na direção da luz natural, eu sentia a vibração, que os meus genes me permitiam, colidir com as ondas luminosas, e com um ligeiro desvio nos tons de azul, motivado pela humidade atmosférica e pelo sol que, tão timidamente quanto eu havia penetrado naquele espaço pequeno, repleto de

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paredes cobertas por quadros assustadoramente alinhados. Até que finalmente, novamente à porta, olhando agora para o resto do mundo, sentia a calma do re-gresso a casa, impregnada nos cheiros livres daquela rua: a fronteira erigida entre as florestas selvagens além e a civilidade socialmente aceite aquém.

Um passo mais e eu era já da cor do céu, banhado em raios ultravioletas e sons gerados pelo piar dos pássaros, que a alguns metros acima de mim ex-primiam os seus sentimentos recorrendo também a uma linguagem gestual feita de piruetas e voos em queda livre, que mais pareciam ambicionar ser os saltos triplos mortais de um qualquer atleta em prova numa efémera, mas imponente, piscina olímpica. Os meus pulmões já não se comportavam como tal mas sim como as guelras monstruosamente libertas de um gigantesco tubarão baleia a filtrar as águas salgadas do mar, em busca do seu microscópico alimento. Era verdade, o meu peito reganhava o fogo pleno da plenitude primordial e a cada avanço eu mais me aproximava desse horizonte distante que continha em si todos os meus sonhos. Eu queria ir mais para lá do longínquo azul ultramarino poisado sobre o chão indivisível das quimeras erigidas sobre a inconstância vívida da adolescência adocicada e selvagem, que me imprimiam saudade... Saudade do tempo e do espaço. Tomava conta de mim uma melodia alegre enquanto me aproximava de casa, no meu percurso ladeado pelos passeios da rua que eu intencionalmente evitava. Era como se eu me metamorfoseasse numa bela borboleta pronta a voar e desenrolasse as minhas asas, tirando-as de dentro do casulo de seda amarelado torrado, deixando para trás locais e modos de viver que jamais quisesse revisitar! Afinal, eu era a própria força bruta da natureza, que se queria espalhar pelo mundo, em minudências de cristal aparentemente ininteligíveis, tais como viagens quase impossíveis e dúvidas tenebrosas...

A rua que eu percorria ajudava a explicar, em parte, a agitação interior quase bipolar que me preenchia por inteiro. O atrito das pedras da calçada agigantava-se. E quando eu me detive a olhar, desolado, o abandono e escuridão que dominava a loja fechada de um proprietário que já não o era na realidade mas, tão só na minha cabeça que se habituara a vê-lo ali desde a tenra infância, congeminei então que eu ali também estava a mais: se eu fosse uma flor, e mesmo neste pensamento o meu narcisismo me traía, pois quem era eu para ser uma flor mas, se a fosse, eu havia nascido fora do canteiro que me haviam destinado, que tinha de ser melhor que aquela pintura de bruma. E também me perguntava se eu deveria ficar entre a desolação para a fazer rejuvenescer e reganhar o esplendor de antes ou de um

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novo tempo com aromas primaveris e alegres. Onde será que uma rosa vermelha é mais pura? Num canteiro domesticado em que existem tantas outras ou no meio do nada ressequido onde os pobres que passam têm a visão de uma vida, embora indiferentes ao facto de ela estar só e infeliz?

Sobre as rosas eu nada sabia e à ansiedade revoltada da fuga, de novo em desordem, que me tolhia a mente, opôs-se a sábia, julgara eu, diligência felina das minhas pernas que uma vez mais, a passos firmes, típicos de espírito novo, me levavam em frente. Ia para casa: esse reduto onde o sangue e a seiva ainda corriam livres, de medos e fantasmas, nas minhas vias e artérias.

Todavia, um percurso nunca é linear, como por vezes o sentido de urgência, que é induzido pelo contexto que nos cerca, nos faz desejar e, quando dei por mim, respondia sim, obedientemente, à voz trémula, moldada pelos longos e belos 95 anos de paz e vida daquela velhinha que sempre fora minha vizinha, desde tempos imemoriais, e que sempre que podia me acolhia na sua casa humilde, mobilada com recordações. Sim, repeti, sem pensar, temendo que ela não me tivesse ouvido. Não havia no meu gesto, e na nova imobilidade do meu corpo, qualquer resquício de teatralidade que exorbitasse qualquer modelo natural: eu olhava-a de frente, ali naquela janela rente à rua, com os meus olhos firmemente absorvidos pela calma resignada, sábia e quente, com que os seus olhos castanhos sempre me haviam cativado. A sua pele sensível e pálida, a fazer lembrar a subtileza etérea das pin-turas antigas de têmpera sobre madeira, ladeada por finíssimas linhas que eram rugas já profundas e os seus lábios estreitos, de um vermelho acastanhado, com uma ligeira pincelada de rosa, e toda esta moldura toda ela ladeada por cabelos brancos, sublimes, fizeram-me estar disposto a entrar na sua casa uma vez mais.

Só que, ao contrário do que eu esperava, ela não me convidou e em vez disso perguntou-se: para onde vais com tanta pressa, menino? Ao que eu respondi, desarmado, vou a casa fazer as minhas malas e partir. E não se fez silêncio como eu também esperava, claro que não, pensei, pois a sua vida era preciosa e para ela o silêncio era um antecipar do fim que não queria ver. Mas, meu menino, tu tens aqui tudo. Tens-me a mim, os teus pais e os teus amigos. É verdade, concordei e continuei, mas, será que tenho futuro? Eu nem trabalho consigo ter nem o amor me vem abraçar. Mas, meu menino, ela acrescentou sem demora, olha para mim, eu vivi aqui grande parte da minha vida, vi chegar e partir muita gente, vi esta rua mudar de face muitas vezes, contei outras tantas as últimas moedas da minha carteira, com a diligência atenta de um mendigo e mesmo assim, o amor dos que

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me rodeavam me bastou. E a tua companhia também. Ouve, o amor não bate à porta, nem se publicita a ele próprio, antes vem com a candura firme e frágil das flores da primavera e sem hora marcada. E além do mais, quando chega, mostra--nos o azul brilhante do mar, que após uma tarde quente de verão, se transforma no rosa avermelhado do por do sol, intemporal, deitado ao longe no horizonte. Sim, eu acredito. Retorqui. Ela havia esperado uma vida para que o meu tempo e o dela se nivelassem e víssemos o mundo com a mesma clarividência, pelo que por fim me perguntou sem rodeios: os teus pais sabem? Eu telefono-lhes depois, eles agora não estão em casa. Tenho de ir... Esclareci, e ela olhou para o lado, pegou em algo que eu não sabia o que era e estendeu-me a mão com um marcador de livros no qual se podia ler: “Estarei sempre aqui com o meu amor, para te aconchegar no meu calor feito de palavras.” Volta em breve, pediu-me. E eu apertei aquele cartão colorido na minha mão, acenei afirmativamente com os meus olhos ainda presos nos dela e fugi com passos ao mesmo ritmo dos que me haviam feito ali chegar. Com a idade eu aprendera que a melhor fuga é aquela que aos demais nada mais parece do que o calmo passeio do devoto depois de num templo ter deixado a sua prece. Aliviado.

Só que da sombra que se acendera sobre mim, debaixo daquele sol de primavera, ninguém me livraria. Assim, quando com o pé direito pisei o primeiro degrau da entrada do meu prédio eu nada mais era que alguém que se sentia como um criminoso que, assaltado pela culpa, se movia sub-repticiamente para voltar para a sua prisão, sem que entretanto ninguém houvesse notado a sua ausência. Acima de tudo, eu queria chegar a casa sem encontrar mais ninguém. Foi isso que aconteceu e dez minutos depois fechava a porta já com o cuidado de um crimi-noso esquizofrénico para quem nem a clausura bastaria para se auto flagelar. Era necessário o degredo do além, já não apenas a libertação consumada na lonjura pois, afinal de contas, é no íntimo do nosso ser que as amarras à liberdade têm que primeiro ceder. Amaldiçoados sejam os que te fazem querer partir, lera eu esta maldição no derradeiro olhar da minha doce velhinha. Amaldiçoados para sempre, haviam respondido os meus olhos. Há afinal tantas formas de se ser cativo nesta vida, aprendera eu naquele terno momento, que as estrelas do firmamento não chegariam para as ajudar a contar.

E cativo estava eu destes pensamentos quando, no patamar do primeiro andar, ouvi a porta do lado esquerdo abrir-se e vi surgir a figura esguia e telurica-mente bela da minha amiga Joaninha. A claridade que entrava pela claraboia do

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telhado, recortada aqui e ali pela geometria funcional daquele interior, conferia ao momento uma aura quase cinematográfica bem ao jeito de Hopper e o resultado daquela visão ímpar, de olhos azuis marinhos iluminados e refletindo a humidade de quase lágrimas, ameaçava imprimir-se na minha memória para todo o sempre, com a mesma crueldade possessiva com que se marca o gado recorrendo a um ferro em brasa. Aquele vão de escada que tinha tudo para ser escuro era afinal um local tão ou mais primaveril que outros diretamente iluminados pelo sol. Vi-te a entrar no prédio, e agora... Vais-te embora? Ela perguntou-me e eu, com uma can-dura de criança insegura, sem largar as malas, expliquei que era o que mais queria. Foi assim que se abraçou a mim e, com os seus lábios cor esmeralda, compôs a harmonia sacramental de sons singulares que conjugados querem dizer: Eu Amo--te! Nunca percebeste?! Não sei o que me deu mas, larguei as malas e abracei-a. Nunca me apercebera como o seu corpo feito de carne, ossos, cartilagens, órgãos, células, mitocôndrias, ribossomas, DNA e RNA, e ainda a vida que o animava, mis-tério universal, era afinal quente e amplo para aqueles sentimentos tão complexos. Éramos simétricos. Senti algo que não posso explicar por não ter palavras para o descrever, talvez algo parecido com o encanto que se tem em criança, quando se vê, e se lambe, pela primeira vez, um doce quase feito apenas de puro açúcar, e da cor, e com o sabor, do morango silvestre.

Sim, era ali presente a magia eterna da primeira vez. Logo nos desenlaçá-mos e no instante seguinte surgia por trás dela o seu pai. Percebi então, surpreen-dido, que era ele o homem que me acenara na pastelaria ao início da tarde. Colocou o braço direito sobre os ombros da filha e desejou-me, em nome de ambos, muita sorte e saúde. Agradeci e segui sem hesitar, pese embora ao sair do prédio ainda visse à minha frente as lágrimas que, em total silêncio, desciam as faces da Joani-nha, obedientes às leis físicas e friamente matemáticas da gravidade, que também me ameaçavam fixar no ponto em que me encontrava. No meu peito, fazia-se sentir o peso enorme da mágoa vincada pelo Adeus e Separação que a mudança, ainda que desejada, sempre foi incapaz de erradicar em quem parte em busca de uma quimera por contraponto com o sentir delirante de um presente que nos cerca e atormenta.

Decidi partir, seguindo um caminho diferente. Toda aquela sequência de despedidas, que não pude evitar, criaram uma habituação tão inesperada como a que uma tempestade de Verão pode criar ano após ano. E o vento ténue daquele dia também me levava para onde eu queria ir: ao jardim onde estava a árvore que

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me acompanhava todas as Primaveras, uma cerejeira encantada de porte majes-toso, ainda mais velha que a minha amiga velhinha. A ela eu também sempre con-fiara as minhas confidências e esta fiel, sempre permanecera ali, à minha espera. Não havia em todo o vasto mundo, eu sabia, uma árvore assim. A mais lendária conciliação estética entre o artístico e o natural que jamais imaginara. O meu andar, subitamente mais seguro, refletia já a antevisão desse encantamento, com um travo neoplatónico, íntimo.

Algumas crianças corriam e brincavam, inocentes, com uma bola branca sobre aquele verde oliva claro ladeado por aromas subtis. Ao longe, um vendedor ambulante esforçava-se por vender algodão doce, pois os clientes eram ainda me-nos que no ano anterior. E, num ponto equidistante, entre as crianças e o vendedor, um banco de jardim, de madeira de castanho, acolhia os beijos de dois namora-dos em dádiva reciproca. A sua sombra alongava-se já, num escuro profundo, tal como a minha à minha frente, e eu, para os evitar, continuei pelo caminho que me levava adiante. Debaixo dos meus pés a areia áspera rebolava, sonora. O vento, levemente, despenteava-me os cabelos e fazia as folhas das árvores agitarem-se, como uma multidão a bater palmas, em copas vibrantes em movimento emoldura-do pelos raios de sol. Eu absorvia tudo aquilo, e mais ainda, na pouca gente que ali passava e cujos olhos evitava meticulosamente, olhando para o alto.

Uns passos mais e já via, dos dois lados do caminho, belas figuras de ve-ados atléticos, de vários tamanhos, esculpidos em arbustos reverdejantes. O meu coração batia mais acelerado, em malfadado compasso. O ponto mais ao centro da íris dos meus olhos concentrava-se no ponto ao fundo do caminho, ao cimo do qual uma abóbada verde e florida sinalizava a “minha” árvore. E pouco depois ali estava o suporte ou plinto verde sobre o qual assentava todo o sentimento de per-tença orgânica que me tornava parte das raízes e elemento daquele chão ao qual as minhas entranhas pertenciam: o meu mundo. O seu tronco estava no centro de uma vedação arbustiva, na entrada da qual deixei as malas. Doíam-me os braços e as mãos e logo as encostei à pele rugosa da árvore em repouso, reconfortado. Ajoelhei-me perante ela, toquei com a minha cabeça nela e fui descendo, vencido pelo pesar que me dominava por completo. Por fim, fiquei ali totalmente deitado, com o meu peito colado àquela terra. E se eu ficasse... E se eu me ligasse ao mun-do pela internet... E se eu não visse o amor que sonhara, mesmo à minha frente... E se eu tivesse que ficar e modificasse tudo o que pudesse em meu redor... A minha cabeça era uma tontura, agarrava-me o mais que podia ao tronco e era como se o

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meu corpo girasse em torno das minhas mãos, deixando em caos o vermelho en-sanguentado por dentro de mim. E se tudo estivesse ao meu alcance ali mesmo... O mundo é redondo e justo, pois o seu centro é onde quisermos. Pensava eu ouvindo a minha voz interior.

Passou-se uma hora atormentada e por fim o meu carrossel parou, com-placente. Tudo estava de novo tranquilo, o vermelho rosa no céu estabelecera-se. Da minha cerejeira, minha sakura Japonesa, como eu a apelidava, haviam caído milhares de flores que me salpicavam a mim e às minhas malas, com pétalas e pó-len, envolvendo-nos tal qual o faria um abraço reconfortante de um amigo. Respirei fundo, a minha expiração levantou um pouco de pó. Finalmente estava decidido a ficar. As minhas raízes eram tão profundas como as da cerejeira e eu conhecia com tanto detalhe os seus braços como um Índio Tupi conheceria a floresta que era a sua casa. Dois seres simbióticos não deveriam ser separados. O nosso sangue era uno.

* Rui Miguel Dias Carvalho é economista, português.E-mail: [email protected]

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Santo FeriadoMarcella Rodrigues dos Reis – 3.º lugar – categoria internacional – Queluz – Portugal

H oje o dia amanheceu diferente para Nuno. Nada de levantar rápido da cama como de costume e de beijar a esposa com bafo de acordar. Muitas vezes beijava por obrigação só para não deixá-la chateada. Nada de ajudar a es-

posa com o pequeno almoço das crianças e de pegar um caminho diferente do seu trajeto natural e levá-las para a escola . Decidiu curtir a cama um pouco mais, afinal era feriado. FERIADO em letras garrafais. Há quanto tempo não tinha um dia de folga? Já nem ele fazia contas disso.

A mulher levantou-se sem beijá-lo. Engraçado, ela que sempre cobra um beijo dele com bafo. Mas ele não se importou. Mulher é quem se importa com coi-sas minúsculas, que claro, fazem uma maiúscula diferença no dia-a-dia.

Esticou as pernas e ronronou como o seu gato gato. Virou-se para o lado da cama da esposa. Cheiro de suor noturno feminino. Nunca havia parado para sentir o cheiro do levantar da mulher. Nuno sempre se levantava primeiro.

Cheirou o travesseiro dela. Viu alguns fios dos cabelos ruivos e compridosna fronha. Até então só tinha um dos olhos abertos. Resolvel abrir o direito também. Olhou para o despertador. Onze horas. Que privilégio! Na cama ainda até uma hora dessas.

Nada de Pipipipipipipipipi irritante.Esticou-se novamente como uma espreguiçadeira de praia e deixou que a

luz tímida do sol prismasse fragmentadamente alguns pontos do seu corpo.Olhou para o teto do quarto. Ficou pensativo:“ Vou levantar. “Piscava enquanto mirava algumas teias finas de aranha.“Tem cheiro de café no ar.”Respirava mais fundo com os olhos postos no lustre moderno.“A Luísa já deve ter tomado banho.” Sentia o ar húmido vindo da suite enquando coçava as costas.“O escritório deve estar fechado.”Piscava duas vezes seguidas.

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“Amanhã já trabalho.”Espreguiçava novamente estralando o corpo inteiro. “O que vou fazer a seguir? “ Levantou-se um pouco tonto. Caminhou para a casa de banho.Duas toalhas de rosto cada uma com uma inicial: L na toalha rosa e N na

toalha azul. Luísa era esposa caprichosa. Só agora ele tinha reparado nas iniciais bordadas em branco-creme. Sorriu tosco.

A banheira branca tinha alguns fios ruivos também e restos de espuma de alfazema. Espelho embaçado. Resolvel escrever no espelho redondo as iniciais bordadas na toalha com a ponta dodedo indicador e fez um coração.

Ligou a água. Saía quentinha. Abriu a tampa da sanita e urinou devagar. O barulho da água caia tépido e relaxante no vazio.

Aos poucos, as iniciais e o coração foram desaparecendo até o espelho ficar novamente embaçado.

Entrou para dentro da banheira. Tomou banho demorado. Hoje tomaria ba-nho comesponja. Lavou alguns pedaços da epiderme que há muito tempo não sa-bia que existia. Trapézio, braço de dentro, meio das costas. As mãos do cotidianos só conheciam suas axílas, partes íntimas, barriga, pés e rosto. Cabelos também. Hoje repetiu o champô nas mãos e enxaguou duas vezes. Gostou de ver o líquido vertendo em aspirais no seu tato. Gostou do banho demorado.

Abriu o armarinho e tirou a sua escova de dentes. Azul também. Colocou uma dose generosa de creme dental e pela primeira vez pôde pensar mil coisas emquanto lavava a boca.

Espelho embaçado de novo. Limpou-o de punhos fechados e se admirou no espelho. Ar fresco, hálito de mentol. Agarrou na escova e penteou os cabelos. Nela alguns fios ruivos de Luisa. Balançou a cabeça sorrindo.

Lembrou-se de apertar o autoclismo. No bidé estava uma caixa de tinta com a tonalidade ruiva.Olhou-se no espelho novamente. A barba estava feita. O emprego em que

estava exigia boa aparência.Ligou a água quente da mangueira outra vez até que o espelho voltasse a

ficar embaçado e depois escreveu o nome da esposa dentro de um coração de dois morros tortos e final ponteagudo.

Saiu enrolado na toalha. Escarafunchou a gaveta das T-shirts. Escolheu uma colorida. Camisa hoje não.

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Embaixo estavam as bermudas com cheiro a amaciante guardado. Escolheu a azul.

Sapateirado lado. Calçou os chinelos antigos quase nunca utilizados. Esta-vam como novos.

Ia saindo do quarto mas decidiu arrumar a cama. Tirou fio por fio ruivo do travesseiro e jogou na alcatifa. Embrulhou a cama e os travesseiros com o edredon e passou a cama com a quentura das mãos.

Olhou para a penteadeira. Haviam mais coisas de Luisa do que suas. Um desodorizante seu, perfume ganhado de presente da esposa e um after shave. A volta das poucas coisas que tinha os produtos dela imperavam. Perfumes, cremes de dia e de noite, hidratantes, desodorizante (mais do que um), porta jóias, jóias de fora dele... Batons cor de amora, vermelho, nude, rosa, transparente. Lápis de olhos e de boca... Três lápis de cera da sua filha Beatriz. Criança adora deixar as suas coisas por todos os lados.

Um brinquedo de borracha gritou por debaixo da sua chinela. Tratou de pegar. Nunca havia parado para reparar nos brinquedos do Pedrinho. Carro de borracha que grita. Que faz barulho de pato. Achou engraçado. Riu outra vez.

Abriu a janela. Solinho gostoso. Passarinho cantando só para ele. Respirou o dia. Dentro dos seus pulmões entrou o vento tímido, as folhas das ávores, a música do vizinho do lado, a buzina despreocupada de um carro, os pés relaxados dos pedestres nas calçadas, as conversas cruzadas.

Riu.Na sala Beatriz desenhava com a língua de fora. Pedrinho assistia TV com

uma bolacha negra recheada de branco.Beijou a filha. O desenho saiu mais torto.- Papá, fiz um desenho.Ele viu. Era um gato azul e caolho.- Que lindo, filha!- É o Zacarias.Zacarias é o gato da família.Beijou o filho com as bochechas de cheiro a Oreo.- Papá, o gato quer comer o rato. – apontou para a televisão com os dedi-

nhos sujos.Nuno olhou para a TV. Passava Tom and Jerry. Há quanto tempo não assistia

um desenho animado? Sentou-se um pouco e pos-se a ver a rivalidade cómica entre o gato e o rato.

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Luisa entrou na sala com uma chávena de café nas mãos.- Quer?Nuno reparou-lhe nos cabelos ruivos. Estava bonita. Cabelos ruivos e on-

dulantes. Nunca parara para pensar se a mulher pintava o cabelo ou não. Para ele, ela tinha nascido ruiva. Só agora se lembrava que quando ele a conheceu ela tinha cabelos curtos e negros.

Tomou o café quentinho e trincou algumas bolachas de Pedrinho.- Não quer uma torrada?E ele também comeu a torrada de Luisa.- Eu vi o que tu escrevestes no espelho. Gostei. Também gostei da cama feita.Beijou o rosto do marido.Nuno queria um beijo na boca e por isso deu-lhe um beijo na boca com

a língua. Há quanto tempo não beijava com a língua? Como é gostoso beijar de língua!

Luisa estava espantada.- O que te deu hoje homem?Ele sorria. Estava mais bonito. Luisa sentiu-se mais atraída por ele. A noite

fariam amor com certeza. Amor devagar. Sem pressa de acabar. Ela tem lingerie que nunca usou. Hoje seria noite de usar quem sabe a vermelha comprada há 2 anos atrás na loja cara que envergava a esquina e que agora vendia produtos para o lar.

Feriado. Dia de almoço sem hora. 13:00 em ponto. Luisa começava o almo-ço agora. Nuno quis ficar na cozinha vendo a esposa cozinhar. Fez-se de ajudante. Cortou a cebola e a salsa. Lavou os tomates e as folhas de alface. Descascou e picou as batatas em cruz enquanto ela fazia o arroz e temperava o frango com tomilho e alecrim.

Abriu um vinho verde do Minho para os dois. Brindaram. Havia muito tempo que Nuno não sabia o que era tomar um copo de vinho verde. Vez em quando tomava um copinho de moscatel ao intervalo do almoço, ora uma ginginha. Mas estar ali sentado a picar e a descascar o almoço com uma taça de vinho do lado e a esposa, não tinha preço.

O almoço ficara pronto as 14 e 15. Sentaram-se os 4 na mesa redonda. Zacarias passou pelas pernas de Nuno todo arrepiado e ronronante.

Frango na cerveja assado regado de azeite e amor. Arroz branquinho e sa-lada. Os filhos a se lambuzarem do almoço do feriado. Luisa tãoruiva a sua frente. Tão sua esposa e ele nunca tinha reparado. Olhou na sua aliança enquanto levava

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a comida no garfo. Reparou na aliança da esposa. Era casado! Tinha familia. Casa própria. Contas pagas. Carro familiar. Flores no parapeito da janela. Tinha familia. Mas apercebeu-se de que só não tinha tempo para ela, para estar com ela. Era casado e tinha filhos e isso implicava ter que trabalhar para cuidar dessa familia. Casa própria que tinha que pagar a prestação por mês. Contas pagas que vencem todo final de mês e têm que ser pagas outra vez. Carro familiar que exige muito gasto e que falta pagar também. Flores no parapeito da janela que são regadas pela empregada da casa que tem salário. Salário que ele e a esposa pagam.

Domingo ele não trabalhava mas trazia sempre trabalho para casa. Ponde-rou enquanto comia. Terminou de comer sem se aperceber. Tomou o último gole do vinho e chamou Luisa para tirar uma sesta juntos.

Luisa colocou as crianças para dormitarem e foi deitar-se com Nuno. So-ninho bom. Televisão baixinha. Olhos pesando moles na cara. Adormeceram de conchinha. A noite fariam amor. Certeza que fariam.

Acordaram as 19 horas com as crianças empolecadas na cama. Pedrinho e Beatriz tinham fome.

Luisa tratou de aquecer uma sopa para todos. Sopa de legumes. Tomaram--na com pão saloio.

Nuno olhou no relógio. O feriado estava terminando. Que pena!Assistiram um pouco de televisão juntos. Riram-se. Luisa brigou com Bea-

triz e só então ele reparou o quanto ela ficava bonita quando ralhava com os filhos impondo o seu papel de mãe.

A hora de deitarem-se chegou. Nuno olhou na estante de livros e decidiu que leria uma história para Pedrinho e para Beatriz. Contou a do João e o pé de feijão. Há quanto tempo não lia um conto para os filhos? Ele já nem se lembrava que existia um gigante e um pé de feijão mágico. Nem da galinha dos ovos de ouro... Nem da harpa falante. Leu para eles e para si.

Luisa de cabelos vermelhos e camisola vermelha esperava-o na cama. Amor de madrugada. Amor com suor. Amor devagarinho. Ela usava o batom de amora e um dos vários perfumes da penteadeira. Fizerem amor de luz acesa.

- Eu amo-te Luísa.Há muito tempo não dizia que a amava.- Eu também, Nuno.Dormiram abraçadinhos. Seu ombro doeu como nas noites em que namo-

ravam.Pipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipi.

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Relógio desesperado despertando.Nuno acordou rápido. Beijou a mulher com o seu bafo de acordar. Escovou

os dentes rápido também. Enxugou as mãos numas das duas toalhas de rosto que lá estavam.

Urinou em jato e esqueceu-se de apertar o autoclismo.Tomou banho apressado. Lavou as axilas , as partes íntimas e o rosto. Es-

queceu-se dos pés.Enxugou aqui e ali. Vestiu a camisa e o fato todo.Luisa levantou-se 10 minutos depois de Nuno. Tratou de arrumar as crian-

ças. Ele ajudou com o pequeno almoço.Bibiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Buzinas preocupadas. Engarrafamento gigantesco. Passos

apressados.Deixou as crianças na escola.Manhã passada como um flash. Sem café. Sem torrada.Almoço rápido. Sem cheiro de tomilho e de ervas provençais.Um gole de ginja.Minutos depois, dedos frenéticos nas teclas do computador. “Tec tec tec tec

tac tac tac ttttt.”Dia acabado. Noite a dentro estudando casos, resolvendo outras vidas.Chegou em casa bem de noitinha. Prato feito guardado no microondas.

Preguiça de comer sozinho. Olhou para a parede da cozinha e avistou o calendário dado pelo senhor dono do talho em que Luisa sempre compra as carnes.

O próximo feriado seria daqui a 3 semanas.Dia de um Santo qualquer. Dia de um Santo feriado.Adormeceu e sonhou com o pé de feijão mágico e a galinha de ovos de

ouro, com a bochecha a cheirar as bolachas de Pedrinho, com os lápis de cera de Beatriz e de olhos de Luisa. Adormeceu embalado pelo perfume dos cabelos ruivos da mulher. De certeza que haveriam alguns fios espalhados pelo travesseiro.

Sonhou que amanhã era feriado.Pipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipipi.O dia amanheceu igual. Nuno levantou rápido e beijou a mulher com bafo

de acordar.

* Marcella Rodrigues dos Reis é brasileira (Goiás) que mora em Portugal, cidade de Queluz.E-mail: [email protected]

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Depois do escapeAntônio João Maduro Guerreiro – 1.ª menção honrosa – categoria internacional - Peniche - Portugal

U m som seco e grave interrompeu a serenidade da noite, e representou o fim do trajeto entre uma janela de um bloco de apartamentos e o passeio da rua para um corpo que pouco mais podia fazer do que render-se a uma

mente em processo de aniquilação. Apenas o candeeiro mais próximo testemu-nhou o cruel evento, resultado de uma opção tomada após uma fatal e prolongada contenda sentimental por entre mais um jantar solitário, um rol de memórias tru-cidantes e a perceção da decadência que a sua existência atingiu. No entanto, a morte resolveu conceder mais uns momentos a uma vida que ansiava pelo fim, e a hipótese mais do que certa de um final instantâneo traduziu-se, afinal, em mais uma inquietante viagem a um passado recente que insistia em não deixar Mateus.

A angustiante sensação de queda fê-lo acordar em sobressalto. Deitado de costas no sofá, olhou em redor e reconheceu de imediato o espaço onde se encon-trava – desde a morte de Mariana que o seu mundo se resumia a pouco mais do que aquela sala-de-estar do pequeno mas confortável apartamento em que vivia. Com a lucidez a regressar lenta mas fluidamente em ondas de frequência regular, segundo atrás de segundo, momento após momento, apercebeu-se de que uma densa escuridão dominava o ar, atribuindo uma imagem difusa às formas que pre-enchiam a sala. Por entre a nebulosa mistura da atmosfera conseguiu identificar claramente a música, dolente e profunda, que exalava das colunas do rádio. “Walk in silence, don’t walk away, in silence…” Um lamento ambiental pleno de solidão que capturou a sua atenção logo aos primeiros versos ouvidos.

Mateus não conseguia situar-se no tempo, mas já era noite, a avaliar pelo negrume que podia perceber através dos orifícios do estore por detrás de si, no exterior da ampla janela que estabelecia contacto com o mundo. A sua especial predileção pela noite percorreu-lhe o espírito: a diminuição do ruído, a mudança de turno do astro-vigilante e a acalmia que se apodera da realidade à noite anulam todo o supérfluo da buliçosa vivência diurna. É à noite que a comunicação menos

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perdas sofre, é à noite que os semblantes melhor se definem e percecionam. É à noite que as almas se questionam!

Pouco preocupado com a informação horária que o relógio-rádio-desper-tador digital do seu quarto revelaria, deteve-se uns instantes a tentar recordar os acontecimentos do início daquela noite. Sondando a memória, conseguiu rever-se sentado no chão da sala a mastigar as sobras do jantar do dia anterior, um arroz fri-to com frango picante encomendado num restaurante de comida rápida tailandesa com entregas ao domicílio. A comida encontrava-se já ressequida pelo passar do tempo, e o que fora um cozinhado agradável ao paladar e extremamente perfuma-do, fruto das especiarias utilizadas na sua confeção, tornara-se agora numa mistela sensaborona, útil apenas para ocupar um estômago ansioso por alimento. Termi-nado o pouco nobre repasto, retirara do bar uma garrafa já encetada de whisky de malte, o seu preferido, ligara a televisão em modo mudo, uma vez que quase sempre elegia o rádio como fiel fornecedor de som ambiente, e sentara-se no sofá, telecomando em riste a procurar aleatoriamente algo que lhe interessasse numa infindável panóplia de canais a debitarem inutilidades estupidificantes. Detivera-se então naquilo que parecia ser uma reportagem de uma prova de competição de surf numa qualquer praia paradisíaca. Deslizara o corpo no sofá até ficar quase sentado no chão, e enquanto ia bebericando distraidamente o whisky, a sua con-centração começara a afastar-se gradualmente das imagens que passavam na televisão e a focar-se nos acontecimentos da sua vida mais recente.

Desde o dia em que o Destino resolvera mostrar a sua supremacia rompen-do a ligação que nutria e justificava duas existências, que a sua vida deixara de fazer sentido: o desaparecimento de Mariana funcionara na sua vida como o corte da gadanha na vigorosa erva fresca de um prado verde e agora, no presente, já nada lhe interessava; nada mais que a tentativa de conseguir saltar sobre os su-cessivos e ininterruptos momentos sem que neles participasse, e até que o último deles sobreviesse. Depois, a recordação de que dentro de dois dias se assinalava mais um aniversário da oficialização da relação entre ele e Mariana deixara-o de rastos; e tanto mais porque ele nunca dera grande importância à comemoração de efemérides. Mas agora as circunstâncias da sua vida haviam sofrido uma alte-ração radical, e pareceu-lhe ter sido necessária a ausência de Mariana para uma vontade enorme de comemorar aquela data o invadir. Tarde demais, pensara, ao mesmo tempo que, de um trago, terminava a bebida existente na garrafa. Com um crescendo de desespero e de raiva a apoderarem-se de si, os olhos a ficarem ma-

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rejados de lágrimas, um enorme sentimento de culpa por não ter dado importância a pequenos detalhes tão do agrado da sua companheira, desejara naquele início de mais uma noite passada em solidão que a sua vida finalizasse rapidamente, para não ter que rever sistematicamente os pormenores mais dolorosos da sua existência. Tomara então uma atitude próxima do irracional, de libertação da frus-tração que o dominava, materializada no arremesso com todas as suas forças do telecomando da televisão de encontro ao aparelho, levando-o a desligar-se. Sem motivação para mais nada naquela noite, deitara-se no sofá encolhendo-se sobre si mesmo em posição fetal e, aproveitando o torpor inebriante do álcool que ingerira e a escuridão que ia tomando de assalto a sala com o final do dia, ali ficara imóvel, protegido do mundo.

Tentando que aquelas recordações não remetessem novamente o seu frágil estado mental para o abismo, Mateus regressou de novo ao presente e pensou em ficar por ali e dormir até à manhã seguinte naquele sofá em tecido preto cujas formas já se adaptaram à estrutura do seu corpo, mas uma forte náusea indiciou--lhe a necessidade de vomitar.

Sentou-se. Sabia que teria de chegar à casa-de-banho rapidamente de forma a não conspurcar a sala, e até porque sentia igualmente uma necessidade crescente de refrescar o rosto quente e transpirado; aliás, todo ele começava a ficar desconfortavelmente banhado em suor, consequência do mal-estar geral que tomava de assalto o seu corpo. No escuro e com um impulso, Mateus colocou-se de pé; uma vertigem trespassou-o e por pouco não se estatelou no chão, valendo--lhe o apoio na estante onde estão o rádio e a televisão e o bar, conseguido após as suas mãos tatearem com aflição e urgência o nada em busca de algo onde se susterem. Atingido o equilíbrio necessário à prossecução do seu intento, iniciou o percurso em direção à casa-de-banho, já que o seu estômago ameaçava esvaziar--se a qualquer momento. Quando entrou no corredor que servia de intermediário e de espaço unificador entre todas as divisões do apartamento, a porta da casa-de--banho, situada no extremo oposto e no lado direito, pareceu-lhe mais distante do que o habitual. Para lá chegar, pouco mais de meia dúzia de passos foram dados, mas que para ele equivaleram a uma prova de atletismo de meio-fundo. Ultrapas-sado o limiar da meta, Mateus apontou à sanita e, ajoelhando-se, impeliu todo o conteúdo gástrico para o seu interior.

Com as gotas de suor a percorrerem-lhe o rosto e a escaparem para o vazio antes de embaterem no chão, Mateus invocou todas as suas forças para se erguer

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e conseguir deslocar-se até ao lavatório. Ao olhar o espelho iluminado, um asso-mo de lucidez fê-lo aperceber-se da sua péssima condição, com umas auréolas negras e largas a resguardarem-lhe os olhos e os ossos cada vez mais salientes num rosto escurecido por uma barba farta e selvagem. Quase chorou: longe iam os tempos em que a sua figura era motivo de realce e de elogio, e até mesmo fator determinante quando em causa estava uma situação onde o aspeto físico e a apresentação são apreciados e valorizados. Abriu a torneira de água fria, dobrou--se de forma a aproximar do lavatório o terço superior do corpo e, usando as duas mãos em concha, invadiu de água o rosto e o cabelo desgrenhado, granjeando a frescura desejada.

Com ambas as mãos a apoiarem o corpo no rebordo do lavatório, os braços ligeiramente fletidos, Mateus permaneceu imóvel enquanto a água escorria para a loiça encardida em direção ao esgoto. Até que, do nada, sentiu um inusitado toque suave no ombro direito, o qual lhe provocou um incomensurável arrepio. Meio incrédulo, e muito a medo, ergueu a cabeça e fitou o espelho – atrás de si, no seu flanco esquerdo, o rosto de Mariana estava ao lado do seu e, tal como ele, olhava fixamente o espelho iluminado. Os lábios dela mexeram-se, mas as palavras pronunciadas soaram apenas a um ruído impercetível. Aquela imagem deixou-o petrificado, e não era caso para menos pois afinal a sua desaparecida companheira estava ali, de regresso, com o seu corpo longilíneo bem próximo do seu. Mateus cerrou os olhos com força e tentou analisar sensatamente a situação, uma vez que não era possível que Mariana ali se encontrasse; a sua vida tinha sido abruptamen-te interrompida há cinco meses e sete dias, ao ser atingida de forma implacável por uma bala perdida de um tiroteio originado num confronto de gangues, quando fazia o caminho para o hospital onde concluía o internato complementar de nefrologia. Ele próprio havia feito a identificação do corpo, naquele que ficou marcado a fogo na sua mente como o primeiro momento de contacto com ela após lhe ter sido subtraída a força vital.

Os seus olhos reabriram-se e de novo enfrentaram a luz e as imagens devolvidas pelo espelho, e nesse momento uma angústia desmedida o invadiu ao perceber que Mariana continuava naquela divisão da casa que ambos partilharam. Aquela imagem única e inigualável – os longos e ondulados cabelos negros real-çando a alvura do rosto, onde os olhos claros e os lábios finos completavam um conjunto sublime de ternura e sensualidade – era pertença exclusiva da pessoa com quem Mateus passou alguns dos melhores momentos da sua vida e de quem

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não teve oportunidade de se despedir. Agora posicionada no lado oposto, Mariana estendeu o seu braço direito num gesto harmonioso e tocou-lhe suavemente o rosto, deixando-o ainda mais desorientado, num misto de desnorteamento e de satisfação por sentir novamente o contacto daquela pele macia na sua face.

Com efeito, Mateus ainda não tinha conseguido pronunciar uma palavra ou esboçar um gesto, limitando-se a observar e a sentir, completamente desarmado, aquela figura misteriosa e ao mesmo tempo tão familiar ali junto a si. No entanto, o contacto com Mariana começava a despoletar uma série de sensações que jul-gava terem desaparecido juntamente com ela. Igualmente satisfeita parecia ela por poder tocar-lhe, de tal forma que de seguida viu e sentiu Mariana pegar-lhe suave-mente na mão direita e aconchegá-la entre as suas duas mãos. Mateus virou-se e olhou-a fixamente, olhos nos olhos, da mesma forma que tantas vezes acontecera e que tanto prazer lhe dava, tão-só a simples e silenciosa observação mútua, a prospeção reciprocamente íntima e inteligível como forma de unificação de duas entidades que individualmente se sentiam e apresentavam incompletas. Uma sen-sação indescritível invadiu-lhe o corpo, como se se tivesse tornado mais leve, como se deixasse mesmo de ter peso, de possuir forma física e massa mensurável e exprimível e tangível. Como se toda uma vida tivesse justificação naquele momento.

Mateus morreu. O impulso tomado aquando da projeção do seu corpo para além da ampla janela da sala-de-estar da sua casa, executado de forma a melhor assegurar o escape sem retorno, fê-lo cair no limite do passeio da rua onde habi-tava, e foi naquele espaço que a sua vida se extinguiu. Apenas Rute se encontrava junto a si, ainda aguardando a ambulância requisitada uns minutos antes; per-manecera ajoelhada nas pedras de calcário que compunham a calçada, na fron-teira com o negro alcatrão da estrada, segurando a mão direita de Mateus. Rute recorda-se de ouvir algures, ou talvez de ter lido, que a morte é um ato solitário, mas sentiu-se reconfortada por ter estado ali e acompanhado aquele homem, um perfeito desconhecido mas ainda assim um homem, um ser vivo com sentimentos, nos seus últimos momentos de vida. Não sabia, nem nunca viria a saber, se ele se teria apercebido da sua presença, mas tinha esperança que de facto isso tivesse acontecido e ela, igualmente uma completa anónima para ele, fosse a última recor-dação da sua presença neste mundo.

Rute deparara-se com Mateus quando regressava a casa após sair da dis-coteca situada a dois quarteirões dali, onde mantém um segundo emprego como

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empregada de bar. Ao avistar aquele corpo imóvel no chão pensou tratar-se de algum embuste, pelo que, temendo o pior, decidiu acelerar o passo e seguir em frente rumo ao seu apartamento que ficava ali bem perto, ao dobrar da próxima esquina. Mas um calafrio percorreu-a de cima a baixo quando, ao passar junto do indivíduo, se apercebeu que estava ferido. O corpo encontrava-se de frente contra o chão, com a cabeça virada para o lado direito; uma mancha de sangue abandonava-o, enquanto os órgãos ainda funcionais se debatiam pelo regresso impossível da harmonia interna. Observando todo o espaço à sua volta e fazendo uma análise breve ao estado do rapaz, adivinhou o que se teria passado alguns momentos antes. De seguida dobrou-se sobre ele e percebeu-lhe a respiração irregular e perturbada e perturbante, como que uma voz rouca e impercetível que saía do interior daquele corpo em ruínas; colocou-lhe a mão direita no ombro direito e sussurrou-lhe ao ouvido, sem qualquer garantia de que seria escutada: “Tenha calma, não se mexa, eu vou pedir ajuda.” Como que instintivamente, enviou a mão fria e trémula ao bolso para retirar o telefone móvel e marcou o número do seu namorado, que naquela noite estava de serviço na corporação de bombeiros da cidade. “Rodolfo, sou eu. Estou na Avenida Marginal em frente ao jardim, está aqui no chão um homem que deve ter caído de uma janela ou de uma varanda. Envia uma equipa depressa, ele ainda está vivo!”

A jovem olhou em redor: a rua e o pequeno jardim, local onde os idosos pela manhã e as crianças à tarde se costumam reunir para conversar e brincar, estavam desertos. Seria bom ter alguém mais ali com ela, pensou, mas àquela hora tardia pouca gente frequenta a pé aquela zona suburbana, e ela sabia-o bem pois já fazia aquele percurso noturno há alguns anos. E sabia também que quem de carro cir-culava dificilmente iria parar, já que pensaria precisamente o mesmo que ela ao ter avistado aquele homem no chão. Num impulso, contornou Mateus, colocando-se à sua direita, e ajoelhou-se no pavimento, tocando-lhe de seguida suavemente no rosto já desfigurado devido ao impacto no solo, na tentativa de obter alguma rea-ção. Mas logo compreendeu que dificilmente ele emitiria um sinal, um esgar de dor que fosse, dado que provavelmente nem sequer estaria consciente. Pouco restando a fazer enquanto não chegasse a ambulância, Rute, com as lágrimas a começarem a verter e já em fase de descompressão pelo sentimento de impotência que come-çava a invadi-la perante a situação em que o acaso a envolveu, pegou suavemente na mão direita de Mateus, a única que se encontrava à vista, e aconchegou-a entre as suas duas mãos.

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Naquela noite, provavelmente a última para aquela pessoa que se encon-trava à sua frente, os problemas costumeiros na discoteca onde trabalhara até tarde tinham sido pequenos pormenores comparados com o que viria a enfrentar no caminho de regresso ao conforto doméstico. Olhando para o céu, conseguiu identificar o traço estreito e curvo de uma lua que arrancava para uma nova fase do seu ciclo; uma suave brisa noturna tocava-lhe levemente o rosto transpirado, conferindo uma sensação agradável e refrescante, um pequeno momento de delei-te numa noite fatídica que decerto perduraria na sua memória por muito tempo. A recapitulação quase instantânea de tudo o que testemunhou nos poucos minutos passados entre o momento em que se aproximou de Mateus quando se dirigia para casa e o momento presente funcionou como indutora à reflexão na comum-mente subestimada fragilidade da vida, porquanto é usual tratarmo-la como uma força adquirida e garantida, mas no entanto o pragmatismo que a vivência nos vai conferindo, a vulgarmente denominada experiência de vida, acaba por levar-nos a considerar a morte, essa sim, como um estado adquirido e garantido, sendo a vida um estado para o qual é necessário trabalhar e lutar para manter.

O seu pensamento voltou-se de novo para a figura ensanguentada que ten-tava amparar naquela rua precariamente iluminada por um candeeiro: quem seria ele, qual o seu nome, o que faria na vida, quais os seus gostos pessoais? E acima de tudo, o que o teria levado àquele fim?

Uma ideia, uma eventual resposta à derradeira dúvida, ocorreu-lhe: prova-velmente a própria vida…

Antônio João Maduro Guerreiro é engenheiro técnico, português.E-mail: [email protected]

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Licor beirão Teresa de Jesus Ferreira Teixeira - 2.ª menção honrosa - categoria internacional - Vila Nova de Gaia - Portugal

T inha conseguido aquele convite para o Grande Sarau de Poesia, graças ao envio para a organização, de um livrinho que eu tinha editado o ano passado e que tinha ficado preso no círculo de amigos & benfeitores… e no prejuízo.

Não tinha nada a perder, pelo contrário: era esse o propósito do evento, o de valo-rizar e/ou descobrir novos talentos da Literatura e da Poesia.

Escolhi o meu melhor vestido, respirei fundo, e, como a inspiração profunda não provocou o milagre de me acetinar as faces e dar-lhes uma corzinha… lá dei-tei mão ao estojo de maquilhagem e fiz, eu própria, o pequeno milagre de me deixar mais apresentável. Mesmo assim, não sei se consegui disfarçar as rugas dentro dos olhos e uma certa mancha sombria por trás do sorriso…

Entrei de livro na mão - franzino, como eu – e fui direcionada para a mesa dos autores, por alguém que me olhou de alto a baixo como se me visse mesmo lá em baixo e a ousar muito, ao por-me em bicos de pés.

O sarau decorreu como deveria, pontuado de momentos admirativos de genuíno interesse e silêncio e de burburinhos de desatenção e desinteresse; de palmas de cortesia, de recitações empolgadas, de abraços genuínos entre gente que nunca se viu além de letras virtuais, de sorrisos hipócritas e palmadinhas nas costas imitando incentivo, que mais pareciam querer espantar melgas, enfim, o costume... Mas os

sorrisos, esses, eram todos do melhor dentífrico do mercado, até porque estavam lá

os melhores flashes da imprensa cor de rosa e a preto e branco.Do meu livrinho, foram lidos dois poemas. A selecção tinha sido feita previa-

mente por duas figuras públicas, entre a nata dos ilustres do eixo politico-cultural do país. Pareceram agradar (os meus poemas, claro, que as ilustres figuras nem sempre agradam a gregos e a troianos…). Mas eu até fiquei encantada com uma delas – ou ela comigo, sei lá bem. Simpático e afável, deixou-se ficar na minha conversa, entre um porto, uma piada inteligente e uma pergunta de circunstância sobre a minha escrita, talvez para justificar o propósito da atenção. Ainda achei

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ver-lhe nos olhos um brilhozinho de indefinido e genuíno interesse, mas isso devia ser já efeito do porto, sei lá.

Saímos todos ao ritmo incerto dos pares de beijos, dançando nos sorrisos já a descair de cansaço. O meu ilustre interlocutor, que entretanto já tinha ido dar o seu contributo de conversa a outros, veio despedir-se de mim com um quase abraço que cheirava a colónia cara e, dessa vez, vi-lhe mesmo um brilhozinho nos olhos – seria do porto?...

Saí. Ainda o vi entrar num luxuoso Mercedes, devidamente apetrechado com todos os extras, incluindo um motorista fardado de soldadinho de chumbo. Suspirei. Podia ser que ele lesse o meu livro e falasse dele no programa cultural que apresentava todas as semanas, no canal mais visto do país… podia…

Estava a entrar no meu pequeno carro de outras guerras, quando senti algo tocar-me o ombro. Uma mão forte, um toque de urgência. Virei-me e… ali estava ele, a minha figura (já menos pública), embrulhado no sobretudo cinzento e a chei-rar discretamente a colónia cara. E aquele brilhozinho nos olhos.

- Não podia perdê-la assim… não esta noite. Gostei muito da nossa conver-sa e acho que quero saber mais. Que diz a um passeio pelas ruas, uma paragem num barzinho, talvez… ?

Deixou a pergunta no ar como um menino que ensaia um primeiro voo do seu papagaio de papel. Estava frio, e eu só trouxera, em cima do vestido leve, uma pequena capa de imitação de pêlo. Ele pareceu ver o meu ligeiro arrepio e apressou-se a rodear-me com os seus braços fortes, sem esperar a minha respos-ta, e começámos a caminhar na noite, para longe dos restos espalhados da festa.

- Não sei para onde vamos… - disse eu, sabendo que ele percebia o senti-do que eu queria dar ao “para onde”. – o senhor é muito grande para as pequenas ruas da cidade, ainda mais para as minhas estreitas vias de… relacionamentos. Culturais – acrescentei com um sorriso quase escondido no sobretudo dele.

- Podem ser limitados, os teus horizontes, vistos da tua perspectiva… - o tratamento por “tu” provocou-me uma vertigem, não sei porquê. – mas tens cami-nho, tens mãos para o desbravar, tens material para te elevares.

- Leu o meu livro…? – perguntei, quase o fazendo parar, entre o espanto e a esperança.

- Li-te.Aí parei mesmo, e ele comigo, enfrentado-me. Aquele brilho estava mes-

mo lá, nos olhos semicerrados dele – ainda suspeitei que fosse do frio, mas ele reforçou-o e disse:

-És uma mulher fantástica, inteligente, sensível, interessada, interessante.

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Gostei imenso de te conhecer esta noite, acho que a nossa conversa foi a melhor e mais genuína que tive, nos últimos tempos. E talentosa, também.

Depois disto, a minha pouca loquacidade, desligou-se completamente. Bai-xei os olhos e até o escurinho indiscreto da noite gozou com a cor carmim do meu blush…

- Mas vou ler o teu livro, podes ter a certeza. – acrescentou ele, apanhando--me do chão do meu embaraço e arrastando-me com ele, agora ainda mais deci-dido.

- Obrigada, - disse eu, vários passos depois. Pelo menos pela parte, diga-mos… não tão literária do elogio… - dei uma risadinha nervosa e acrescentei, quase mais para mim mesma que para ele: - acho que nunca ninguém julgou tanto de mim…

Ele pareceu perceber a mágoa que me escapou por baixo das palavras e parou outra vez, mas só para me olhar em silêncio, naquele tipo de silêncio que nos analisa os cantos mais fundos da alma. De repente, sem eu o esperar (ou tavez sim…), deu-me um beijo na testa, ainda feito do mesmo silêncio. Depois pergun-tou, como se acordando, ao contato de gelo da noite:

-Tens frio?...Claro que tinha. Ou não tinha, se calhar só estava a tremer por outra razão.

Mas comoa razão tem mistérios que nem a nossa mente reconhece, disse que sim,

com a cabeça – nesse momento, um golpe de vento entrou-me para os olhos, que lacrimejaram – sempre fui sensível ao frio, frio, para mim, é dor.

Entrámos no primeiro bar que nos apareceu, na rua seguinte. Estava à pi-nha, cheirava a fumo de cigarro e a essências maceradas em vapores de álcool. Ainda tentámos abrir caminho até um canto mais calmo, mas foi tarefa inglória, quase nos perdemos um do outro. Num momento qualquer, alguém nos empurrou um contra o outro, e ficámos assim, sozinhos um instante, cada um dentro dos olhos do outro. Acho que foi ali que o que quer que fosse que tivesse incendiado em mim, se fez lume vivo. Mas não tive muito tempo para pensar nisso, ele já me puxava para fora, com a minha mão fortemente presa na sua.

- Marília… - saboreou ele - tens um nome que tem gosto, sabes?: mel, sal, ervas de aroma… alecrim e alfazema.

Eu ri com gosto e agradeci-lhe intimamente por isso, porque me reorientou as atenções de perdição.

- Já me tinha esquecido que o Professor também é poeta…

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(além de político, figura de renome, alguém muito acima das minhas “inspi-rações”, pensei, estremecendo).

- Não... contigo, sou só Herculano – disse ele, com um sorriso que pretendiahumildade e que acusava a deferência do tratamento.Abriu o sobretudo e embrulhou-me com ele, numa intimidade que agradeci

e temi, ao mesmo tempo. Na esquina próxima havia um barzinho pequeno, de onde se escapava

Kenny G, reproduzido num qualquer saxofone amador. Entrámos. Estava quase va-zio e os acordes de “The moment” receberam-nos de um modo intimista e apazi-guante. Escolhemos (ou melhor, o “meu” professor escolheu) uma mesa ao fundo, onde a luz chegava só o suficiente para nos vermos de perto.

- Que queres tomar? – perguntou-me, quando o empregado se acercou.- Um licor Beirão. Sem gelo. – disse eu, e de repente rimos ambos, evocan-

do campos de alecrim com mel, alfazemas à beira mar – coisa pouco provável, mas em poesia vale tudo, e, naquele momento, rimámos os dois.

- Boa escolha – disse ele, olhando-me intensamente, com o sorriso a pro-meter-me um beijo. – O mesmo para mim – disse ao garçon, depois de retomar o auto-domínio da boca.

Fez-me levantar o olhar para os seus olhos onde eu temia cair, com um toque do seu indicador direito no meu queixo:

- O que te move, Marília…?Eu olheio-o atordoada, sem saber de que lado do seu raciocínio veio a

pergunta inesperada.- Na vida, ou na escrita?- Comecemos pela escrita…Sorri. Ele acompanhou a viagem que fiz com o olhar, para além da alma, dos

sentimentos, dos afectos, das coisas simples, das coisas por inventar.- O bater do coração… - disse eu, finalmente. - …doucement, - acres-

centei – para que o seu ritmo não me atrapalhe o olhar, a busca da criatividade, o saborear da respiração… ou inspiração! – e atirei-lhe um olhar brincalhão que ele agarrou no ar, como se fosse um passarinho. Naquele momento, só me pareceu um menino feliz, o meu douto companheiro da noite.

O silêncio voltou a prender-nos. Ele tirou um cachimbo do bolso do sobretu-do caído na cadeira do lado e apontou-mo:

- Não te importas…?- Não, de todo. – sempre gostei do aroma adocicado do tabaco de cachim-

bo, estive para dizer-lhe, mas não disse.

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- E na vida…?Por um momento perdi o fio da conversa, tão hipnotizada estava pelos seus

gestos seguros, pelo ritual das suas mãos, pelo brilho semicerrado nos seus olhos.Ele percebeu a minha instantânea abstração, sorriu, calcou cuidadosamen-

te o tabaco no cachimbo, reacendeu-o e segurou-me:- ...o que te faz correr, Marília?Desta vez ri com gosto, era a terceira pergunta seguida que me fazia, mas

não me senti examinada, ou intimidada, pelo contrário, somente agradada com o interesse dele.

O que me faz correr…? Engraçado, sempre quis responder àquela pergun-ta. O politicamente correto seria montar rapidamente uma resposta com uma frase pré-fabricada, do tipo: “o amor e o desejo de ser feliz”, ou “ a perseguição de um sonho”, ou ainda “um bom livro para escrever”… mas em vez disso, fui ainda mais rápida e respondi:

-A urgência.Ele parou de respirar, com a boquilha do cachimbo entre os dentes e a

cortina ténue do fumo entre nós, impregnando-nos de cheiros de tabacos nobres, whiskeys maduros e açúcares de flores (de plantas aromáticas…). Depois riu com gosto, e eu ri também, numa espécie de cumplicidade infantil.

- A urgência?! – e os seus olhos riam também, acima de qualquer perple-xidade.

- Sim, a urgência é a única coisa que me faz correr… - disse eu, sabore-ando aquele olhar dele. – nada como uma urgência, um estímulo que se tem que aproveitar no segundo, uma ideia que se tem que anotar, antes que nos fuja, um empurrão de que tenhamos que aproveitar o impulso. A dinâmica da urgência pode ser contrária à harmonia da perfeição, para algumas pessoas, mas para mim, pa-rece ser a adrenalina ideal. Funciono melhor, sob o seu efeito. Não rapidez...! - há todo um caminho que

pode ser longo, da urgência ao feito, sem pressa. “Agora ou nunca” é a minha

palavra-passe.Ele continuava de sorriso aberto, esquecido do cachimbo. Pousou-o, depois

de alguns segundos e agarrou-me as duas mãos.- Sem pressa, mas com urgência… -disse, como que assimilando o que eu dissera. E. de repente, levou as mi-

nhas mãos aos seus lábios quentes, demorando o beijo num cerrar de olhos que me pareceu durar séculos.

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Olhei para ele, no torvelinho de uma tontura, e uma ideia flutuante pousou--me na imaginação a mil: eu, recém-naufragada de um relacionamento mal es-colhido e pior sofrido, que estava ali a fazer, com uma digníssima, influentíssima figura do altíssimo panorama nacional?... que teria eu, uma insignificante figura de força pouca, esperança nenhuma e algum jeito com as palavras, a esperar dele?... Respirei fundo:

onde eu já ia!, isto era apenas um encontro agradável, um flirt de fim de festa, uma fuga lúdica, um jogo de palavras.

- …quero que me ames, Marília. -Era a finalização da sua frase anterior, mas eu quase nem me apercebi dis-

so, demorei uns segundos a reconstruir-me. Havia qualquer coisa na voz dele que deitou por terra a minha teoria do simples jogo de sedução. Qualquer coisa que me percorreu como carícia profunda, uma certa chama nos seus olhos que nos ligou, forte e intensamente, naquele instante. Senti-me segura, serena, fortalecida.

- Esqueci-me de dizer uma coisa… ou tu te esqueceste de perguntar…- “tratei-o por tu”, pensei. Mas nem isso já me admirou.

- O quê? – e a voz era rouca, os olhos brasas vivas…- ”O que te basta,… - comecei...- ...Marília?” - interrompeu-me ele, completando a pergunta, ainda de olhos

presos nos meus.Depois respondeu ele mesmo, tapando-me a boca com os dedos indicador

e médio:-O amor, espero… e, antes que me perguntes: a mim bastou-me um poema:Comove-me a inocência de ter pouco, querendo tudo, de ser louco, sendo

todo,de ser feliz num segundo, de ter medo e ir ao fundo… sem pressa mas

com urgência.

Senti-me desfolhada, como página, por aquele homem: aquele poema constava na página 35 do meu livro. Vibrei na mansidão duma lágrima, que ele, sem pressa, recolheu, num pequeno gesto de veneração.

E, simplesmente, deixei que ele me lesse - até ao fim, ou até ao esgota-mento da urgência.

*Teresa de Jesus Ferreira Teixeira é uma intelectual portuguesa, dedicada à literatura.E-mail: [email protected]

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O Anjo Purificador Joaquim Bispo – 3.ª menção honrosa – categoria internacional – Odivelas – Portugal.

A mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua

antiga empregada doméstica, que usara como modelo nos últimos dois anos, e que já não via há uns quatro meses.

– Entra, Judite – convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. – Estava a ver que já não me vinhas visitar!

– Olá, D. Lucília – respondeu Judite, fria. – O que cá me traz é do seu má-ximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.

– Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.Contornaram uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se

podia ver Abílio, de kilt e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude decidida.

– O que se passa, D. Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha custa e eu continuo pobre como dantes – disparou a mulher, de olhar alte-rado. – A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares ou milhões de euros com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.

– Ó, Judite – estranhou a pintora – eu não te reconheço; o que se passa?– Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se

a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou de galinha – que agora as pessoas até se riem – e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do mês, o que é que eu via? – uns reles mil e tal euros a mais. Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!

– Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.

– Eles dizem que ainda me faltam doze anos, para pedir a reforma. Ora, eu não aguento mais. Eu vou ser muito direta, D. Lucília; ou a senhora me dá cem mil euros por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada

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com o Abílio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?

– Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? – desapontava-se Lucília. – Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!

– Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!

– Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a intimidade do olhar a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, sim, mais explícita que ambígua – Rodin, Toulouse Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails, nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te digo que leste mal. E a desfaça-tez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!

– Não adianta negar, dona. O senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está escrito. Por isso, pense bem.

– Não percebes nada, mulher! – impacientava-se a artista. – Vieste lá das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal, sim, mas menos hipócrita. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos os maridos e as mulheres como proprie-dade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.

Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda arti-culou, sem convicção:

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– Se é assim que quer, assim terá! Vaca!

Dois dias depois, Judite voltou.– Que queres, Judite? – perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar

injetado da outra.Esta empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. De-

pois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:– Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de

badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal – vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.

A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca em riste na mão da outra, mas manteve-se parada a observá-la. Quem a visse a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade e interesse, suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Depois, de olhar pers-crutador, recuou calmamente. Também Judite pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigidez da composição:

– Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas não da maneira que dizes.

– Quero o meu dinheiro! – insistia Judite.– Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o

esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi as-sim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos: paguei sempre no dia certo. Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é for-te. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes três por cento do que eu receber. Parece-te bem?

Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quanto representariam três por cento de, talvez, cem mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou. Sur-preendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em prontidão:

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– Há algum problema?– Não, Abílio, entra! – contemporizou a pintora. – A Judite veio outra vez

visitar-me e estávamos a combinar uma nova série de quadros com anjos purifi-cadores domésticos – uma mistura de arcanjo S. Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada; noutra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.

*Joaquim Bispo é Joaquim Lopes Duarte Bispo, araçatubense, que mora em Portugal.E-mail: [email protected]

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Sombrinha ColoridaSolange Fischer Bernardino- 4.ª menção honrosa – categoria internacional – Balingen - Alemanha

A passos preguiçosos, a menina arrastava-se ladeira acima. O braço direito apertava contra o peito a sacola de plástico transparente que continha os livros, a mão esquerda de canhota rodava o cabo da sombrinha, fazendo-a

girar à sua frente. Que sorte tivera naquele dia! Por pouco não deixara a sombrinha no Grupo Escolar. Dna. Teresinha correra atrás dela, segurando-a na mão como um troféu… “Oh, menina, só não esquece o nariz porque está pendurado, né?”

Não achara graça nenhuma, mas ficara grata pela boa ação da professora. Sabia bem o que a esperava se perdesse a sombrinha. Seria surra na certa. Só não entendia porque quase sempre tinha que carregá-la. A mãe não podia ver sequer uma nuvensinha no céu e já lhe empurrava aquela bendita sombrinha na mão, quando saía de manhã para a escola. O pior para ela era a recomendação ameaçadora que se repetia a cada dia: -Trata de trazer a sombrinha intacta de volta, ouviu bem?

Irritada, ela apenas virava o olho e sem ousar dizer qualquer palavra, pen-sava com seus botões: “ não vai cair nem um pingo de chuva e vou ter que ficar tomando conta o tempo todo dessa droga de sombrinha”.

Crianças e adultos desciam e subiam a ladeira, num murmúrio típico do meio dia. Ois e olás repetiam-se como eco no ar, risos e gritos infantis abafando as vozes de mães a papearem com as conhecidas.

Não tinha pressa. A sobrinha estampada de florsinhas continuava a girar à sua frente, formava um arco-íris, desfocando ao mesmo tempo as imagens ao seu redor. O pensamento vagava, as vozes e o burburinho soando cada vez mais dis-tante. A respiração ofegante denunciava mais do que cansaço pela longa caminha-da, revelava um desânimo inconsciente. Não queria chegar em casa, se pudesse, ficaria por ali mesmo.

Um passo, outro passo, as pernas rexonchudas, trôpegas, grudavam no chão, teimavam em não ir para frente. O olhar perdido da estudante mirim encon-trava-se na pilha de louça suja por lavar, refletia-se na água ensaboada da pia de

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esmalte descascado, passeava até o lixo do quintal por varrer. No meio de uma ciranda de roda, ela bailava a equilibrar a lata d´água na cabeça… era para encher o barril.

Deveres de casa? Que nada! Lena tinha mais o que fazer. Havia também que cuidar dos irmãos menores, catar lenha no mato, aquecer a água do banho... A escola era seu refúgio e descanso. Não era de se admirar que não aprendesse grande coisa.

Já no topo da ladeira, inspirou forte a brisa morna de outono e ergueu a ca-beça, expirando apenas apatia. Uma íngreme escadaria de degraus rudes e irregu-lares emergiu à sua frente, a própria casa ainda distante do alcance da vista. Agora só tinha olhos mesmo para o sobrado na esquina, capturado involuntariamente pelo cansaço de suas retinas. Sustentado sobre colunas de concreto, teto de laje batida, pintada de azul-céu, varanda de ardósia - típica casa de gente rica - com água corrente, chuveiro quente, fogão à gás, tudo facílimo de limpar - aos olhos de Lena, a família mais feliz do mundo, a casa do dono da quitanda.

Lena divagava. Em estado de transe, viu um vulto desfocado deslizando de-graus abaixo ao lado da casa, ganhando contornos e mais nitidez à medida que se aproximava do portão. Uma menina mais ou menos do seu tamanho materializou--se à sua frente, os cabelos encacheados derramando-se pelos ombros.

Os olhares se cruzaram. Paralisadas como dois pilares, por alguns segun-dos ficaram ali interligadas por uma energia desconhecida, como querendo esqua-drinhar a alma uma da outra. Todos os ruídos em volta foram abafados por aquela energia. Lena podia ouvir o silêncio, entrecortado apenas pelo ruído mais forte de um carro ou outro que passava, os motores sofrendo com a subida puxada e com os buracos herdados da chuva recente.

Aquela quietude perturbadora apertou-lhe o peito, que sorveu a indiferença da outra menina. Um gosto amargo como fel subiu-lhe então à boca. A sombrinha, agora estática, ganhou volume dentro da mão pequenina, já calejada pelo trabalho doméstico. “Vocês têm que aprender a cuidar de uma casa”, ouviu em pensamento a voz da mãe repetir-se o tempo todo, como o tique-taque do relógio na parede da sala. Um calor irradiou-se-lhe pelo corpo, ardendo-lhe inteira.

O fio magnético que mantivera os olhares das duas meninas fixos um no outro rompeu-se, quando a filha do dono da quitanda contraiu a face branca de bochechas rosadas. Ao mesmo tempo seus lábios arredondaram-se num círculo, como que precedendo a um assobio. Mas não saiu nenhum assobio. Ao invés disto

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a língua avermelhada como sua pele, foi apontada para fora, num gesto provoca-tivo.

O coração de Lena pulsou forte de raiva, a mão apertou a sombrinha com toda força, doendo-lhe os dedos contra o cabo de madeira, seus passos a aproxi-maram ainda mais da outra.

Percebendo o movimento repentino em sua direção, a menina lhe seguiu com o olhar, pressentindo alguma intenção. O sol do meio dia ofuscou-lhe os olhos verdes-claros, impedindo-a de distinguir o rosto negro que avançava contra si. Uma sombra longilínea postou-se à sua frente, num movimento nervoso, que lhe confundia ainda mais a visão. Então, viu o vulto abaixar-se de repente e sentiu num súbito o impacto de algo rijo e duro atingir-lhe fortemente o abdomen. Um estalido surdo ecoou no ar e uma dor aguda espalhou-se por seu corpo.

A sombrinha atingira-lhe em cheio, partindo-se ao meio. Contorcendo-se de dor, a menina, já em prantos, levou a mão à barriga, gritando. Chegando nesse momento para o almoço, o dono da quitanda correu em socorro da filha, incrédulo com o que acabara de presenciar.

Segurando firme a sombrinha, agora sem cabo, Lena prosseguiu seu cami-nho para casa. Sem olhar para trás, saltando dois, três degraus de cada vez, subiu o morro num único galope. Agora tinha pressa, queria chegar em casa. Correu como nunca correra antes, o coração quase saindo pela boca.

O trajeto que até então percorrera em vinte minutos, era vencido agora em menos de dez. Enquanto corria, não pensava nas consequências imediatas do que acabara de fazer, na dor da outra menina, vítima de sua fúria, ou na ira do dono da quitanda. Não se preocupava com a já esperada reação da mãe, ao ver a sobrinha quebrada. No peito carregava apenas uma inexplicável sensação de prazer, uma estranha satisfação de vingança.

Solange Fischer Bernardino é brasileira que reside na Alemanha, sua origem é Rio de Janeiro-RJE-mail: [email protected]

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Vista para o rioMaria de Fátima Correia Santos – 5.ª menção honrosa – categoria internacional – Lagos - Portugal

T ropeçou no fio que atravessava a sala. Dois passos em vão e aquele desam-paro de perceber que iria estatelar-se. O fio deslizando pela tijoleira desde o berbequim até à tomada, a única que havia na sala naquele tê dois acabado

de alugar. Ela a desandar, um pé aqui, um pé do outro lado, e a lembrar-se. Como é possível que se tivesse lembrado de tanto naquele tempo ínfimo.

Era de manhã e saía para o treino. Tempos em que cuidava do corpo. O plástico estava esborrachado no degrau da porta de entrada. E nem treino, nem aulas. Caiu desamparada na calçada.

– Sorte, que não tivesse passado um carro. Disse assim a mãe que via sempre as coisas pelo lado do drama. O médico falou em ligamentos soltos, e nem o endireita, nem massagens

com este e outro lenimento, e nem as injeções. Apenas o repouso e o tempo, e ainda hoje, se faz um dia mais húmido, aquele tornozelo lembra-lhe aquela queda.

Morava ainda em casa dos pais e, ao fim-de-semana, sobretudo nas noites de sexta-feira e sábado, as ruas enchiam-se de gente transbordando dos bares. Pela madrugada, entretinham-se a conversar na porta da entrada do prédio onde ela tinha nascido. Todos muito ruidosos, todos bebidos, uns mais do que os outros. Valia que os quartos ficavam virados para as traseiras. Os pais não ouviam, mas ela vinha espreitar na janela da sala. Às escondidas, via-os. Ficavam por ali, antes do largo, a fazerem despedidas, e era depois cada um para seu carro, e outros apanhavam um táxi.

Quando escorregou na garrafa desfeita, pensou que poderia ter sido um de-les. Um que tivesse estado apenas a ouvir. Um que nem tivesse bebido senão água tónica e um sumo de laranja sem gin nem vodka. Um daqueles rapazes poderia ter esborrachado a garrafa, as mãos entretidas enquanto ouvia os amigos a contar façanhas que ele nunca tinha feito, e muito provavelmente nenhum deles, ao me-nos na dimensão desmedida em que as enunciavam. Um rapaz que seria tímido, a amarfanhar o seu ser desprotegido no gesto de deformar o plástico. Ela imaginou-

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-o assim, cuidadoso, a colocar a garrafa espalmada no canto do degrau. E depois ficou pensando que deuses endoidados, anjinhos malandros, ou demónios soltos teriam colocado aquele objeto no local preciso em que ela o pisou. Que podia ter sido o filho da porteira, imaginou ela. A Dolores saía muito cedo. Ao sábado ia fazer limpeza para amealhar uns cobres. O infantário encerrava nesse dia, e ela levava o filho. Talvez que, enquanto Dolores verificava se tinha a chave, a criança tivesse brincado com a garrafinha ali esmigalhada, o rótulo rasgado onde ainda se podia ler água mineral, mas já não se via a marca. Talvez tivesse sido o filho da Dolores quem tivesse tirado a garrafinha do local onde o rapaz tímido a tinha deixado.

Podia muito bem ter sido o filho da porteira, o rapaz que morreria, ainda muito jovem, num acidente de mota. Dolores suicidar-se-ia um mês e um dia de-pois.

– Sabes quem morreu? Seria assim a mãe ao telefone. A mãe dela gostava de participar as mortes de um e outro, e telefonava.

Começava sempre com aquela pergunta, e só depois contava pormenores, que ouvira na merceeira do Senhor Antunes onde em pequena a mandava em recados.

– Traz-me duas dúzias.Era a mãe a querer pregadores que os que tinha não chegavam e no esten-

dal ainda havia espaço para estender as peças daquela máquina de roupa que pu-sera a fazer na noite. E ela descia as escadas desde o terceiro andar pelo corrimão.

Quando caiu no empedrado estava uma chuvinha que iniciara pingos na-quela manhã de sábado, mês de Maio.

Talvez tivesse sido o filho da Dolores. Ou talvez tivesse sido o tal rapaz tímido que ela imaginara a amolgar o plástico. Que não fosse cuidadoso e tivesse deixado a garrafa no meio do degrau da entrada do prédio onde ela então morava.

Depois de casada, havia de mudar-se para aquele sexto-frente num bairro periférico.

Ana Mafalda que agora cai desamparada nas costas do sofá, a barriga empurrada contra o verde azeitona. O Carlos tinha dito, a apontar para o tecido:

– Esse! Gosto desse! E ela farta de ver revistas de decoração, tinha anuído. E o sofá mostrara-se

muito confortável. Aquele onde está caída, dobrada em duas no meio da salinha, nem assim muito espaçosa, e a dois passos a porta envidraçada que dá para a varanda. Ao fundo, o rio seria azul se não estivesse um dia nublado.

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– Podias ter-te esborrachado contra as vidraças. Diria a mãe de Ana Mafalda se a soubesse a tropeçar no fio. E ela senta-se no sofá que lhe devolve agasalho e aconchego naquela sala

onde ainda não sabe se ali ficará a cadeira de palhinha e se no canto oposto ficará a estante.

Ana Mafalda senta-se no instante preciso em que o sol desfaz um castelo de nuvens e o céu e o rio ficam muito azuis.

***

Tinham-se conhecido na festa de aniversário do Frederico Cunha. Não se lembra quantos anos fazia aquele amigo do Carlos. Ela teria vinte, ou pouco mais. Tinham jantado bem e bebido bastante. Um vinho caro que eram sempre

os vinhos em casa do Frederico. No regresso, desceram pelas escadas e o Carlos colocou-lhe o braço direito sobre os ombros e deixou que escorregasse, e os dedos da mão esquerda dele ficaram a tocar a nervura do seu seio por baixo da axila.

Casaram dois meses depois pelo registo com separação total de bens. Te-riam desconfiado que não ia resultar. E nem filhos. Nunca fizeram qualquer esforço. Ela tomava a pílula e ele, naquele temor de doenças que tivesse algum dia adqui-rido, sempre usou preservativo. Um casamento que durou até Ana Mafalda alugar aquele tê dois com vista para o rio e dizer-lhe que ia deixar de morar com ele e que depois pediriam o divórcio. Amigável, dissera-lhe. E tinha-lhe pedido para ficar com o sofá cor de azeitona. Não sabe porquê, mas decidira que gostava de ter aquele sofá no meio de uma sala que fosse apenas sua. Tinham-no trazido dois rapazes duma dessas firmas que fazem transportes. E ela tinha dito:

– Podem deixar aí ao meio e, por favor, coloquem-no de frente para janela. E os rapazes tinham-no colocado na posição onde ela viria a cair dois dias

depois, ao tropeçar no fio do berbequim.Tinham estado casados quatro anos e nem por isso conheciam grande coi-

sa um do outro, conclui Ana Mafalda a olhar o rio. E pensa que Carlos Afonso talvez tivesse sido o autor inconfesso da outra

queda, essa realmente aparatosa, muito mais do que esta. Nunca lhe tinha contado. Tinha-lhe dito pouco sobre aquela queda.Apenas naquele dia em que ela se queixou:

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– Este tornozelo dói-me sempre que apanha humidade. E era já muito tarde para dizer-lhe pormenores.Foi depois dum passeio à serra. Regressavam já pela tardinha e era final

de Outubro. Uma humidade fria subia da terra. Ana Mafalda a colocar uma meia elástica em cima da pomada, contou-lhe que um dia escorregara numa garrafa amolgada e desde então aquela dor no tornozelo aparecia. E Carlos perguntou-lhe:

– A garrafa estava amolgada em que sítio? E ela tinha respondido: – Sei lá! Era a garrafa inteira esborrachada! Mas Carlos Afonso precisara, sorrindo: – Foi na casa da tua mãe que escorregaste, cá em baixo, na rua? E ela confirmou que sim, que tinha sido na casa onde morava com os pais.E não disse mais nada. Era já um tempo adiantado depois de terem ido à festa de anos do Frederico

Cunha. Ana Mafalda já não queria que ele fosse o rapaz tímido que ela imaginara a amolgar a garrafa. E não lhe fez perguntas. Não lhe disse, assim, por exemplo:

– No dia dois de Maio de mil novecentos e oitenta e oito estavas a amarrotar uma garrafa no bairro onde moram os meus pais? Estavas Carlos Afonso?

A mãe fazia anos nesse dia e tinha-lhe dito: na volta do treino traz-me o bolo que encomendei na pastelaria. E ela não tinha trazido.

Ana Mafalda não permitiu que Carlos Afonso dissesse, sequer pensasse:– Olha, eu um dia também amolguei uma garrafa e deixei-a num degrau. Não. Ana Mafalda tinha mudado de assunto. Pediu-lhe que lhe fosse buscar gelo. Ou ter-lhe-á pedido que fosse à rua buscar um maço de tabaco. Não. Ela nunca iria ter a certeza de que tivesse sido ele o rapaz tímido que

amolgou a garrafa. Não. Ela não tinha querido que ele fosse o rapaz da garrafa amolgada. Era já muito tarde na vida de um e outro.

Depois, houve aquela noite.Carlos Afonso apareceu no sexto-frente com o Frederico Cunha. Vinham

ambos bem bebidos a saírem do elevador no sexto-frente. Tinham emborcado, copo a copo, cada um a sua garrafa de um tinto caro que era o vinho que sempre tinha havido em casa do Frederico.

Tinham vindo de autocarro.E depois que comeram umas sandes, Ana Mafalda dormiu enroscadinha no

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sofá verde, e deixou que eles dormissem no quarto. Dois dias depois, disse: – Olha, Carlos, aluguei um tê dois com vista para o rio. Depois, divorciamo-

-nos. Amigável, ouves-me?E trouxe o sofá verde, e aquela quase certeza de que Carlos Afonso podia ter

sido o rapaz tímido que ela imaginara quando escorregou no plástico esborrachado. Ana Mafalda a olhar o rio depois de ter tropeçado.

Maria de Fátima Correia Santos , Lagos - PortugalE-mail: [email protected]

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Contos da comissão julgadora

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O bilheteAntonio Luceni

J á era madrugada quando as dores ficaram mais intensas. Não queria in-comodar o marido, mas as contrações tornavam-se insuportáveis. Então, o chamou.Contando com esse, somavam-se seis. Iria se chamar João. Sempre gostou

desse nome. Não o havia colocado nos três primeiros porque, antes, cumpriram--se as homenagens: para o avô materno; para o pai de seu pai; e para Pedro, um amigo. Do marido.

– João. Que lindo nome. Desliza pela boca feito gelatina. Escapa dos lábios antes mesmo que se o tenha dito completamente.

Às meninas, os nomes das avós: a mais velha, inclusive, lembrava muito à avó em seu jeito de caminhar, sorrir e até nas manias de tropeçar com o que quer que estivesse à sua frente. A mais nova, mais meiga, mais calada, mais arisca... agora, incomodada com a chegada do irmão que iria tomar seu trono.

Em razão das experiências que teve com as outras gestações e partos, o rompimento da bolsa não lhe causou desespero. Não mais do que o necessário para tratar a situação como algo natural.

Parto normal, como todos os outros.– A mãe tem que sentir as dores do nascimento de seu filho, para poder

amá-lo o quanto precisa; e ter a consciência de que estas são as menores que terá ao longo da vida.

João nasceu grande e forte: três quilos e oitocentos gramas, sessenta e dois centímetros. Ela, parideira das boas, teve todos os outros assim. Com exceção de Pedro, que nasceu asmático, prematuro de seis meses e meio, deixado numa UTI do hospital, de onde saiu depois de mais de sessenta dias.

A mulher, com depressão pós-parto, não foi visitá-lo dia nenhum ao longo desse tempo todo. O pai é que se dedicou ao nascituro, enquanto este se recupera-va. Antecipou as férias, pediu uns dias de licença, fez o que pode e o que não pode, dividindo sua atenção entre o filho internado e a mulher acamada.

– Bem podia não vingar. – pensava ela.

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Passada a aflição, e com as ideias acomodadas em seus devidos lugares, entendeu que a criança nada tinha a ver com aquela situação. Tal como ela, apenas mais uma vítima. Foi uma gestação difícil, com muitas crises no casamento, brigas infindáveis, raivas, rancores, agressões... Aí, passou a beber demasiadamente, fu-mar um cigarro atrás do outro nas vigílias à espera do marido. Até suicídio tentou.

– Isso não pode estar acontecendo comigo. Não posso crer que isso seja possível. Aquele filho da puta...

O choro de João podia ser ouvido nos vários corredores do comprido hos-pital onde nasceu.

– Os pulmões são fortes. Esse não me dará problema feito o outro.Recebeu os cumprimentos, passou a noite no hospital e no outro dia cedo

já estava de alta. O filho dormindo no colo, balões e flores seguindo-lhe, e uma vontade imensa de abraçar as outras crias, que a aguardavam na casa dos avós.

– Vejam quem chegou... Mais um irmãozinho!Os maiores logo vieram ao seu encontro; mesmo a caçula, que agora era

destronada, se aproximou lentamente. Mas Pedro, não. Ficou no canto da sala. Nem piscar, piscava. Não quis saber de conversa. Habituado a ser preterido, bem sabia que, para aquela festa, era persona non grata. Tinha clara noção de que, assim como nas demais ocasiões, o “docinho” inicial se encaminharia para as palavras de ofensa e grosseria que tanto lhe seguiam a infância. Logo, logo aquele bebê seria mais um adestrado a menosprezá-lo, a diminui-lo e, certamente na juventude, a odiá-lo.

O pai via tudo aquilo, e se entristecia. Tentava, a seu modo, dissimular a situação e compensá-la com altas faturas no cartão de crédito, com presentes caros para toda família e, principalmente, para a esposa. Na ótica dele, mesmo que fosse um hiato de felicidade, esses momentos ajudavam a arejar a relação e criar um clima mais ameno na família.

Decidiram que João seria o último. Já não tinham nem idade nem disposi-ção para encarar outra criança. Os dias se passaram e, apesar da rotina desgas-tante que um recém-nascido traz, até que o casal estava se relacionando bem.

Pareceu que a libido voltara dobrada. Afinal, ficaram sem sexo por algumas semanas. Seguiram-se, pois, os jantares românticos, os passeios gostosos nos finais de semana, uma ou outra viagem paradisíaca... tudo era harmonia só. Uma pintura impressionista.

Numa das tardes, enquanto as crianças estavam para a escola e o bebê

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dormia, ela decidiu organizar o armário do marido. Conferindo bolsos de paletós e camisas, na tentativa de verificar se restava algo de importante neles, um bilhete:

Mais um filho com aquela coitada, né?Mesmo assim, parabéns.Te amo.Pedro.

Antonio Luceni é graduado em Letras (Unitoledo), especialista em Ensino do Texto (Unesp) e mestre em Letras (UFMS). Jornalista, escritor e professor universitário, é também Diretor de Integração Nacional da União Brasileira de Escritores – UBE e membro da Academia Araçatubense de Letras – AAL. Entre outros, tem publicados os livros “Júlia à procura da consciência perdida” e “Mosca Feliz”. Fez parte da Banca Selecionadora deste Concurso de Contos Cidade de Araçatuba.

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O Cão e o chapéuEmília Goulart*

H ouve um tempo em que eu acordava bem disposto, fazia alguns alonga-mentos, para enfrentar idas e vindas ao canteiro de obras. Fazia a barba e após um bom banho, ia contente para o trabalho. Na cama, Neuza, ainda,

ronronava como uma gata manhosa e feliz. Tinha o emprego que gostava e meu padrão de vida cabia no ordenado com

folgas. Há seis meses eu recebo o salário desemprego, procurei outro, desci o nível e nada. Ando sem provisão para o presente e não tenho previsão de futuro. Dois meses de prestações do imóvel atrasadas e meu currículo enviado para todas as empresas que anunciam vagas, aguarda uma resposta, ou um simples telefonema daqueles que eu fazia. “Aguarde outra oportunidade esta vaga já foi preenchida”. Telefonava para que a pessoa do outro lado não ficasse na expectativa de um emprego que não seria dela. Sentado na cama, sem coragem para me barbear, tento vencer o desanimo que dorme e amanhece comigo desde que fui demitido. Naquele dia Neuza pronunciou as últimas palavras que eu ouviria daquela boca:

— Você é um idiota, vou-me embora.Não discuti, ela tinha razão, eu deveria ter me posicionado do lado mais

forte. Porém, ao tentar evitar que o velho pedreiro, destratado e humilhado fosse demitido, por não conseguir impedir que uma viga solta caísse sobre o pé do supe-rintendente, recebi castigo igual. Tantos anos neste trabalho e eu nunca soube que meu castelo se sustentava sobre uma viga solta.

Seu Rui foi demitido por não ter mais a agilidade de um jovem. Eu, com a arrogância própria dos jovens, também, consegui ser demitido. Do pedreiro não tive mais noticia, também, não me preocupei, tinha agora outros motivos com os quais me preocupar. Era mais um desempregado.

Não suportava mais conviver com as lembranças. Entrar naquela casa era como voltar a um lugar atingido por uma tsunami. Como enfrentar a dura batalha por um novo emprego, depois de anos de dedicação a um passado recente que foi destruído? Resolvi abandonar a casa, teria que me acostumar com um outro padrão de vida ,aquele não estava mais a meu alcance. A financeira já dava seus sinais de ultimato.

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Olhei-me no espelho imundo, daquele quarto de hotel, de quinta categoria. O corpo dolorido, não se acostumaria tão fácil em outra cama. Da Nelza não senti muita falta, há muito tempo eu notava ser para ela apenas um caixa eletrônico onde sacava dinheiro sem nenhum controle.

Pálido pela falta de apetite e sem ânimo para me barbear. Juntei a pouca dignidade que me restava e preparei-me para ir à luta. Descobri recentemente que a tal dignidade se solidifica pelo trabalho, sem ele o homem é um verme. Uma bre-ve revisão no meu currículo mostrou-me que a meu favor estava à idade, ainda não entrei naquele limite onde os anos acumulados se tornam barreiras e a experiência não é um fator respeitado. Retifiquei alguns itens, pareceu-me melhor.

Barba feita, um bom banho, agora sim, estava preparado, para mais um dia de longas caminhadas. De relance, vi no espelho um homem com chapéu que lhe encobria o rosto acenar um cumprimento. Não confiando no que vi, pisquei, e ao olhar novamente, o homem havia desaparecido. Fechei a porta, determinado a crer que não era outro, e sim eu mesmo. Tentei ignorar o chapéu que nunca usei.

Caminhei até o ponto de ônibus, faz uma semana que a agencia revende-dora de carros, me pediu que lhe devolvesse a chave, pois havia um pedido de recuperação do veiculo por falta de pagamento. Não contestei, assinei os papéis da devolução, o salário desemprego não cobria nem o combustível. A Nelza raspara até o ultimo tostão quando foi embora.

O ônibus encostou saltei para dentro e assim que o motorista deu a parti-da, vi o homem de chapéu, me acenar da calçada. Tentei parar o veiculo com um pedido educado. O motorista soltou um impropério e pisou no acelerador quase me derrubando. Debrucei-me na janela, para tentar reconhecer a pessoa, porém, ele já havia desaparecido.

Segui rumo ao destino, um posto de combustível. Um emprego bem aquém do que eu era capaz de executar. Mas seria por pouco tempo, pensei. O importante é ter o mínimo para me manter naquela pocilga que ousavam chamarem de hotel.

Fui contratado, na manhã seguinte eu começaria a trabalhar, estava feliz e voltava para o hotel no mesmo ônibus, quando o homem de chapéu se sentou ao meu lado, o chapéu não me permitia visualizar o seu rosto. Sombras das árvores passeavam dentro do ônibus através das janelas, criando uma camuflagem sobre os passageiros.

Perguntei:— Já nos vimos antes, mora no mesmo bairro que eu?Ele rosnou, eu nada entendi e voltei a perguntar:

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— Mas, já nos vimos?Ele se manteve calado e desceu na primeira parada.Eu estaria ficando louco? No banco onde ele esteve sentado encontrei um

bilhete de loteria, guardei-o no bolso do casaco. Amanhã certamente voltaremos a nos encontrar.

Ao chegar ao hotel fui recepcionado por um velho pitbull amistoso que após cheirar-me por todo lado se afastou. Levei a mão ao bolso onde colocara o bilhete e tornei a olhar para o cachorro que bem posicionado embaixo do poste me obser-vava, passei pela porta de vidro e voltei-me para olhar mais uma vez para o cão, e vi-o por o chapéu na cabeça e desaparecer.

Na manhã seguinte me preparei para a rotina de trabalhador, antes vas-culhei cada angulo do espelho a procura da imagem perdida, quando o telefone chamou, era o Rui, pedreiro injustiçado que ganhou o desemprego para nos dois. Disse-lhe que estava atrasado para iniciar no único emprego que havia conseguido, para ele ligar em outro momento. Ele despediu-se dizendo:

—Desejo-lhe sorte.Agradeci. Enfiei a mão no bolso e segurei forte o bilhete já desejoso de

que o verdadeiro dono não aparecesse mais. Faltavam dois dias para o bilhete ser sorteado. Não vi mais nem cachorro nem o homem do chapéu o que me deu tran-quilidade para no dia seguinte passar na lotérica. O bilhete estava premiado, olhei para os lados nem sinal do verdadeiro dono do bilhete.

O cachorro do outro lado da calçada me observava e sorriu quando colo-quei o dinheiro na pasta. Seu olhar me fez lembrar o Rui no momento em que foi despedido. Bem que ele poderia ter se posicionado a meu favor, mas sequer me agradeceu. Não havia pensado nisso até o momento em que ele me ligou e disse:

—Desejo-lhe sorte.Atravessei a rua e fiz um afago no cão, ele seguiu-me até o hotel e nunca

mais se afastou de mim. Recuperei minha casa, construí um canto próprio para o Rui. Já me acostumei com sua rotina, tem dias que ele coloca seu chapéu e sai para passear. Não sei se as pessoas estranham o fato do Rui usar chapéu, ou se não notam. Eu nunca havia notado!

Emília Goulart dos Santos, membro da Academia Araçatubense de Letras, atuou na Co-missão Julgadora do Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, 26.ª edição, 2913.

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Dados sobre o concurso de 2013

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Comissões julgadoras

Comissão A: Tito Damazo (coordenador), professor, escritor, doutor em Literatura, presi-

dente da Academia Araçatubense de Letras (AAL); Ester Cruz Mian, professora, mestre em Literatura; Antonio Luceni, mestre em Literatura e membro da diretoria da União Bra-

sileira de Escritores e da Academia Araçatubense de Letras.

Comissão B: Marilurdes Martins (coordenadora), professora e escritora, acadêmica da

AAL; Emília Goulart, escritora, acadêmica da AAL ; Carlos Brefore, doutor em

Literatura.

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Homenageado

CÉLIO PINHEIRO – “UM HOMEM ABSORVIDO PELAS LETRAS”

Mário César Rodrigues*

E screvemos porque engendramos algumas idéias e seria vaidade de menos ou egoísmo demais guardá-las como se nunca tivessem

existido. Outros escrevem porque são profissionais. Vivem de noticiar, contar histórias, vasculhar temas. O melhor é que o ser humano desenvolveu a capacidade de escrever e nisto está uma evolução inestimável.

Antes de pôr no papel ou na tela uma frase, o cérebro a elabora minu-

ciosamente. Usa toda a sua experiência de milhões de anos para expressar um pensamento. Mas, infelizmente, ninguém é perfeito. Ninguém consegue ideias irre-tocáveis e bem menos expressá-las incorrigivelmente.

Talvez o principal objetivo da Literatura seja num dia – ou numa noite –

construir um texto tão eficaz que não apareça. Como se a característica, o fato ou o conceito fosse de um cérebro a outro sem ter de ser lido.

Escrevemos as nossas convicções, aliás, evoluímos no aperfeiçoamento das

nossas certezas. Desde Machado de Assis, alguns brasileiros criaram e mantêm academias

de letras com o intuito de desenvolver a capacidade humana de comunicar suas criações e conclusões.

Em Araçatuba, 1991, o professor de Literatura Portuguesa, Célio Pinheiro,

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titular do curso de Letras da então Faculdade de Ciências e Letras de Araçatuba, convidou alguns escritores – com pelo menos um livro publicado – para fundar a Academia Araçatubense de Letras.

No ano seguinte, o professor e escritor Célio Pinheiro, um dos bons leitores

de João Guimarães Rosa, conseguiu reunir quinze escritores araçatubenses dis-postos a reuniões periódicas em função do melhor uso do idioma português.

Desde novembro de 1992, portanto, Araçatuba inclui-se entre as cidades

que valorizam o desenvolvimento humano, a despeito do materialista consumista do século 20.

O professor Célio é natural de Campinas, 20 de maio de 1932, filho de João

e Angelina Pinheiro. Sr. João Pinheiro, mecânico de locomotiva na Alta Mojiana e Dona Angelina, italiana, mãe de oito filhos. Célio Pinheiro fez seus primeiros estu-dos na Congregação dos Missionários do Sagrado Coração e terminou o ensino médio no Colégio Estadual Culto à Ciência. Bacharelou-se em Letras Anglo-Germâ-nicas na PUC de Campinas. Em 1957 transferiu-se para Lençóis Paulistas, onde conheceu e se casou com Leonor Carani, com quem educou dois filhos: Luciana e Marcelo Carani Pinheiro.

Célio veio para Araçatuba – onde já residiam os pais e tios de Leonor – em

1980. Lecionou durante quarenta anos (Latim, Literaturas Brasileira, Portuguesa e Inglesa, Línguas Portuguesa e Inglesa), foi presidente AAL até 1996 e publicou obras como “Introdução à Literatura Portuguesa” e “História de Araçatuba” – este em parceria com a cronista social Odette Costa.

Para o professor Célio, “uma literatura ideal seria clássica, que usasse todos

os recursos já aperfeiçoados, sem idealismos, que apenas expusesse o íntimo do ser humano”. As palavras guardam os fatos que transformam o homem.

*Mário César Rodrigues é professor, escritor, membro da Academia Araçatubense de Letras, ex-aluno de Célio Pinheiro.