o Liberalismo Frances Trad Doutrinaria

253

description

liberalismo

Transcript of o Liberalismo Frances Trad Doutrinaria

  • 1

    Para Maria Lcia, esposa e companheira, com amor. Para as minhas herdeiras,

    Maria Vitria, a filha-amiga de todas as horas e Luza, a neta amada que iluminou o znite da minha caminhada

  • 2

    SUMRIO Apresentao (Antnio Paim). pg. 4

    Introduo: a Tradio Doutrinria. pg. 7 Bibliografia da Introduo. pg. 12

    Captulo 1 Madame de Stal, precursora do Liberalismo Doutrinrio. pg. 13

    I Perfil bio-bibliogrfico de Madame de Stal. pg. 14 II Concepo Liberal da Poltica, do Estado e da Economia, segundo Necker. pg. 26

    III A crtica de Madame de Stal ao absolutismo napolenico. pg. 38 IV A perfectibilidade humana segundo Madame de Stal. pg. 44

    Bibliografia do Captulo 1. pg. 50

    Captulo 2 Benjamin Constant de Rebecque e a sua influncia no Brasil. pg. 53

    I Perfil bio-bibliogrfico de Constant de Rebecque. pg. 56 II Benjamin Constant, defensor liberal da Frana ps-revolucionria. pg. 60

    III O conceito de soberania popular limitada e a crtica de Constant ao democratismo rousseauniano. pg. 63

    IV O poder monrquico segundo Constant. pg. 66 V A herana de Benjamin Constant na teoria da representao de Silvestre Pinheiro

    Ferreira. pg. 68 Bibliografia do Captulo 2. pg. 84

    Captulo 3 Franois Guizot e a sua influncia no Brasil. pg. 88

    I Perfil bio-bibliogrfico de Franois Guizot. pg. 90 II O pensamento de Guizot. pg. 107

    III A influncia de Guizot no Liberalismo Conservador brasileiro do sculo XIX. pg. 111 IV A tica pblica de Guizot e de Paulino Soares de Souza. pg. 117

    Bibliografia do Captulo 3. pg. 118

    Captulo 4 A problemtica da democracia em Tocqueville e Aron. pg. 121

    I Tocqueville, Aron e os Liberais Doutrinrios. pg. 121 II A converso de Tocqueville ao ideal democrtico e a opo liberal de Aron. pg. 124 III A nova cincia poltica de Tocqueville e a filosofia crtica da histria de Aron. pg. 127

    IV A tica tocquevilliana e os seus reflexos no pensamento de Aron. pg. 132 V Estrutura e contedo de A Democracia na Amrica. pg. 137

    VI Despotismo e democracia na Frana, segundo Tocqueville e Aron. pg. 142 VII Repercusso passada e presente da meditao de Tocqueville. pg. 149

    VIII Os problemas da democracia moderna segundo Tocqueville e Aron. pg. 151 Bibliografia do Captulo 4. pg. 159

    Captulo 5 Presena de Tocqueville no Brasil. pg. 164

    I Sculo XIX. pg. 164 II Sculo XX. pg. 175

    Bibliografia do Captulo 5. pg. 183

  • 3

    Captulo 6 Alexis de Tocqueville diplomata, estrategista e estudioso das relaes internacionais. pg. 187

    I - Relaes internacionais e colonialismo. pg. 194 II A Frana no contexto internacional. pg. 215

    Bibliografia do Captulo 6. pg. 223

    Bibliografia Geral. pg. 227

    Anexo I Sociedade Tocqueville: Carta de Princpios e Programa de Atuao. pg. 244

    Anexo II Sites em francs acerca dos Doutrinrios, seus Precursores e seus Seguidores. pg. 250

    Anexo III Sites acerca do Liberalismo Francs. pg. 251

  • 4

    APRESENTAO

    Devido a uma srie de coincidncias histricas perversas, praticamente perdemos os vnculos com os grandes centros do pensamento liberal no exterior, que era justamente uma das caractersticas marcantes da tradio liberal brasileira, desde os seus primrdios. Enumero-as esquematicamente: a liderana da oposio ao Estado Novo passou s mos de uma faco catlica, que no tinha uma noo clara da poltica social dos liberais, muito distanciada da que professavam, haurida em Encclicas Papais, liderana que ocupou os postos-chave da Unio Democrtica Nacional (UDN), passando a representar a corrente liberal no interregno democrtico ps Estado Novo (1945-1964); morte de Armando de Salles Oliveira (1887/1945) ao tempo em que Jlio de Mesquita Filho (1892/1969) devia dar prioridade recuperao de O Estado de S.Paulo, ocupado durante o Estado Novo, enfraquecendo a liderana liberal paulista; e, mais grave que tudo, o grupo de oficiais que apostava na profissionalizao do Exrcito acabou contribuindo, em 64, para levar ao poder aquele segmento da elite militar que, sendo basicamente de formao positivista, no tinha o menor apreo pelo sistema representativo. De tudo isto resulta que, no incio da dcada de setenta, no se falava mais em liberalismo. A crena generalizada era a de que a democracia representativa e o capitalismo haviam fracassado. Ningum prestava ateno pujana americana nem ao fato de que, afinal, na Europa Ocidental, depois de marchas e contra-marchas ao longo do sculo, empreendeu-se decididamente a rota da consolidao do sistema democrtico, com exceo de Portugal e Espanha, que ainda na dcada iriam trilhar aquele caminho.

    A responsabilidade de recompor nossos laos com a doutrina liberal seria assumida por um pequeno grupo de professores universitrios do Rio de Janeiro. Ainda que a Introduo Filosofia Liberal, de Roque Spencer Maciel de Barros (1927/1999), aparecida em 1971, nos tivesse proporcionado um roteiro bastante amplo, optamos por reconstituir a experincia inglesa, j que seria na Inglaterra onde no s se constitura, isoladamente, o governo representativo, como seria onde se iniciou, coroado de xito, o processo de democratizao da idia liberal. Depois de procurarmos nos familiarizar com as circunstncias nas quais John Locke (1632/1704) escreveu o Segundo Tratado sobre o governo civil e nos darmos conta de que se tratava da generalizao de dramtica experincia precedente, destinada a unificar o ponto de vista da elite e permitir a retomada do projeto original, de obrigar a monarquia a coexistir com o Parlamento, afinal consumada com a Revoluo Gloriosa de 1688--; coletar material sobre o sculo XVIII; chegarmos Reforma de 1832 e descoberta de William Gladstone (1809/1898), verdadeiro artfice da democratizao do sistema representativo, buscando entender as razes de sua oposio ao movimento cartista. Acabamos nos dando conta que este ltimo nutria-se de uma outra tradio, o democratismo (Rousseau; jacobinismo francs), que terminamos por concordar em que nada tinha a ver com a doutrina liberal. Gastamos energias sem fim nas discusses acerca de Stuart Mill (1806/1873), devido s suas simpatias pelo socialismo. Tudo isto serviu, contudo, para permitir que tivssemos a oportunidade de reconstituir o processo de formao do chamado liberalismo social, desde as ltimas dcadas do sculo XIX, com o que podemos compreender que Keynes correspondeu ao seu coroamento.

    Somente com o regresso de Ubiratan Macedo dos Estados Unidos, na primeira metade da dcada de oitenta, com a formalizao do Crculo de Estudos do Liberalismo,

  • 5

    sob a sua coordenao, nos voltamos para o liberalismo continental. Ubiratan Macedo proporcionou-nos uma primeira viso do liberalismo doutrinrio. O texto em que resume o seu entendimento apareceu na coletnea Evoluo histrica do liberalismo (1987), obra que contou com a colaborao de parte dos integrantes daquele crculo de estudos (Antonio Paim, Francisco Martins de Souza, Ricardo Vlez Rodriguez, alm do prprio Ubiratan Macedo). Por essa altura o embaixador Meira Penna, tendo se aposentado e fixado residncia no Brasil, organiza a Sociedade Tocqueville.

    A presente obra de Ricardo Vlez Rodriguez corresponde a momento destacado do processo que tentei resumir precedentemente. Trata-se do aprofundamento da viso que tnhamos adquirido do liberalismo doutrinrio, com o mrito de reconstituir os principais antecedentes e projet-lo no sculo XX.

    Em carter pioneiro, Ricardo Vlez Rodriguez apresenta-nos o pensamento de Jacques Necker (1732/1804). De fato coube a Necker estabelecer os princpios gerais a partir dos quais deveriam os liberais posicionar-se diante da Revoluo Francesa, como comprova a partir da anlise do que poderia ser considerado como o seu testamento poltico (Dernires vues de politique et de finance, 1802). Os princpios em causa viriam a ser desenvolvidos por sua filha Madame de Stael (Germaine Necker, 1766/1817) e sobretudo por Benjamin Constant (1767/1830). A grande lio de Necker a de que, no que se refere s instituies polticas, h que fugir das abstraes e ater-se s circunstncias concretas do pas.

    Este livro proporciona-nos uma viso completa da obra de Madame de Stael. E, mais que tudo, faz sobressair o significado da doutrina da representao poltica como sendo de interesses, da lavra de Benjamin Constant.

    O liberalismo doutrinrio coroa-se com a obra e a ao poltica de Franois Guizot (1787/1874), que tanta influncia exerceu sobre as grandes personalidades imperiais, em especial Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai (1807/1866). As etapas principais da vida de Guizot acham-se amplamente caracterizadas. Verdadeiramente magistral a sntese que nos proporciona dos ensinamentos bsicos dos dois pensadores, no tpico que intitulou de "A tica pblica de Guizot e Paulino Soares de Souza".

    Vlez Rodriguez tornou-se o principal intrprete de Alexis de Tocqueville (1805/1859) no Brasil, em especial na obra A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville (1998). Na presente obra mostra-nos como Tocqueville um autntico herdeiro do esprito doutrinrio, tendo sabido coloc-lo em consonncia com a nova poca que a sociedade industrial faria surgir. Essa longa tradio coroa-se com Raymond Aron (1905/1983).

    O seu livro uma prova eloqente da maturidade alcanada pelo liberalismo brasileiro. Com o propsito de documentar essa hiptese, permito-me concluir com a transcrio desta magistral caracterizao da importante vertente que ora estuda: "Tanto no que se refere forma de pensar, fugindo aos dogmatismos que pretendem dizer a ltima palavra, quando na maneira como se relaciona com o mundo dos fatos histricos, Tocqueville e Aron reproduzem as caractersticas marcantes dos doutrinrios franceses. Poderamos dizer que o ponto marcante desse estilo de pensamento consiste no

  • 6

    engajamento. No se trata de pensar a poltica como categoria abstrata. Tambm no aceito o mergulho total na corrente da histria, como se ela j estivesse pr-definida pela roda cega do destino. Tocqueville e Aron encarnam a histria como soma de acontecimentos que, em parte, escapa nossa ao, como tendncia que no podemos ignorar e que herdamos dos sculos passados, mas que, de outro lado, pode ser abordada luz da razo para identificar os traos marcantes e influir no rumo dos mesmos, com o intuito de preservar a liberdade . Devemos tentar compreender a histria. Mas nosso dever, tambm, influir nela atravs da nossa participao consciente e sistemtica dos fatos mutveis, para tornar as instituies mais acordes com o ideal da dignidade humana."

    O liberalismo doutrinrio constitui o mais importante acrscimo doutrina liberal pensada e vivida na Inglaterra.

    Rio de Janeiro, novembro de 2002.

    Antnio Paim

  • 7

    INTRODUO: A TRADIO DOUTRINRIA

    O ttulo desta obra: O liberalismo francs - A tradio doutrinria e a sua influncia no Brasil, exprime bem o que pretendo desenvolver nas pginas que seguem. Ns, ibero-americanos, entramos ao mundo das idias liberais pela mo dos pensadores franceses, ainda nos tempos das revoltas que varreram o continente na ltima parcela do sculo XVIII. E, uma vez consolidadas as instituies independentes das metrpoles espanhola e portuguesa, amadurecemos no reformismo de inspirao liberal pela mo dos doutrinrios franceses e dos precursores deles, como Benjamin Constant de Rebecque. Mas, por outro lado, inspiramo-nos tambm no republicanismo revolucionrio de feio rousseauniana e, nos momentos de anttese autoritria, no bonapartismo ou no tradicionalismo la Joseph de Maistre ou Lus de Bonald. Sntese paradoxal da dupla inspirao em Rousseau e Bonaparte foi por exemplo Simn Bolvar, embora ele pretendesse ser mais discpulo do filsofo de Genebra do que encarnao do Imperador dos Franceses. As mudanas sociais foram pensadas, outrossim, luz dos socialistas utpicos seguidores de Augusto Comte e de Henri-Claude de Saint-Simon, bem como nos escritores que, no final do sculo XIX, vulgarizaram os ideais socialistas, como Zola.

    Esta tese da inspirao estrangeira (ibrica e ibero-americana, especialmente) nos autores franceses, alis, no nova. do prprio Franois Guizot, que na sua Histoire de la civilisation en Europe (captulo 14), ao fazer o balano do que a Frana significou no contexto da civilizao ocidental, afirma que a marca registrada dessa influncia consistiu em ter realizado, de maneira superlativa, todas as grandes mudanas que foram concretizadas de forma moderada pela Inglaterra. A Frana, efetivamente, viu derrubar-se o mundo feudal muito cedo sob o taco de Ferro de Filipe o Belo, deu ensejo ao mais radical dos absolutismos monrquicos que possibilitou a Lus XIV afirmar "L'tat c'est moi", efetivou de maneira cruenta a revoluo burguesa descabeando literalmente o Ancien Rgime, consolidou um modelo jacobino de Repblica alicerado no democratismo rousseauniano, que passou a ser o arqutipo pelo qual se pautaram as novas Repblicas surgidas na Amrica Espanhola e Portuguesa, ao longo do sculo XIX, etc.

    A respeito desse carter superlativo das realidades e das idias polticas na Frana - e no continente europeu, em contraposio Inglaterra -, escreveu Guizot: "Ao contrrio, nos Estados do continente, cada sistema, cada princpio, tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais completa, mais exclusiva, o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior escala, com mais grandeza e brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por exemplo, comportaram-se na cena continental com mais audcia, amplitude e liberdade. Todos os experimentos polticos, chamemo-los assim, foram mais exteriores e mais acabados. Da resultou que as idias polticas - falo das idias gerais e no do bom senso aplicado direo dos negcios - elevaram-se a maior altura e desenvolveram-se com mais vigor racional. Cada sistema, pelo fato de ter-se apresentado, de certa forma, sozinho e de ter permanecido durante muito tempo em cena, pde ser considerado no seu conjunto, pde-se remontar aos princpios, descer at as suas ltimas conseqncias e estabelecer plenamente a sua teoria" [Guizot, 1864: 383-384].

    No que tange ao liberalismo, a experincia dos doutrinrios est bem mais prxima de ns, ibero-americanos, do que as lies que nos poderiam dar os ingleses ou os norte-

  • 8

    americanos. Isso porque a Frana do sculo XIX reproduzia com grande fidelidade as contradies que vivemos nos nossos pases nessa centria e ao longo do sculo XX, como tambm neste paradoxal incio de milnio. A evoluo poltica contempornea, na Espanha, em Portugal, na Amrica espanhola ou no Brasil, processou-se de forma muito mais parecida Frana do sculo XIX, do que aos Estados Unidos ou Inglaterra. As idas e vindas da nossa poltica oscilaram entre os extremos do mais feroz caudilhismo e do anrquico democratismo. As lutas dos liberais ibero-americanos em defesa da liberdade e do governo representativo, aproximaram-se muito mais dos ingentes esforos feitos por Guizot e pelos demais doutrinrios para dotar a Frana de instituies que garantissem a frgil planta da democracia, do que das reformas racionais efetivadas por Pitt na Inglaterra, a fim de ver triunfante o Imprio britnico, alicerado na livre iniciativa e na tranqila e rotineira representao de interesses. A idia de Jos Ortega y Gasset, que conclua em 1937: "este grupo de doutrinrios, de quem todo mundo riu e fez troa, , no meu entender, o mais valioso que houve na poltica do Continente ao longo do sculo XIX" [apud Dez, 1984: 19].

    A repercusso das idias dos doutrinrios no mundo ibrico e ibero-americano comeou, alis, j no sculo XIX. Os liberais espanhis, liderados por Cnovas del Castillo, e que integraram a denominada Gerao dos Doutrinrios de 1845, inspiraram-se diretamente nos seus homlogos franceses, notadamente em Guizot [cf. Dez, 1984: 25]. A influncia de Guizot fez-se sentir, em Portugal, j no pensamento de Alexandre Herculano. Algo semelhante ocorreu no Brasil entre os denominados por Oliveira Vianna de Homens de Mil, que constituram a gerao de estadistas formados por dom Pedro II e que foram os responsveis pela estabilidade poltica do Segundo Reinado. Um desses Homens de Mil foi o visconde de Uruguai, Paulino Soares de Souza, que fundamentou boa parte do seu Tratado de Direito Administrativo nas idias e nas propostas reformistas de Guizot [cf. Souza, 1960]. Outros estadistas como o Conselheiro Jos Toms Nabuco de Arajo e o seu filho, Joaquim Nabuco, confessavam-se seguidores de outro doutrinrio, o mestre de Guizot e seu padrinho poltico, Pierre-Paul Royer-Collard [cf. Chacon, 2002: 229].

    Entre os argentinos, para citar apenas um nome, encontramos um importante tributrio da dinmica histrica idealizada por Guizot em Domingo Faustino Sarmiento, que foi presidente do seu pas e que escreveu essa magnfica obra que faz a histria das origens do patrimonialismo platino intitulada Facundo, civilizacin o barbarie, publicada em 1846. Efetivamente, Sarmiento, como j o fizera Guizot em relao Europa, considerava a formao argentina como fruto dialtico da contraposio de dois princpios: a liberdade brbara do gacho (encarnado em Facundo Quiroga e em Rosas) e o princpio centralizador da ordem, que faz uso do direito, construindo o Estado sobre as leis (papel civilizador que pretendia desempenhar o prprio Sarmiento e a elite de educadores-polticos por ele inspirada) [cf. Sarmiento, 1996].

    Pretendo nesta obra caracterizar em primeiro lugar os traos marcantes dos doutrinrios. Fa-lo-ei ao expor a obra e a ao poltica do maior deles, Franois Guizot. Mas desde j adianto algumas dessas caratersticas: 1) Os doutrinrios foram eminentemente homens de ao moderados, que pretenderam defender as conquistas da Revoluo de 1789, notadamente os ideais de liberdade e de democracia, bem como o ideal de progresso da sociedade humana. Prevalecer neles, no entanto, mais o primeiro aspecto

  • 9

    do que o segundo. Mas, ao analisarmos a sua obra, veremos que ela se encaminhava no sentido de alargar o voto paulatinamente, embora se contrapusessem retrica democrtica, polarizada muitas vezes ao redor dos republicanos. Achemos muito conservador ou no o primeiro ministro de Lus Filipe, Guizot foi afinal de contas quem destacou, alto e bom som, que no mundo moderno iniciou-se uma caminhada irreversvel rumo democracia. 2) Os doutrinrios eram, ao mesmo tempo, homens de estudo, que tinham uma dupla finalidade: de um lado, identificar as razes histricas da civilizao ocidental e, no contexto dela, da cultura francesa, a fim de pensar as novas instituies em consonncia com as prprias tradies; de outro lado, substituir a filosofia sensualista dos idelogos por um ecletismo espiritualista compatvel com a prtica religiosa. Alguns doutrinrios, como Royer Collard, eram catlicos de origem jansenista, outros protestantes, como Franois Guizot. Mas todos eles se caracterizavam pela moderao em matria religiosa, e por defenderem a separao das igrejas em face do Estado. 3) Do ngulo filosfico, os doutrinrios professavam um espiritualismo contrrio ao sensualismo de Condillac e ao excessivo materialismo dos idelogos. Dois autores deitaram as bases, na Frana, para os fundamentos filosficos dos doutrinrios, no seio da corrente denominada de ecletismo espiritualista: Royer-Collard (que se inspirou fundamentalmente na filosofia escocesa do senso comum de Reid) e Victor Cousin (que alargou os fundamentos doutrinrios do ecletismo incorporando a filosofia alem, notadamente o hegelianismo e que, junto com Maine de Biran, tributrio de Kant, deu carta de cidadania filosfica ao espiritualismo) [cf. Paim, 1997: 371-386; Dez, 1984: 34-42]. Na reao espiritualista apontada deitam razes, alis, os pressupostos humansticos de Tocqueville e Aron. 4) Ao juntarem a dimenso prtica terica, os doutrinrios encarnaram um tipo especial de tica pblica, a do intelectual-homem de ao, que se contrape paradoxalmente proposta dicotmica de Max Weber, que distinguia de forma radical entre tica dos intelectuais e tica dos polticos. Os doutrinrios no tinham dificuldade em admitir que o intelectual deve iluminar o poltico e que o poltico deveria fazer pousar na terra o intelectual. 5) Quanto ao modelo poltico defendido, os doutrinrios eram partidrios da monarquia constitucional com parlamento bi-cameral, sendo tributrios, neste aspecto, dos autores ingleses.

    Pretendo nesta obra tambm demonstrar que existe uma tradio doutrinria, que foi preparada pela ao e o pensamento de trs importantes precursores: Jacques Necker, a sua filha Germaine Necker de Stal-Holstein (a conhecida Madame de Stal) e Benjamin Constant de Rebecque. A hiptese dos precursores do liberalismo doutrinrio no nova: foi levantada no sculo XIX por Sainte-Beuve e adotada presentemente por Lucien Jaume, sendo que este ltimo autor considera que h em Madame de Stal e em Constant mais um perfil libertrio, enquanto que em Necker e Guizot prevalece um ponto de vista centrado nas instituies governamentais, que confere ao seu liberalismo um carter mais conservador. Tocqueville, no sentir de Jaume, teria resgatado a nfase libertria de Madame de Stal e Benjamin Constant [cf. Jaume, 1997: 14-21]. Destacarei na ao precursora de Madame de Stal, a sua inspirao na filosofia kantiana, no esforo empreendido por ela para dotar ao liberalismo de uma base filosfica slida (de inspirao transcendental), contraposta ao utilitarismo.

    Mostrarei que a tradio doutrinria, encarnada pela gerao de Guizot (que caracterizarei detalhadamente do ngulo histrico e terico ao me referir obra dele), prolonga-se na obra e no pensamento de dois importantes autores: Alexis de Tocqueville e

  • 10

    Raymond Aron. O primeiro, apesar de crtico das reformas conservadoras de Guizot, manteve-se fiel aos seus ensinamentos no que tange aos pressupostos espiritualistas na concepo do homem, bem como no que diz respeito aos rumos da historiografia e defesa das instituies liberais do governo representativo e da monarquia (embora, como alis tambm fez o prprio Guizot, tivesse admitido para a Frana - de forma passageira, verdade - uma Repblica liberal). Aron, filho do sculo XX, ampliou o estudo sobre os fundamentos filosficos da historiografia no contexto do neokantismo e se engajou corajosamente, ao mesmo tempo, na defesa da liberdade e da democracia representativa num contexto republicano. Ambos, Tocqueville e Aron, conservaram o trao marcante dos doutrinrios, ao terem sido pensadores e homens de ao. Tocqueville, como parlamentar, ensaista, ministro de Estado, jornalista e estudioso dos assuntos da administrao pblica e do governo; Aron, fundamentalmente como jornalista combativo e estudioso sistemtico das grandes questes suscitadas pela democracia contempornea. Ambos, Tocqueville e Aron, contrapem-se aos doutrinrios na questo da democracia. No que estes a negassem frontalmente: as reformas por eles realizadas a prepararam. Mas Tocqueville e Aron defendem de maneira explcita o ideal democrtico, coisa que os tradicionais doutrinrios no chegaram a fazer. Ambos, Tocqueville e Aron, finalmente, pensaram de maneira sistemtica a problemtica internacional do seu tempo. Ora, neste ponto eles superam os seus mestres doutrinrios, que no chegaram a formular uma teoria das relaes internacionais.

    Os estudos sobre os doutrinrios percorreram uma tripla etapa: em primeiro lugar, entre 1857 e 1900 prevaleceram, na Frana, as aproximaes de tipo biogrfico (como por exemplo os estudos realizados por Faguet sobre Royer-Collard e Guizot, ou os de Thureau-Dangin sobre o regime orleanista). Em segundo lugar, na primeira metade do sculo XX, nas dcadas de 20 e 30, o interesse pelas idias dos doutrinrios foi aumentando progressivamente, destacando-se os estudos realizados por Charles Pouthas e Pierre de la Gorge. Em terceiro lugar, a fase contempornea de interesse pelos doutrinrios parece que tem uma dupla fonte: a divulgao, na Frana, das obras de Tocqueville por Raymond Aron, a partir dos seminrios oferecidos na Sorbonne nos anos 50 (trata-se, aqui, de uma fonte indireta, pois o interesse por Tocqueville vai conduzir aos doutrinrios); de outro lado, a valorizao que Ortega y Gasset fez do pensamento doutrinrio nos seus ensaios e nas conferncias universitrias, ao longo dos anos 40 e 50.

    Nas ltimas dcadas, dois esforos vieram acelerar o interesse pelos doutrinrios: de um lado, os estudos sistemticos dedicados por Pierre Rosanvallon obra de Guizot e, de outro, os ciclos de debates e os seminrios promovidos pelo Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, sob a iniciativa de Franois Furet, Franoise Mlonio, Pierre Manent e do prprio Rosanvallon. A estes esforos soma-se o trabalho incentivado por entidades de cultura como a Associao Benjamin Constant (de Lausanne, Sua), a Sociedade de Estudos Stalianos (presidida por Simone Balay), a Sociedade Tocqueville (presidida por Daniel Bell e que publica La Revue Tocqueville junto com a Universidade de Toronto) o Castelo de Coppet ( cuja frente est o conde d'Haussonville) e a Fundao Guizot-Val Richer [cf. Jaume, 1997: 21; Dez, 1984: 20-25].

    Esta obra consta de seis captulos. Os dois primeiros so dedicados ao estudo da vida e pensamento dos precursores dos doutrinrios: Madame de Stal, Jacques Necker e

  • 11

    Benjamin Constant de Rebecque. No segundo captulo estudada, tambm, a influncia deste ltimo no Brasil. O terceiro captulo registra a evoluo do pensamento poltico dos doutrinrios, destacando-se a figura central do grupo: Franois Guizot, bem como a repercusso da sua obra no pensamento brasileiro do sculo XIX. O quarto captulo analisa a forma em que Tocqueville e Aron defrontaram-se com a problemtica da democracia, prolongando a feio doutrinria do intelectual-homem de ao. O quinto captulo estuda as repercusses que suscitou no Brasil o pensamento de Tocqueville, ao longo dos sculos XIX e XX. E o sexto captulo trata acerca da concepo de Tocqueville em face das relaes internacionais.

    Esta obra no teria sido possvel sem a valiosa colaborao de algumas pessoas, s quais expresso o meu sincero agradecimento. Antnio Paim e Jos Osvaldo de Meira Penna (fundadores da Sociedade Tocqueville em 1986) leram pacientemente a verso original do meu trabalho, anotando as gralhas na digitao e fazendo sugestes que levei em considerao. Eles deram-me, outrossim, muitos subsdios tericos a partir de 1993, quando lhes apresentei o meu projeto inicial para estudar a obra do patrono e inspirador dessa Sociedade. Os colegas do Crculo de Estudos do Liberalismo, no Rio de Janeiro, tambm contriburam para o meu trabalho, com oportunas observaes acerca dos fundamentos tericos do pensamento dos doutrinrios; menciono com especial destaque os nomes de dois deles: Ubiratan Macedo, coordenador do Crculo e o saudoso amigo talo da Costa Jia. A consulta s fontes francesas acerca dos doutrinrios e os seus precursores, bem como sobre a obra de Tocqueville e Aron, contou com a generosa e eficaz orientao de Madame Franoise Mlonio do Centre de Recherches Politiques Raymond Aron em Paris. Graas sua indicao pude entrar em contato com pesquisadores do pensamento tocquevilliano e aroniano como Seymour Drescher, Pierre Manent, Reiji Matsumoto e Elisabeth Dutartre. Monsieur Jean-Pierre Perchellet, da Socit des tudes staliennes, teve a gentileza de me enviar os Cahiers staliennes, fonte valiosssima para o estudo dos ideais doutrinrios. Andr Bueno (doutorando em Filosofia da Universidade Gama Filho) forneceu-me os belos exemplares da obra de Necker intitulada Dernires vues de politique et de finance - 1802. Anna Maria Moog Rodrigues, da Academia Brasileira de Filosofia, presenteou-me com os dois volumes do Cours de Politique Constitutionnelle - 1872 de Benjamin Constant. Recebi valiosas indicaes bibliogrficas acerca da influncia dos doutrinrios na Amrica Espanhola, de Otto Morales Bentez, da Academia Colombiana de Histria. Foi de grande valor para o meu trabalho o dilogo com pesquisadores americanos (especialmente Daniel Mahoney e Robert Royal), sobre a atualidade de Tocqueville e Aron em face da problemtica latino-americana contempornea, no IX Encontro de Estudos Polticos promovido por Joo Carlos Espada, na Universidade Catlica Portuguesa em novembro de 2001. Ao ensejo deste evento pude discutir, outrossim, as teses centrais da sociologia de Aron com os alunos da ps-graduao em cincias polticas dessa Universidade. Foram muito valiosas as indicaes bibliogrficas fornecidas pelo ministro Carlos Henrique Cardim, diretor do Instituto de Relaes Internacionais em Braslia. Os seminrios sobre o liberalismo promovidos ao longo da dcada de 90 por Og Leme (do Instituto Liberal do Rio de Janeiro) e Emlio Pacheco (do Liberty Fund), foram de grande utilidade para analisar o pensamento dos doutrinrios em confronto com outras manifestaes do pensamento liberal. Recebi orientaes precisas acerca da influncia dos liberais franceses do sculo XIX sobre o pensamento poltico em Portugal, de Jos Esteves Pereira (da Universidade Nova de Lisboa), Eduardo Soveral (da Universidade do Porto),

  • 12

    Antnio Braz Teixeira (da Universidade Autnoma de Lisboa) e Jos Pereira Bairrada (da Universidade Catlica Portuguesa). Nos Congressos Brasileiros de Filosofia promovidos por Miguel Reale em 1999 e 2002, pude discutir com pesquisadores brasileiros e estrangeiros alguns pontos do Liberalismo Doutrinrio. Oportunidade semelhante foi-me oferecida por Leonardo Prota, nos Colquios bianuais de Filosofia Brasileira realizados em Londrina a partir de 1989. Os vrios Ciclos de Debates acerca do Liberalismo Clssico, coordenados ao longo dos ltimos cinco anos por Alex Catharino de Souza no Rio de Janeiro, tm sido foro privilegiado para discutir as idias bsicas dos doutrinrios e dos seus precursores. Este trabalho no teria se concretizado sem a insubstituvel e carinhosa colaborao de Maria Lcia, minha esposa, companheira inseparvel das minhas viagens de pesquisa Frana realizadas entre 1994 e 2000. Ela tem sido leitora infatigvel e atenta dos manuscritos e tradutora cuidadosa dos textos das citaes. O saudoso Jos Carlos de Lery Guimares e a sua esposa Tereza, foram tambm valiosos companheiros de viagem e colaboradores na pesquisa iconogrfica que realizei no inverno de 1996 na Normandia. Minha filha Maria Vitria, da Agence France Presse, prestou-me dedicada ajuda no levantamento dos Centros de Estudos Polticos existentes na Frana. A todos eles o testemunho da minha gratido.

    Ricardo Vlez Rodrguez. Juiz de Fora, Outubro de 2002

    BIBLIOGRAFIA DA INTRODUO

    CHACON, Vamireh [2002]. "Royer-Collard e Destutt de Tracy: liberais quase esquecidos". In: Revista Brasileira de Filosofia. So Paulo, vol. 52, no. 206 (abril - junho de 2002): pgs. 229-236.

    CONSTANT de Rebecque, Henri-Benjamin [1872]. Cours de Politique Constitutionnelle. (Introduo e notas a cargo de douard Laboulaye). 2 Edio. Paris: Guillaumin, 2 vol.

    DEZ del Corral, Luis [1984]. El Liberalismo Doctrinario. 4 Edio. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.

    GUIZOT, Franois [1864]. Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'a la Rvolution franaise 8 Edio. Paris: Didier.

    JAUME, Lucien [1997]. L'Individu effac, ou le paradoxe du libralisme franais. Paris: Fayard.

    NECKER, Jacques [1802]. Dernires vues de politique et de finance, offertes la Nation Franaise. Paris: Bibliothque Nationale, 2 vol.

    ORTEGA y Gasset, Jos [2002]. A rebelio das massas. (Traduo de Marylene Pinto Michael). 2a. Edio. So Paulo: Martins Fontes.

    PAIM, Antnio [1997]. Histria das Idias Filosficas no Brasil. 5 Edio revisada. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina.

    SARMIENTO, Domingo Faustino [1996]. Facundo: civilizao e barbrie no pampa argentino. (Traduo de Aldyr Garca Schlee). Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Editora da Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    SOUZA, Paulino Soares de, visconde de Uruguai [1960]. Ensaio sobre o Direito Administrativo. (Apresentao de Themstocles Brando Cavalcanti). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.

  • 13

    CAPTULO 1 - MADAME DE STAL, PRECURSORA DO LIBERALISMO DOUTRINRIO

    O autor mais estudado na Frana ao longo do ano 2000 foi Madame de Stal. A

    anlise da obra da grande escritora foi objeto das monografias de Bacharelado em Literatura e Humanidades, por determinao do Ministrio da Educao. Por que essa escolha? Responderia brevemente: em primeiro lugar, porque o seu livro mais importante, De la Littrature considere dans ses rapports avec les institutions sociales (Acerca da Literatura considerada nas suas relaes com as instituies sociais) completou duzentos anos. Em segundo lugar, porque Madame de Stal tremendamente atual. Ela representa, efetivamente, um esprito aberto modernidade, mas, ao mesmo tempo, crtico dela, a partir de uma perspectiva que supera o individualismo exagerado dos que unicamente buscam o proveito imediato, olhando s para os prprios interesses. E, paralelamente, com uma conscincia clara da defesa incondicional da liberdade e do reconhecimento de que possvel conciliar os interesses individuais com os da comunidade.

    Madame de Stal foi uma pessoa excepcional. Podia-se odi-la ou am-la, mas ningum ousaria desconhecer o seu valor. Stendhal considerava que ela era "a mulher mais extraordinria que jamais viveu". Para Benjamin Constant tratava-se de "um ser parte, um ser superior, desses que possivelmente aparecem um a cada sculo". O prprio Napoleo, embora a olhasse com extremada desconfiana e a tivesse perseguido pela vida afora, chegou a confessar em certa ocasio: " necessrio reconhecer, depois de tudo, que se trata de uma mulher de grande talento; ela permanecer". Essa atitude de amor ou dio foi herdada pela crtica literria em relao nossa autora. Somente nas ltimas dcadas foi possvel reconstruir um ambiente de imparcialidade intelectual em face da obra de Madame de Stal, isso em grande medida devido ao trabalho de estudiosos dedicados como Simone Balay. A propsito das dificuldades encontradas para se chegar a esse equilbrio, escreve a mencionada pesquisadora: "Se cada um de seus livros encontrou um vasto pblico, apaixonadamente hostil ou favorvel, aos poucos foi sendo construda ao seu respeito uma lenda que mascarou a obra, assim como a pessoa. As paixes polticas e religiosas ocuparam a lugar de destaque. Madame de Stal incomoda pelo seu esprito de livre exame e pela educao que ela herdou das Luzes. Ela tem sido atacada por gentes de todos os partidos: os jacobinos, os ultras, mais tarde a velha guarda clssica, as vezes os romnticos, apesar de que se alimentaram com o seu pensamento (...). somente nos ltimos trinta anos que estudos imparciais a colocaram no justo lugar" [Balay, 1985: 7].

    A verdade que a brava escritora no deu trgua ao absolutismo napolenico, tendo sido a mais importante crtica e eficaz opositora do Imperador. Pagaria caro pela sua ousadia liberal: foi cruelmente desterrada. A reflexo de Madame de Stal deitou, assim, as bases para o trabalho ulterior de fundamentao do liberalismo doutrinrio francs, efetivado por Benjamin Constant de Rebecque (com quem, alis, teve laos amorosos), Franois Guizot e o prprio Tocqueville. A noo tocquevilliana de interesse bem compreendido no se poderia entender sem referncia obra de Madame de Stal.

    Precursora dos doutrinrios. Destaquemos duas idias que justificam plenamente esse honroso ttulo. Em primeiro lugar, a profisso de f incondicional na liberdade. A

  • 14

    propsito, escreve Madame de Stal em Dix annes d'exil: "No para me escusar pelo meu entusiasmo em relao liberdade, que explicito as circunstncias pessoais que contriburam para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o incio que o grande reproche do imperador Napoleo contra mim, o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como uma herana, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais dos quais derivam e das belas aes que eles inspiram. As cenas cruis que desonraram a Revoluo Francesa, no sendo mais do que tirania sob modalidade popular, no fizeram esmaecer em mim, creio, o culto liberdade. Poderamos nos desencorajar em relao Frana. Mas, se este pas tivesse a desgraa de no possuir o mais nobre dos bens, no era necessrio por isso proscreve-lo da terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos pases do Norte, os habitantes dessas regies no amaldioam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do cu" [Stal, 1996a: 46].

    Uma segunda idia que torna Madame de Stal precursora dos doutrinrios: somente um regime alicerado numa Constituio de inspirao liberal, garantir o exerccio da liberdade. Achava que uma Carta inspirada na que tinha vigncia na Inglaterra, poderia evitar na Frana os males do despotismo. "A Inglaterra, para ela - frisa Jacques Godechot - a terra da liberdade. graas a essa liberdade que a Inglaterra conseguiu vencer Napoleo". De que liberdade se trata? Fundamentalmente da liberdade individual, "a liberdade de ir e vir, a liberdade de cada um, tanto homem quanto mulher, viver como lhe aprouver" [Godechot, 2000: 28].

    Vale a pena, portanto, traar uma rpido esboo da vida e da obra da grande ensaista, que prenunciou o movimento da emancipao feminina, num momento em que s mulheres s se reconhecia o direito de ficar em casa ou ir para o convento. Desenvolverei neste captulo os seguintes itens: I - Perfil bio-bibliogrfico de Madame de Stal; II - Concepo liberal da Poltica, do Estado e da Economia, segundo Necker; III - A crtica de Madame de Stal ao absolutismo napolenico; IV - A perfectibilidade humana segundo Madame de Stal.

    I - Perfil bio-bibliogrfico de Madame de Stal

    Anne-Louise-Germaine Necker de Stal-Holstein, popularmente conhecida como Madame de Stal, nasceu em Paris em 1766 e morreu na mesma cidade em 14 de julho de 1817. Era filha de Jacques Necker (1732-1804), o banqueiro genebrino que foi Ministro de Finanas de Lus XVI e de Suzanne Curchod, de origem sua e filha de um pastor protestante. A propsito das razes familiares de Jacques, vale a pena lembrar que o seu pai, Charles-Frdric Necker, era prussiano, tendo sido advogado e preceptor do filho de Bernstorff, o primeiro ministro alemo de George I, rei da Inglaterra e eleitor de Hanver. George I tinha enviado Charles-Frdric a Genebra em 1725, a fim de que dirigisse uma penso para jovens estudantes ingleses. Ali casou com Jeanne-Marie Gautier, pertencente oligarquia genebrina e naturalizou-se suo. Os avs de Germaine eram, portanto, cosmopolitas. Jacques Necker, lembra Godechot, "pretendia descender, por parte da me, de Jacques Coeur, o ministro de Carlos VII, e por parte do pai de um Necker que vivia na

  • 15

    Irlanda no tempo de Guilherme o Conquistador, tendo adotado o escudo de armas dele" [Godechot, 2000: 9].

    Jacques Necker foi nomeado ministro representante da Sua em Paris em 1768, em decorrncia do fato do grande sucesso econmico obtido pelo seu Banco, o Necker et Tellusson, ao ensejo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Jacques ficou muito rico, sendo a sua fortuna calculada entre 7 e 8 milhes de libras-ouro. Em decorrncia da poltica de reformas deslanchada por Lus XVI com a finalidade de frear a crescente impopularidade da monarquia francesa, Necker foi convidado em 1777 para substituir Turgot (contra cuja poltica fisiocrata ele tinha se pronunciado), no ministrio das Finanas,. No foi fcil vencer as resistncias para que um banqueiro estrangeiro e, ainda por cima, protestante, assumisse o importante cargo, embora houvesse a tradio, na Frana, de ministros estrangeiros como Concini e Mazarin. A situao foi contornada sendo-lhe atribuda a funo de "diretor adjunto das Finanas". Mas, de fato, Necker foi um autntico primeiro-ministro, que ps em execuo uma moderada poltica de conteno de gastos e de extino dos privilgios que em muito oneravam os cofres pblicos. (Alm da pesada burocracia, integrada pela nobreza, o oramento definhava em decorrncia dos gastos exigidos pela participao da Frana na guerra das colnias britnicas da Amrica contra a Inglaterra).

    O caminho reformista empreendido por Necker granjeou-lhe o dio de Maria Antonieta e de amplos setores da nobreza aliada a ela, fato que conduziu sua demisso em 1781. O estopim foi o opsculo intitulado Compte rendu au Roi publicado nesse mesmo ano, em que o Directeur des Finances e primeiro-ministro apresentava o quadro das receitas e das despesas do Estado, ressaltando o peso que tinham os gastos com a nobreza improdutiva denominada de frelons (zanges). Os preconceitos deste estamento aumentaram em decorrncia da sugesto de Necker para uma reforma poltica que estabelecesse uma espcie de representao provincial, com a finalidade de diminuir a importncia dos intendentes do Rei.

    No captulo IV da obra Considrations sur la Rvolution Franaise, Madame de Stal fez uma detalhada descrio das reformas pretendidas pelo seu pai. Em relao proposta da representao provincial, a filha de Necker escrevia: "(Ele) sentia mais vivamente que ningum de que forma o bom desempenho de um ministro pouca coisa no meio de um reino to vasto e to arbitrariamente administrado como a Frana, e esse foi o motivo para estabelecer assemblias provinciais, ou seja, conselhos integrados pelos principais proprietrios de cada provncia, nos quais se discutiria a fixao dos impostos e os interesses locais da administrao. Turgot tinha concebido a idia. Mas nenhum ministro do rei, antes de Necker, tinha tido a coragem de se expor oposio que deveria encontrar uma instituio deste gnero. Ele previa que os parlamentos e os cortesos, raramente solidrios entre si, a combateriam com a mesma fora" [Stal, 2000: 95].

    J fora do governo, Necker publicou, em 1784 o seu Trait de l'administration des finances de France, que em muito desagradou a nobreza, fato que o levou a sofrer o desterro a vinte lguas de Paris. No entanto, aps a desastrada gesto das finanas pblicas efetivada por Brienne e Lamoignon, Lus XVI chamou de novo Necker para assumir a direo nacional das finanas, integrando-o ao ministrio. O pai de Germaine deu continuidade poltica reformista de sua gesto anterior, restabelecendo as assemblias

  • 16

    representativas provinciais, intervindo na livre circulao de cereais a fim de fazer frente fome e anunciando a convocao dos Estados gerais. Tratava-se de uma poltica econmica liberal que terminou saindo cara ao prprio Necker, pois teve de emprestar ao tesouro real a vultuosa soma de 2 milhes de libras, que somente seriam pagas quarenta anos depois, na Restaurao.

    Diante de reiteradas presses da nobreza, o Rei demitiu novamente Necker em 11 de julho de 1789, poucos dias antes de eclodir a Revoluo, que foi acelerada pela notcia da demisso do popular primeiro-ministro, fato que motivou o pnico financeiro. Poucos dias depois da toma da Bastilha, no entanto, o soberano chamou novamente Necker. Ao se opor radicalizao protagonizada no seio da Assemblia Nacional pelos Jacobinos e sofrer a pesada oposio de Mirabeau e de outros lderes, Necker abandonou definitivamente o governo, em setembro de 1789.

    De qualquer forma, Jacques Necker foi muito valorizado pela sociedade francesa e pelas cortes europias. Aps a sua demisso do ministrio das Finanas, recebeu convites de Jos II da ustria, de Catarina II da Rssia, dos reis da Polnia e de Npoles, para ocupar o mesmo cargo. O pai de Germaine preferiu, no entanto, se retirar ao castelo de Coppet, na Sua, onde terminaria os seus dias em 1804 [cf. Godechot, 2000: 10-11]. Antes da sua morte, porm, Necker escreveu vrias obras, entre as quais podemos mencionar as seguintes: De l'Administration de Monsieur Necker par lui-mme (1791), Du pouvoir excutif dans les grands tats (1792), Rflexions offertes la nation franaise (esta obra, que pretendia defender o soberano, motivou a reao dos jacobinos e de outros elementos exaltados, fazendo com que os bens de Necker na Frana fossem confiscados e que ele prprio fosse inscrito na lista dos emigrados). O pai de Germaine escreveu tambm o Cours de morale religieuse (1800) e Dernires vues de politique et de finances (1802), obra que o indisps com Bonaparte, em decorrncia das crticas efetuadas por Necker contra o modelo de Repblica autoritria proposto pelo Primeiro Cnsul na Constituio de 1800 e qual farei referncia no prximo item.

    Mas voltemos formao recebida por Madame de Stal. No salo dos Necker, em Paris, reuniam-se todas as celebridades da poca. Germaine recebeu de seus pais uma sofisticada educao, em que prevaleceram a influncia da cultura britnica e o protestantismo. A respeito, Axel de Blaeschke escreve: "A anglofilia de Madame de Stal era antiga e no de natureza puramente livresca. Ela se alicera na sua experincia pessoal, iniciada no seio de uma famlia totalmente direcionada para o pas de alm-Mancha. De seu pai, ela herdou a predileo pela bicameralismo ingls como forma de organizao poltica; de sua me, a admirao pela poesia inglesa; e dos dois, a atrao por Shakespeare. Depois da sua segunda viagem Inglaterra, ela teve oportunidade para aprofundar e alargar essa aquisio cultural. No de admirar que o quadro da literatura inglesa seja, em De la Littrature, de longe o mais completo e o mais seguro. Como sntese, supera os estudos feitos por Voltaire e outros predecessores. A literatura inglesa aquela que mais respira o esprito de um pas livre (...)" [Blaeschke, 1998: LXVIII-LXIX].

    Segundo testemunho de Madame Necker de Saussure, no livro intitulado Notice sur le caractre et les crits de Madame de Stal (Paris, 1820), Germaine tinha uma brilhante inteligncia, que se manifestou precocemente. Ainda menina divertia-se com as eruditas

  • 17

    conversas dos amigos do seu pai, entre os que se contavam Raynal, Buffon, Marmontel, Grimm, Gibbon. A jovem Germaine escreveu, entre 1781 e 1785, trs romances intitulados Mirza, Adelade et Thodore e Pauline, que foram publicados dez anos mais tarde [cf. Stal, 1997]. De 1786 data um drama em verso intitulado Sophie. Nesse mesmo ano, Germaine casou com o baro ric-Magnus de Stal-Holstein, adido da embaixada da Sucia em Paris, tendo recusado casar-se com William Pitt, que seria depois Primeiro Ministro ingls [cf. Larousse, 1865: 1046; Blaeschke, 1998: IX; Godechot, 2000: 11].

    A primeira obra de flego de Madame de Stal, publicada em 1788, intitulava-se Lettres sur le caractre et les crits de Jean-Jacques Rousseau e testemunha a grande influncia que o filsofo genebrino exerceu na sua formao. Saint-Beuve, talvez o mais importante estudioso da obra de Madame de Stal no sculo XIX, escreveu em relao ao ensaio mencionado: "As Lettres sur Jean-Jacques so uma homenagem de reconhecimento ao autor admirado e preferido, a quem Madame de Stal se liga mais estreitamente. Todas as obras seguintes (...) em diversos gneros, romance, moral, poltica encontram-se pressagiadas com antecipao neste rpido e harmonioso canto de louvor aos escritos de Rousseau, como uma grande sinfonia se antecipa, j inteira depois de ser concebida, na sua abertura. O sucesso destas Lettres, que respondia ao esprito do tempo, foi universal" [apud Larousse, 1865: 1046]. Outras influncias recebidas por Madame de Stal na sua formao, foram as de Montesquieu, Turgot e Condorcet. Ela conseguiu, a partir de todas essas fontes, elaborar uma sntese pessoal aberta liberdade e contrria ao determinismo, em boa medida pela sbia incorporao de princpios filosficos novos, provenientes da Inglaterra e da Alemanha.

    Eclodida a Revoluo Francesa, Madame de Stal aspirou a desempenhar, nela, um papel ativo. Rejeitada pelos republicanos, renegada pelos partidrios do Rei, ela era identificada como partidria da monarquia constitucional. Fazia votos pelo triunfo do sistema bicameral ingls. A sua posio poltica granjeou-lhe inmeras perseguies. Surgiram contra ela panfletos desrespeitosos e violentos. Mas conseguiu se manter por cima dessas baixas intrigas. Deixou a sua apreciao acerca dos acontecimentos revolucionrios na obra intitulada Considrations sur la Rvolution Franaise, que seria publicada postumamente. Aps uma estadia na Sucia, Madame de Stal veio se estabelecer na regio de Vaud, no castelo de Coppet, na Sua, onde Necker tinha se recolhido desde 1790.

    A escritora ficou muito impressionada com a violncia do processo revolucionrio e a duras penas conseguiu escrever um nico livro neste perodo: a sua Mmoire pour la dfense de Marie-Antoinette, que foi publicado em agosto de 1793, na Inglaterra e na Sua, com o ttulo de Rflexions sur le procs de la reine par une femme [Stal, 1996b]. A obra em apreo foi escrita logo depois do panfleto de Necker intitulado Rflexions prsentes la nation franaise sur le procs intent Louis XVI, publicado no outono de 1792 [cf.Thomas, 1996: 7].

    A defesa esboada por Madame de Stal na sua Mmoire de 1793 no pretendia ser uma pea jurdica, como ela prpria reconhecia no prlogo. A novel escritora apelava para a sua condio de mulher, simplesmente. Eis as palavras da nossa autora a respeito: "O meu nome, no sendo til, deve permanecer desconhecido; mas, para destacar a imparcialidade

  • 18

    deste escrito, devo dizer que, entre as mulheres chamadas para ver a rainha, sou uma daquelas que menos tiveram com essa princesa relaes pessoais. Estas reflexes merecem, porisso, o crdito de todos os coraes sensveis, pois no foram inspiradas pelos motivos (utilitaristas) que animam a todos" [Stal, 1996: 17]. Julia Kristeva enxerga neste escrito traos de modernidade, ao se posicionar Madame de Stal de forma crtica, ao mesmo tempo contra a selvajaria revolucionria, o terror imposto em nome da maioria e o massacre dos dbeis, especialmente as mulheres. A respeito, Kristeva frisa: "Quando Madame de Stal implora clemncia para Maria Antonieta, tenho certeza de que em seu pleito se misturam o orgulho ferido da humanista que abomina o massacre, a clera da aristocrata diante da selvajaria da opinio comum e a revolta de uma feminista bem antecipada, insurgida contra a opresso s mulheres. Tudo isso largamente suficiente para sustentar, se no para provocar, uma certa inclinao para a infelicidade. Germaine de Stal advoga a inocncia da Rainha, sua feminilidade, sua estranheza, sua maternidade. Sustenta que, a partir de um grau elevado, a queda mais dolorosa. Definitivamente, considera injuriadas por esse sacrifcio todas as mulheres, em sua fraqueza social e em sua fragilidade de mes. (...) Mesmo diante do suplcio, o pensamento da glria no abandona Madame de Stal. Mas so a fraqueza e a dor femininas, ferozmente varridas pela tirania revolucionria, que lhe parecem superiores" [Kristeva, 2002: 178-179].

    Em 1795, Madame de Stal escreveu as suas Rflexions sur la paix adresses Pitt e aux Franais, em que advogava por uma aproximao entre a Frana e a Inglaterra e que obteve, em pleno Parlamento, os elogios de Fox. A propsito desse escrito, frisou Sainte Beuve: "Uma mescla de comiserao profunda e de justia calma, o chamamento a todas as opinies no fanticas ao esquecimento, conciliao, o temor pelas reaes iminentes e extremistas que renascem umas das outras, esses sentimentos, to generosos quanto oportunos, marcam, ao mesmo tempo, a elevao da alma e das perspectivas. H algo de inspirao antiga nessa jovem mulher que se arrisca a falar ao povo, de p sobre os escombros fumegantes" [apud Larousse, 1865: 1046]. No final desse mesmo ano Madame de Stal publicou o seu Essai sur les factions e, no incio de 1796, a obra intitulada De l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations.

    A instalao no castelo de Coppet marca uma nova etapa na vida intelectual de Madame de Stal. Insatisfeita com o seu casamento, ela decide superar com a vida intelectual as frustraes afetivas. Em 1800 escreve a sua mais importante obra, que j foi mencionada: De la Littrature. A idia central da obra consiste na sua f inabalvel no progresso do esprito humano. A propsito desse leitmotiv, escreve a autora: "Ao percorrer as revolues do mundo e a sucesso dos sculos, salta vista uma primeira idia que sempre chamou a minha ateno; a perfectibilidade da espcie humana. No penso que essa grande obra da natureza moral tenha sido jamais abandonada; nos perodos luminosos como nos sculos de trevas, a marcha gradual do esprito humano no tem sido interrompida" [Stal, 1998: 40-41].

    A perfectibilidade humana era entendida pela nossa autora num ousado sentido liberal: como aperfeioamento dos seres humanos, no exclusivo de uma classe, mas alargado a todas as camadas sociais; esse aperfeioamento deveria, para ser autntico, implicar o exerccio da liberdade individual e a sua consolidao num regime que a respeitasse e que ela denominava de repblica. A concepo de Madame de Stal lembra a

  • 19

    esboada por Immanuel Kant na sua Paz perptua (publicada em 1795). A escritora francesa considerava que somente se conseguiria implantar uma repblica que respeitasse a liberdade, se as luzes fossem espalhadas pela sociedade e no ficassem restritas a um pequeno nmero de philosophes. Esse processo de democratizao corresponderia aos escritores, que deveriam estar comprometidos com o conhecimento das razes culturais do prprio pas, a fim de que as propostas liberalizantes ancorassem num cho cultural firme. Todo esse processo seria denominado por Madame de Stal de civilizao. A Revoluo Francesa foi uma tentativa de encontrar o caminho para a perfectibilidade. Mas viu-se frustrada a partir do momento em que os revolucionrios inseriram-se num contexto cientificista, determinista e sensualista, que os exonerava de preocupaes morais. Corresponderia aos escritores, transformados em agentes de renovao social, retomar o rumo das reformas frustradas. Ora, encontramos aqui os germes doutrinrios fundamentais, que inspiraro o liberalismo de Constant de Rebecke, de Guizot e de Tocqueville. Sintetizando, o que a autora pretendia era, em primeiro lugar, defender a liberdade ameaada pelo bonapartismo e, em segundo plano, renovar o esprito da crtica a partir do seguinte princpio: "A Literatura a expresso da sociedade" [cf. Lotterie, 2000: 9-22; Mlonio - Noiray, 2000: 3-7].

    A mencionada obra de Madame de Stal foi injustamente criticada por algumas revistas como Dcade Philosophique, Mercure e Dbats. Somente Chateaubriand fez do livro uma avaliao relativamente equilibrada, nos seguintes termos que destacavam o seu valor filosfico, bem como a inspirao tradicionalista do autor de Le Gnie du Christianisme: "Madame de Stal confere filosofia o papel que eu atribuo religio. (...) A minha loucura consiste em tentar enxergar Jesus Cristo em todas partes, enquanto Madame de Stal quer ver em tudo a perfectibilidade. (...) Desagrada-me que Madame de Stal no tenha desenvolvido o sistema das paixes do ngulo religioso. A perfectibilidade no , a meu ver, o instrumento adequado para medir as fraquezas humanas (...). Algumas vezes Madame de Stal parece ser crist; logo depois, a filosofia prevalece. Em alguns momentos, inspirada pela sensibilidade natural, ela pe a nu a sua alma. Mas, logo a seguir, a argumentao se levanta e vem contrariar os impulsos do corao (...). Este livro , pois, uma mistura singular de verdades e erros. (...) Eis o que ousaria lhe dizer, se tivesse a honra de conhec-la: Vs sois, sem dvida, uma mulher superior. (...) A vossa expresso possui, em geral, fora, elevao (...). Mas, em que pese todas essas qualidades, a vossa obra est bem longe de ser o que poderia ter sido. O estilo montono, sem movimento e muito misturado com expresses metafsicas. O sofisma das idias perdura, a erudio no satisfaz e o corao muito sacrificado ao pensamento. O vosso talento somente se desenvolveu pela metade, pois a filosofia o sufoca (...)" [cit. por Larousse, 1865: 1046]. A partir da crtica da Chateaubriand obra de Madame de Stal, nasceu uma duradoura amizade entre os dois grandes escritores que passaram a representar a renovao da literatura francesa no incio do sculo XIX.

    O romance Delphine foi publicado por Madame de Stal em 1802. A obra teve um grande sucesso devido, em parte, s discusses religiosas que acabavam de ser levantadas por Chateaubriand em Le Gnie du Christianisme. Mas a repercusso favorvel deveu-se tambm ao fato de que no romance eram claramente identificveis importantes figuras do momento como Benjamin Constant de Rebecke, Talleyrand e a prpria Madame de Stal. Nem por isso deixou de suscitar crticas injustas. Um artigo de autor annimo, publicado no

  • 20

    Mercure de France, afirmava o seguinte: "Delphine fala do amor como uma bacante, de Deus como um quaker, da morte como um granadeiro e da moral como um sofista".

    A partir de 1797 Madame de Stal regressou a Paris para morar no seu Htel na rue de Grenelle, perto da rue du Bac. O seu marido a acompanhou, tendo retomado as funes de embaixador da Sucia perante a Repblica Francesa. O baro de Stal-Holstein morreu cinco anos depois, em 1802. A nossa autora passou ento a residir em Saint-Brice, nos arredores de Paris, onde organizou, em companhia de Madame Rcamier, o seu salo e passou a exercer sensvel influncia nos crculos polticos, tendo conseguido, por exemplo, que fosse entregue a Talleyrand a pasta dos negcios estrangeiros. O seu salo converteu-se, ento, no ponto de encontro de todos os descontentes com o autoritarismo do primeiro Cnsul. Esse fato, aliado s freqentes viagens que ela fazia ao castelo de Coppet para encontrar o seu pai, bem como a publicao, por ele, da obra Dernires vues de politique et de finances de Monsieur Necker [Necker, 1802: 2 vol.] (em que a nossa autora indubitavelmente tinha colaborado), terminaram desagradando profundamente Bonaparte. Alm do mais, como frisa Larousse, "na cena poltica do novo regime no havia lugar para as mulheres". O conflito com Bonaparte sobreveio rapidamente e afastou Madame de Stal do palco poltico nos quinze anos seguintes. O exlio a que foi condenada a escritora foi a concluso lgica desses eventos [cf. Jaume, 2000].

    Desterrada, a nossa autora deixou a sua residncia de Saint-Brice no incio de 1803 e partiu para a Alemanha, permanecendo dois anos em Weimar. Entrou em contato com Goethe e Schiller. Reveladoras da forma em que Madame de Stal personificava com brilhantismo o Zeitgeist francs so as seguintes palavras de Schiller, em carta dirigida a Goethe: "Ela representa o esprito francs sob uma luz verdadeira e muito interessante. Em tudo que chamamos de filosofia e, consequentemente, em todas as questes elevadas e decisivas, encontramo-nos em desacordo com ela e todas as conversas no podem mudar nada. Mas a sua natureza e o seu sentimento valem mais do que a sua metafsica. A sua bela inteligncia toca o poder do gnio. Ela no nos aceita nada de obscuro, de inatingvel e tudo quanto no consegue esclarecer sua luz, simplesmente no existe para ela. Destarte, ela tem grande medo da filosofia idealista que, a seu ver, conduz ao misticismo e superstio, e esta a atmosfera que a aniquila. No h para ela o sentido do que chamamos de poesia. De uma obra deste gnero s assimila a paixo, a eloquncia e o sentido geral. Mas se o bom s vezes lhe escapa, jamais admitir o mal" [apud Larousse, 1865: 1047].

    De Weimar Madame de Stal dirigiu-se a Berlim, onde teve uma calorosa acolhida na corte da Prssia. Em 1805 fez uma curta viagem Itlia, de onde teve de regressar rapidamente a Coppet, com motivo da morte do seu pai. Fixou ento residncia no castelo e organizou ali essa espcie de corte da cultura que a celebrizou durante o Imprio. A nossa autora tinha aproveitado as suas viagens Alemanha e Itlia para esboar duas grandes obras: De l'Allemagne e Corinne. Este ltimo romance foi publicado em 1807 e o seu sucesso perante a crtica foi ainda maior que o obtido com a publicao de Delphine. Corinne representava a glorificao da Itlia e, ao mesmo tempo, a personificao ideal da mulher moderna. Contava-se que Napoleo Bonaparte ficou profundamente irritado com o cmulo de elogios de que fora objeto Madame de Stal. Tratava-se, sem dvida, da obra da sua maior inimiga, daquela que teve a audcia de desafi-lo ao longo dos ltimos anos. Villemain dizia que o Imperador da Frana tinha ficado to abalado com os elogios

  • 21

    levantados obra de Madame de Stal, que decidiu, ele mesmo, escrever uma crtica no Moniteur.

    Uma breve anotao relacionada s personagens desse romance: a nossa autora, personificada em Corinne, aparecia no relato em Roma com o nome de Telisilla Argoica e ciceroneada pelo jovem Oswald, ao longo de uma caminhada noturna visitando os seculares monumentos, que eram o marmreo pedestal da paixo que ela passou a sentir pelo seu jovem guia. Ora, na vida real, Oswald era o nobre portugus dom Pedro de Souza Holstein (futuro conde de Palmella), nascido em Turim em 1781 (quinze anos mais jovem do que nossa autora). Dom Pedro, ento com 24 anos, era um belo jovem, "com os seus olhos azuis e os seus cabelos pretos"; era "um cavalheiro elegante" dono de "uma forte e bela voz com que encantava as damas e um ar grave tingido de saudade: a melancolia pre-romntica adicionava-se aos seus atrativos" [Andlau, 1979: 16]. Apaixonada pelo jovem portugus, Madame de Stal esperava encontrar nele um porto seguro e fiel para ser correspondida no seu amor. Grandes desgarramentos interiores ela tinha sofrido recentemente de Benjamin Constant e de outros amantes ilustres como Narbonne, Ribbing, Franois de Pange, Monti. "O lugar onde eles se encontram contribui para a exaltao dos sentimentos: eles caminham ao luar em Roma e os cursos arqueolgicos para o romance projetado feitos em companhia de Humboldt, de Alborghetti e de outros, so alegres passeios. A vida eterna converter-se- no pano de fundo ideal para um romance de amor. O heri apareceu: Eu vos amei e tudo se iluminou para mim", frisa Beatrix d'Andlau [1979: 18], citando a apaixonada carta que Madame de Stal escreveu em maio de 1805 ao seu jovem amante. Paixo no correspondida, pelo menos na intensidade com que a grande escritora amou o jovem dom Pedro, de quem se poderia dizer as palavras que Mathieu de Montmorency, fiel amigo da nossa autora, escreveu de Ribbing: "Eis um homem que deve ser colocado na categoria dos que no sabem amar" [cit. por Andlau, 1979: 18]. O certo que dessa intensa relao ficou um belo testemunho: a correspondncia entre Madame de Stal e dom Pedro de Souza [Stal-Souza, 1979].

    Aps o sucesso obtido com a publicao de Corinne e as reaes adversas do governo francs, Madame de Stal no se sentiu plenamente segura na sua residncia de Coppet. Em 1808 viajou para Alemanha, a fim de terminar o livro que tinha esboado acerca da cultura germnica. Em Viena a nossa autora teve oportunidade de conhecer o general holands Dirk van Hogendorp, ajudante-de-ordens de Napoleo, que se referiu a ela de forma depreciativa nas suas Memrias, escrevendo o seguinte: "Madame de Stal, querendo ser sempre sbia e profunda, alambicava suas expresses e enrolava suas frases at que parecia ter esquecido o que queria dizer. Era a celebridade o que queria, e a qualquer preo, por todos os meios. E Paris, o mais belo teatro do mundo para os talentos, o centro da glria, esse era o lugar onde ela queria brilhar" [apud Mlon 1996: 83]. Valha apenas uma anotao marginal em relao a Hogendorp: aps a derrota definitiva de Napoleo, o general holands radicou-se no Brasil, onde passou a viver como eremita na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde morreu em outubro de 1822 [cf. Mlon, 1996: 191].

    De Viena Madame de Stal escreveu ao antigo amigo Talleyrand, tratando de que ele intercedesse junto ao Imperador, para que lhe fosse paga a vultuosa soma que tinha Necker emprestado ao Rei da Frana, Lus XVI. A carta estava cheia de elegante ironia em

  • 22

    relao ao ingrato amigo a quem a nossa autora tinha favorecido na sua carreira poltica e que olimpicamente passou a ignor-la depois de desencadeada a perseguio de Bonaparte. Na missiva, datada em abril de 1808, Madame de Stal frisava: "Tenho pedido ao meu filho para ir ao vosso encontro e vos solicitar franca e simplesmente que vos interesseis na liquidao dos 2 milhes (de libras) que constituem mais da metade da nossa fortuna e da herana dos meus filhos. uma dor cruel para mim pensar que eu no cuido da minha famlia, que eles no recebero o pagamento se amanh eu no mais existir; pois esta dvida tem um carter to sagrado que as prevenes do Imperador contra mim so as nicas que podem impedir que ela seja paga (...). A vs que tudo adivinhais, tenho-vos dito o suficiente sobre este assunto. Vs tinhais-me escrito h treze anos, da Amrica: Se eu permanecer mais um ano aqui, morro. Eu poderia dizer outro tanto em relao minha permanncia no estrangeiro: eu sucumbo. Adeus (...). No sei terminar seno desse jeito ao falar com vs. Necker de Stal" [apud Larousse, 1865: 1047].

    Talleyrand (assaz ingrato, como foi frisado, para com a sua antiga protetora que o tinha guindado ao Ministrio) fez ouvidos moucos ao pedido da nossa autora [cf. Cooper, 1945: 65-69]. Madame de Stal somente obteria o pagamento da dvida no perodo da Restaurao. Pde, contudo, regressar sem temor antiga residncia de Necker. A respeito das atividades que se desenvolviam ali sob a inspirao e o comando da nossa autora, escreveu Saint-Beuve o seguinte testemunho: "A vida de Coppet era uma vida de castelo. Reuniam-se ali, com freqncia, at trinta pessoas, entre estrangeiros convidados e amigos. Os mais habituais eram Benjamin Constant, Monsieur Auguste Wilhelm de Schlegel, Monsieur de Saubran, Monsieur de Sismondi, Monsieur de Bonstetten, os bares de Voigt, de Balk, etc. Cada ano reuniam-se ali, uma ou mais vezes, Monsieur Matthieu de Montmorency, Monsieur Prosper de Barante, o prncipe Augusto da Prssia, a beleza clebre chamada por Madame de Genlis com o nome de Athenais (Madame Rcamier), um nmero significativo de intelectuais da Alemanha ou de Genebra. As conversas filosficas e literrias, sempre picantes ou elevadas, comeavam por volta das onze horas, ao ensejo do almoo e eram retomadas no perodo entre o jantar e a ceia, que tinha lugar s onze da noite, ou estendiam-se at mais tarde, por volta da meia-noite. Nessas sesses Benjamin Constant (....) apresentava-se a ns, jovens, (conforme Madame de Stal o proclamava sem prevenes) como o primeiro esprito do mundo. Ele era certamente o primeiro dos homens distintos. Pelo menos o esprito dele e o de Madame de Stal acoplavam-se sempre e estavam conscientes disso. Nada, segundo as testemunhas, era to fervilhante e superior quanto a conversao que se desenvolvia nesse crculo seleto. Os dois tinham nas mos, por assim dizer, a raqueta mgica do discurso e se passavam durante horas, sem jamais falhar, a bola de mil pensamentos entrecruzados" [cit. por Larousse, 1865: 1047].

    Alm das conversas intelectuais, em Coppet tinham lugar divertimentos cultos. Eram representadas tragdias de Voltaire, muito apreciadas por Madame de Stal, ou peas especialmente compostas por ela ou pelos seus amigos. Esses escritos eram impressos em Paris, a fim de que todos pudessem seguir mais fielmente o assunto. Havia grande cuidado com o texto, chegando ao extremo de serem impressas novas cpias, entre uma sesso e outra, caso houvesse lugar a correes. A poesia tambm encontrou em Coppet uma atenta acolhida. Zacharias Werner recitou ali vrios dos seus dramas. O poeta dinamarqus Oehlenschger teve tambm a oportunidade de declamar ali os seus poemas.

  • 23

    Em 1810 Madame de Stal arriscou-se a ir incgnita a Paris, a fim de tratar da publicao do seu livro De L'Allemagne [cf. Stal 1968], ao qual tinha dedicado os seus esforos intelectuais desde 1803. A nossa autora tinha sido sensibilizada em face da cultura alem por um velho amigo suo, Jacques-Henri Meister, que freqentou a casa de seus pais em Paris [cf. Grubenmann, 1954: 59-68]. O que significou esta incurso na cultura alem para a nossa autora? Simone Balay responde: "Ao se iniciar na literatura alem ela descobre ali, como entre os Ingleses, o nexo com a natureza e o povo, as tradies nacionais, o poder do sentimento. Tudo quanto ela amava em Rousseau, encontrar de novo na Alemanha. Assim, ela permanecia fiel ao esprito e tradio do sculo XVIII, ameaado na Frana de todos os lados, bem como por outra parte viso moral e religiosa que ela tinha herdado de seu pai e ao ideal da liberdade ao qual muitos renunciavam. Fazendo isso, ela permanecia a salvo das posies extremadas da filosofia materialista francesa, aspecto do sculo XVIII que ela renegava, e ficava a salvo tambm da reao catlica. Mas a sua fidelidade s Luzes tambm a preservaria das posies mais avanadas dos romnticos alemes" [Balay, 1968: 22-23], notadamente no que tange aos aspectos de irracionalismo que a nossa autora criticar neles, em Schlegel de maneira particular.

    De L'Allemagne representou, no contexto do pensamento francs, um ajuste de contas do espiritualismo moderado em face do sensualismo de Condillac e dos Idelogos. Em que pese o fato da influncia recebida inicialmente deles por Madame de Stal, no entanto a nossa autora, na altura da elaborao da sua obra sobre a cultura alem, j tinha amadurecido intelectualmente o suficiente como para fazer uma crtica fundamentada ao excessivo materialismo da tica utilitarista que animava aos Idelogos. A moral, no sentir destes, reduzir-se-ia simplesmente a um clculo de interesses. Ora, pensava Madame de Stal, ela no poderia ser reduzida apenas a esse frio e materialista clculo. Era necessrio lhe dar alicerces mais fortes e acordes com a herana crist. Encontrou no pensamento de Kant a fonte de que poderia se nutrir na sua crtica ao utilitarismo. A nossa autora ficou verdadeiramente impressionada com a leitura da obra do autor da Crtica da Razo Pura. Eis a apresentao que dele fazia: "Kant viveu at uma idade muito avanada, no tendo jamais sado de Knigsberg. Foi l, no meio do gelo do Norte onde passou a sua vida inteira a meditar sobre as leis da inteligncia humana. Uma paixo infatigvel pelo estudo fazia-o adquirir conhecimentos sem nmero. As cincias, as lnguas, a literatura, tudo lhe era familiar. E sem procurar a glria, da qual gozou muito tardiamente, no conhecendo seno na sua velhice o burburinho do renome, contentou-se com o prazer silencioso da reflexo. Solitrio, contemplava a sua alma com recolhimento. O exame do pensamento dava-lhe novas foras para defender a virtude, e embora jamais se misturasse com as paixes ardentes dos homens, soube forjar armas para aqueles que seriam chamados a combat-las" [Stal, 1968: II, 127].

    A partir da meditao kantiana, considerava Madame de Stal, seria possvel fundamentar uma moral na interioridade do sujeito, a fim de substituir os princpios utilitaristas alicerados na exterioridade dos interesses. Eis a forma em que Kant veio em seu socorro para essa empreitada: "A filosofia materialista entregava o entendimento humano ao imprio dos objetos exteriores, a moral ao interesse pessoal e reduzia o belo ao agradvel. Kant quis restabelecer as verdades primitivas e a atividade espontnea na alma, a conscincia na moral e o ideal nas artes" [Stal, 1968: II, 128]. Ora, considerava a nossa autora, o pensador alemo fez essas trs coisas, respectivamente, na Crtica da Razo Pura,

  • 24

    na Crtica da Razo Prtica (e "nos diferentes escritos que ele comps sobre a moral") e na Crtica do Juzo. Se detendo no que tange moral kantiana, Madame de Stal frisava que " o sentimento que nos d a certeza da nossa liberdade e essa liberdade o fundamento da doutrina do dever. Pois, se o homem livre, ele deve se dar a si mesmo os motivos todo-poderosos que combatem a ao dos objetos exteriores e libertam a vontade do egosmo. O dever a prova e a garantia da independncia mstica do homem" [Stal, 1968: II, 135].

    Mas voltemos s aventuras da publicao de De l'Allemagne. A polcia do Imperador ficou sabendo e a edio de dez mil exemplares foi apreendida e destruda. A nossa autora somente conseguiria ver o seu livro editado e circulando trs anos depois, em Londres. Esta obra constituiu, depois de De la Littrature, a mais importante criao literria de Madame de Stal, pelo fato de ter oferecido aos leitores franceses um quadro completo da filosofia e da literatura de alm o Reno, que at ento eram absolutamente desconhecidas do grande pblico.

    A propsito, escreveu o crtico Demongeot: "Na poca em que apareceu, a literatura alem era ainda para ns um mundo desconhecido, mais ainda, um universo objeto de desprezo e de piadas. Voltaire atribua aos alemes mais consonantes do que pensamentos. Madame de Stal tomou uma gloriosa iniciativa. Ela foi a primeira que ousou penetrar nessa floresta tenebrosa e no somente entrou antes do que os outros, mais ainda assinalou o caminho a seguir, com muita mais fidelidade verdade do que o fizeram os que vieram depois.(...) Em De L'Allemagne, contudo, eleva-se por cima dela mesma, superando os preconceitos franceses e renunciando ao ponto de vista sensualista da filosofia do sculo XVIII. Esse pode ser o maior servio que este esprito generoso prestou Frana e filosofia. A esfera em que viviam Goethe, Schiller, Kant e Hegel abriu-se aos nossos olhos. Se a autora no compreendeu sempre esses grandes homens, espalhou pelo menos o desejo de conhec-los. Os seus erros so menos numerosos do que se pode dizer. O instinto do verdadeiro e do belo suprem, nela, a imperfeio necessria dos conhecimentos" [apud Larousse, 1865: 1047].

    Aps a destruio do seu livro, Madame de Stal foi confinada em Coppet por ordem de Napoleo, tendo os seus amigos sido proibidos de ir visit-la. Aqueles que ousaram desobedecer essa proibio, como foi o caso de Madame Recamier e de Matthieu de Montmorency, foram exilados. Em 1812, contudo, a nossa autora conseguiu driblar a polcia imperial e percorreu vrios pases, indo at a Polnia e a Rssia, reacendendo em todas partes a animosidade contra Napoleo. De Londres regressou Frana, aps a abdicao de Napoleo em 6 de abril de 1814 [cf. Blaeschke, 1998: IX-XIX].

    Madame de Stal tinha conhecido na Inglaterra Lus XVIII e ela enxergava nele o homem capaz de dotar a Frana da monarquia constitucional inglesa, que tinha sido o seu sonho no incio da Revoluo de 1789. Mas ela conhecia, tambm, esses emigrados que voltavam com ele, cheios de arrogncia e auto-suficincia. "Eles corrompero os Bourbons, frisava ela". O que, de fato, no tardou em acontecer. Durante os Cem Dias, Madame de Stal retirou-se Sua. Napoleo fez-lhe saber que poderia voltar a Paris e lhe acenou com o pagamento da dvida que o Estado Francs tinha contrado com o seu pai. Ela respondeu:

  • 25

    "Napoleo passou por cima da Constituio e de mim ao longo de 12 anos e no ser agora que ele vai nos amar, a mim e a ela, com maior intensidade".

    A nossa autora tinha casado, em 1810, em segundas npcias, com John Rocca, jovem oficial suo a servio da Frana. Em 1816 ele caiu doente em Pisa e ela viu-se obrigada a partir para essa cidade a fim de cuidar do marido. De regresso a Paris, Madame de Stal veio falecer nesta cidade, em 14 de Julho de 1817. Saint-Beuve d o seguinte testemunho acerca dos ltimos anos de Madame de Stal: "A amargura que lhe causou a destruio inesperada do seu livro (De L'Allemagne) foi grande. Seis anos de estudos e de iluses aniquilados, o recrudescimento da perseguio no momento em que ela tinha necessidade de uma trgua, alm de outras circunstncias contraditrias e duras deram ensejo, nessa poca, a uma crise violenta, uma prova decisiva que a lanou sem volta no que tenho denominado de anos sombrios. At ento, mesmo as tempestades tinham deixado lugar para ela desfrutar de instantes luminosos, de pequenas alegrias e, segundo a sua expresso to graciosa, respirar um ar escocs na sua vida. Mas, a partir de ento, tudo virou mais spero. A juventude, em primeiro lugar, essa grande e fcil consoladora, foi-se embora. Madame de Stal tinha pavor diante do avano da idade e da idia de chegar velhice. Um dia em que ela no dissimulava esse sentimento perante Madame Suard, esta lhe respondeu: Vamos, ento vs sabereis ocupar vosso lugar, sereis uma velha muito simptica. Mas ela tremia diante desse pensamento. A palavra juventude tinha um verdadeiro encantamento musical aos seus ouvidos (...). Estas simples palavras: ns ramos jovens ento, enchiam os seus olhos de lgrimas. (...). O ar escocs, o ar brilhante do comeo rapidamente converteu-se em hino grave, santificante, austero " [apud Larousse, 1865: 1048]. Foram publicados postumamente os seguintes livros da nossa autora: Considrations sur la Rvolution Franaise (1818) [cf. Stal, 2000], Essais dramatiques (1821), Dix annes d'exil (1821) [cf. Stal, 1996a] e Oeuvres indites (1836).

    Chateaubriand, em Mmoires d'Outre-Tombe, registrou com traos magistrais os ltimos dias de Madame de Stal, salientando a grandeza da sua personalidade: "Foi numa dolorosa poca para a ilustrao da Frana quando encontrei de novo Madame Rcamier, no tempo em que ocorreu a morte de Madame de Stal. Tendo regressado a Paris depois dos Cem Dias, a autora de Delphine ficou doente; eu a tinha visto de novo na sua casa e na residncia da duquesa de Duras. Tendo piorado aos poucos o seu estado de sade, foi obrigada a ficar de cama. Numa manh eu tinha ido sua casa na rue Royale; os postigos das janelas estavam semi-fechados; o leito, prximo da parede do fundo do quarto, no deixava seno uma estreita passagem esquerda. As cortinas, recolhidas nos trilhos, formavam duas colunas aos lados do travesseiro. Madame de Stal, sentada, estava apoiada em almofadas. Aproximei-me e quando o meu olho foi-se aos poucos acostumando obscuridade, distingui a doente. Uma febre ardente acendia as suas faces. O seu belho olhar encontrou-me nas trevas e ela me disse: Bonjour, my dear Francis. Eu sofro, mas isso no me impede de amar voc. Ela estendeu a sua mo, que segurei e beijei. Levantando a cabea, percebi no borde oposto da cama, na passagem, alguma coisa que se levantava branca e magra: era Monsieur de Rocca, o rosto plido, as faces encovadas, os olhos turvos, a tez indefinvel. Ele morria. Nunca o tinha visto e jamais tornei a v-lo. Ele no abriu a boca. Inclinou-se ao passar na minha frente; no se escutava o rudo dos seus passos. Ele se afastou maneira de uma sombra. Parado um momento na porta, (...) voltou-se em direo ao leito fazendo meno de no se afastar de Madame de Stal. Esses dois espectros que se

  • 26

    entreolhavam em silncio, um em p e plido, outro sentado e colorido com um sangue prestes a descer de novo e a se congelar no corao, faziam arrepiar. Poucos dias depois, Madame de Stal mudou de residncia. Ela convidou-me a jantar na sua casa, na rue Neuve-des-Mathurins. Eu compareci. Ela no estava no salo e no pde, efetivamente, comparecer ao jantar. Mas ela ignorava que a hora fatal estava to prxima.(...). Madame de Stal morreu. O ltimo bilhete que endereou a Madame de Duras estava escrito com grandes letras irregulares como as de uma criana. Uma palavra afetuosa encontrava-se ali para Francis. O talento que expira leva consigo mais do que o indivduo que morre. uma desolao geral que golpeia a sociedade. Cada um, ao mesmo tempo, sofre a mesma perda. Com Madame de Stal acabou uma parte considervel do tempo que tenho vivido. Tamanhas so as fendas que produz num sculo uma inteligncia superior que desaba. Elas no mais se fecham. A sua morte produziu em mim uma impresso particular, qual se misturou uma espcie de estonteamento misterioso (...)" [Chateaubriand, 1951: II, 601-602].

    Concluo este breve esboo bio-bibliogrfico citando a sntese feita por Florence Lotterie acerca da obra da grande escritora: "Herdeira das Luzes, Madame de Stal tambm filha da Revoluo (...). A literatura o instrumento da criao de um esprito nacional e desempenha a funo de elo de unio entre os imperativos de difuso das luzes e da realizao de uma sociedade livre, ou seja, republicana. O reconhecimento da utilidade patritica dos escritores assinala os progressos da civilizao, mas na regulao necessria dos modos de transmisso do saber e do apetite democrtico. No se trata mais, efetivamente, de progressos feitos no importa por quem ou como. No se poderia concluir sem lembrar que o magistrio literrio o de uma elite e a repblica staliana consiste numa aristocracia do mrito. Os ideais ilustrados do sculo XVIII acham-se, pois, ao mesmo tempo alargados numa perspectiva progressista, que recusa por sua vez o espectro da decadncia e as abstraes normativas da histria conjectural, em benefcio do fato civilizador. Acham-se tambm superados esses ideais pelo carter programtico de uma perfectibilidade convertida em princpio fundador da vontade de agir, em prol da regenerao poltica. Acham-se temperados pela dvida melanclica e confirmados na sua prudncia elitista" [Lotterie, 2000: 22].

    II - Concepo liberal da Poltica, do Estado e da Economia, segundo Necker

    Madame de Stal recebeu, sem dvida, uma definitiva influncia liberal de seu pai. Essa influncia revestiu-se, antes de mais nada, de um exemplo de patriotismo. Para Jacques Necker, o princpio fundamental que pautava a sua ao poltica consistia em merecer a confiana da Nao. Diante desse imperativo, tudo deveria ser posto em segundo plano: riqueza, honras, ambies. A propsito deste ponto, escrevia Madame de Stal em Considrations sur la Rvolution Franaise: "Depois dos seus deveres religiosos, a opinio pblica era o que mais o preocupava.. Ele sacrificava a fortuna, as honras, tudo o que os ambiciosos buscam, estima da nao. E esta voz do povo (...) tinha para ele alguma coisa de divino. A menor mancha sobre a sua reputao constitua para ele o maior sofrimento que poderia ter na vida. A finalidade mundana de suas aes, o vento de terra que o fazia navegar, era o amor reputao. Um ministro do rei da Frana no tinha, alis, como os ministros ingleses, uma fora independente da corte. Ele no podia manifestar em

  • 27

    pblico, na cmara dos comuns, nem o seu carter, nem a sua conduta. E inexistindo liberdade de imprensa, os panfletos clandestinos tornavam-se mais perigosos ainda" [Stal, 2000: 104].

    Mas essa influncia liberal de Necker sobre Madame de Stal deitava razes numa admirao exaltada, numa verdadeira paixo da filha pelo pai, com as evidentes contradies que isso acarreta. Testemunho direto dessa situao deixou-nos Madame de Stal, em palavras (dignas de uma sesso psicanaltica) escritas por ela em 1785, no seu Journal de Jeunesse: "(...) Algumas vezes lhe encontro defeitos de carter que amarguram a doura interior da vida. que ele gostaria que eu o amasse como um amante e ele me fala, no entanto, como um pai. Eu gostaria que ele me amasse como um amante e que eu agisse no entanto como uma filha. O que me torna infeliz essa luta interior entre a minha paixo por ele e as tendncias da minha idade, que ele gostaria de ver sacrificadas totalmente. esse mesmo combate cuja durao o torna um espectador impaciente. Ns no nos amamos sempre at o excesso e no entanto a intensidade do nosso amor to prxima disso, que no posso suportar tudo aquilo que nos lembra que ainda no chegamos a esse limite. De todos os homens da terra ele que eu teria desejado como amante. necessrio que ele seja um notvel para que, sem amor, eu o encontre digno de amor" [apud Balay, 1979: 18].

    Aps a morte de Necker, a figura contraditria do amante/pai converteu-se em mito sobre o qual ela passou a alicerar todas as suas convices, buscando nesse rochedo a permanncia que contrastava com a futilidade dos amores e a precariedade das circunstncias polticas. Eis um texto de 1816, j no final de sua vida, que resume muito bem essa luta pelo amor imorredouro: "Tudo quanto me falou Monsieur Necker firme em mim como a rocha. Tudo quanto conquistei por mim mesma pode desaparecer. A identidade do meu ser ancora na fidelidade que guardo sua memria. Amei ele como nunca jamais amei ningum. Apreciei ele como nunca mais apreciei ningum. A vaga da vida tudo levou consigo, exceto essa grande sombra que est l, no cume da montanha e que me indica a vida que vir" [apud Balay, 1979: 18].

    No estranha, assim, a profunda influncia que as idias liberais do pai exerceram sobre o pensamento de Germaine. A figura dele simplesmente fez desaparecer a da me, com quem a nossa autora nunca teve uma relao tranqila. Simone Balay (1925-2002), a mais importante estudiosa da obra de Madame de Stal, sintetizou muito bem o simbolismo que exerceu a figura de Necker na imaginao da filha, destacando nessa representao a personalidade do estadista: "O entusiasmo de Germaine Necker no pode ser satisfeito por uma me enferma, triste e ciumenta, mas por esse pai cuja popularidade crescente alarga at as dimenses da Frana a admirao que a sua filha lhe dedica. Ele simboliza tudo quanto ela conhece de verdadeiramente grande. (...) Ela vive sob a sombra gloriosa desse pai uma espcie de amor perfeito, pleno, sem esforo. Ela cresce sob a admirao de todos, mas ela somente admira um s que ser para sempre aos seus olhos o homem de Estado capaz de meditar em silncio sobre as opinies religiosas, como sobre as finanas da Frana, mas tambm acerca do ideal do homem comum. Ela sentir sempre necessidade dessa exaltao: Eu tinha nascido sob os raios da glria do meu pai e descobri que fazia frio na sombra" [Balay, 1979: 19].

  • 28

    fundamental, porisso, para entender as idias de Madame de Stal, compreender o pensamento poltico e econmico de Jacques Necker. Em primeiro lugar, no que tange ao que poderamos definir como a sua teoria do conhecimento, parece que ele tivesse presente o pensamento de Aristteles de que, em matria de poltica, no valem os juzos apodcticos, mas apenas os dialticos, que expressam uma opinio alicerada na experincia. O pai de Germaine acreditava no princpio, que ser caraterstico dos doutrinrios, de que em poltica no vale o pensamento especulativo sozinho, sem referi-lo ao processo histrico apreendido vivencialmente. Esse processo, mais as tradies que dele emergem, precisam ser levados em considerao por quem quiser compreender as realidades ligadas ao exerccio do poder, ou por quem pretender modificar as instituies polticas de um pas. Discutindo a convenincia de na Frana se estabelecer a representao poltica, Necker escrevia, por exemplo, na obra intitulada Dernires vues de politique et de finance: "Essas no so reflexes vs, embora um pouco subtis pela sua natureza; pois o interesse ou a indiferena pelas assemblias polticas determinado por circunstncias que escapam demonstrao. necessrio julg-las, como todas as coisas morais, por meio de simples apreenses. E se os homens atribuem um grande valor experincia, ela que d consistncia s idias complexas ou fugidias, ela que ensina as verdades que o raciocnio no poderia apreender anteriormente com suficiente fora" [Necker, 1802: 14-15].

    A poltica exige uma reflexo projetada sobre o processo histrico. De nada adiantaria discutir, em teoria, se para a Frana seria melhor a Repblica ou a Monarquia. Necker considerava que, no incio do sculo XIX, seria necessrio aos estudiosos levar em considerao as circunstncias concretas do pas e o homem com que os franceses contavam frente do governo: Bonaparte. Somente partindo desse ponto seria possvel achar um caminho para encontrar o rumo da liberdade e da democracia. O resto seria elucubrao vazia. A respeito, escrevia: "Creio que, para comparar de boa f a Monarquia com a Repblica, necessrio estudar previamente o grau de perfeio que se poderia dar, na Frana, a esses dos gneros de governo. E essa obrigao tanto mais essencial, tanto mais rigorosa, quanto que no basta hoje um julgamento especulativo. necessrio examinar o que pode ter sucesso em meio a tantas opinies encontradas, tantos hbitos j tornados fortes e tantas paixes ainda prestes a renascerem. necessrio estudar o que se pode fazer com o homem necessrio e ns damos esse nome a Bonaparte" [Necker, 1802: VIII-IX]. No se trataria, evidentemente, de sagrar os anseios imperiais do Primeiro Cnsul. Mas de conhecer as suas pretenses, bem como os hbitos decantados na mente das pessoas, como ponto de partida para a meditao sobre os ideais polticos a serem implementados.

    Do ngulo puramente terico, Necker no escondia a sua preferncia pela monarquia moderada. Tal sistema de governo traria, em tese, maior estabilidade a um pas de amplas dimenses. A propsito, escrevia: " a minha opinio que, num vasto pas, no seio de uma Nao viva e ardente, no interior de uma Nao mutvel nos seus princpios, volvel nas suas opinies, uma Monarquia temperada deve ser preferida a uma Repblica unitria e indivisvel" [Necker, 1802: II, 304]. Mas, se a considerao especulativa aconselhava a adoo da monarquia temperada e embora as caratersticas destacadas por Necker no texto anterior se aplicassem Frana, eclodida a Revoluo de 1789, derrubada a monarquia absoluta do jeito que aconteceu com Lus XVI, j era tarde demais, em 1802, para pretender instaurar na Frana essa modalidade de governo inspirada na monarquia

  • 29

    britnica. O nosso autor tinha um ponto de vista de realismo poltico. No texto a seguir aparece essa nota de realismo, que no pretende brigar com os fatos. Frisava Necker: "Sem dvida que, aps ter mostrado as vantagens da Monarquia temperada, estaramos de acordo com a sua essncia, e estaramos tambm em feliz harmonia com