O Lado Escuro do Mar – Paula Ottoni – Cap.1

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O LADO ESCURO DO MAR - Um conto de Paula Ottoni -

Copyright © Paula Ottoni, 2015. Todos os direitos reservados. Proibida cópia ou

reprodução não-autorizada. Direitos autorais registrados pela Biblioteca Nacional (BN).

Design de capa: Ana Paula Fogaça – Portfolio

Sinopse: Agnes é uma garota pobre de Rasminn que costura e vende seus produtos na cidade para sustentar a si mesma e à sua mãe doente. Quando não consegue dinheiro suficiente para comprar a poção que poderia manter a mãe viva, Agnes decide se tornar uma ladra como muitos do povoado. Seu primeiro furto, porém, traz mais infortúnios do que esperava. A busca da jovem por amor e fortuna se tornam, então, duas maldições que mudarão até mesmo sua natureza humana.

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Parte I

Malditos peixes. Essa era a coisa mais agradável que eu

conseguia dizer a respeito daquele pagamento inapropriado − o

único que eu tinha obtido no dia. Com lágrimas de desgosto e

aflição escorrendo pelo rosto, carregando aquela estúpida cesta

malcheirosa, os panos não vendidos na bolsa pendendo em meu

ombro, caminhei para o que poderia ser minha última esperança.

Peguei a loja de Câmbio aberta por pouco, Marcel, o

assistente do Senhor Montan, segurando a porta para que eu fosse a

última a passar. Desabei a cesta pesada no balcão, tentando respirar,

todos os orifícios do meu rosto cheios de água do choro que eu não

conseguia controlar. O Senhor Montan colocou de volta na cesta

alguns peixes que pularam para fora na minha pouco delicada

chegada e franziu o nariz.

− Quanto o senhor me dá por isso? − não perdi tempo.

Ele coçou o queixo redondo como se estivesse pensando,

mas o Sr. Montan era o tipo de pessoa que sempre tinha todos os

cálculos já muito bem resolvidos.

− Hum... Creio que não mais que cinco kutles.

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− CINCO KUTLES? − Afastei-me da bancada e pus as

mãos na testa. − Por favor, Senhor Montan, o senhor tem que me

dar mais do que isso...

− A senhorita está bem? − perguntou Marcel, e eu não

aguentei e desabei na cadeira de espera. É claro que eu não estava

bem.

Marcel foi encher um copo com água enquanto continuei

argumentando com o dono do Câmbio.

− E que tal um empréstimo? Ou posso lhe dar a minha

cama... quem sabe nossa mesa, ou as cortinas...? Olha, tenho todo

um enxoval aqui! − Levantei a bolsa com os panos que não vendi

no dia e, verdade seja dita, no mês inteiro.

− A senhorita sabe que não é assim que funciona aqui. Sinto

muito. Eu já estou sendo legal de oferecer cinco kutles por alguns

peixes desses. Não tenho interesse em sua mobília ou seu enxoval.

As pessoas parecem esquecer que meu negócio principal é trocar

moedas...

− O senhor não sabe de ninguém que compraria qualquer

dessas coisas?

Marcel me passou o copo com água, que peguei trêmula. O

Senhor Montan sorriu sem humor.

− Por um preço justo? Ninguém. Aqui quem tem dinheiro

não quer saber das nossas porcarias...

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Como eu odiava aquele lugar! E tudo estava prestes a ficar

ainda pior, se eu não conseguisse os malditos quarenta kutles até o

anoitecer.

Escondi o rosto nas mãos, pensando no que fazer. Eu não

podia desistir ainda.

− Ela piorou, Agnes? − perguntou Marcel, por um segundo

parecendo esquecer que estava na loja, e não conversando comigo

como quando nos cruzávamos na fila do poço de água.

Assenti com a cabeça, respondendo a pergunta dele. Decidi

então levantar e ir fazer minha última parada enquanto eu tinha

tempo. Passei o copo de água vazio a Marcel com um “obrigada”,

peguei a cesta com peixes e saí sem nem desejar boa noite. O que

tinha de boa?

Cruzei o centro, os comerciantes da vila todos se preparando

para voltar às suas casas. Invejei vários deles por terem vendido o

que eu gostaria de ter conseguido. Naquele dia, não era apenas uma

questão de honra. Era uma questão de vida.

Entrei na loja Encantos & Sonhos e disparei até o dono,

Salizar, o Encantador. Coloquei os peixes na bancada e ele olhou

para mim como se eu tivesse lhe dito um insulto. Seu rosto velho e

cheio de marcas de desastres mágicos se enrugava na típica

carranca do homem amargo e solitário. Seus olhos cor de vidro

cinzento me encararam com dureza e ele coçou o bigode branco. As

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inúmeras poções mágicas cintilavam nas altas vitrines − poção do

amor, poção da beleza, poção para nascer cabelo, para curar dor de

dente... Eu só precisava de uma, apenas uma!

− Preciso da Cura Líquida − eu disse ofegante.

− Como pretende pagar? − ele perguntou sem nem se mexer.

− Por favor, o senhor tem que aceitar os meus peixes.

Ele olhou para a bancada, onde meu miserável pagamento

do dia estava, e fez o que eu nunca imaginei que veria aquele

homem fazendo.

Ele gargalhou. Tão alto que meus ouvidos gritaram.

Salizar nunca foi uma pessoa simpática, na verdade sempre

pareceu me detestar − ele parecia detestar muita gente pobre. Ele ter

rido de mim foi a pior coisa que me aconteceu no dia. Eu sabia que

o pior mesmo estava por vir, mas esse era o som do início. Essa

humilhação marcava o começo do meu triste futuro.

− Ela está morrendo! Por favor, me deixe levar o remédio! −

continuei me deixando humilhar. Eu sempre havia conseguido

vender o suficiente para comprar as outras fórmulas para mantê-la

viva. Mas desta vez aquelas poções fracas não eram o bastante.

Salizar mesmo havia dito para mim, mas ele, como todos naquela

cidade, não se importava. Pessoas morriam todos os dias.

− Você não conseguiria nem a pior das poções com esse

pagamento!

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Ao voltar para casa com aqueles peixes, minha bolsa com os

panos restantes e nada mais, sentei na cama e chorei como nunca.

Quando me recuperei um pouco, fui até o leito dela e a abracei.

Seus olhos só abriam um pouco e a respiração era lenta. Havia

tempo que não nos conectávamos como mãe e filha, mas eu ainda

conseguia me ver nela, em seus cabelos castanhos, nos grandes

olhos escuros, no formato da boca...

Beijei sua testa pálida e deitei minha cabeça no peito dela,

ouvindo seus batimentos enquanto eu ainda podia.

− Eu falhei, mãe... Me perdoa.

Ela não conseguia falar, então segurou minha mão. Quando

o sol terminou de se pôr, ela me deixou.

Naquela noite, eu tive um acesso de raiva e quebrei um

monte de coisas. Então saí para o ar frio, deitei na grama e olhei

para o céu, prometendo que eu mudaria. Estava cansada daquela

vida, não podia aguentar mais contar as moedas para sobreviver.

Eu morava em Rasminn, a cidade com mais pessoas fazendo

coisas ilegais que se poderia encontrar. Apenas os tolos viviam na

miséria, escravos de sua ingenuidade e medo. Ali grandes ladrões se

refugiavam e usufruíam de seu lucro. Eu poderia começar pequeno,

agora que não tinha nada a perder. E começaria com quem não se

importava mesmo com os problemas dos outros. Então por que eu

deveria me importar com eles?

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Assim que o dia amanheceu, saí para a cidade, sem os

peixes e sem as costuras, apenas pronta para dar início ao meu

plano.

Continua...

“O Lado Escuro do Mar” é um conto longo escrito por Paula

Ottoni, autora dos livros “A Destinada” e “Uma Princesa Em Meu

Lugar”. Ele será postado em partes, uma por semana, a princípio.

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