O Jumento
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Transcript of O Jumento
O Jumento Chico Buarque
[ao entrar cada um recebe um chicotinho: para uns além disso dinheiro, boca grande para mandar as tarefas do lar, um bração
para mandar as tarefas de escritório, etc.] Jumento:
Hi-oh, he-oh. He-uh, he-uh.
É-u, eu. Eu, eu sou um jumento,
não sou bicho de estimação.
[mostra um trabalhador de jeans e com nomes de várias firmas colocados na roupa]
Não tenho nome nem apelido, nem estimação.
[há várias flechas apontando para fora do trabalhador representando, maiores e
menores, o desprezo, a indiferença, a falta de atendimento, etc.]
Sou jumento e pronto! Na minha terra também me chamam de jegue
[mostra o Brasil] e me botaram pra trabalhar na roça a vida inteira.
[o telão mostra trabalhadores trabalhando nas condições mais difíceis nas minas, na construção civil, na roça, em toda parte]
Trabalhar feito jumento pra no fim... nada.
Minha pensão, nem uma cenoura.
[morre aos 50 anos antes da aposentadoria aos 60, que é para os médio-burgueses]
Acho que é por isso que às vezes também me chamam de burro. Eu nem me incomodo.
[operários nos bares rindo, nos jogos do Maracanã]
Mas outro dia,
eu tava subindo o morro com quinhentos quilos de pedra no lombo, tava alí subindo quando ouvi um paid'égua falar assim:
"mas que mula preguiçosa sô!", fui ver, e a mula era eu.
[o canto-ator anda de costas recurvada, com um grande volume de isopor nas costas
representando uma pedra de mármore ou granito]
Aí eu parei: Mula! é demais! e resolvi dar no pé.
Tomei a estrada que leva à cidade e fui seguindo naquela escuridão.
[mostra a cidade com uma grande lente de sujeira, poluição pesada]
Naquela humilhação. Naquela solidão que nem sei.
[são milhares os que passam nas ruas indo e voltando do trabalho; este telão é
horizontal] Não sou disso não,
mas me deu uma vontade arretada de chorar e chorar, e chorar aos soluços.
[são entregues lenços aos espectadores] E pensava com meus borbotões...
{música}
[com imensa raiva] Jumento não é Jumento não é
O grande malandro da praça
[o telão mostra burgueses de todo tipo, inclusive artistas milionários brasileiros e
estrangeiros] Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
[o cantator abaixa a cabeça e arreia os ombros]
Mas quando a carcaça ameaça rachar Que coices, que coices
Que coices que dá
[o telão mostra revoltas e revoluções, inclusive Encoraçado Pontekin]
O pão, a farinha, o feijão, carne seca Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, o feijão, carne seca Limão, mexerica, mamão, melancia
Que é que carrega? Hi-ho O pão, a farinha, o feijão, carne seca Limão mexerica, mamão, melancia
A areia, o cimento, o tijolo, a pedreira Quem é que carrega? Hi-ho
[vai mostrando cada vez mais rápido a produção e o transporte da produção, a
arrumação em supermercados e o serviço de caixa]
Jumento não é Jumento não é
O grande malandro da praça Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices Que coices que dá
Hi-hooooooooo
[descem com pás, picaretas, marretas em direção-sentido da platéia]
Serra, domingo, 18 de abril de 2010. José Augusto Gava.