O julgamento de deus

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1964 JOSÉ NIVALDO JUNIOR ROMANCE O Julgamento de Deus

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1964José N ivaldo JuN ior

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O Julgamento de Deus

ISBN 978-85-8165-127-9

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O rei está sempre nu, sabe disso todo súdito que se preza.

José Nivaldo Junior, ciente do fato, usa o humor para desmitificar a ditadura instalada com o golpe mi-litar de primeiro de abril de 1964. Nunca foi servo do infausto episódio, pelo contrário, sua trajetória de mili-tante político o levou à prisão. Isso, no entanto, é outra história. O que nos interessa agora é sua postura de permanente opositor da barbárie ins-titucionalizada.

Apossando-se de uma arma anti-ga, mas ainda infalível, a prosa pica-resca, o escritor mostra maturidade ao manipular elementos conflitan-tes, como a História e a ficção. Mui-tos dos fatos narrados aconteceram sim e surgem no livro para pontear o absurdo da época, na combinação criativa entre o real e o imaginado. Nesses meandros vai inserindo ou-tros debates de conceitos políticos e até filosóficos, sempre adornados com a ficção, o que torna o romance uma espécie de ensaio risível sobre a condição política do ser humano.

Tudo dito numa linguagem mais para Sancho que para Quixote, outra homenagem à nossa tradição pica-resca, termina por nos oferecer pon-tos de reflexão sobre as escravidões políticas e religiosas que nos martiri-zam. E, enfim, alertar para o fato de que, mesmo nu, o rei tem poderes sobre vidas e mortes. Então, antes de querer vesti-lo, o mais prudente é não deixá-lo nascer.

Maurício Melo Júnior

eus no banco dos réus? Sim.Foi o mais atrevido e criativo desafio ao nas-

cente regime militar do Brasil, em 1964, idealizado por um grupo de jovens contestadores.Este livro narra o encadeamento de fatos enigmá-ticos e acontecimentos políticos que envolveram o inédito julgamento e o seu magnífico desfecho. Um evento que, a partir de uma cidade do interior, repercutiu, dividiu e apaixonou o mundo.Como diz o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios Vilaça: “O autor cultiva um estilo que associa a retórica quotidiana a uma eloquência que vai da censura ética à ironia aberta e ao humor sem freios”.Um romance inovador, que diverte, polemiza e surpreende da primeira à última página.

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José Nivaldo JuNior nasceu no Recife, em 1951.Passou a infância e a adolescência em Suru-bim, cidade do Agreste pernambucano, onde os seus pais, médicos e escritores, se fixaram para sempre. Estudante de Direito nos Anos de Chumbo, combateu a ditadura. Seques-trado pelo Doi/CoDi, teve depois sua prisão formalizada. Passou 21 meses e 19 dias no cárcere. Tornou-se publicitário e fez mestra-do em História. Especializou-se em Marketing Político. Prestou e presta serviços a grandes nomes da política brasileira. É um dos profis-sionais com mais rico e diversificado currícu-lo na área. É autor do best-seller Maquiavel, o Poder, com mais de 20 edições, no Brasil e no exterior.

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Recife, 2014

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Copyright© by José Nivaldo Junior

RevisãoAlan Leal

CapaMoema Cavalcanti

Produção GráficaBagaço Design Ltda.*Lot Estrada de Tabatinga, 336 • Tabatinga Igarassu/PE • CEP 53605-810 Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133e-mail: [email protected]

* Endereço para correspondência:Rua Luiz Guimarães, 263. Poço da Panela,Recife-PE • CEP 52061-160

N734m Nivaldo Junior, José, 1951-1964 : o julgamento de Deus / José Nivaldo

Junior. – Recife : Bagaço, 2014.302p.

1. FICÇÃO BRASILEIRA – PERNAMBUCO. 2. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE MARÇO, 1964 – FICÇÃO. 3. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE MARÇO, 1964 – HUMOR, SÁTIRA, ETC. I. Título.

CDU 869.0(81)-3CDD B869.3

PeR – BPE 14-96

ISBN: 978-85-8165-127-9

Impresso no Brasil – 2014

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OFERECIMENTO

À memória de Manoel Lisboa, Amaro Luiz de Carvalho (Capivara), Amaro Félix, Manoel Aleixo (Ventania) e Emmanuel Bezerra, heróis e mártires do povo brasileiro, em nome de todos os que doaram ou colocaram em risco as suas vidas para enfrentar à ditadura militar.

Para Leta, Andréa, Marcela, Luiz e Fidel, esposa e filhos de Evandro Cavalcanti, em nome de todas as vítimas não contabilizadas da violência exercida contra os que lutaram e lutam por liberdade e justiça social - parentes e amigos que ainda hoje choram e sofrem a perda de entes queridos, além do alto preço que pagam anonimamente em suas vidas, dia após dia.

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AGRADECIMENTOS

A Sérgio, Ricardo, Murilo, João Henrique, Danilo, Breno, Marcelo e Marcos, que contribuíram com críticas e sugestões;

A Flávia, Jemesson, Risomar, Wellington, Givanildo e Rafael, colaboradores e amigos, que compartilharam a tarefa de fazer;

A Magnólia Cavalcanti, a parceira de sempre no artesanato das palavras;

A Izabel, que me motivou a trilhar o difícil, sofrido e gratificante percurso para lhe contar esta história.

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Sumário

1 Um mocorongo no poder 9

2 Revolução ou piada? 29

3 O samba do crioulo doido 51

4 Terremoto pra ninguém botar defeito 67

5 Hora de juntar os cacos 91

6 Um xerife aloprado 111

7 Como diria a madre superiora 127

8 O coronel e seus dois mamulengos 147

9 Um enterro do outro mundo 159

10 O perigo vem do alto 173

11 Fé demais, bem, você sabe 193

12 Os Tetéus retomam à vanguarda 211

13 Cada coisa em seu lugar 227

14 Como é gostosa a liberdade 247

15 Ataque contra defesa 261

16 O voto decisivo 281

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Capítulo 1

Um mocorongo no poder

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OS MATUTOS COSTUMAM DIzER NA SUA LINGUAGEM peculiar: “Mês miou, mês cabou”. Ou seja, depois de metade, o mês já está chegando ao fim. Acostumado a acordar de madrugada ao longo de toda a vida, o marechal chegou cedo ao Palácio do Planalto, naque-le dia da segunda metade de agosto de 1964, quando o mês já tinha embicado para o final. Aguardava para uma audiência o ministro das Relações Exteriores.

Depois de dar uma olhada nos jornais, ficou andando de um lado para o outro, contemplando a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional através das paredes de vidro do gabinete presidencial, seu local de trabalho desde abril. Estava no governo havia pouco mais de quatro meses, ainda procurando se acostumar melhor aos meandros do ambiente político. De repente se deu conta de que era a primei-ra vez que um ministro civil solicitava uma audiência a ele. Antes, só compareciam quando convocados. A solicitação inédita o intrigava. O que o auxiliar estava trazendo? Só podia ser problema, e dos grandes.

Escolhido pelos seus pares para ocupar o cargo máximo do País, de-pois do golpe militar, em circunstâncias que ao longo da narrativa vão ficar melhor esclarecidas, o marechal usurpou o título republicano e democrático de presidente, e como tal exigia ser tratado.

Como os historiadores nunca se deram ao trabalho de botar os pingos nos is, e os documentos oficiais nunca foram retificados, os ditado-res do período militar, e até de ditaduras anteriores, continuam sendo chamados de presidentes. De modo que o País viveu quase 40 anos intercalados sob ditaduras diversas, sem que conste dos livros de His-tória um único sujeito tachado de ditador.

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O marechal só era chamado de ditador, tirano ou outro sinônimo equivalente em panfletos clandestinos que a muito custo a oposição conseguia fazer circular. Ou em raras ocasiões no exterior, por parti-dos de esquerda que funcionavam em países democráticos

A voz do chanceler, um tratamento que era atribuído ao responsável pelas relações internacionais do País, denotava apreensão e ansiedade. Presidente, desculpou-se por telefone, só estou lhe tirando dos seus mui-tos afazeres porque trata-se de um assunto urgente e delicado. E só tomo essa liberdade porque já esgotei todas as instâncias sem encontrar uma orientação adequada. O único encaminhamento que me resta é recorrer à sapiência, ao tirocínio e à autoridade iluminada de Vossa Excelência.

O marechal gostou de ouvir o elogio. Concordou no íntimo. Ele, real-mente, na condição de maior autoridade do País, não era para ser per-turbado por qualquer dá cá aquela palha.

O que apreciava, na verdade, era conversar sobre motes e piadas de caserna. Conhecia os últimos modelos de armamentos, as táticas e estratégias mais modernas, era especialista em história militar. E se es-baldava de rir com as mais tolas anedotas sobre recrutas.

Outro tema que dominava bem era literatura regional. Cultivava a ami-zade de escritores, inclusive tidos como esquerdistas. Nesse assunto não fazia discriminações ideológicas. Nas férias, frequentava a fazenda de consagrada romancista social que na juventude fora até comunista.

Detestava conversar sobre banalidades em geral, particularmente fo-focas sociais, futebol e principalmente política.

Depois que assumiu o cargo supremo do País, esse último tema pas-sou a ser parte da sua rotina. Era um dos contrapesos da função. Mili-tar é acostumado a dar ordens e ser obedecido. Política, mesmo numa ditadura, implica em conversas e negociações. Coisa muito chata, para ele. Sua úlcera queimava como brasa. E política internacional, então, era purgante em dose dupla.

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Por isso, não fazia, até aquele momento, muita questão de acompanhar as minúcias do governo. Tudo o que subalternos pudessem pôr em prática sem contrariar o seu comando estava de bom tamanho. Desde que não desagradasse ao Exército e à Embaixada dos Estados Unidos da América do Norte. Pode até parecer brincadeira, mas a doutrina adotada depois do golpe era clara: o que é bom para os Estados Uni-dos é bom para o Brasil.

Apesar do esforço para aparentar uma unidade monolítica, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica disputavam poder entre si. Dentro de cada uma dessas forças, correntes antagônicas se digladiavam. O governo, na parte que coube aos militares, era uma sucessão de feudos, ocupa-dos pelas diversas linhas conflitantes. A fim de acomodar esse saco de gatos, cada qual mandava no seu pedaço.

Entretanto, quando surgiam problemas, complicações ou aborreci-mentos que não conseguiam resolver sozinhos, todos corriam para o marechal. Ele era o ponto de equilíbrio, o algodão entre os cristais. Assim, era forçado a lidar com um aborrecimento atrás do outro. Raro o dia que não lhe caía no colo algo desagradável para decidir. Governar é resolver pepinos, filosofou certo dia para um alto executivo da ONU. Por isso, já andava pela tampa do tabaqueiro, como se dizia no interior do Ceará, com tantas chateações medíocres.

Enquanto esperava, olhando para o relógio a todo instante, foi várias vezes ao banheiro arrumar o fraque diante do espelho. Durante toda a sua extensa carreira, desde os tempos da Escola Militar, o marechal sempre fora o que na gíria dos quartéis se chama de mocorongo. Um caipira de almanaque, um sujeito desmantelado como uma capivara. Do uniforme de campanha à farda de gala, nenhum traje lhe caía bem.

Destacou-se entre os seus pares pela aplicação, cultura e até mesmo in-teligência, nunca pela elegância. Agora, escolhido ditador, ou melhor, presidente da República, conforme a terminologia oficial, foi obrigado a trocar a farda por roupas civis. A situação ficou ainda pior.

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Era baixinho, cabeça grande e chata. Diziam que ficara assim porque na infância distante no Ceará os adultos batiam sempre com a palma da mão no seu quengo e falavam: Esse menino vai dar pra gente. Nin-guém ostenta uma catedral desse tamanho para nada.

Foi assim, segundo as más línguas, que aplainou o alto da cabeça e afundou o pescoço. O que restou dessa parte do corpo que a girafa tem de sobra era tão pequenininho que a cabeçorra parecia pregada diretamente sobre os ombros. Até para olhar para os lados era difícil, tinha quase que virar o tronco inteiro, como se fosse o robô do popu-lar seriado da televisão Perdidos no Espaço.

Mas esse detalhe não atrapalhou sua trajetória. Vida afora, acabou cumprindo as profecias da infância. Galgou por mérito os mais altos postos do Exército, casou com mulher honrada, inteligente e bonita, e agora, viúvo, estava empoleirado no cargo mais importante da Nação.

O sucesso não impedia que vivesse mal acomodado dentro do fraque cortado justo, na tentativa dos alfaiates para deixá-lo um pouco mais esbelto e menos desgracioso.

Para piorar as coisas, certo publicitário gaúcho teve uma infeliz ideia que a muitos áulicos pareceu genial. Sugeriu e foi acatado que o di-tador portasse, o tempo inteiro, a faixa presidencial verde e amarela atravessada sobre o peito. Isso para se diferenciar do antecessor, pouco dado a essas formalidades bobas. E, de quebra, passar a ideia de ser presidente em tempo integral.

A imagem desse mocorongo que parecia mal-assombrado foi quase imediatamente espalhada através de uma foto oficial obrigatória nas repartições públicas, escolas, prefeituras, sindicatos e, também, adota-da por bajuladores ou partidários do regime em instituições, igrejas e até residências.

Seu desalinhamento facilitava a vida dos chargistas e humoristas, em-bora estes tivessem pouco espaço para divulgar suas caricaturas. Estas

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circulavam como folhetos clandestinos, passando de mão em mão e provocando gostosas risadas entre os frequentadores da boemia.

O desmantelo facilitava também a vida dos imitadores de todos os quilates. Em toda conversa nos bares ou pontas de rua, onde não esti-vesse presente uma autoridade, um policial ou conhecido dedo-duro, havia sempre alguém para arremedar o ditador.

Até pelo interior do País esse assunto era tratado. Dizia-se pelas bo-degas: Esse aí foi escolhido a dedo. Quem fez ele felizmente quebrou a fôrma. O homem é mais feio do que talho de foice, mais mal-amanhado do que o boi de nanico.

Também nos ambientes mais seletos das sociedades carioca e paulis-tana, a estética presidencial era assunto obrigatório. As senhoras que se reuniam todo dia para rezar um rosário pelo sucesso do que chama-vam Revolução Católica, Apostólica, Romana e Redentora não con-seguiam fugir ao assunto. Entre elegantes chávenas de chá importado acompanhado pelo mais legítimo bolo inglês, perguntavam maliciosa-mente qual a misteriosa solução para o presidente conseguir colocar a gravata.

Era tudo falsidade dessas matronas carolas, que posavam de bastiães da moral e dos bons costumes. Todas sabiam a resposta, que ouviam nas cozinhas, nas garagens, nas conversas de pé de ouvido.

A população em geral também conhecia a fórmula. Bastava circular por oficinas, puteiros, bares, praças, ruas. Ou até ficar no sereno das missas e casamentos, nas portas das igrejas. O método utilizado, muito simples, por sinal, era geralmente descrito com detalhes e coreografia da forma mais direta e escrachada possível.

Dava-se como certo, e assim se representava a cena, que o marechal só conseguia completar o traje passeio oficial quando o ajudante de or-dens aplicava-lhe uma popular dedada no centro das nádegas. E mes-mo assim com bem muita força, sob pena de não fazer efeito.

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Todo mundo sabe que o dedo maior de todos, aplicado com vigor no eixo central da bunda, provoca em qualquer homem uma reação fisio-lógica natural: um gemido gutural e uma esticada do pescoço.

Nesse momento crucial, o ditador conseguia espichar um tantinho de nada a minúscula embalagem da garganta. Aproveitando o movi-mento instintivo, o ajudante de ordens, agindo com destreza e rapidez, conseguia encaixar a gravata. Em caso de fracasso, o procedimento constrangedor tinha que ser repetido.

Essas e dezenas de outras piadas tendo o ditador como motivação se multiplicavam País afora. Afinal, rir dos opressores é remédio com sa-bor de refrigerante.

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Um quengo privilegiado

Por conta das características e contradições de uma ditadura que ain-da engatinhava, a agenda do déspota, que fazia força para parecer es-clarecido, era um verdadeiro faz de conta. Tinha sempre um toque de imprevisibilidade, desde que os ministros militares metiam a mão na porta e entravam a qualquer hora, sem se fazerem anunciar. Mesmo as-sim, a relação de compromissos era folgada feito colarinho de palhaço.

Para preencher os espaços vagos, o ministro chefe da Casa Militar, que ironicamente era o responsável pela comunicação do governo, asses-sorado por publicitários e jornalistas metidos a especialistas em gestão de imagem, sempre tinha o cuidado de programar algum compromis-so que rendesse notícia.

Inutilidades simpáticas como visitar uma escola infantil ou um hospi-tal eram constantemente relacionadas para humanizar a sua imagem. Receber alguma autoridade estrangeira dava ao ditador ares de impor-tância e reconhecimento internacional. Reunir-se com lideranças reli-giosas, sindicais ou empresariais, passava a impressão de um homem aberto ao diálogo. Tudo isso não ocupava mais do que uma hora do seu dia. Entretanto, gerava fotos para as primeiras páginas dos jornais e recheava os noticiários de rádio e da televisão. Além de preencher espaço nas naturais, como eram chamados os noticiários que antece-diam os filmes nos cinemas, exibidas entre um trailer e outro.

Nesse caso específico, com o tempo, a duração das aparições foi sen-do gradativamente reduzida. É que toda vez que o ditador surgia, aproveitando o escurinho do cinema, a moçada o saudava com uma sonora vaia.

Mais ou menos pelo mesmo motivo, as atividades externas do ditador eram monitoradas com muito cuidado. Vistoriar obras ou frequentar locais com aglomeração popular, por exemplo, eram programas fora de cogitação.

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A primeira e única iniciativa do gênero, logo nas primeiras semanas, resultou em verdadeiro desastre midiático e político. Primeiro, não foi encontrado em nenhuma loja do ramo um capacete capaz de se aco-modar na imensa cabeça do ditador. Foi preciso fabricar um apetrecho com diâmetro especial. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o resultado não podia ter sido pior.

Os operários foram perfilados à distância regulamentar e alguns esta-vam, sob coação, segurando faixas laudatórias. Entretanto não esca-pou aos ouvidos atentos dos jornalistas presentes, inclusive e princi-palmente dos estrangeiros, o desmoralizante coro de vaias com que o visitante foi saudado. No dia seguinte, o registro negativo estava feito na imprensa do mundo inteiro.

Mas a pior repercussão aconteceu mesmo em solo pátrio. A equipe palaciana vivia pisando em ovos, todos com medo de se tornarem sus-peitos de sabotagem ou agentes da guerra psicológica adversa, que era como se tratavam os comentários desfavoráveis ao regime.

No ambiente palaciano, quando se referiam ao general, era inimagi-nável qualquer restrição ou comentário que parecesse crítica. Assim, ninguém teve coragem de tomar a iniciativa e expressar o pensamen-to comum sobre o ridículo da foto oficial do evento. Repetiu-se no Planalto Central aquela fábula do rei que está nu. Como não houve manifestação de discordância, a assessoria liberou a imagem para a mídia impressa.

No outro dia, logo cedo, quando a foto apareceu estampada em todas as primeiras páginas dos jornais, aconteceu um verdadeiro bafafá.

Na fotografia, o marechal, com seu capacete de inimaginável dimen-são, ficou parecendo um extraterrestre de história em quadrinhos. As pessoas passavam pelas bancas e, mesmo quando não compravam um exemplar, faziam questão de apreciar a munganga para cair na inevitá-vel gargalhada.

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O mais atrevido foi certo jornaleco meio comunista do Rio de Janei-ro, que até então sobrevivia às perseguições da ditadura a duríssimas penas. Sentindo que não aguentaria por muito tempo a pressão do go-verno, as sucessivas prisões de seus colaboradores e a fuga em massa dos anunciantes, o editor-proprietário optou por aproveitar a opor-tunidade para sair de cena em grande estilo. Fez uns ajustes na foto e enquadrou o marechal em frente a uma britadeira, de um ângulo em que a máquina ficou parecendo uma nave espacial.

Ocupou com o retrato toda a parte de cima da primeira página. Logo abaixo da foto, estampou uma manchete espalhafatosa anunciando que os marcianos tinham tomado o governo no Brasil. Só lá embai-xo, em tipos quase ilegíveis, se explicava que a manchete não era nada mais nada menos que uma chamada para um artigo de ficção cientí-fica, a ser publicado na edição seguinte. Que, aliás, nunca veio à luz.

Antes que a Polícia Militar invadisse a redação e empastelasse a publi-cação a marretadas, o jornaleco rodou 4 edições sucessivas. Utilizou até papel emprestado por concorrentes que, meses antes, pregavam o golpe, mas que também não estavam satisfeitos com o andar da car-ruagem. Vendeu feito água no deserto. Os exemplares eram disputa-dos a tapa na Cinelândia, no Largo da Carioca, na Avenida Rio Branco e outros pontos de grande concentração popular.

Graças à ponte aérea, em pouco tempo a publicação chegou a São Paulo.

No Rio, as Polícias Civil e Militar foram mobilizadas. Revistavam e arrancavam os impressos das mãos dos leitores. Filas, elevadores, res-taurantes, repartições públicas, lotações, escritórios, trens de subúr-bio, tudo virou um verdadeiro pandemônio, um generalizado campo de batalha. Quem conseguiu salvar o seu exemplar fez sucesso à noite nos bairros. Vários desses leitores, denunciados por vizinhos alcague-tes, que naqueles dias sombrios se multiplicavam feito erva daninha, foram parar em delegacias e quartéis.

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Cabeças rolaram. A equipe de marketing, do publicitário ao fotógrafo, foi toda substituída. Mas o estrago estava feito.

A partir dali, o próprio marechal estabeleceu que em matéria de obra, só iria a inaugurações quando não se exigisse capacete em ninguém. E como nada havia para inaugurar, ele aproveitou o episódio para se livrar de levar sol quente no quengo e aplaudir discursos sem graça nenhuma.

Nada disso, porém, estava em pauta ou sequer era lembrado naque-la manhã. O que interessava eram as novas do ministro, que cumpriu britanicamente o horário, fez-se anunciar, cumprimentou o chefe, es-perou a ordem para sentar.

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Bate-bate coração

O marechal ajeitou-se com dificuldade na cadeira larga e alta que fora feita para acomodar as longas pernas de Juscelino Kubitscheck, seu primeiro ocupante. Sem se preocupar em esconder o desconforto, au-torizou o ministro a expor o que o levara a solicitar às pressas aquela audiência imprevista.

O chanceler estava ainda pior acomodado. Balançava para um lado e para o outro, parecia pêndulo de relógio de parede. Procurava ajeitar as nádegas na poltrona o tempo todo. Se estivesse sentado em cima de um formigueiro, não transpareceria maior desconforto. Sabia que dificilmente o que tinha a dizer agradaria. Era perspicaz o suficiente para perceber, também, que o seu papo, recheado de mesuras e forma-lismos vazios, dava nos nervos do ditador.

Achou que precisava ganhar algum tempo, preparar o espírito do co-mandante supremo. Por isso, iniciou uma conversa do tipo que o povo chama de cerca-lourenço, evitando ir direto ao assunto.

O marechal já sabia que o problema não era simples. Por isso, após ouvir alguns longos minutos de lero-lero, girando em torno da delica-deza do tema a ser tratado, cortou a palavra do auxiliar e, bruscamente, ordenou que fosse direto ao assunto.

Mais suado do que sugeria o clima do Cerrado naquela época do ano, o ministro nem assim conseguiu ser esclarecedor. Estava tra-vado, sua aclamada loquacidade de repente fora para o espaço. Ao invés de cumprir a ordem, continuou costeando o alambrado, como se diz no Sul.

Foi naquela altura que o marechal perdeu a calma pela primeira vez. Levantou a voz e determinou: Ministro, por caridade, poupe os meus neurônios. Se eu não sei do que se trata, como posso lhe dar comandos, orientações ou sequer rezar um padre-nosso pela solução do problema?

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Apesar de culto, o marechal tinha um senso de humor rasteiro. Além disso, não estava acostumado e não gostava de ser desobedecido. Então apelou para a ignorância. Ameaçou o ministro com a linguagem dos porões, onde os prisioneiros políticos eram interrogados: Talvez uns bons choques elétri-cos nos culhões lhe façam desembuchar. Não teste a minha paciência.

A pressão excessiva fez efeito contrário, como aliás acontecia muitas vezes nos calabouços onde se praticavam as torturas contra inimi-gos do regime. O ministro perdeu a cor, a fala e a capacidade de se expressar.

O absurdo da situação era tão evidente que o marechal caiu em si. Es-tava no caminho errado. Era preciso relaxar o interlocutor. Apertou uma campainha e pediu à solícita secretária, que surgiu aparentemente do nada, dois copos com água gelada e dois cafezinhos bem passados.

Logo entrou Cícero, o copeiro oficial, trazendo a encomenda no grau. Xícaras fumegantes, copos suando da água gelada. O marechal aproveitou para desanuviar o ambiente e perguntou a Cícero pelas novidades.

Era como um código. O copeiro sempre trazia para o presidente con-versas de cocheira, relatórios da Rádio Corredor e até piadas sobre o próprio marechal que ninguém tinha o topete de contar. Em troca, servia de confidente para reflexões ditatoriais que nenhum outro ou-vido tinha o privilégio de escutar.

Naquele momento tenso, o copeiro foi peça fundamental para resol-ver o impasse. Percebendo que o ambiente estava soturno, fez o seu jogo. Disse ao ditador que conhecia uma piada nova sobre o regime, mas era muito pesada e ele não tinha coragem de contar na presença de um estranho.

Conte, ordenou o marechal. É até bom, porque esse ai deve pensar que eu sou um monstro e vai ver que eu sou, além de democrata, muito bem humorado.

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Cícero então arriscou. E narrou a piada do ônibus lotado que foi parar numa delegacia devido a uma confusão generalizada.

A causa do fuzuê foi o espancamento sofrido por um oficial do Exército, que estava fardado. O militar, muito irritado, disse ao delegado que foi agredido pelos passageiros e exigia uma punição exemplar para todos.

A autoridade policial começou, então, a ouvir os acusados. A primeira foi uma moça bonita e exaltada, que sem medo apontou para o militar. Relatou que estava no ônibus sentada no seu canto quando inespera-damente o milico passou a mão nos seus seios sem o menor respeito. Meti minha sombrinha nele com toda a força, confessou.

O próximo depoente falou que era noivo da moça. Confirmou a his-tória, admitiu que também tinha dado uns sarrabulhos no atrevido. Para azar do oficial, a família inteira da noiva estava no coletivo. Pai, mãe, irmãos, primos, todos admitiam o espancamento em função do desrespeito à donzela.

Lá por último vem um amarelinho, e o delegado, já de saco cheio, per-guntou: E o senhor, é o quê da moça? O sujeitinho fez cara de espanto: Eu não sou nada, seu delegado. Nem conhecia ela.

Surpreso, o delegado perguntou se ele também tinha agredido o ofi-cial. Mais surpreso ainda ficou quando o sujeitinho confirmou. Estava no ônibus, viu todo mundo metendo o pau no militar, pensou que a revolução tinha acabado, desceu o cacete também.

O marechal gargalhou, o chanceler deu um risinho amarelo, o clima desanuviou. Cícero foi convidado a se retirar, a palavra voltou ao mi-nistro, que, bem mais tranquilo, conseguiu engrenar a conversa.

Presidente, eu preciso de comandos urgentes. Já consultei o coronel che-fe do Serviço Secreto, não obtive resposta. O embaixador do país de Lincoln não quer entrar no assunto. A Santa Sé pede informações, os

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ocorongo no poder

principais jornais querem entrevistas, as nossas embaixadas não sabem o que dizer. Administrei até aqui, agora fugiu da minha alçada.

A fala do ministro, soltando torpedos em doses homeopáticas, era fru-to da remota esperança de o marechal já estar informado de alguma coisa que facilitasse a sua missão. Mas tudo foi inútil.

Pela expressão do chefe, o ministro percebeu que ele estava completa-mente por fora do assunto. É o que dá intimidar a imprensa e encher de medo os auxiliares. Acaba-se sem saber de coisas importantes que deveriam ser bem conhecidas, pensou com os botões da sua casaca. O pior é que o destino o escolhera para ser o portador da má notícia.

Tentando num esforço supremo enrolar um pouco mais para preparar melhor o espírito do chefe, assumiu o risco e tergiversou: O senhor conhece a cidade pernambucana de Boi Pintado, antigamente denomi-nada Boa Vista, presidente?

O marechal conhecia. Fora lá uma vez, na época de comandante do IV Exército, cuja sede é no Recife. Fica a cerca de 130 km da capital per-nambucana, na região Agreste do estado. É aclamada, até hoje, como Capital Mundial da Vaquejada.

Foi exatamente para assistir a um desses eventos que se deslocou até a cidade. Reclamou da estrada ruim, achou tudo feio, detestou a festa. Vaqueiros derrubando bois pelo rabo, levantando poeira, o povo vi-brando em palanques que pareciam poleiros. Um esporte no qual não achava graça nenhuma, apesar de ser muito apreciado por seus conter-râneos nordestinos. Estar em Pernambuco e não conhecer a tradicio-nal vaquejada de Boi Pintado, que acontece todo mês de setembro, é como ir a Roma e não ver o papa.

Porém, nos últimos meses, a má impressão da visita desaparecera. E o marechal fez questão de registrar: Não apenas conheço, como de lá só tenho recebido boas notícias.

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Agora a surpresa foi do chanceler. Ocupado com as relações interna-cionais, não tinha tempo para se atualizar no noticiário interno. Por-tanto, não sabia de nada de bom acontecido em Boi Pintado, só estava informado da parte complicada.

O marechal encarou o chanceler, a expressão mais animada trazia ao mesmo tempo uma ordem inadiável. Agora que precisava ainda de al-gum tempo, o ministro não dispunha de mais nenhum.

Conformado, engatilhou frase: Não sei se o senhor está a par, presidente...

O mandatário, não estava a par de nada ruim vindo de Boi Pintado. E não gostou de saber que estava desinformado. Pior ainda, achou muito constrangedor ter que passar recibo da sua ignorância para um auxiliar com o qual não tinha qualquer intimidade. O seu desconhecimento era prova de que ou o Serviço Secreto - o já temido SS - não funcionava ou omitia notícias ao chefe supremo.

O ministro percebeu a situação, atrapalhou-se num gaguejado inter-minável. Foi preciso que o presidente perdesse a linha pela segunda vez, desse uma tapa na mesa, para o homem cair em si, novamente se recompor e desembuchar de uma vez por todas: Não sei se o senhor sabe, presidente, falou rápido e nervoso, mas Deus vai ser julgado em Boi Pintado, e o assunto já ganhou o noticiário internacional.

A mudança na expressão do mais alto mandatário do País foi tão grande que o ministro teve a impressão de que o marechal tinha ficado verde, amarelo, azul e branco ao mesmo tempo. Se enfiassem um cabo de vas-soura no seu ouvido, naquela hora, podiam balançar que seria confun-dido com uma bandeira nacional. Além disso, da boca que emitia uma baba parecida com espuma, saiu um urro quase animal: Deus o quê?

Nesse momento, o ministro tinha atingido quase os limites da co-vardia. Segurou-se a custo para não urinar ali mesmo. Para sua sorte,

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lembrou de uma expressão calhorda que muito ouvira na época de es-tudante, mas que excluíra completamente do seu vocabulário elegante.

Naquele instante de agonia, ele, que nunca utilizara expressão grossei-ra, se agarrou silenciosamente com a frase como uma tábua de salva-ção: Já que passou a cabecinha, o resto vai de qualquer jeito.

Recomposto, passou a se expressar com inesperado vigor e até uma pontinha de atrevimento: É isso mesmo que o senhor ouviu, presidente. O julgamento de Deus está marcado para se realizar em Boi Pintado, agora, no próximo dia 7 de setembro. O núncio apostólico, representante direto do Papa e do Espírito Santo, quer uma audiência urgente com o senhor. E a imprensa internacional, abusada como sempre, está exigin-do uma entrevista coletiva para saber a posição oficial do País sobre esse inusitado acontecimento.

O alívio opera milagres. A cada palavra que proferia, o ministro ia re-cuperando a sua habitual impertinência, nunca exercitada diante dos poderosos do regime. Percebeu que a fraqueza mudara de lado. Agora quem tremia nas bases era o ditador. Mudava de cor como uma árvore de Natal, parecia que ia ter uma convulsão a qualquer momento.

O chanceler sentiu-se inesperadamente tomado de tranquilidade e sa-tisfação. Passou a saborear cada palavra como uma espécie de vingança pela intimidação que o superior lhe infundia. Mandou falar, ia ouvir.

E prosseguiu: Além disso, presidente, existem diversos outros problemas acontecendo por lá. Temas polêmicos e complexos, que despertam o in-teresse não apenas da Santa Sé, como também dos serviços de inteligên-cia estrangeiros e da comunidade científica internacional. Questões que desafiam a nossa gloriosa e vitoriosa Revolução Redentora, que o senhor tem conduzido com tirocínio perfeito e generosa mão de ferro. Finalizan-do, repetiu, dessa vez gratuitamente, por pura maldade: Deus vai ser levado ao banco dos réus em Boi Pintado, Excelência.

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Foi a vez do marechal quase engolir a língua. Articulou as palavras com dificuldade, fazendo pausas entre cada uma delas, procurando ar.

Quer dizer que, no meu governo... católico, apostólico, romano, ociden-tal e cristão... defensor da fé, da tradição, da família e da propriedade privada... resultado da Revolução Redentora de 31 de Março contra o comunismo ateu...

Quando se referiu ao comunismo ateu, foi dominado pela emoção. Perdeu o fôlego, parecia asfixiado, o multicolorido do rosto foi subs-tituído pelo roxo monocromático. O chanceler, apavorado, gritou por socorro.

O coronel médico de plantão, que sempre estava no gabinete contí-guo, entrou às carreiras e, quando viu o quadro, diagnosticou um pos-sível enfarto em andamento. Desconsiderou a hierarquia e, de acordo com o manual de medicina de combate, desferiu um murro violento no peito do marechal, para garantir o coração em funcionamento.

A autoridade desabou de costas, meio desacordada. Para sua sorte e felicidade geral do mundo ocidental e cristão, estava diante do sofá, caiu no fofo e não se feriu.

Na verdade quem saiu machucada foi a mão do médico, que naquela agonia não percebeu e esmurrou diretamente a estrela de metal que sobressaía no meio da faixa estendida sobre o peito ditatorial.

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Capítulo 2

Revolução ou piada?

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PERGUNTE A QUALQUER ALUNO DO PRIMEIRO GRAU em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com toda a segurança: No dia 31 de março.

Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de dé-cadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e seus desdobramentos pelos próximos 21 anos.

Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movi-mento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje. No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também ti-nham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas, pois as lorotas eram muitas e criativas.

Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira, noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam proporções globais.

Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele dia as mais variadas potocas. Desde a morte súbita de alguém de quem não se gostava até que a padaria de um adversário político estava dis-tribuindo pão de graça.

Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote. Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redonde-zas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o

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lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, na-riz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do Universo.

Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu Mulambinho tinha acertado na milhar do jogo do bicho. Recebera um dinheirão e estava se preparando para arribar.

Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissio-nais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas da Avenida, como se chamava a zona de baixo meretrício de Boi Pinta-do, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popu-lar xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares ser-viços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa.

A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do deve-dor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avi-sos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril, fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa do caloteiro.

Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do golpe, estariam dando cabimento a uma piada pronta que o mundo in-teiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando

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comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas não aconteceu nenhuma ação golpista.

Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos mili-tares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de pri-meiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró por falar tão cândida verdade.

Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, tal-vez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele.

Pelo sim, pelo não, até hoje prevalece a data errada. É no dia 31 de mar-ço que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares, fazendo ouvidos de mercador à orientação dos governos civis, emitem Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revo-lução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora.

As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por con-ta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área educacional.

A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mun-do sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo me-nos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acon-tecendo de modo bastante improvisado.

Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças, o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada do governo, a situação fugiu do controle.

Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria.

Naquela madrugada de 1º de abril, um certo general Olímpio Mourão, sediado em Minas Gerais, pôs as tropas que comandava em movimen-to, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe como fato consumado.

O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe de mágica. Tanto que ao meio-dia o presidente João Goulart, que todo mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas. Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro, no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar exatamente o quê.

Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram infor-madas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque

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o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absoluta-mente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer.

Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, por-que o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O mo-vimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população tam-bém tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava.

Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pen-sadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia sim-plesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região, aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria, das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre so-nolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco.

De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais nada menos que Továrish Lói.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

Negro vai virar macaco, branco vai virar banana

Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais.

Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação. Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma na-tureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista decla-rado e afamado.

Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva. O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marqui-nhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo. O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Be-nário de Almeida e Silva.

O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado pelo pai desde o berço de Továrish, ganhou na escola a alcunha de Lói, o apelido pegou composto.

Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudi-delas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesa-do, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado Cumpade Deca.

Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava. Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, in-culta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega

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o filósofo zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática.

Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo ten-tada pelo demônio em pessoa.

Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anuncian-do, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para comparti-lhar com a turma. Querem ouvir?

De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados, ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar o grupo.

Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lis-ta o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma lorota de longe.

Coisas como enfiar um pedaço de cigarro aceso na orelha de um burro carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulan-do ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão.

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Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um grande prejuízo para o proprietário da carga.

Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar, levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integrida-de de braços, costelas e até do pescoço.

Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com toda a força, provocando uma forte pancada.

Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declara-do do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca, com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfia-ram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada.

No primeiro de abril, sofisticavam as patranhas. No ano anterior, apro-veitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo gru-po adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio, disseminou o pânico nos Estados Unidos.

Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro, local mais alto da cidade, um balão em forma de disco voador. Tiveram a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o OVNI se deslocava lentamente.

Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pes-soas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso.

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Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordes-tinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento.

Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco con-vencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma coisa estranha estava para acontecer.

Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as leis Afonso Arinos ou Maria da Penha e outros avanços da convivência civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era ne-gro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doi-do. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco. Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão, espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era Mói de Ferro.

Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, por-tador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram cogitadas.

Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60 chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco.

Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinô-nimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas pa-ragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era prove-niente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo formado por escravos fugidos do litoral.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta re-tinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados, provocando e fazendo algazarra. Parodiavam, cantarolando alto e bom som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco vai virar banana”.

E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela, quem vai te comer sou eu”.

Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir com energia para acabar aquela libertinagem.

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As pegadinhas de Lói

Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natu-reza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas, nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas da carochinha anunciadas por Továrish Lói.

Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes.

Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói com cara de rapariga.

Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é re-gra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patra-nhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de comunista de carteirinha, como a gente já sabe.

Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior con-fiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País. O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB. Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias.

Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso mui-tos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele en-controu no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Mor-se. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semia-nalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chama-da Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados Unidos.

A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é sério mesmo, deixa Továrish continuar.

Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas.

Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele esta-va mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos dese-nhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse zé Carioca, personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante.

Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora garga-lhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre todo dia, comentou um gaiato.

A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já se multiplicavam os comentários. Finalmente, com o precário silêncio, Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada.

A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em pouco tempo já parecia um pequeno comício.

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Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabe-luda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada, nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava.

Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxi-ma, Továrish.

A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango.

Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2 mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Ama-zônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Re-cordes como a maior mentira de todos os tempos.

A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, de-pois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma, gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A mui-to custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conse-guiu impor algo parecido com silêncio.

Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo, com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites. Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chama-do Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem humoristas.

Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de caro-chinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar o silêncio. Impossível prosseguir.

E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do men-tiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito perti-nentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de Lói são cinco. Que cara mais gaiato.

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Morra a caterva vermelha

Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem pé nem cabeça, Lói?

Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não se-riam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fra-co das pernas, tinha data marcada para acabar. O presidente João Gou-lart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista. Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país, mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer.

Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco, construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da Re-pública por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora?

Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Ja-neiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam, quando muito, parar em Manaus.

Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém desproposita-das. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua história, das suas vitórias em campos de batalha e do seu nacionalismo.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento. Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista.

Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do co-mando da tropa. Logo ele, um boneco americano que só existe nos dese-nhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato.

E uma vaca fardada no comando de um movimento militar? Realmen-te a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca farda-da? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criativida-de e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com farda, quepe, espada e tudo o mais.

Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo podia ser verdade.

Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de en-cher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica meio enjoada, por isso não tem nada mais chato do que brincadeira in-sistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe.

Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cum-pade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guer-reiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra

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ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim.

Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tem-pos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada qual ir tratar da sua vida.

E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e cre-dibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comer-ciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento comercial.

Até então completamente alheio ao fuzuê, chegou com uma expressão transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Tová-rish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida aca-bou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País inteiro.

Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora sagrada do descanso depois do almoço.

Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreen-dentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversí-vel todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores de algodão do lugar.

Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondi-nho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredonda-do, meio que parecer com o teleférico carioca.

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[ 2 ] Revolução ou piada?

Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comer-ciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC, que significava Comando de Caça aos Comunistas e, segundo se dizia, estava se espalhando por todo o País.

De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrarie-dades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como vere-mos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e finan-ciava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém conseguisse provar.

Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde.

Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal, fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de pra-ça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da família e da propriedade.

Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a

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derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego das famílias de bem.

Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta.

E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964...

Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado.

Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus.

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Capítulo 3

O samba do crioulo doido

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

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TÃO LOGO RECUPEROU-SE, O MARECHAL, COMO BOM E altivo militar, tratou de minimizar a pilora. Não foi nada, afirmou, uma simples indisposição provocada por uma gripe mal curada, além desse clima horroroso do Cerrado, mais a emoção dessas notícias inespera-das. Disfarçava o desconforto e uma terrível dor de cabeça que, no seu caso, utilizando a linguagem politicamente incorreta da época, ocupa-va uma grande parte da área útil do seu corpo.

O senhor, como médico, deve estar a par de tudo, principalmente do meu estado emocional, para não fazer diagnósticos precipitados. Meu caro coronel, médico do glorioso Exército Brasileiro, não lhe conto a malfa-dada notícia que acabei de receber e que me tirou do sério. Imagine que Deus vai ser julgado numa cidadezinha do interior de Pernambuco.

Suspirou fundo e prosseguiu: Até onde sei, é a primeira vez que alguém tem a ousadia de colocar Deus no banco dos réus. E olhe que não se trata de uma deidade pagã e extinta, ou um deus primitivo e bárbaro. Muito menos um animal ou um dragão, que aqui e acolá são adorados. Nem mesmo o sincrético Xangô ou o brasileiríssimo Zé Pilintra. Muito menos trata-se de Alá, que no Brasil não tem muitos seguidores, podia ser posto sub judice sem problema nenhum, toda ausência é atrevida. Mas não, meu caro coronel. Querem julgar o nosso Deus, o símbolo maior da civilização ocidental, o mais alto inspirador da nossa Revolução Redentora de 31 de março desse glorioso ano de 1964. Ou seja, desculpe o trocadilho, está na cara que se trata de uma iniciativa de má-fé com o nosso governo.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

Excitado, o marechal mal conseguia uma trégua para respirar. E pros-seguiu sem dar chance sequer para o médico tentar acalmá-lo.

Estando certo o chanceler, o réu desse caso é o Deus todo poderoso, cria-dor do céu e da terra, o Deus de Abrão, Isaac, Moisés, Davi e Salomão, o pai da matéria, o criador nosso que está nos céus, aquele que dispõe so-beranamente sobre os nossos destinos. Pois o Senhor Deus dos Exércitos vai ser julgado como se fosse um simples meliante, ou um mero subversi-vo, o que é um achincalhe muito maior.

E o pior de tudo é que fui o último a saber, como se Boi Pintado, em vez de um próspero município brasileiro e pernambucano, fosse uma provín-cia localizada no mais remoto interior do Paquistão. Para o senhor sen-tir o meu drama, até o papa João XXIII, o presidente Lindon Jonhson, a rainha Elizabeth, os líderes comunistas Mao Tsé Tung e Fidel Castro, todos já estão a par do caso. Enquanto eu, presidente dos Estados Uni-dos do Brasil, estava completamente desinformado, comendo mosca. Os que não gostam de mim podem me chamar inclusive de aluado, lunático, abestalhado; nesse caso teriam toda a razão.

Depois de um lapso que pareceu a eternidade, retomou a palavra, ba-lançando a enorme cabeça: Uma coisa inédita, atrevida, que nos expõe ao ridículo no conceito das nações civilizadas. E ainda tenho que aguen-tar me chamarem de ditador.

O regime ainda não tinha assumido que era uma tirania, com todas as letras, como faria em 1968. Embora o clima fosse pesadíssimo no País inteiro, muita gente fazia trocadilhos debochados com o novo gover-no. Não faltava quem, tirando onda com os novos donos do poder, chamasse a ditadura ora de democradura, ora de ditamole.

O marechal exigia um apoio moral e cívico devidamente verbalizado. Os senhores não acham isso um absurdo completo? Embora sem enten-der se o marechal se referia ao julgamento ou ao fato de lhe chamarem de ditador, o chanceler e o médico desistiram do quem cala consente

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e acabaram se manifestando: Sem dúvida, excelência, um absurdo total. Aliás, muitas coisa naqueles dias eram um absurdo total.

Por isso, recomendava a prudência que ninguém achasse nada. O últi-mo que achou nunca mais foi achado, faziam trocadilhos por aí.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

As aparências não enganam

Concordar, naquele ambiente, era passaporte para continuar nas gra-ças do poder. Apesar dos fumos democráticos que pretendia exalar, o marechal deixou claro desde o início que o governo iria respirar o ar impositivo e hierárquico que prevalecia nos quartéis.

Já dissemos que ele adorava piadas de caserna. Pois durante a primeira reunião ministerial, que deveria ter sido solene e formal, replicou uma brincadeira de muito mau gosto, repetindo o comportamento de sar-gentos do tipo mal encarados na recepção aos recrutas.

Escolheu para vítima o ministro da Educação, um civil conhecido pela tolerância do seu pensamento, e que parecia o mais nervoso e desambientado de todos. Danou-se a fazer perguntas sobre a pasta, querendo saber detalhes que dificilmente o auxiliar teria tido tempo para assimilar e citar de cor.

Qual verba para o ensino fundamental, ministro? Não sei, vou me in-formar, presidente. Quantas escolas técnicas federais estão em funciona-mento, ministro? Não sei, vou me informar, presidente. E o marechal foi repetindo indagações, cada qual dirigida de forma mais áspera, sem o interrogado conseguir atinar com a resposta para nenhuma delas. O ministro, apavorado, suava mais do que tampa de chaleira e tinha perdido a condição de raciocínio. Chegara o momento da piada. O presidente o encarou severamente, mandou prestar muita atenção e sapecou a pergunta, dedo em riste, no tom mais agressivo possível: Qual o seu nome, ministro?

Não deu outra. Completamente desarvorado, o interlocutor já não ouvia mais nada. Caiu na armadilha feito um aruá: Não sei, vou me informar, presidente.

O ministro da Guerra puxou a gargalhada, os ministros militares, mes-mo os que não gostavam do marechal, riram com gosto. Ao contrário

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dos civis, que o fizeram visivelmente constrangidos, exibindo um tí-mido sorriso amarelo.

Só pela narrativa desse bizarro episódio é fácil compreender por que os auxiliares civis evitavam qualquer encontro com o chefe. Diver-gir dele, então, nem pensar. Era um lobo com modos de cordeiro. Só quem usava a prerrogativa de expressar opinião contrária eram os mi-nistros militares representantes da chamada linha dura, apelidados de gorilas ou também de hidrófobos, em alusão à doença que deixa os cachorros literalmente loucos. Esses trabalhavam para o regime aper-tar cada vez mais.

Conhecendo muito bem os meandros do poder, o chanceler sentiu que a fase mais difícil estava ultrapassada. Aproveitou, então, para a segunda etapa, que era tirar o dele da reta. Para isso, jogou mais lenha na fogueira de um auxiliar que o presidente detestava.

Repetiu que solicitara informações ao coronel do Serviço Secreto e tivera o silêncio como resposta. Como a pressão que sofria era grande, resolvera recorrer diretamente ao seu superior na cadeia de comando. Quem cumpre ordens não erra, arrematou, usando uma expressão de caserna para bajular o chefe.

Desde a primeira informação, o marechal já percebera o tamanho da bronca. Assumira para um mandato tampão que deveria durar até as eleições marcadas para o ano seguinte. A principal razão da sua esco-lha é que não era de linha nenhuma. Não contemplava nem ameaçava ninguém.

Apesar do apoio dos Estados Unidos e do clima da Guerra Fria, que dividia o mundo, os principais países da Europa, ciosos dos seus valo-res democráticos, olhavam com muita desconfiança a tal Revolução Redentora do Brasil.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

Era difícil que engolissem como democrático um golpe militar que desrespeitou a Constituição, cassou mandatos, suspendeu os direitos civis, exilou democratas e abarrotou os cárceres com presos políticos de todas as condições sociais.

A linha moderada, chamada de galinhas verdes, porque segundo os adversários não ofendiam nem a um pinto, ainda predominava nos discursos e notas oficiais. Seus partidários faziam um grande esforço para manter as aparências. Sustentavam o discurso de que os militares tinham violado a Constituição com o intuito de preservá-la, tomaram o poder para garantir a democracia, que estava ameaçada pelo comu-nismo ateu. Tão logo a caterva vermelha fosse eliminada, o governo seria devolvido aos civis. Foi essa a versão oficial para justificar o golpe. O mundo democrático não engoliu.

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A casa da Mãe Joana

No dia a dia, a disputa entre os dois grupos era um verdadeiro cabo de guerra, um permanente puxa-encolhe. O marechal representava um ponto de equilíbrio, um algodão entre os cristais. Conseguia condu-zir o governo aos trancos e barrancos, dando uma no cravo outra na ferradura.

Por conta dessa situação, diante daquele impasse crucial, o ditador não se sentiu seguro para decidir sozinho. Achou melhor ouvir opiniões de todas as alas e compartilhar as responsabilidades, como já fizera em outras ocasiões delicadas.

Convocou o ministro da Casa Civil, um militar intelectualizado e da sua estrita confiança, e explicou por alto a situação. Para ter tempo de se recuperar do faniquito que sofrera, solicitou uma audiência com o coronel chefe do Serviço Secreto, para as 17 horas, e outra, uma hora mais tarde, com o chamado núcleo duro do governo, acrescido do chanceler

Diante do quadro real do País e do seu governo, aquele desafio do julgamento de Deus era potencialmente explosivo. Internamente, constituía uma ameaça para sua precária liderança na tropa. No plano internacional, poderia gerar repercussões fatais para a imagem do seu governo. Era preciso montar uma estratégia bem pensada para lidar com aquela sinuca de bico.

Elogiou o chanceler. Fez bem em me procurar, agora volte para a sua trincheira e aguarde a reunião.

Ficou sozinho com o médico. Este aproveitou a oportunidade para recomendar com ênfase uma bateria de exames. O marechal relutou, mas foi convencido pela argumentação irretocável: Neste momento o senhor é a Pátria, esta não pode fraquejar.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

À época, dizia-se que o melhor hospital de Brasília era a ponte aérea para São Paulo. A cidade era nova, poucos profissionais de renome ti-nham arriscado transferência para lá, mas o marechal bateu o pé: só aceitou ser levado para os alegados exames de rotina no Hospital de Base da capital. Lá, foi examinado e reexaminado, realmente nada ha-via no coração. Fora apenas um pico de pressão causado pelo estresse.

Recolheu-se na companhia da equipe médica ao Palácio da Alvora-da, onde almoçou. A já descrita cabeça desproporcionalmente gran-de e completamente chata do presidente estava fervendo. Tomou uns calmantes para conseguir relaxar e dormiu algumas horas. Acordou ainda indisposto, mas fez um enorme esforço para não demonstrar. Precisava agir à altura das exigências do momento. Tratava-se do seu primeiro grande desafio. Era necessário corresponder ao que dele se esperava e calar os críticos de todas as condições. Para isso, tinha que acionar, como nunca antes, os recursos do seu quengo privilegiado.

Quando saiu do quarto, estava pronto para o combate. Incorporava o bordão militar de que o comandante é superior ao tempo. Fez questão desta vez de vestir sua farda de campanha para transmitir a todos que era uma questão de vida ou morte o caso que iriam tratar.

Já no Planalto, recebeu pontualmente o comandante do Serviço Se-creto. Na hora aprazada, ele chegou ao gabinete presidencial. Juntou ruidosamente os saltos dos coturnos e só não bateu a continência re-gulamentar porque as mãos abraçavam um monte de pastas. Tratava-se de um oficial tosco e eficiente, da arma da Cavalaria, com quem o ditador não tinha qualquer afinidade. Ríspido, foi direto ao assunto: Coronel, o senhor está a par dessa história do julgamento de Deus, em Boi Pintado?

O Serviço Secreto continuava mal estruturado. A maioria dos agentes se informava principalmente recortando notícias dos jornais que, na-quele momento, abusavam da autocensura. O órgão, realmente, estava passando batido pelo caso de Boi Pintado.

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No entanto, assim que recebeu o alerta do chanceler, o coronel caiu em campo. Despachou imediatamente seus melhores subordinados para Pernambuco, montou uma eficiente rede de informações.

Os agentes enviados tinham recentemente recebido treinamentos secretos no Panamá ministrados por instrutores franceses e norte-a-mericanos. Aplicaram os conhecimentos adquiridos, foi uma boa aula prática. Em 48 horas elaboraram um dossiê que, apesar de incomple-to, trazia informações sobre os mais variados ângulos da complexa questão.

Seguindo o lema de não interferir em nada, mas acompanhar tudo, mantiveram estreita vigilância na cidade, atualizando as informações quase em tempo real.

Assim, enquanto o chanceler perdia tempo esperando por uma ideia salvadora, o coronel preparava sua própria salvação. Por sabedoria, manteve segredo, não se reportou aos superiores. Preferiu aguardar ser chamado, sabia que logo isso iria acontecer. Assim, já que perdera o tempo de se antecipar ao problema, pelo menos quando acionado daria uma resposta imediata e precisa. Não deixava de ser uma prova de eficiência e presteza.

Durante uma boa meia hora, expôs detalhadamente o que sabia de todo o imbróglio. A complexidade envolvia não apenas o julgamento em si, como já adiantara o chanceler. Outras questões intrincadas se misturavam. Mostrou papéis, exibiu fotos, a cada dado que trazia, a contrariedade presidencial só fazia aumentar.

Ao término da explanação, o presidente indagou: O senhor tem algu-ma sugestão, coronel? Ao longo de toda a sua carreira, que ainda reser-vava muitos sucessos no futuro, ele só teve uma proposta para resolver qualquer problema. E tratou de enunciá-la: Sugiro que a gente prenda e arrebente, marechal.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

A conversa terminou. Àquelas alturas, o heterogêneo grupo convoca-do para a reunião já se encontrava na antessala. Em Brasília, as notícias correm. De um modo ou de outro, todos já sabiam do que se tratava. O marechal ordenou que se dirigissem para a sala de reunião. Numa deferência especial, caminhou segurando no braço do presidente da Câmara dos Deputados.

Apesar de dezenas de congressistas terem sido cassados, muitos deles presos e até seviciados, o presidente da Câmara Federal era figura obri-gatória naquela democracia de faz de conta. Apelidado de Cereja do Bolo, ficava de prontidão em Brasília, não apenas para participar de atos solenes, jantares em embaixadas, recepções a autoridades estrangeiras, como para integrar as reuniões estratégicas na condição de represen-tante do Poder Legislativo. Apesar de nunca abrir a boca nessas oca-siões, era apresentado como o legítimo porta-voz do povo brasileiro.

Outra figura importante era o presidente do Supremo Tribunal Fe-deral. O seu antecessor fora cassado como subversivo, e ele, indicado pelos militares, venceu por unanimidade a eleição entre os seus pares. Representava o Poder Judiciário.

Com mais esse jeitinho brasileiro, a divisão dos três poderes indepen-dentes e harmônicos que caracterizava a moderna democracia, segun-do o modelo clássico de Montesquieu, se convertia em verdadeira farsa tropical. O Brasil colocava suas instituições no mesmo nível das mais inexpressivas republiquetas de bananas.

Os demais participantes eram o ministro das Relações Exteriores, que não integrava o núcleo duro, mas neste caso específico era imprescin-dível; o ministro da Justiça, que todo dia rebolava mais do que baiana no bambolê, para tentar provar ao País e ao mundo que a ditadura era, na essência, democrática, e o governo constitucional anterior é que era uma ditadura comunista em gestação; o coronel chefe da Casa Ci-vil, administrava as difíceis relações do governo com líderes políticos e movimentos sociais que apoiaram o golpe.

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Completavam o grupo o comandante da Casa Militar, também da quota pessoal do presidente. Desempenhava um papel semelhante ao de Goebbels na administração de Hitler na Alemanha nazista e repre-sentava a corrente anticomunista e nacionalista das forças armadas; o ministro da Guerra, líder da linha dura, que achava o presidente fraco e só pensava em substituí-lo; além do coronel do Serviço Secreto e do general comandante da Polícia Federal.

Porém, o convidado mais importante, presença obrigatória em todas as tomadas de decisões estratégicas do País, era o embaixador dos Es-tados Unidos da América do Norte. Ou comparecia ou se fazia repre-sentar. Nada de importante se definia sem a sua aprovação.

As trapalhadas militares dos norte-americanos na execução do gol-pe, quando sequer dispunham de um mapa atualizado do País, não interferiram na condução política após a vitória. O embaixador dos Estados Unidos era um craque nas articulações, rapidamente botou o governo militar no bolso. Nomeou os ministros do Planejamento e da Fazenda e o presidente da Casa da Moeda, que eram os executores da política econômica, pautada por linhas do maior interesse das empre-sas estrangeiras. Em menos de 15 dias, para desconforto da ala nacio-nalista, ocupou a posição de indiscutível eminência parda do regime.

Pode até parecer mentira, mas essa influência era tão grande que os nomes do ministros eram traduzidos para o inglês. E assim eram men-cionados, até pela imprensa. Roberto Campos, destacado artífice da política econômica da ditadura, era chamado por todos, inclusive nos noticiários, de Bob Fields.

O embaixador era informadíssimo. Sabia de tudo, até das conversas pessoais do presidente, por telefone ou rádio.

Assim que a reunião foi aberta, o ministro da Guerra, que não respei-tava nem perdia oportunidade para hostilizar e desafiar a autoridade do presidente, tomou a palavra. E foi logo vociferando no seu linguajar

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

grosseiro e totalmente inadequado ao ambiente: A culpa desse imbró-glio só pode ser desse cagão que você nomeou para comandar o IV Exér-cito. É um molenga, um calça-frouxa, um imbecil que deveria ter sido cassado desde a primeira hora.

O coronel da Casa Militar, por sua vez, defendia o presidente a ferro e fogo. Nem pediu permissão e foi logo revidando, em clima de bate--boca: Permita-me discordar, Excelência. Os comandantes militares são diretamente subordinados ao senhor. E não me consta que a demissão do general do IV Exército tenha sido solicitada por sua pasta. Mas nem por isso vou-lhe atribuir responsabilidades pessoais.

Fechou-se o tempo, cada qual querendo fazer prevalecer sua opinião. O coronel do Serviço Secreto, para não ficar por baixo, vociferou que a culpa era dos comunistas, inspirados por Che Guevara e Fidel Castro e financiados pelo ouro de Moscou.

Foi preciso o presidente, contrariando o estilo mais ameno que procura-va exibir, bater na mesa pela segunda vez naquele dia para conseguir ser ouvido. Senhores, eu não quero saber de quem é a culpa, isso a gente apura depois. Precisamos tomar decisões e montar nossa estratégia, o tempo urge. E solicitou ao coronel do Serviço Secreto que fizesse uma ampla exposi-ção, de modo a nivelar as informações para todos os presentes.

Para quê? Na conversa anterior com o presidente, apenas os dois na sala, o coronel até que se saíra bem. Mas ali, na presença de todas aquelas altas patentes, atrapalhou-se todo. Acostumado a dar e receber ordens, era ainda totalmente inexperiente em exposições complexas como aquela. Tinha preparado um roteiro às pressas, perdeu-se na lei-tura dos tópicos.

Bem, senhores, temos uma situação bem complicada em Boi Pintado. O xerife, ao que tudo indica, perdeu o controle da situação. O beato que ressuscitou é dos meus, quer acabar com o julgamento a bala. A Dama de Ouro é a principal suspeita no desaparecimento do dinheiro arrecadado,

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embora o juiz de direito também deva ser investigado. Sabemos que os Tetéus são os responsáveis pela ideia do julgamento, mas temos certeza de que os Fantasmas Vermelhos também não estão inocentes no caso. Os Marimbondos e os Embola-Bostas lavaram as mãos.

Parou um pouco, passou a vista pela plateia, todos estavam boquia-bertos. O coronel interpretou mal, pensou que estava abafando e prosseguiu: Ainda estamos investigando até que ponto o mistério da freira virgem que está grávida está relacionado com a instalação desse tribunal inaceitável. O caso da vaca no telhado foi devidamente apurado e não teve qualquer conotação política. O abalo sísmico é caso bem encaminhado, deve ficar onde já está, no círculo técnico e científico. Não há provas do envolvimento do arcebispo comunista do Recife, mas para mim ele está por trás de tudo. Para resolver o caso, os senhores conhecem o meu pensamento. Até já disse ao presidente. Por mim, a gente prende e arrebenta.

Apesar da inquestionável gravidade do assunto, todos estavam se se-gurando para não rir. Que conversa maluca era aquela, ninguém es-tava entendendo patavina. Parecia uma reunião oficial do FEBEAPÁ, o Festival da Besteira que Assola o País, criação do imortal Stanislaw Ponte Preta. Utilizando esse pseudônimo, o genial jornalista Sérgio Porto ridicularizava o regime com o simples relato de situações absur-das que se multiplicavam por todo o território nacional.

Sentindo que estava perdendo a parada, só restou ao presidente recor-rer ao embaixador, que, até então, ouvia tudo profundamente concen-trado, com a cabeça apoiada nas mãos.

O diplomata falou direto e objetivo: O único ponto que realmente preocupa é a questão do julgamento de Deus, o resto é café pequeno. Na boca dele, graças ao sotaque, a expressão bem brasileira ficava muito divertida. Antes de anunciar sua posição, entretanto, precisava consul-tar a Casa Branca. Em assuntos que envolviam o Vaticano não tinha autonomia.

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[ 3 ] O samba do crioulo doido

O ministro da Justiça aproveitou para puxar o saco dos americanos: Então vamos esperar, temos que ficar alinhados. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.

Não era à toa que difamadores de plantão alimentavam o boato de que o governo militar iria mudar o nome do nosso País, que na época era oficialmente Estados Unidos do Brasil, para Brasil dos Estados Uni-dos. O presidente, mais uma vez, balançou a cabeçorra, estava preocu-pado; o resultado da reunião não lhe agradara em nada.

Ninguém do governo conseguiu falar a mesma língua e ainda tinham que ficar imobilizados esperando uma ordem de Washington. Nessa marcha, pensou cantando a pedra, não demora e algum engraçadinho vai dizer que o nosso governo é um samba do crioulo doido.

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Capítulo 4

Terremoto pra ninguém botar defeito

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VOLTANDO AO PRIMEIRO DE ABRIL DE 1964. EM BOI Pintado, o dia estava longe de terminar. Aliás, passou para a história do município como o dia que nunca acabou.

Antes de ir adiante, vamos logo esclarecer uma a uma as sete supostas pilhérias que teriam sido armadas por Továrish Lói, em relação ao gol-pe. Na verdade foram apenas cinco ou seis, ninguém contou ao certo. Erroneamente entendidas no primeiro momento como criativas brin-cadeiras alusivas ao dia internacional da mentira, no frigir dos ovos, eram todas rigorosamente verdadeiras. Algumas um pouco distorci-das, é verdade, devido à limitação do camarada na arte da decifração das informações telegráficas, como ele mesmo declarou na ocasião.

Primeiro, apesar do ridículo e aparente absurdo, os norte-americanos denominaram mesmo a operação golpista de Brother Sam. A utiliza-ção de um nome estrangeiro, chamando o famoso Tio Sam de irmão, era uma espécie de recado apaziguador dos norte-americanos. Apesar de iniciarem as ações sem combinação e sem um comando unificado, qualquer divergência entre os golpistas não passava de uma arenga de irmãos. No que era fundamental, estavam fraternalmente combinados.

Em segundo lugar, o comando da operação que deslocou as tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro foi mesmo tratado em código como Popeye. Por que, não me perguntem. Se foi alguma gaiatice in-feliz ou mesmo uma forma sutil de protesto de algum oficial superior inconformado com o rumo dos acontecimentos, não interessa. A his-tória do Popeye era mesmo verdadeira.

Já a questão da vaca no comando, também não surgiu da treslouca-da imaginação de Továrish Lói. Nem de nenhum detrator das forças

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armadas. Pelo contrário, foi o próprio general que se saiu com essa. Na sua primeira entrevista, quando perguntaram sobre os rumos políti-cos do movimento que comandava, não se fez de rogado.

Respondeu que entendia de exército, estava pronto para falar sobre a operação militar em curso, mas que quem podia responder sobre rumos políticos do movimento eram os próprios políticos aliados. E em seguida cunhou a frase inacreditável, embora sincera, espetacular e inesquecível: Em matéria de política, eu sou uma vaca fardada.

No tocante à frota, a informação também era noventa por cento cor-reta. Os americanos mandaram mesmo uma esquadra para tomar conta do Brasil.

Ontem, como hoje, os Estados Unidos não tinham o menor pudor em promover intervenções militares com os mais diversos objetivos. Na década de 1960 do século XX, a situação era ainda pior: enfrentavam inimigos poderosos e engoliam revezes amargos. A Guerra Fria estava no auge, o mundo já era ocupado em um terço por países socialistas. O Vietnã, que deveria ter sido um passeio militar para os americanos, estava se transformando num pesadelo. Cuba plantara um Estado so-cialista nas barbas dos Estados Unidos.

Para não sofrer outras rebordosas nos seus arredores e blindar a Amé-rica Latina como área de sua quase exclusiva influência, os norte-ame-ricanos definiram como prioridade para a região a instalação de gover-nos totalmente confiáveis. O Brasil, como o maior e mais vulnerável país do continente, foi escolhido para servir de exemplo.

Durante anos, como foi dito, os norte-americanos prepararam a inter-venção. O caso era tão prioritário que ocupou a atenção pessoal do presidente Kennedy e depois do seu sucessor, sendo que esse acabou levando toda a culpa.

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Kennedy, com aquela cara charmosa de bonzinho e mártir, foi quem atolou os Estados Unidos na guerra do Vietnã, açoitou Cuba como pôde e planejou uma política intervencionista na América Latina. Isso já era sabido de longa data. Mas nas vésperas dos 50 anos do golpe, tornou-se público e documentado.

Os americanos desenvolveram no Brasil, nos anos que antecederam ao golpe, uma política com duas faces. De um lado, praticavam e financia-vam espionagem, sabotagem, corrupção, atividades políticas e conspi-ratórias, compra da opinião de setores da imprensa e coisas afins e cor-relatas. Do outro, realizavam ações humanitárias, distribuindo comida, roupa e outras benfeitorias com as populações pobres do País.

Também financiavam atividades culturais, bolsas de estudo e por aí vai. Era a badalada Aliança para o Progresso. Os adversários, comunis-tas provavelmente, adulteravam o para em todas as placas disponíveis. De modo que transformando a proposição em verbo, e escrito Aliança pára o Progresso, o título do programa ficava com o sentido totalmen-te distorcido.

Entidades conspiratórias como o IPES e o IBAD eram mantidas por grandes empresários ou financiadas abertamente pelos norte-ameri-canos. Encarregavam-se de financiar a desestabilização do governo, a compra de formadores de opinião, ações de sabotagem. Em síntese, espalhavam o terror. Os jornais traziam sempre editoriais apavorantes. Os comunistas eram tratados como verdadeiros papa-figos. Dizia-se que comiam criancinhas, não como muitos padres da Igreja fazem até hoje, e sim por via oral. Não havia nenhum setor da vida brasileira que não estivesse contaminado pela atuação de agentes e espiões.

Com o apoio da Igreja conservadora e das entidades empresariais, senhoras da sociedade organizavam Marchas da Família com Deus e pela Propriedade que arrastavam centenas de milhares de reacionários pelas ruas das grandes cidades.

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Apesar de todo esse conjunto de evidências, os generais fiéis ao pre-sidente João Goulart garantiam que tudo não passava de espuma. A situação da tropa, segundo eles, estava sob total controle. E sem a ade-são dos militares nem os civis conspiradores, muito menos a imprensa golpista e sequer os arrogantes ianques ousariam partir para um con-fronto direto com o governo.

Lamentavelmente para a democracia, os oficiais legalistas estavam redondamente enganados. Entraram na onda que envolvia os parti-dários do governo e os defensores da ordem. As pessoas tendem a se acostumar com tudo, a se adaptar a qualquer situação. Com o tempo, a conspiração que se prolongava acabou por ser incorporada pelos lega-listas como algo natural ao cotidiano da democracia brasileira.

Até Leonel Brizola, que quando da renúncia de Jânio Quadros garan-tiu a posse de João Goulart comandando a imortal Cadeia da Legali-dade, a partir do Rio Grande do Sul, desta vez passou batido. Os seus grupos dos 11, conjuntos de células nacionalistas espalhadas pelo Bra-sil inteiro, não estavam prontos para resistir. Tanto que Brizola, então deputado federal pelo Rio de Janeiro, acabou indo para o Rio Grande e, seguindo a trajetória do presidente, optou por se exilar no Uruguai.

Entretanto, embora não sirva de consolo, não foram só militares lega-listas brasileiros que avaliavam mal a situação e passaram atestado de incompetência. Os ilegalistas norte-americanos, tanto militares como das agências conspiratórias tipo CIA e outras, também não deram ne-nhuma aula de eficiência. Aliás, até hoje a grande nação do norte acaba se impondo mundo afora mais pela força do que pela inteligência.

Nem sempre a força resolve. Haja vista o caso de Cuba. Desde quando Fidel Castro e Che Guevara proclamaram o socialismo na ilha, os ame-ricanos tentam derrubar o governo, em vão. Foram mais de 200 atenta-dos, dezenas de tentativas de invasão, todas derrotadas. Isso contra um país pobre e sem armamentos sofisticados. Os ianques, por mais recur-sos e pessoal que conseguissem mobilizar, levavam sempre na cabeça.

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Derrotados no campo de batalha, vendo fracassados seus métodos terroristas, recorreram ao bloqueio econômico, uma coisa que teori-camente nenhum país suportaria. Pois como todo mundo sabe, Cuba resistiu e resiste até hoje. Fidel só não vai morrer eleito e reeleito pri-meiro-ministro a cada legislatura, pela vontade do povo cubano, por-que reconheceu que estava debilitado e passou a honraria para o seu irmão, Raul.

Já no caso do Vietnã, onde em 1964 já estavam atolados sem retor-no, demoraram quase uma década para bater em humilhante retirada, transmitida já então ao vivo pela televisão.

Outros exemplos contemporâneos de total ineficiência do interven-cionismo norte-americano são os do Iraque e Afeganistão. No primei-ro, para derrubar um tirano de opereta que já não se aguentava nas pernas, precisaram invadir o país duas vezes. Gastaram um trilhão de dólares, quantia mais difícil de imaginar do que a distância que separa a Terra da estrela Alfa.

Apesar disso, não conseguiram nem impor a paz nem formar um governo eficiente. Depois de anos, bateram em retirada, deixando o caos para trás.

No Afeganistão, o caso é ainda mais desmoralizante. À frente de uma coalizão de países europeus cujos governos submissos enviam tropas para tentar legitimar uma agressão injustificável, não conseguiram até hoje ganhar a guerra e sequer têm condições de bater decentemente em retirada. E olhe que ali seus adversários são os tais talibãs, um gru-po tão atrasado que suas mulheres vivem aprisionadas da cabeça aos pés, dentro de jaulas de pano.

Isso tudo para não falar no nebuloso episódio Bin Laden. Para deto-nar um terrorista das cavernas, apontado sem provas de ser o mentor dos atentados de 11 de setembro, empreenderam uma caçada que du-rou mais de dez anos. Os americanos gastaram bilhões de dólares na

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operação. Enquanto isso, o alvo da implacável perseguição vivia pa-litando os dentes, em companhia de várias mulheres e muitos filhos menores. Tinha endereço certo e sabido, uma residência confortável localizada em país aliado dos Estados Unidos, na vizinhança de um complexo militar. Recebia em domicílio até contas de telefone e de cartões de crédito.

Portanto não espanta a quase participação da fantasmagórica frota dos Estados Unidos no golpe de 1964. Documentos recentemente libe-rados para consulta nos arquivos americanos comprovam: os caras mandaram um porta-aviões batizado de Navegador das Florestas e um magote de cruzadores. Estes vinham entupidos de marines, aqueles soldados invencíveis que nos filmes de Hollywood são o cão chupan-do manga. Tinham ordens expressas para subir o Rio da Prata e depor o presidente João Goulart. O comandante só descobriu que Brasília não era Buenos Aires quando, já nas costas brasileiras, recebeu infor-mes de espiões que alertaram sobre a trapalhada.

Chegaram tarde para a festa. Sem ter a menor ideia de como levar sua frota até o Lago Paranoá, em Brasília, o comandante preferiu ficar aguardando os acontecimentos à altura das costas do Espírito Santo, esperando que, talvez, o patrono do pequeno e simpático estado ilu-minasse o seu navegar.

E assim, sem destino, com medo de enfrentar cobras e jacarés nas ruas das cidades brasileiras, perigo para o qual fora devidamente alertado antes da partida, não houve sequer desembarque dessa frota das ará-bias. No início do ano de 2014, o tal porta-aviões foi vendido como su-cata por menos de 1 dólar. Quem pensa que negócios esquisitos com o patrimônio público são exclusividade do Brasil está muito enganado.

Além da questão geográfica e de terem chegado tarde para a festa, fal-tou combinar com os generais da linha dura. Esses, como foi dito, que-riam o apoio americano, é claro. Mas não toleravam que militares es-trangeiros aparecessem dando ordens ao Exército Brasileiro. Por baixo

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dos panos, tudo bem estarem acertados. Mas, para todo o mundo ver, necas de pitibiribas. Constatado tudo isso e com o golpe vitorioso, a frota deu meia volta e retornou para onde nunca deveria ter saído.

Bem, só falta agora para restaurar a credibilidade total das notícias de Továrish Lói esclarecer a questão do general Cruel que, segundo seu relato, atormentava naquele momento o Rio de Janeiro. Pois bem, também aqui não tem nada de brincadeira.

Quem comandou a ocupação da Cidade Maravilhosa foi um general batizado com o nome de Amauri e carregava o sobrenome de família Krúel. Como é costume nas forças armadas, o sujeito acaba conhecido por um nome de guerra, de modo que Krúel era tratado por Kruel.

Convenhamos que não era o nome mais simpático do mundo. Ao longo da vida, foi vítima de muitas brincadeiras e pilhérias dos pró-prios colegas de farda. Ele não gostava mas aguentou calado. Como quem espera sempre alcança, desde que se tornou general, exigia ser chamado pelos subordinados de Krúel, assim mesmo, como se o ú fos-se acentuado. Depois do golpe, um jornalista atribuiu-lhe um slogan: Krúel, o Cruel. Foi preso e levou umas borrachudas para aprender a não brincar com coisa séria.

O indiscutível toque de humor e ridículo da situação não deve servir de pretexto para desviar a atenção das arbitrariedades e crueldades do regime. Nesse aspecto, a ditadura já começou com a corda toda, em-bora, depois de dezembro de 1968, o quadro que já era ruim tenha ficado muito pior.

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Tem cara de tomada? É porco

A ditadura não foi apenas perpetrada no dia primeiro de abril. Tinha todo o jeitão de um primeiro de abril. Um bregueço desses, acontecido em período de lua minguante, não pode dar certo, vai acabar em mer-da, sentenciou Cumpade Deca naquela mesma noite.

Ali, em Boi Pintado, todas as complexas questões que antecederam ao golpe ganhavam inevitável tempero local. Como todo mundo sabe, a vida no interior, nos anos 60 do século XX era muito diferente da dinâmica vivida nos grandes centros urbanos.

A distribuição de alimentos da Aliança para o Progresso era farta, fortalecendo o grupo político do monsenhor Afonso. A juventude estudantil disputava palmo a palmo a direção dos grêmios escolares do Ginásio Marista, do colégio das freiras e do Grupo Ana Faustina. Direita e esquerda se disfarçavam para burlar as direções dos estabe-lecimentos, sempre vigilantes a respeito de contaminações ideológi-cas fora da doutrina cristã, especialmente contra o perigo comunista.

Já na Associação Boi-Pintadense de Estudantes – ABPE, o embate fi-cava menos obscuro, o que não quer dizer que ficasse claro. A disputa era tão acirrada que nas últimas duas eleições tinha prevalecido o en-tendimento: como ninguém alcançava maioria, optaram por dividir cargos e funções.

Os latifundiários usavam seus capangas para perseguir camponeses or-ganizados. Pelo outro lado, existia na cidade um Grupo dos 11, as tais células que o nacionalista Leonel Brizola espalhava pelo País; uma As-sociação Cultural Brasil-URSS, reduto dos velhos comunistas; o CCC de Raul Bondinho. Os conflitos nacionais também se reproduziam na cidade, sob o manto falacioso de uma vida mansa, pacata, tranquila.

Na noite daquele primeiro de abril, os reacionários continuavam comemorando o golpe. Nunca se imaginou que a turma do CCC

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juntasse tantos adeptos. Embora muitos cidadãos de bem tivessem educadamente recusado as ofertas de bebida de graça, os bares es-tavam cheios. De vez em quando um grupo ia para o meio da rua e soltava rojões ou dava tiros para cima. Esse era o clima.

Para evitar problemas, os Tetéus se reuniram reservadamente desde o fim da tarde na casa de Cumpade Deca com o objetivo de avaliar os acontecimentos. Ouviram primeiro em possante rádio de ondas curtas os noticiários internacionais, que ainda pouco esclareciam sobre o golpe.

Depois de informados com as notícias disponíveis, passaram a discu-tir a situação. Botaram o golpe em votação e o resultado foi unânime: primeiro, entendiam que a quartelada era irreversível, tinham que se preparar para conviver com o que viesse dela. Depois, ninguém ali apoiava a ação militar. Entretanto, para não criar galinha e dar pin-to para os outros, comunistas, brizolistas ou o que mais fosse, resol-veram que iriam esperar a marcha dos acontecimentos em cima do muro. Decidiram manter a unidade e fazer tudo em conjunto.

E se deixaram ficar ali em segurança, se saíssem para a rua, corriam o risco de, no mínimo, ouvir provocações. Embora não fossem comu-nistas, suas ideias jamais pareciam convencionais, de modo que não tinham nenhuma simpatia do CCC. Conversa vai, conversa vem, To-várish Lói deu uma tapa na testa. Pessoal, a gente só foi surpreendido pelo golpe porque não acreditou no que o beato Elias disse na calçada da igreja no dia de São José. Quem se lembra?

Todos lembravam, por terem assistido ou por ouvir dizer. No dia 19 de março, exatamente quando Boi Pintado festeja o seu padroeiro São José, aconteceu um fato cujo alcance passou desapercebido por todos na ocasião.

O beato Elias era uma figura enigmática, dotado de carisma e ainda meio que novidade. Data festiva, feriado municipal, fez a sua primeira

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aparição na praça central da cidade. Logo que terminou a missa so-lene, o beato subiu na calçada da igreja e despejou sua pregação ha-bitual, recheada de citações que ele decorara de tanto ouvir Frei Da-mião citar o Antigo Testamento.

Toda profecia que se preze, quer seja feita por beatos, messias, ciganos, pitonisas, sacerdotes ou adivinhos de qualquer qualidade, é sempre proferida, desde tempos imemoriais, em linguagem genérica, herméti-ca e ambígua. De modo que, não dando certo, como habitualmente não dá, alguém pode sempre dizer que não era bem aquilo que se previa.

No reverso, qualquer acontecimento notável pode a qualquer tem-po ser enquadrado como se tivesse sido profetizado. Trocando em miúdos, geralmente os profetas não erram nada e em compensação jamais acertam coisa nenhuma.

Com o beato Elias era igual. Desde o dia em que ressuscitou misterio-samente, descendo do céu pilotando uma carruagem de fogo, numa localidade chamada Oratório, depois de ter sido morto na frente de várias testemunhas e enterrado em caixão de aroeira, vivia pregando suas ameaças, se deslocando de uma localidade para outra, seguido por uma dúzia de fanáticos discípulos e atraindo sempre grande audiência.

Com barbas grandes, cabelo desgrenhado, vestindo um camisolão sujo e portando um cajado na mão direita, parecia a reprodução de uma estampa de Antônio Conselheiro ou ainda o personagem Moisés, representado por Charleston Heston no consagrado filme Os Dez Mandamentos, de Cecil B. de Mille, tantas vezes assistido e aplaudido no Cine-Teatro.

A diferença dele para os outros profetas, beatos e penitentes que pro-liferavam pelo interior do Nordeste do Brasil é que usava um chapéu de cangaceiro e andava sempre, segundo se dizia, com armamento pesado e farta munição escondidos sob a túnica. Ou seja, como Trot-ski ou Maomé, era um profeta armado.

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Na sua vida terrestre anterior, que nem estava tão distante assim, Elias tinha sido o perigoso pistoleiro Mané Tiro Certo, de infalível pontaria e maldade sem limite. Fez carreira a serviço do coronel Ho-norato Francisco das Chagas, durante muitos anos senhor absoluto de Boi Pintado e região.

Tiro Certo serviu ao chefe com total fidelidade. Executou dezenas de adversários, nunca se negou a cumprir nenhuma ordem. Não tira-va folga nem aos domingos. Em compensação, ia longe atrás de uma missão, principalmente de Frei Damião. Muitos ajustes de contas ti-veram que esperar porque Tiro Certo estava peregrinando atrás de algum beato ou profeta.

A grande mudança da sua vida ocorreu exatamente quando retor-nou de uma dessas atividades missionárias. Chegou em sua humilde e isolada casa, naturalmente sem aviso, e flagrou o que para ele era inimaginável. O seu chefe e ídolo estava em chamego com ninguém menos que sua própria esposa, uma bela cabrocha que era a razão do seu viver. Sentiu uma decepção tão grande que nenhum ser humano será capaz de sofrer outra igual, por mais que esse mundo dure.

Para muitos, ser corno do coronel Honorato representava verdadeira distinção. Tinha cabra que fazia questão de ele mesmo espalhar a no-tícia, para se dar ares de importância. Sabe quem tá comendo minha mulé? Né qualquer pé-rapado não, meu filho, é o coronel Honorato, em pessoa. Era uma honra. Para o fiel Tiro Certo, porém, foi a maior desgraça da vida.

Apontou a pistola para a cabeça do conquistador, não teve coragem de atirar. Desviou para a cabeça da mulher amada, o resultado foi o mesmo. Saiu para o terreiro, atirou no quengo da burra de estima-ção do coronel, que pacientemente esperava por ele, como de hábito acontece com as burras de sela. Foi uma espécie de sacrifício substi-tutivo, parecido com o que Jeová providenciou para Abraão e Isaac.

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Só que no episódio bíblico quem pagou o pato foi um cordeiro desco-nhecido e agora a vítima foi uma burra de estimação.

Naquele ato tresloucado decorrido da violenta emoção, começava a nascer o beato Elias. Mané não quis saber de conversa nem explica-ções. Danou-se no oco do mundo. Passou dias vagando pelos matos, comendo o que encontrava, enchendo a cara de graça nas bodegas. O misticismo sertanejo armazenado no seu íntimo foi aflorando aos poucos e dominando o seu pensar. Até que chegou numa bela tarde em Boi Pintado, totalmente embriagado e ficou fazendo discursos de doido religioso pelas ruas.

O coronel, mesmo tendo merecido a misericórdia do pistoleiro, e pro-videnciado o despacho da mulher adúltera para longe, não queria cor-rer riscos. Deu ordem para prendê-lo, coisa que ele aceitou sem reação. Na porta da cadeia, levou um tiro de rifle pelas costas vindo ninguém sabe de onde. Foi arrastado pelo sargento Isidoro, seu parceiro de es-tripulias e violências de longa data, para dentro da delegacia, onde agonizou no chão duro da cela.

O sargento em pessoa comunicou a morte de Tiro Certo ao coronel e recebeu a missão de providenciar o enterro. Comprou um caixão de aroeira na Funerária Caminho do Céu, por conta do chefe político, naturalmente. E de manhã bem cedo, acompanhado do cabo e dois soldados que ajudaram a carregar o caixão, levou o defunto na cami-nhonete da Prefeitura direto para o cemitério, onde o pistoleiro foi en-terrado em cova rasa.

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A ressurreição do profeta

De modo misterioso e contraditório, como costuma acontecer nes-ses casos, Tiro Certo ressuscitou poucos dias depois. Pelo menos foi o que disseram algumas mulheres que exerciam a profissão de lava-deiras. Tendo saído de casa antes do sol nascer com suas trouxas na cabeça para lavar a roupa no açude de seu Elizaldo antes do sol es-quentar, elas juram que vislumbraram o vulto de Mané, vestido com um estranho camisolão, pulando o muro do cemitério.

Enxergar um vulto ao amanhecer tem o mesmo valor probatório de receber um aviso em sonhos. Mas essas questões de religião e crendi-ces em geral dispensam de longe os rigores de um inquérito judicial. Quando se trata de fé, prevalece sempre a versão na qual o povo acre-dita e fica repetindo.

Naquele dia, o coveiro Mão de Anjo, na sua rotineira revisão matinal do cemitério, deparou-se com a cova de Tiro Certo aberta. O túmulo estava arrodeado de pedras brancas com velas acesas entre elas, o cai-xão arrebentado e vazio. No seu interior restavam apenas resquícios de um misterioso pó branco.

Desde esse dia, Mané Tiro Certo virou um mistério. Dizem que apa-recia para alguns escolhidos, mas isso nunca foi comprovado. Até que, numa noite gloriosa, cerca de quarenta dias depois do evento das lavadeiras, o pistoleiro ressuscitou oficialmente.

Uma ressurreição de verdade, espetacular e comprovada. Tiro Cer-to desceu no meio da rua da localidade de Oratório, conhecida por sua religiosidade, pilotando uma carruagem de fogo e escoltado por quatro anjos. Pelo menos foi o que juram ter visto dezenas de teste-munhas de todas as idades. Além disso, o matador, ou ex-pistoleiro, como queiram, passou a ter nova vida terrena. Apesar da indumen-tária e do novo linguajar, podia-se tocar no seu braço e ver que era real, em carne e osso. E quem o conheceu na outra vida não tinha a

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menor dúvida: era mesmo Mané Tiro Certo, agora autoproclama-do como o beato Elias.

Tiro Certo ganhou esse apelido na sua primeira vida porque nunca errava uma moedinha de tostão atirada para cima, arrancava o fun-do da garrafa sem sequer a bala triscar na boca da mesma. E atirava sempre entre os olhos das vítimas. Acertar aquele pontinho bem em cima do nariz era certeza de missão cumprida e funcionava como sua assinatura artística em cada assassinato que consumava.

Agora, na sua versão de beato, por uma razão ou por outra, sempre que pregava, atraía um grande grupo de pessoas devotas, crédulas, tementes do desconhecido ou simplesmente curiosas. Além do pro-clamado arrependimento dos muitos pecados e da conversão à vida ascética, tinha em torno de si a misteriosa aura da ressurreição. Afi-nal, o sujeito morrer, ir pro outro mundo e voltar para retomar a vida terrena não é coisa que acontece todo dia.

Afora o caso dele, só se tinha notícia de dois outros: primeiro, o de Lázaro, o fato mais famoso, registrado inclusive no Novo Testamento, que aconteceu lá na Palestina de antigamente, por obra e graça de um milagre atribuído a Jesus Cristo. Esse, peço perdão aos que acredi-tam, foi uma ressurreição meia-boca. Segundo os Evangelhos Apó-crifos, Lázaro morreu de novo no dia seguinte e dessa vez não teve milagre que desse jeito.

A segunda e última ressurreição até então, ocorreu com seu Binoca Seleiro, ali mesmo em Boi Pintado. Esse, até onde se sabe, é o recor-dista universal. Imaginem que morreu três vezes no mesmo dia, por obra e graça dele mesmo ter duas vidas extras para gastar.

Foi perto da inauguração da energia elétrica de Paulo Afonso, duran-te uma caçada, na zona rural do município. Seu Binoca apostou com os amigos que conseguiria subir no poste de alta tensão e se pendurar nos grossos fios ainda desativados. Pois quando estava justamente

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concluindo sua tarefa, a energia foi ligada por motivo de um teste não comunicado à população. O efeito foi fulminante. Seu Binoca, atingi-do por violento choque, caiu estatelado, mortinho da silva.

Enquanto um amigo ficava vigiando o corpo, o outro partiu corren-do para comunicar à polícia e providenciar o translado do corpo. O sargento Isidoro veio em pessoa no jipe Toyota ampliado de zé Pa-rafuso, com mais dois soldados da guarnição. Constatou o estado de morto, providenciou a colocação do cadáver na carroceria do veículo e já perto da entrada da cidade, sem mais nem menos, dispensando qualquer aviso prévio, o defunto ressuscitou. Abriu os olhos, boce-jou, sentou e perguntou o que estava acontecendo.

O pânico foi tão grande que a guarnição e o próprio motorista pula-ram do veículo, que, sem condutor, caiu numa ribanceira profunda e virou. Quando todos finalmente conseguiram se aproximar, encon-traram seu Binoca debaixo do jipe virado, morto outra vez. E para não deixar dúvidas de que aconteceu uma ressurreição e nova morte, desta feita o cadáver estava quase sentado.

Depois de uma trabalheira dos diabos, o corpo foi içado. Com a de-mora, o corpo enrijeceu. Naquela posição extravagante, foi levado para autópsia e entregue aos cuidados do Dr. Hildebrando. Atraída por notícias tão extraordinárias, uma multidão já se aglomerava na porta do necrotério do hospital, quando o médico saiu, pediu silên-cio e anunciou que o morto estava vivo. Tivera sucessivas catalepsias, mas respondera positivamente ao tratamento de choque e retornara a este vale de lágrimas. Estava medicado e curado, só precisava de uns dias de repouso no hospital.

Foi uma festa. E o mais incrível é que cerca de apenas duas horas de-pois, seu Binoca, impaciente como era, levantou da cama e andou. Por conta própria, se deu, além de ressuscitado, por totalmente curado.

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Abandonou o hospital, seguido pelo povaréu em festa e marchou para casa. Entrou correndo no lar todo agitado, gritando o nome da espo-sa, que ainda se encontrava recolhida à camarinha em estado de total desconsolo. Afobado como estava, não enxergou direito na meia pe-numbra da sala. Pisou exatamente em cima de um sapato da esposa, deixado ao léu no meio da casa de solado para cima. Coisa que seu Binoca não tolerava porque dá azar.

A ironia dessa terceira causa mortis é que seu Binoca tinha mania de explicar a origem das crendices populares e sempre defendia que fos-sem seguidas. Passar por baixo de escada só lhe serve pra se melar de tinta ou coisa pior. Gato preto é um perigo porque de noite ninguém vê e pode tropeçar no danado. Sair pela porta que entrou é mais segu-ro porque se anda por um caminho já conhecido. Sempre procurava se pautar por esse tipo de saber.

Repreendia as filhas: Sapato jogado ao léu é perigoso, porque, se alguém pisar, o tropeço é certo. Pois foi tiro e queda. Naquele momento que deveria ser só de alegria, seu Binoca derrapou espalhafatosamente so-bre o sapato e se esbandalhou de costas. Para comprovar o provérbio que diz que, quando o dia da malvada chega, ninguém escapa, meteu a nuca no centro de madeira de lei e morreu pela terceira, última e definitiva vez naquela mesma data.

Ressurreição duradoura, portanto, só a do beato Elias. Não era à toa que muita gente queria chegar perto e tocar nele. E também era gran-de a quantidade dos que prestavam atenção às suas palavras geralmen-te arrevezadas, em busca de luzes sobre a vida e o destino.

Por isso, retomando o fio da meada, à medida que os Tetéus recorda-vam a pregação de Elias no recente dia de São José, as correlações com os fatos funestos daquele primeiro dia de abril apareciam claras como água benta.

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Enquanto o monsenhor Afonso rezava a missa, o beato entrou na ci-dade acompanhado por uma multidão nunca vista em suas peregri-nações. Viera a pé desde Oratório, onde tinha o seu reduto. Desde o começo já arrastava muitos fiéis, e o cortejo só fez engrossar durante o percurso. Liderando a multidão silenciosa, postou-se na calçada alta da igreja, do lado oposto onde os Tetéus costumavam cochilar, espe-rando pacientemente o fim da cerimônia religiosa.

Quando a missa acabou, as pessoas saíram, começou sua inconfun-dível pregação. Engrenou uma preleção metafórica, ameaçadora e incompreensível. A maioria dos católicos que saíram da missa pre-feriram se refugiar em suas residências, o monsenhor fez ouvidos de mercador e recolheu-se à casa paroquial.

Como de hábito, o beato falou uns quinze minutos sem ninguém en-tender nada. De repente parou, aceitou um caneco de água oferecido por uma fiel, olhou demoradamente para o céu. Quando retomou a palavra, estava totalmente transformado.

Sem qualquer explicação plausível, tornou-se claro e didático como o padre Jovino dando aulas de catecismo às criancinhas: Ó raça de víboras, sepulcros caiados, o dia do Juízo Final está chegando. Pres-tai atenção nos sinais, proclamou. Frase curiosa, registre-se, porque analfabeto como sempre tinha sido, Tiro Certo, depois que virou beato, pegou misteriosamente uma grande intimidade com o infini-tivo dos verbos.

Está próximo o dia do começo dos sinais. Antes do inverno pegar, todas as minhas palavras se confirmarão. Os exércitos do mal descerão das montanhas para espalhar a dor e o sofrimento; irmão se voltará contra irmão; as feras de aço do talibã estarão no mar para engolir os patrio-tas; As bestas do apocalipse vão tomar as rédeas do poder terreno. Tere-mos choro e ranger de dentes. Os falsos profetas enganarão até os justos. Mergulhareis em longo período de trevas antes do julgamento final.

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E finalizou: O aviso definitivo vai chegar aqui mesmo, na terra escolhida de Boi Pintado. Na primeira noite da nova era do mal, a terra há de tre-mer para abalar os fundamentos desse templo da iniquidade e despertar o coração de pedra dos homens de pouca fé. Disse essas palavras apon-tando para a igreja nova, construção monumental e grande orgulho do monsenhor Afonso.

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Todo mal traz um bem, ou mais

Továrish Lói estava exatamente expondo essa improvável previsão quando se ouviu um estrondo longínquo, porém de grandes propor-ções. Em seguida, sem mais nem menos, a terra tremeu.

No primeiríssimo instante todos pensaram que era resultado de estarem muito impressionados e confusos com tudo o que já havia transcorrido naquele dia. Mas logo viram que o abalo era para valer. As louças chocalharam na cristaleira e um coração de Jesus de louça colocado na parede pela mãe de Cumpade Deca, quando ainda era viva, espatifou-se no chão. Para não deixar nenhum pingo de dúvida, sem ninguém acionar a corda, o sino da igreja soltou algumas nítidas badaladas.

A luz elétrica tremeu e apagou. Demorou horas para voltar.

Para confirmar que não se tratava de alucinação do grupo e, além dis-so, conferir ao episódio dramaticidade à altura da sua importância, logo a rua se encheu de gente.

Quem estava embriagado, pareceu ficar bom de repente. Os que sol-tavam fogos, suspenderam a algazarra. As pessoas saíam assustadís-simas de dentro das casas, procurando confirmação e notícias sobre a extensão do sismo. Buscavam, também, a segurança e solidariedade que o compartilhamento dos sustos e tragédias proporciona. Cada qual correu do jeito que estava, muitos homens de cuecas, as mulhe-res desprevenidas nos seus vestidos frouxos de usar em casa. Diversas mocinhas estavam seminuas, vestindo apenas camisolinhas, ou me-lhor ainda, somente de calcinha e sutiã.

Se todo mal traz um bem, o terremoto serviu para suspender imedia-tamente as comemorações pelo golpe. E o melhor de tudo: a belíssi-ma Ana Amarília, maravilha das maravilhas femininas, também saiu de dentro de casa. Prova indiscutível da existência de Deus, segundo

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verso de um inspirado poeta local, Ana era a mulher mais linda e mais gostosa da cidade. Excluindo-se os muitos eventos do calendário fes-tivo da cidade, ela era a maior atração turística. Vinha gente de longe apenas para contemplar a sua beleza, nas entradas ou saídas das aulas do Colégio do Amparo.

Mas Ana Amarília não saiu de casa como sempre fazia. Dessa vez foi totalmente especial. Estava ela, de repente, no meio da rua, nua como veio ao mundo. O tremor a surpreendeu tomando um banho de cuia. Correu apavorada, com as telhas do banheiro despencando. Trazia o corpo cor de lírio inteiramente à mostra, os peitinhos maravilhosos empinados na direção da linha do horizonte. Isso, com certeza, o bea-to não tinha previsto.

No meio da confusão generalizada, aquela imagem de deusa grega, en-volta no manto difuso da noite sem lua, ficou para sempre na memória dos felizardos que conseguiram se aproximar o suficiente para ver.

Em pouco tempo, Ana já tinha o seu corpo perfeito envolto num len-çol; não demorou e lhe arranjaram um vestido composto. Quem viu, viu. Quem não viu, perdeu; não enxergará a perfeição nunca mais.

Ninguém dormiu naquela noite. Nunca os Tetéus tiveram tantas companhias. Cada homem, mulher ou criança tinha sua história para contar. A cama que tremeu, as telhas que caíram, a cisterna que ra-chou, o móvel que desabou.

Os feridos foram atendidos na emergência do hospital ou no posto de saúde. Pernas quebradas, braços machucados, pancadas na cabeça, coisas assim. Ninguém morreu, e provavelmente ninguém morreria, se o coração de Janjão Marceneiro, que já vinha bastante baqueado, não tivesse aproveitado o susto e parado de vez.

Restaram nas ruas, entretanto, o temor e a perplexidade. Desde o úl-timo eclipse total do Sol, não se sentia tanto medo no ar. Por volta da

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meia-noite, começaram os relâmpagos e trovões típicos da chegada do inverno. Assim que o galo cantou, uma chuva forte, verdadeira tempestade, começou a cair.

A cada minuto aumentava o número dos que lembravam as profecias do beato. Um arrepio, facilitado pelo frio da madrugada, tomava con-ta de todas as espinhas dorsais.

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Capítulo 5

Hora de juntar os cacos

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QUANDO A CHUVA COMEÇOU A CAIR, AS PESSOAS QUE estavam na rua tiveram que fazer a difícil opção entre ficar ao relento, se encharcando, ou voltar para as suas casas.

Além do medo de desabamentos ou de um novo terremoto, muitos telhados, principalmente das residências mais humildes, estavam comprometidos. O tremor quebrara ou simplesmente deslocara te-lhas de modo que goteira era o que não faltava.

Boi Pintado não era uma cidade isolada do mundo, perdida no tempo e no espaço. Longe disso. A estrada para o Recife estava em boa parte asfaltada, faltavam uns pedaços mais difíceis e a conclusão de algu-mas pontes, por isso o último trecho ainda tinha que ser feito pela estrada antiga. Além do telégrafo e três ou quatro radioamadores, a cidade dispunha de comunicação telefônica, através do sistema então chamado de micro-ondas. Quando queriam uma ligação interurba-na, as noventa e nove pessoas que tinham telefone em casa chama-vam a operadora e esperavam que a ligação fosse completada. Logo que o sistema foi restabelecido, aí por volta das 10 da noite, só não choveram ligações para o Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e outras cidades porque, devido ao golpe militar, o sistema estava lento e congestionado. Mesmo assim, um ou outro felizardo conseguiu o contato pretendido, de modo que a notícia do terremoto chegou aos meios de comunicação.

O Jornal da Meia Noite, da Rádio Clube de Pernambuco, noticiou o tremor, ressaltando que era um caso isolado, embora tenha sido ti-midamente constatado em outras localidades próximas e até mesmo no Recife, mas sem causar maiores sobressaltos. Um especialista deu

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uma declaração acalmando a população, tratava-se provavelmente de uma acomodação localizada de camadas geológicas, nada que impli-casse em maiores ameaças. Os ativos correspondentes locais do Jor-nal do Commercio e do Diario de Pernambuco conseguiram enviar a notícia pelo telégrafo, de modo que nas edições da manhã o pequeno abalo sem maiores consequências estava noticiado, nestes termos:

É verdade que o Brasil parecia até então livre de terremotos e vulcões, apesar dos famosos estrondos que ocorriam periodicamente em Ca-ruaru, vindos do miolo do Morro do Bom Jesus. Eram barulhos as-sustadores, que inicialmente deixaram a população em pânico. Depois todo mundo se acostumou. Ficou na conta de comemorações juninas da natureza. Depois foi descoberto que os Estados do Rio Grande do Norte e de Minas Gerais também sofriam esse tipo de pequenos abalos, mas o de Boi Pintado ficou na história sismológica brasileira como o primeiro registrado, documentado e posteriormente estudado.

Quando o dia amanheceu, ficou evidente que o maior estrago, além dos telhados desarrumados e alguns poucos desabamentos, geral-mente de banheiros externos ou puxadinhos mal construídos, havia acontecido na torre da igreja nova. O monumento apresentava uma fenda de cima a baixo na parede lateral. Exatamente aquela que dava sombra aos Tetéus nos cochilos de depois do almoço. O mais grave porém foi que a enorme cruz que ficava plantada no topo do monu-mento caiu. Tombou para dentro da igreja, esbagaçando parte do telhado, arrombando o forro e desabando em cima da estátua que descansava numa vitrine o ano inteiro e só era utilizada na Sexta-Fei-ra da Paixão, na procissão do Senhor Morto.

A matriz castigada pelo sismo foi projetada visando ser a maior e mais notável obra do monsenhor Afonso. O empreendedor vigário, licen-ciado do posto porque já se encontrava no exercício do mandato de deputado estadual, era responsável por importantes obras que muda-ram o perfil de Boi Pintado. Lastreado por essas realizações, inventou de pôr abaixo a acolhedora e histórica matriz, dedicada a São José, a

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partir da qual, como normalmente acontece com todas as localidades nordestinas, a cidade cresceu. A construção foi feita no mesmo lugar, mas em posição diferente e ocupando uma área muitas vezes maior.

O objetivo secreto do monsenhor, ao erigir outro templo, modernís-simo e amplo, era chamar a atenção e concorrer diretamente com a Catedral de Brasília, havia pouco inaugurada. Imagine que a igreja ocupava uma área muitas vezes maior que a Sé de Olinda. No lugar de janelas, ostentava coloridos vitrais, nunca vistos por aquelas ban-das. De dia, brilhavam para dentro, de noite para fora, uma beleza.

Segundo se dizia, o velho sino reaproveitado deveria, em breve, ser substituído por um carrilhão tão mavioso que só tinha parelha na Europa.

Nordestino, como se sabe, tem mania de bravatear seus feitos. Certa-mente para compensar um certo ressentimento com a perda da con-dição de centro econômico e político do País, acontecido ainda nos tempos de D. Pedro Cipó Pau, tudo tem que ser o melhor e o maior.

Assim, acontece no Recife o Galo da Madrugada, indiscutivelmente o maior bloco de Carnaval do mundo, que arrasta mais gente para as ruas estreitas do centro do que a população fixa da cidade. Caruaru e Campina Grande disputam o título de maior e melhor São João do Universo. Boi Pintado tem a melhor vaquejada do planeta. A mais im-portante corrida de jumentos é em Panelas. E por aí vai.

Recentemente, a região conquistou em anos consecutivos o inédito galardão de maior torcida da quarta e da terceira divisões de futebol de qualquer planeta em que se jogue bola. O responsável pelo feito é o glorioso e centenário Santa Cruz Futebol Clube, o querido do povo, o terror dos gramados do Nordeste, um time que na ditadura procla-mou as Repúblicas Independentes do Arruda, bairro recifense onde se encontram suas dependências e seu monumental estádio.

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A nova matriz foi construída em tempo recorde. Nessa pressa talvez esteja a origem da rachadura, que é outra confirmação de que o beato Elias não profetizara em vão no dia de São José. A verdadeira causa da fratura talvez jamais seja revelada. Os laudos técnicos elaborados por uma equipe do CREA convocada pelo monsenhor foram man-tidos a sete chaves. Ninguém sabe onde foram parar, talvez um dia se descubra em alguma caixa empoeirada nos arquivos da paróquia. Espalhou-se o inevitável boato de que a torre poderia desabar a qual-quer momento. Caso uma calamidade dessas acontecesse, seria uma tragédia devastadora, capaz de destruir praticamente todo o centro da cidade. Se fosse num dia de feira, causaria centenas de vítimas.

Por isso, o monsenhor e os outros padres, mais as freiras do Colégio, os maristas do ginásio, as freiras do hospital, as filhas de Maria, os congregados marianos e até as crianças do catecismo formaram uma corrente que nos dias seguintes tratou de tranquilizar a população. Em todas as missas, salas de aula, atendimento hospitalar, era repeti-da a cantilena para acalmar o povo.

Além do medo natural, o monsenhor devia satisfação à sociedade. O dinheiro para a obra foi arrecadado através dos mais diversos tipos de promoção. Bingos, rifas, quermesses, prendas e principalmente doa-ções. A maioria desses adjutórios era obtida através do que Cumpade Deca chamou de livre e espontânea coação a que eram submetidas as pessoas ricas ou remediadas.

Se o sujeito não queria comprar um brindezinho ou uma relíquia, bastava um olhar do monsenhor Afonso para o fiel lembrar de segre-dos espontaneamente revelados no confessionário nas horas em que a consciência apertava. Se o arrependimento pelos pecados cometi-dos é sempre possível, voltar atrás em inconfidências cometidas ao pé do ouvido é totalmente inútil. Mesmo com o tal segredo de confissão, é melhor não vacilar. Como bem diz o povão, em frenteira de padre e trazeira de burro não se pode confiar.

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Antes mesmo da inauguração, choveram críticas ao monumento. O padre era da União Democrática Nacional, a direitista e moderno-sa UDN. O povo do PSD, o partido rival, acusava o uso político da construção para angariar votos. Estava claro para muitos que o mon-senhor erigia a segunda maior igreja do Brasil, menor apenas que a de Aparecida do Norte, para sua própria glória. É que mais do que ser governador do estado ou presidente da República, o que ele sonhava mesmo era em alcançar o bispado. E, ganhando o direito a usar a mi-tra, sua gloriosa catedral já estaria pronta.

Acusavam a insensibilidade demonstrada para com o patrimônio his-tórico e desfiguração urbanística da cidade. Muitas casas típicas do lu-gar foram derrubadas e a igreja mudou de posição, de modo que a praça principal, que em todo canto fica em frente à matriz, em Boi Pintado passou a ficar de lado. Especialmente, choviam impropérios relativos à construção da torre, quadrada, desproporcional na largura e altura.

Os adversários ironizavam dizendo que a torre era uma base disfar-çada para lançamento de foguetes. O padre pretenderia ingressar na corrida espacial e remeter um artefato rumo à Lua primeiro que os americanos e soviéticos. Outros falavam que o monsenhor construi-ria uma nova Torre de Babel, único meio de, ele próprio, alcançar os jardins do Criador.

Na verdade, o despeito era grande. O monumento foi inaugurado com a presença de políticos e autoridades, até o embaixador do papa, o núncio apostólico quase compareceu. O quase fica por conta do que descreveremos agora.

Nunca uma autoridade eclesiástica de tão alto escalão tinha respira-do aqueles ares. O pessoal do monsenhor exagerou na propaganda da importância do prelado, descrito como um vice-papa, também inspirado pelo Espírito Santo e seu representante terreno na solene inauguração. Era Deus no céu, o papa em Roma e o núncio no Brasil.

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De caso pensado, espalharam o boato de que quem conseguisse to-car nele ou ser atingido pela água benta que espargiria no seu per-curso pelas ruas teria os pecados perdoados. O resultado é que uma multidão nunca vista nem nos comícios de encerramento de campa-nha eleitoral o esperou na entrada da cidade. Quando chegou e foi subir no carro aberto, um jipe de praça pintado e decorado com as insígnias papais, ninguém quis esperar. Com a volúpia de quem tinha a certeza de que a garantia do reino eterno estava ao seu alcance, a multidão alucinada avançou. Atropelando quem estivesse na frente, a massa, gritando feito índios em filme de faroeste, partiu para cima do núncio. Velhos, mulheres e principalmente crianças foram piso-teadas sem dó.

O ilustre prelado quase foi esmagado pelo populacho, escapou por pouco. O percurso até a matriz foi cancelado. O núncio ficou tão as-sustado, além de amassado e escoriado que, quando conseguiu entrar no Aero Willis que o trouxera, deu meia-volta e deixou a multidão a ver navios. O trauma persistia. Por isso, quando surgiu a história do julgamento, e ele teve que entrar no circuito diplomático, seu maior pavor era receber uma ordem do papa para voltar a Boi Pintado.

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Quem já viu vaca voar?

No dia de ressaca que se seguiu àquele inesquecível primeiro de abril, a maioria das famílias se ocupou na recomposição dos estragos, em arrumar a casa e, principalmente, consertar seus telhados. A chuva da madrugada era daquelas que não deixavam dúvida de que o inverno veio para pegar de vez. Para felicidade geral, não caiu água naquele dia; foi a primeira vez em todo o interior do Nordeste que as orações eram para adiar a chuva.

A população metropolitana, do mundo inteiro, acha que estresse é pri-vilégio de quem mora nas grandes cidades. É porque não sabem nem têm a menor ideia de como sofre quem depende dos humores da na-tureza para sobreviver. Os moradores do campo, naquela época, sujei-tavam-se quase que totalmente à regularidade das chuvas. Bastava um pingueiro fora de época ou um atraso na continuidade do inverno para safras inteiras se perderem, pastagens crescerem insuficientes para sus-tentar os rebanhos. Quem vive na cidade reclamando do trânsito e da poluição acha a vida campestre paradisíaca. Não tem a mais leve noção do sofrimento de um agricultor com o olhar perdido no infinito espe-rando um sinal de chuva. Isso sim é estresse sem remédio. Envelhece, adoece e mata.

A capacidade daquele primeiro de abril causar impactos e repercus-sões parecia inesgotável. Quando o dia amanheceu, outra coisa cha-mou a atenção e provocou rebuliço. No telhado da modesta casa de seu Nem, na Chã do Marinheiro, havia simplesmente uma vaca.

O que a família e os vizinhos relatavam é que, logo depois da chuva começar, ouviu-se outro grande estrondo, dessa vez na casa de seu Nem. Todos tinham se recolhido para dormir na parte de trás da mo-radia, onde as goteiras eram poucas. Acordados pelo barulho, tiveram no primeiro momento dificuldade para entender o que tinha aconte-cido na sala. Alguma coisa caíra do céu, provocara um grande estrago, mas ainda estava no telhado. Era um ente vivo e se bulia. Além disso,

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berrava como uma vaca. Com a luz do sol, ficou constatado: era mes-mo uma vaca holandesa, das grandes.

Como chegou até ali? Aparentemente, veio voando pelos ares e des-ceu no telhado da casa de seu Nem. Apesar de modesto enfermeiro e líder comunitário, o personagem era daqueles homens prevenidos. Sua casa tinha paredes fortes, ripas e caibros de primeira qualidade. Desse modo, a vaca enfiou violentamente as patas nas telhas, mas pa-rou na cumeeira.

A notícia tinha estatura para concorrer com a penca de informações de todos os tipos que circulavam na região. Logo se espalhou. Apesar das ocupações e preocupações do dia, não demorou a juntar gente para assistir ao espetáculo inédito. Em pouco tempo, pessoas dos dis-tritos, das localidades próximas e até de cidades distantes que não so-freram os efeitos do terremoto e, portanto, não tinham telhado para consertar, também chegaram para conferir. Aproveitavam o clima de feriado que o País inteiro vivia em decorrência do golpe.

O pior é que ninguém sabia como tirar a vaca dali. Um veterinário atestou que o animal não sofrera danos físicos, mas precisava de água e alimento. Desse modo, foi improvisado um cocho no telhado de seu Nem, o que só aumentou a curiosidade geral. Onde já se viu cocho em teto de residência nenhuma, e ainda mais sendo utilizado? Essa era demais.

Souza Pepeu, jornalista de primeira e representante do Diário da Noite em Caruaru soube da confusão. Com o seu faro jornalístico, percebeu que ali estava uma matéria inédita. Convocou Pissica, um fotógrafo ex-periente, e mandou-se para Boi Pintado. No dia seguinte, o Diário da Noite publicou a reportagem e o editor teve a sensibilidade de perceber que, no meio da confusão institucional, a vaca no telhado era a grande opção para atrair os leitores e amenizar o noticiário. Deu destaque ao retrato, a vaca além de tudo era fotogênica. Foi um sucesso. Os jornais do Sul também se interessaram pelo tema, virou assunto nacional.

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A cada dia, Pepeu e, àquelas alturas, outros repórteres acompanhavam o dia a dia da vaca no telhado, concorrendo com as notícias políticas. A cobertura das desventuras da vaca e da família de seu Nem atenuou o cli-ma geral de desconforto e medo que o golpe provocava no País inteiro. Até que quase uma semana depois providenciaram um guindaste vindo do Recife. Foi uma operação complicada, que perturbou o trânsito na parte já asfaltada da rodovia e exigiu o alargamento de vias secundárias para que a máquina pudesse chegar ao local. Finalmente, com muita di-ficuldade, a vaca foi resgatada sã e salva. Pepeu e Pissica ganharam com a série de reportagens, o maior prêmio de jornalismo do Brasil.

Ninguém se preocupou em achar uma explicação razoável para a cau-sa do fato exótico. Em Pernambuco não era inédito boi voar. Aconte-ceu pela primeira vez na época do domínio holandês, quando o gover-nante era Maurício de Nassau. Mas, nesse caso histórico, tratou-se de uma brincadeira. O tal boi de Nassau não era um animal vivo, apenas um couro de boi preenchido com capim e ar. Realmente, voava sobre a ponte que o conde construiu no Recife e que até hoje, reformada, está no mesmo local e leva o seu nome. O tal boi atravessava a ponte pelo alto batendo as patas quando era acionada uma roldana.

O mais plausível para o que provocou o fato exótico de uma vaca cain-do do céu é que o animal estivesse pastando no alto de um serrote. Com a tempestade, a grama ficou escorregadia. A dita cuja por algum motivo tentou correr, escorregou monte abaixo e foi projetada no ar, como um voo de asa delta. Acabou por cair adiante, em cima da casa de seu Nem, que ficava perto.

De qualquer modo, quando tudo serenou, o dono da casa teve que lançar mão de suas minguadas reservas para consertar a casa, ninguém se mexeu para ajudá-lo. Não se aborreceu. Incorporou o apelido de Nem da Vaca. Aproveitou bem seus minutos de fama. Na eleição se-guinte conseguiu o sonho de ser eleito vereador.

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Coragem para reagir

Apesar do tumulto institucional instalado no País, as autoridades não dormiram no ponto e deram prioridade à explicação das causas do terremoto. O abalo sísmico aconteceu em data muito inoportuna. In-fluenciáveis como são os nordestinos e as pessoas menos esclarecidas de outras regiões do País, podiam acabar associando o evento ao gol-pe, na linha de pensamento do beato Elias. Era necessário um comple-to esclarecimento com aval técnico inquestionável.

Dessa forma, antes do meio dia chegaram escoltados por uma patru-lha do Exército diversos técnicos da SUDENE e das Universidades Federal e Rural, além de alguns sismógrafos vindos às pressas do Sul do País em aviões da FAB. Em entrevista a Jota França, vibrante re-pórter-proprietário da Rádio Surubim, aquela que era reproduzida através das cornetas de alto-falante pregadas nos postes, os técnicos trataram de tranquilizar a população. Garantiram que o fenômeno não se repetiria, todos podiam ficar seguros em suas residências, seguir a vida normalmente. O povo ouviu, mas continuou meio cabreiro, pelo menos por alguns dias.

Na edição da noite, no rádio e na televisão, o Repórter Esso, que só di-vulgava notícias pela ótica do interesse do patrocinador ou, agora, do governo, leu uma nota oficial falando em leve tremor passageiro e pon-tual, dando o assunto por encerrado. Foi um recado para a imprensa. O tema, ao contrário do caso da vaca, sumiu dos noticiários.

Durante dias os técnicos continuaram por ali escavacando o chão em busca de pistas sobre o abalo. Descobriram pelo menos que o estron-do que antecedeu o tremor não tinha nada a ver com a geologia do lugar. Tratou-se de uma explosão mal conduzida pelo grupo empre-sarial que explorava calcário nas imediações. Na tentativa de remover uma enorme pedra que atrapalhava o prosseguimento dos trabalhos, erraram na dose da dinamite. Vários operários estouraram os ouvidos

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e foram transportados para o hospital de Limoeiro e depois para o Re-cife. Alguns ficaram moucos para sempre.

Os técnicos divulgaram essa informação de um jeito que ficou pare-cendo que a remoção da pedra causou o tremor, o que de certo modo tranquilizava todo mundo.

O enterro do marceneiro que morreu do coração durante a noite não teve o público que era de se esperar. Apenas a família e uns poucos amigos compareceram, estava todo mundo ocupado com seus pró-prios problemas.

A noite do dia 2 de abril foi de sono para a maioria e de reuniões para alguns.

Os comunistas, por exemplo, se juntaram na casa do telegrafista e de-cidiram aguardar os comandos do partido. Os mais velhos defendiam que ficassem quietos esperando a tempestade passar. Os jovens não se conformavam com a passividade, queriam agir, mas como? Esse era o problema. De qualquer modo, aquela noite plantou as sementes de uma irremediável cisão etária no Partidão de Boi Pintado.

Ainda durante a reunião, os jovens trocavam olhares significativos entre si. Não disseram nada, cada qual saiu aparentemente para o seu canto, mas voltaram a se reunir menos de uma hora depois nas depen-dências do antigo motor de luz. Um deles era o encarregado de zelar pelo prédio e, naturalmente, tinha a chave. Combinaram que não iam revelar nada para os companheiros mais antigos, apenas pediriam des-ligamento. Porém a decisão era se prepararem para a ação. Na cabeça deles não tinha sentido cruzarem os braços e marcharem passivamen-te para o matadouro enquanto a direita se apossava do poder. O racha estava consumado.

Nascia ali o grupo que ficou conhecido como os Fantasmas Verme-lhos, que várias estripulias iria aprontar em Boi Pintado. Antecipe-se

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que esse nome de grande efeito de marketing não foi pensado por ne-nhum deles. Breve saberemos de onde veio.

O brizolista Grupo dos 11 reuniu oito dos seus membros naquela noi-te. Os outros desertaram para sempre. Precisavam confirmar se a fuga de Brizola era real ou notícia falsa dos golpistas. De qualquer modo, embora não estivessem prontos para nenhum enfrentamento imedia-to, mantinham a filosofia da corrente, que era criar núcleos de resistên-cia País afora. Se foram surpreendidos no primeiro momento, teriam que esperar o rumo dos acontecimentos se aprontando para reagir.

Esse grupo, com o passar do tempo, conseguiu se comunicar com ou-tros brizolistas. Do exterior, Brizola viria a articular a instalação de fo-cos guerrilheiros, financiados com dinheiro vindo de Cuba, segundo consta. O pessoal de Boi Pintado arrecadou algumas armas e se dirigiu para a Serra da Mata Virgem, onde constituiu um núcleo de combate inspirado no que Fidel Castro e Che Guevara fizeram em Sierra Maes-tra e os próprios brizolistas implantaram na Serra de Caparaó, sem muito futuro, em ambos os casos. Nem o Brasil era Cuba nem os mi-litares brasileiros eram do naipe de Fulgêncio Batista, o sargento que virou ditador e foi deposto por Fidel e Che Guevara.

Esse glorioso, embora apenas simbólico, núcleo guerrilheiro da Mata Virgem, é apenas mais uma demonstração de que nem todo mundo botou o rabo entre as pernas e ficou inerte diante da ditadura, dando a cara a bofete. O grupo mais tarde se dispersou, invicto. Conseguiu escapar de todas as batidas que seriam promovidas pelas tais milícias que descreveremos mais adiante. Alguns desistiram, outros aderiram a organizações armadas que enfrentavam a ditadura.

A delicada discussão acerca dos limites que deveriam ser adotados na reação ao regime militar provoca até hoje debates, cizânias e mal-estar, inclusive entre os que pegaram em armas.

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Algumas pessoas que tiveram comportamento heroico, arriscaram suas vidas em ações de guerrilha urbana ou rural, vêm melancolica-mente a público dizer que estavam equivocadas, e até pior, em alguns casos mostram arrependimento pelos seus atos. Só faltaram pedir per-dão aos milicos.

Isso acontece desde os anos 60 e lamentavelmente continua se repe-tindo. Pelo menos mais um guerrilheiro importante já fez mea-culpa em pleno ano de 2014. O mais incrível é que isso ocorre com pessoas sérias e respeitáveis. E num momento em que nenhum benefício pes-soal podem tirar dessa penitência infeliz. Difícil entender.

Quem quebrou a legalidade foram os militares. Eles é que saíram, com seus apoiadores e incentivadores já mencionados, prendendo, tortu-rando, matando, exilando, demitindo, cassando, perseguindo, amea-çando pessoas que pensavam de forma diferente.

Durante a ditadura, um comício em porta de fábrica ou a distribui-ção de panfletos criticando o governo ou seus aliados era um ato de resistência que tinha que ser protegido através de armas na mão. Se alguém fosse capturado nessa situação, corria o risco de ser, além de preso, torturado ou até morto.

Assim, a luta armada que se organizou contra o regime, principalmen-te depois do endurecimento do AI-5, não se limitava a ações de guerri-lha urbana e rural. Qualquer ato de livre manifestação do pensamento só teria um mínimo de segurança se tivesse proteção armada.

Para defender uma ideia no meio da rua ou porta de fábrica, era preci-so pegar em armas. Tanto quanto para expropriar armamento e muni-ção de um quartel ou sequestrar um embaixador.

Além do mais, os atos guerrilheiros da luta armada cumpriram o pa-pel de manter sob tensão o regime militar e obrigar os gorilas a mos-trar sua verdadeira face. Custaram um preço alto? Claro. Muitas vidas

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foram sacrificadas? Sim. Esse é o preço que se paga para fazer a Histó-ria acontecer.

O mesmo preço que pagaram os adeptos de Spártacus, os campone-ses revoltados nas guerras religiosas da Europa, os integrantes de rebe-liões libertárias no mundo inteiro. Entre nós, os seguidores de zumbi dos Palmares, as lideranças farroupilhas, os escravos revoltados na Bahia, os líderes da Balaiada, da Sabinada, da Conjuração Mineira, da Revolução Pernambucana de 1817, da Confederação do Equador, da Revolução Praieira. O que seria dos nossos livros de história sem esses movimentos que pegaram em armas contra a tirania?

Esse preço, que serve de argumento para fundamentar um suposto erro de quem pegou em armas contra a ditadura, foi pago por Filipe dos Santos, Tiradentes, Frei Caneca, Manoel Lisboa e tantos outros heróis e mártires do povo brasileiro. Sem eles, sem o seu quixotismo posto em prática, sem a disposição de ir às últimas consequências, nossa nacionalidade seria muito mais pobre.

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Quem jogou a primeira pedra

A luta armada nada teve a ver com a instalação e o recrudescimento do regime. Na verdade, o que serviu de estopim para o golpe foi um discurso do presidente Jango, na Central do Brasil, do Rio de Janeiro, propondo reformas de base para o País. Reformas, não revolução.

E o motivo alegado para o AI-5, que escancarou abertamente o que a ditadura já fazia por debaixo dos panos, foi simplesmente um discur-so do deputado Márcio Moreira Alves criticando o regime.

O argumento de que a luta armada endureceu o regime não proce-de. O direito à resistência à tirania pelas armas é reconhecido até pelos pensadores iluministas, autores dos livros clássicos sobre o pensamento liberal. Muitas prisões, exílios e execuções não se de-ram por causa de armas, e sim de ideias. Pelópidas Silveira, Pau-lo Cavalcanti, Celso Furtado, Miguel Arraes, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros, até onde se sabe, nunca empunharam ar-mas. Rubens Paiva e Vladimir Herzog, algumas das vítimas fatais da ditadura, também não. Nem por isso tiveram destino diferente de guerrilheiros como Ramires Maranhão, Stuart Angel, Emma-nuel Bezerra, Mata Machado e centenas de outros que tombaram no enfrentamento armado à ditadura.

Quem acha que a História também é construída a partir de princí-pios e atitudes lamenta o comportamento equivocado e inútil daque-les que abjuram gratuitamente a coragem que tiveram de pegar em armas contra a tirania. Abrem mão do que certamente constituiu o momento mais sublime de suas fugazes existências.

Naquela noite de reagrupamento e avaliações, a direção local das Li-gas Camponesas fez sua reunião à luz de candeeiro na casa de ze-quinha. Aparentado com o grande líder Juliano, morava na fazenda Cova da Onça, a poucos quilômetros da cidade. Como os demais gru-pos, sentiam grande carência de informações confiáveis, subsídios e

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orientações. Ficou claro que já naquele momento inicial havia duas tendências entre eles: uma pendia para aceitar o golpe como fato consumado e aguardar para retomar a luta dentro das novas regras a serem estabelecidas. Outra preferia o caminho da resistência direta e sem burocracia.

Os argumentos pró e contra a resistência armada já estavam eferves-cendo no interior dos grupos de oposição à ditadura desde o primeiro momento.

A única unanimidade da noite ocorreu com os Tetéus: mais uma vez se encontraram na casa de Cumpade Deca, o único que morava sozi-nho. Depois da morte da mãe, seu pai vendera quase todos os bens e se mudara com a família para as bandas de Alagoas. Deca ficou. Não tinha meio de vida definido, sobrevivia negociando uma coisa aqui, outra acolá.

Antes de começarem a discutir coisas sérias, colocaram Cumpade na berlinda. É que no começo do ano o indigitado elemento sofrera um acidente meio raro e esquisito durante uma caçada. Ele mesmo, com a assessoria das habilidades armamentistas de Dito Carneiro, cujo pai tinha uma das maiores madeireiras da região, construiu umas combleias, que são um tipo de garruchas precárias para matar passa-rinho. As armas, feitas com cano de cabo de guarda chuva e utilizan-do outros materiais de terceira, não mereciam a menor confiança. No primeiro teste não deu outra: a arma desculatrou, como se falava. Ou seja, o tiro saiu para trás.

Como o atirador, desconfiado do seu artefato, disparou com o braço estendido para a lateral, sofreu poucos danos, apenas ferimentos na própria mão. Já Cumpade, que estava apreciando a experiência por trás, recebeu muitos estilhaços na altura da coxa, na barriga, nos tes-tículos e no próprio pênis.

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Teve que passar por uma cirurgia que durou horas. Dr. Hidelbrando deu tudo de si para restaurar Cumpade. Passou mais de um mês no hospital, em tratamento severo. E quando teve alta, a boataria tinha tomado conta da cidade: o seu respeitável cacete, o único que na re-gião fazia sombra ao de Alagoano, um comerciante que tinha o maior já visto ou imaginado, comparável ao de um jumento pouco dotado, teria ficado irremediavelmente comprometido.

Deca só estancou o disse me disse a esse respeito quando, numa me-morável farra no cabaré de Maria Maga, fez uma exibição de virili-dade para ninguém botar defeito. Apesar do membro ainda osten-tar visíveis marquinhas de chumbo, comprovando que fora mesmo atingido, comeu três raparigas na mesma noite, no meio do salão. E terminou a noitada de pau duro: Tem vaga pra mais, quem se habi-lita? Naquele tempo não existia Viagra nem qualquer outro aditivo químico para ampliar o tesão. Todo reforço possível se limitava ao consumo de ovos de codorna ou chás de catuaba ou bigorna.

Mas de qualquer modo, Cumpade andava mesmo meio estranho de-pois do acidente. Duas ou três vezes na semana, com uma desculpa ou outra, ou mesmo sem desculpa nenhuma, desaparecia aí pelas 22 horas e só reaparecia depois da meia-noite, algumas vezes até nem voltava. Levou falta ontem, diziam então os Tetéus. Bem que tenta-ram segui-lo, sem sucesso. Cumpade era safo, despistava qualquer investigador de meia-tigela. Esgueirava-se pelos becos, ganhava os matos não iluminados e sumia. Por mais que insistisse, ninguém, nem Továrish Lói, seu fiel companheiro para o que desse e viesse, conseguia arrancar uma pista sequer.

Aquela foi uma dessas noites. A conversa começou cedo, lá pelas 21 horas estava Cumpade apressando a turma. Vamos logo resolver o que tem que ser resolvido que hoje a noite é d’água. Vê se isso é argumento que se preze.

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Reiteraram a conversa da noite anterior. Decidiram esperar o mais discretamente possível a marcha dos acontecimentos antes de botar as mangas de fora. E todos, menos Cumpade Deca, que ficou em casa, mas logo pulou o muro do quintal e se escafedeu no oco da escuridão, foram dormir cedo.

Estavam exaustos.

Até as aves noturnas precisam descansar durante o expediente, às vezes.

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Capítulo 6

Um xerife aloprado

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NOS DIAS SEGUINTES AO GOLPE, A SITUAÇÃO DO PAíS foi ficando mais definida, as pessoas começaram a perceber o que real-mente se passava.

Depois de alguns dias de discussões e grandes desentendimentos, os militares chegaram à conclusão de que o marechal era o melhor nome para ocupar a Presidência. Fizeram uma eleição de faz de conta no Congresso, mutilado e ameaçado. E assim o novo regime começou a tomar cara e forma.

Governadores e políticos que defendiam a legalidade resistiram mo-ralmente e foram cassados ou simplesmente aderiram ao novo regime. Era um verdadeiro trem da alegria de adesismo. Muitos legalistas fo-ram se curvando ao fato consumado. Os que insistiam em permanecer fiéis à Constituição, em qualquer nicho de poder, eram cassados, pre-sos, perseguidos. O que aconteceu na SUDENE é um bom exemplo: o superintendente, Celso Furtado, o seu imediato, Chico Oliveira, e mais um grupo de técnicos do melhor nível foram afastados, presos, exilados. Quem tinha algum destaque e não se dobrava, na maioria dos casos, ia parar na prisão ou no exílio.

Nesse sentido, as notícias que circulavam eram aterradoras. Milhares de presos entulhavam as unidades militares e, por falta de espaço, im-provisavam-se campos de concentração. Navios sucateados sofriam adaptações e se transformavam em presídios. As violentas torturas tornaram-se instrumento normal de investigação, castigo ou vingança.

Fatos brutais, como o suplício do valente líder comunista Gregório Bezerra, escandalizavam os espíritos mais sensíveis. Amarrado em um

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jipe do Exército, dirigido por um hidrófobo coronel direitista, foi ar-rastado pelas bucólicas ruas do aristocrático bairro de Casa Forte, no Recife, até que seu corpo ficasse em carne viva.

Só para assinalar como caminha a humanidade: Gregório sobreviveu. Ficou preso alguns anos até ser trocado por um embaixador estrangei-ro sequestrado por heroicos guerrilheiros. Foi para o exílio e retornou ao Brasil depois da Anistia. Ganhou de um poeta a denominação de Homem feito de Ferro e Flor. É um dos grandes brasileiros; sua me-mória é um orgulho para o País. O nome do seu algoz, todos fazem questão de esquecer. Faz parte do pior lixo da História. Seus descen-dentes sentem vergonha dele. Seria melhor nunca ter existido.

Com a fuga das principais lideranças legalistas, o País ficou entregue aos militares golpistas e seus aliados.

Em Pernambuco, com a prisão e deposição do governador Arraes, o vice-governador assumiu o governo e tratou de organizar a adminis-tração. Sua estratégia era imprimir um clima de normalidade à máqui-na pública o mais rápido possível, de modo que, além de se deparar com o fato consumado, as pessoas sentissem um rumo seguro na ad-ministração. Desse modo, a tradicional Exposição de Animais de Boi Pintado, programada para meados de abril, foi mantida no calendário.

Existia à época uma figura pitoresca que a maioria das pessoas que o conhecia não conseguia entender direito o que representava. Para alguns, não passava de um maluco. Para outros, era um agente inter-nacional, tipo um espião que monitorava os latifundiários do Estado. Também havia quem achasse que o homem era um agente ostensivo do Exército para acompanhar os passos de burocratas e políticos.

Vestia-se de modo extravagante com uma espécie de farda de gala verde-oliva. O quepe, ornamentado fora dos padrões militares, tanto podia ser de um marechal como do comandante da Nau Catarineta. Ostentava, pendurada no pescoço, uma vistosa comenda. Parecia até

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com a Ordem Suprema do Cruzeiro do Sul, a maior condecoração concedida pelo governo brasileiro. A mesma outorgada pelo ex-presi-dente Jânio Quadros ao guerrilheiro Che Guevara, fato tão marcante e polêmico que, segundo dizem, acionou a poderosa atuação das forças ocultas que provocaram a renúncia de Jânio.

A personalidade também portava no peito dezenas de medalhas dos mais diversos tipos e formatos, além de uma brilhante e vistosa estrela que todos conheciam dos filmes de faroeste, justificando o título que ostentava, exigia e que transformou-se na única forma da maioria se referir a ele: xerife. Apesar de alto e forte, andava quase envergado com o peso das medalhas e condecorações.

Vista de longe, sua casaca bem que parecia com o estandarte do fa-moso bloco carnavalesco O Cachorro do Homem do Miúdo. Em to-das as exposições de animais ele estava presente. Diziam que também em outros eventos governamentais chegava, hospedava-se por conta da Secretaria de Agricultura, ficava observando. Apesar da expressão severa que sempre carregava e de não dar prosa a ninguém, era im-possível sua figura passar desapercebida. Com sua inseparável tabica na mão direita, circulava entre as baias, acompanhava o julgamento, fiscalizava os bares. Quando abria a boca, era para xingar os comunis-tas e esquerdistas em geral, os ladrões do dinheiro público e ameaçar qualquer pessoa cuja prosa não lhe agradasse. Podia ser quem fosse. Rico ou pobre, político ou militar, não se intimidava diante de nin-guém. Tinha fixação e repetia a todo momento as palavras subversivo e corrupto.

Naquele ano, chegou na véspera da abertura da exposição. Entrou no novíssimo Hotel Municipal e dirigiu-se à recepção. O novato recep-cionista não o conhecia, apresentou a ficha de hospedagem. Ele enca-rou o rapaz, rasgou a ficha e apenas disse: O que o senhor está pensando da vida? Olhe bem para mim. O senhor acha que um legítimo represen-tante da gloriosa Revolução Redentora que acaba de salvar o Brasil dos

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subversivos comunistas e corruptos da sua laia vai preencher uma ficha para fazer o favor de se hospedar nessa espelunca?

Enquanto falava, a tabica já estava ameaçadoramente topando no pei-to do funcionário. Em seguida, estendeu a mão esquerda aberta onde o apavorado recepcionista depositou a chave do melhor quarto do es-tabelecimento, o único que dispunha de banheiro.

Compareceu à inauguração do evento, subiu no palanque, manteve-se calado com a expressão severa. Nos dias seguintes, além de participar das atividades da exposição, circulou pela cidade. Visitou a Prefeitura, ficou um tempão calado observando o movimento. Na única sessão que a Câmara Municipal realizava na semana, à noite, para não atra-palhar a vida de nenhum vereador, foi o primeiro a chegar e o último a sair. Sem trocar uma palavra com seu ninguém. Na praça pública e nas rodas de conversa, chegava sem ser convidado e ficava ouvindo o papo em silêncio.

Entrou e saiu da Cooperativa Agropecuária, do Hospital Santo Afon-so, das repartições públicas, principalmente os Correios e a Coletoria Estadual, observou o movimento de entrada e saída do colégio das freiras e do ginásio. Fez pequenas compras, sem pagar, nos estabeleci-mentos comerciais. No sábado à noite entrou sem passar pela bilhete-ria do Cine-Teatro Navona para assistir ao clássico Ladrão de Casaca e saiu no meio da sessão. No domingo, às 9 horas, quando o licenciado vigário monsenhor Afonso celebrava a missa mais importante, lá esta-va ele, sentado na primeira fila. E sentado assistiu a todo o culto, sem se dar ao trabalho de seguir o ritual. Não rezou nem levantou, ajoe-lhou ou sequer baixou a cabeça na hora da consagração. Encarou o celebrante o tempo inteiro. Mesmo com sua experiência no ramo, o monsenhor ficou encabulado.

À tarde, na solenidade de encerramento da exposição de animais, o personagem disse a que veio. Chegou cedo, subiu no palanque ofi-cial e ocupou uma cadeira quase no centro da primeira fila do espaço

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reservado às autoridades. Os convidados foram chegando aos poucos, se acomodando conforme o protocolo. Como é natural, lançavam olhares curiosos e arrevezados na direção do impassível xerife.

Assim, chegou o prefeito com duas de suas quatro primeiras-damas e diversos secretários. Chegaram os vereadores, o juiz de Direito, o de-legado de polícia, o promotor, os gerentes dos Bancos do Brasil e do Nordeste, o coletor estadual, o chefe do Departamento de Trânsito. Finalmente, acompanhado dos deputados monsenhor Afonso, Fran-cisquinho Pai Quer e Honorato Meu Doutor, subiu ao recinto o jovem secretário de Agricultura que, naquele ato, como bem disse o locutor oficial, representava o governador do estado.

Como o secretário precisava retornar logo ao Recife, combinou-se que ele falaria primeiro, quebrando a ordem protocolar.

Fala mansa, educado, bem assessorado pelo locutor oficial da Prefei-tura, que fazia as vezes de mestre de cerimônia, o secretário iniciou sua fala, como de praxe, citando um por um todos os que ocupavam o lugar de honra. Eu disse todos? Errei. O xerife não foi mencionado.

Quando o homem foi engrenando o seu discurso, apresentando as escusas do governador pela ausência, o xerife levantou-se impetuosa-mente e arrancou o microfone da sua mão. Empurrou com a tabica o secretário de volta ao seu lugar e fez com que sentasse a seu comando.

Ficou um pouco em silêncio, encarando um por um os que compu-nham a tribuna de honra. Fez-se um silêncio sepulcral. Apesar de um bom público estar aglomerado diante da tribuna, era possível ouvir uma conversa de comadres a dois quilômetros de distância.

Ao abrir a boca, dirigiu-se primeiramente ao secretário, sem meias pa-lavras. O senhor está cego ou eu estou invisível? Por que o senhor citou todos os cabra safados que estão aqui, com todo respeito às damas, inclu-sive os corruptos e subversivos, e não mencionou meu nome e meu cargo?

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O senhor é comunista? É subversivo? Está conspirando contra nossa glo-riosa Revolução Redentora de 31 de março? Como o senhor se atreve a não mencionar minha presença, eu que represento nosso movimento vitorioso e aqui estou com a missão de botar ordem na casa e prender os subversivos e corruptos que ameaçam o nosso País?

Diante da perplexidade geral, prosseguiu: Responda, cabra safado. Você é subversivo ou corrupto? Exijo ser citado, não por vaidade, que desse mal não padeço. Mas pela relevância do movimento que tenho a honra de representar. Volte pra cá, fale tudo direitinho como tem que ser. E, aproveitando o ensejo, diga ao seu governador de meia-tigela que eu estou de olho nele. Se ele está pensando que as gloriosas Forças Armadas esqueceram que até outro dia ele estava agarrado com o subversivo e corrupto mor Miguel Arraes e os comunistas do seu governo, está muito enganado. Ande ele direitinho e com rédea curta. Se atreva a sair da li-nha e eu mesmo mando cassar esse mandato que ele arrumou com nossa aquiescência.

Finalizou sua peroração e retornou ao seu lugar, com a maior calma desse mundo. O secretário, coitado, gaguejou mil desculpas, citou várias vezes o xerife, reafirmou sua autoridade, disse mais algumas palavras sem nexo, despediu-se e picou a mula. A partir daí, todos os oradores sempre mencionaram o xerife em posição de honra nas suas saudações, tecendo elogios exagerados ao movimento militar, cada qual que se sucedia subindo o tom. No final, esgotou-se o estoque de adjetivos. Parecia mais importante que o marechal que tomara posse havia poucos dias na Presidência.

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Manda quem pode, obedece quem é besta

À noite, como se nada tivesse acontecido, o personagem estava senta-do na praça, observando o trottoir, que era como se chamava o passeio das donzelas namoradeiras. Os brotinhos, como se dizia, de cintura fina e saias plissadas, desfilavam de três em três, de braços dados, exi-bindo seus atributos para os rapazes que ficavam sentados na calçada alta da igreja, apelidada de Bem Me Quer. Perto das 22 horas, quando o movimento esvaziava, recolheu-se ao hotel.

No dia seguinte, quando o prefeito chegou ao prédio da Prefeitura, na companhia de suas inseparáveis Damas de Ouro, de Paus, de Copas e de Espadas, o encontrou instalado no seu gabinete. Melhor dizendo, senta-do no seu birô, remexendo nos papéis e processos que estavam na gaveta.

Antes de responder ao cumprimento protocolar de bom dia, o perso-nagem vistoriou pausadamente cada uma das quatro primeiras-da-mas. A rigor, nenhuma delas era bonita, se fosse para obedecermos aos padrões internacionais que, à época, privilegiavam mulheres de pernas finas, bunda e peitos batidos. Eram todas mulheres interes-santes, reboculosas, como diziam os matutos. Pernas grossas, bundas redondas, peitos fartos. As quatro se vestiam no estilo tua saia termi-na muito cedo, tua blusa começa muito tarde. Ou seja, tinha o que se ver. O xerife, ostensivamente, deleitou-se.

Após a análise da cada uma, voltou a contemplar a que o povo chama-va Dama de Ouro, que era a primeira esposa oficial, casada no cartó-rio de papel passado. Com as outras, o prefeito, que se chamava Jônio, se até aqui não foi dito, também casou. Uma no padre, outra no pastor e a quarta na umbanda.

Moravam na mesma casa na fazenda do prefeito, que se localizava próximo à cidade. Dividiam sem arestas a vida afetiva e administra-tiva do edil. Todas davam expediente na Prefeitura. Daí vinham os apelidos relacionados aos quatro naipes do baralho. A Dama de Ouro,

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a oficial, cuidava das finanças do município. A de paus, que melhor ficaria com a denominação de Dama de Ferro, se por acaso esse naipe existisse, cuidava da administração. Pulso forte, gênio irascível, bastava um secretário vacilar em uma reposta para levar um grito. Na semana anterior, como não gostou do teor de um ofício que mandara prepa-rar, jogou a máquina de escrever pela janela. Por sorte nenhum con-tribuinte foi atingido.

Já a Dama de Espada mereceu o título porque era quem cuidava dos embates políticos. Ia para a guerra sem medo com a oposição, dobra-va os aliados, domava os vereadores. A Câmara comia na sua mão. Foi a grande responsável pelo rompimento do prefeito com o coronel Honorato, que o engoliu como candidato com o argumento de am-pliar o grupo. Bancou a campanha para derrotar, por pouco, o candi-dato do padre. Melhor seria ter perdido. Segundo o raciocínio predo-minante da Dama de Espada, a decadência do coronel era irreversível e os métodos administrativos que utilizava totalmente superados. Se Jônio ficasse submisso a ele, não ganharia dinheiro, não mandaria na Prefeitura e muito menos poderia criar seu próprio grupo político.

Daí decorreu o rompimento, que tanto contrariou o coronel. Pelo menos uma lição ele aprendeu, embora àquelas alturas não lhe ser-visse mais para nada: antes de apoiar um candidato, analise detalha-damente com quem ele vai para a cama. A política está cheia de exem-plos de quizilas causadas por mulheres que mandam nas autoridades.

Finalmente a Dama de Copas se dedicava, com a aquiescência das demais, ao coração do prefeito. Este amava a todas, mas era perdida-mente apaixonado por ela, que também acumulava a parte social da gestão. Cuidava com igual dedicação da barriga do povo, era aclamada como a mãe dos pobres, uma espécie de Evita Perón de Boi Pintado.

Depois de contemplar as beldades dando, como foi dito, maior aten-ção à Dama de Ouro, o xerife, sem sequer se levantar da cadeira, solicitou um particular ao prefeito. Este já estava preparado desde

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a véspera, sabia que vinha chumbo quente, de sorte que reagiu de modo afável, descontraído e até com uma pontinha de ironia. Pode falar, ilustríssima autoridade, estas quatro são minhas assessoras de confiança, entre nós não existem segredos. O que eu sei, elas sabem.

Levou a primeira de muitas desconcertantes enquadradas. Falando baixo, porém com extrema firmeza, o outro fuzilou: Vossa Excelência me desculpe, mas nunca discuta uma ordem minha. Eu falei conversa particular com o senhor, isso não inclui suas raparigas. Conversa par-ticular é entre duas pessoas, com três já vira comício. Aliás, a partir de agora, eu não quero ver nem saber da presença de nenhuma dessas respeitáveis damas em nenhum prédio público. Isso inclui os do muni-cípio, do estado e do governo federal. Se por acaso elas ocupam cargos de confiança, considerem-se exoneradas. Se não ocupam, são corpo estranho à gestão pública, desempenhando papéis que não lhe dizem respeito. Fora. E apontou a saída para as quatro.

As quatro damas e o próprio prefeito pareciam petrificados. Nin-guém sequer piscou. Calmamente, o intruso complementou: A mo-ralidade no serviço público só perde para o combate à subversão; está acima de tudo mais. O bom exemplo, senhor prefeito, começa de casa. Senhoras, por gentileza, queiram se retirar do prédio, podem retornar aos seus afazeres domésticos.

Não foi fácil para o grupo sair do verdadeiro estado de choque. Era para valer ou uma brincadeira de mau gosto? Por mais clara que ti-vesse sido, a ordem não era fácil de ser cumprida por quem até cinco minutos atrás mandava e desmandava, pintava e bordava. De repen-te, surgido do nada, um patético mandão, de banho mal tomado, en-feitado feito lanceiro de maracatu, chegava como dono do pedaço? Com duas palavras ia desmanchar uma engenharia de convivência e compartilhamento do poder construída com criatividade, tolerância, engenho e arte? Os coloridos mosaicos da Prefeitura naquele instante pareciam feitos de areia movediça. Isso não é justo, balbuciou a Dama

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de Ouro, que, sinceramente, imaginara pelos olhares cúpidos recebi-dos que estava arrebentando a boca do balão.

A Justiça não tem nada a ver com isso, minha senhora, afirmou, re-petindo uma fala de filme de faroeste – não por coincidência, o seu gênero preferido. Aqui estamos tratando da moralidade pública e não me façam ser grosseiro, por favor. Retirem-se imediatamente.

O primeiro a cair em si foi o próprio prefeito. Tentou abraçar as qua-tro ao mesmo tempo enquanto as empurrava gentilmente para fora da sala. Falava baixinho nos macios pés de ouvido: Por favor, queri-das, compreendam a situação, não vamos nos expor. Chamem o moto-rista, peguem o meu carro e vão para casa. Mais tarde a gente conversa, estamos numa ditadura, temos que nos adaptar, por favor, por favor...

Embora tivesse falado em tom menor, o xerife ouviu muito bem a re-ferência ao motorista e ao carro. Que era o mesmo de representação da Prefeitura. É muito frequente que as pessoas, logo no primeiro dia de mandato, comecem a chamar de seu o que é propriedade do povo. E não deixou por menos: Alto lá, o carro oficial é para uso oficial. As senhoras não fazem parte do corpo funcional da municipalidade nem estão em missão oficial. Portanto, aluguem um carro de praça ou vão a pé para casa; caminhar faz bem à saúde. Sumam.

Apesar de indignado, o prefeito teve que admitir mais tarde que foi melhor assim. Por maior que seja a intimidade, é da natureza do ma-cho aparecer bem diante de suas fêmeas. Nenhuma humilhação faz bem aos relacionamentos.

Tranque a porta por favor, prefeito, sente. Quando ficaram apenas os dois, o prefeito, que àquelas alturas não estava mais preparado para nada, levou a maior bordoada de sua vida. O outro entrou com dois quentes e três fervendo. Foi direto a um dos pontos mais delicados da gestão: Prefeito, o que o senhor tem a dizer para explicar ao governo

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militar revolucionário essa história de ter adquirido o mesmo terreno várias vezes com o dinheiro da municipalidade? Procede a acusação?

Procedia. A oposição tentou investigar, as quatro damas resolveram. Naquele tempo, o Ministério Público não tinha o poder de futricar as contas municipais e o caso morreu. Como danado esse filho da puta soube disso, pensou o prefeito, realmente preocupado.

Jônio desencavou todos os argumentos que apresentara na Câmara de Vereadores e que foram suficientes para colocar uma pedra em cima da questão. Bem, xerife, o senhor já percebeu que a topografia do nos-so município é muito íngreme, a cidade é praticamente uma ladeira só. Então é muito difícil conseguir terreno adequado no perímetro urbano para um campo de futebol. Quando o Governo do Estado requisitou o antigo estádio para construir casas populares, aproveitando o plano para baratear os custos, ficamos com uma batata quente nas mãos.

Vossa Excelência sabe que o esporte é fundamental, temos uma forte tradição futebolística. “Mens sana in corpore sano”. Assim, desapro-priamos uma área para fazer o novo estádio e, por um erro da nos-sa assessoria jurídica, pagamos o terreno para alguém que não era o legítimo proprietário. Errar é humano. Constatado esse lamentável equívoco, fomos forçados a comprar o terreno novamente, desta vez dos legítimos proprietários. Foi isso.

O xerife manuseou uns papéis, puxou um recibo e indagou ríspido: Prefeito, não foi só isso. Aqui consta uma terceira compra. Como pode ter acontecido? Jônio estava numa camisa de sete varas. Com cara de tacho e sem argumentos, ensaiou um sorriso amarelo e meio em tom de brincadeira soltou a desculpa que lhe veio cabeça: Aí eu tenho que confessar. O erro foi totalmente meu. Vossa Excelência imagine que eu esqueci que já tinha comprado e paguei de novo.

O interlocutor levantou, deu alguns passos pela sala; o rosto pa-recia talhado de pedra. Aproximou-se do interlocutor e ordenou:

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Levante-se! Quando o prefeito cumpriu a ordem, soltou a tabica e pegou-lhe pela beca com as duas mãos. Cabra safado, subversivo, cor-rupto, você quer fazer a Revolução Redentora de idiota? Tenha respei-to. Ninguém paga quinhentos contos duas vezes por um terreno que vale cinquenta e esquece. Se fosse seu o dinheiro, você esqueceria?

O prefeito estava destruído. O xerife soltou a roupa do outro, ajeitou a própria túnica, que tinha se desarrumado, e determinou: Vou ser to-lerante. O senhor tem 72 – veja bem – 72 horas para voltar aqui com o recibo do depósito do dinheiro desviado, com juros e correção monetária, na conta de Prefeitura no Banco do Brasil. É tempo mais do que sufi-ciente. Se voltar antes, melhor para o senhor. Se não aparecer, eu mesmo vou lhe pendurar pelos culhões em praça pública; fique certo disso.

O restante do dia a exótica autoridade dedicou para implantar o que chamou de modelo revolucionário de gestão.

Chamou todos os secretários, disse que, por enquanto, nenhum ia ser demitido. Ele não ia investigar o passado de ninguém, e quem, por acaso, tivesse cometido algum erro e quisesse se converter à nova ordem, seria bem-vindo. Só tratassem de andar na linha. Não seriam tolerados atos de subversão ou corrupção.

Precisamos instalar a honestidade para dar o exemplo e combater os inimigos da Pátria a ferro e fogo. Cada qual vai ser reconhecido de acordo com a contribuição que der à nossa luta, a revolução venceu, mas os inimigos continuam por aí como cobras peçonhentas, preparan-do o bote. Nossa orientação é a mais simples possível: cada qual cuida de suas tarefas com o máximo de empenho.

E saiu tratando de cada pasta, como se não tivesse feito outra coisa na vida a não ser estudar a gestão de Boi Pintado. Fez cobranças pon-tuais e procedentes. Por que faltam remédios nos postos de saúde? Por que a merenda escolar não passa de rapadura com farinha? Por que o lixo fica nas ruas depois da feira do sábado até o começo da semana

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seguinte, aos domingos a cidade parecendo um lixão? E saiu por aí afo-ra, dando tarefa a cada um, exigindo que passassem a filosofia adiante para seus auxiliares, queria ver resultados até o final da semana.

O secretário de Obras encarregado da limpeza levantou o braço e pe-diu a palavra. Não obteve. Já sei o que o senhor vai dizer, o fardamento dos garis está atrasado, falta material de trabalho e o pagamento das carroças de boi que recolhem o lixo é todo desviado para os bolsos do prefeito. Nada disso é desculpa. Os armazéns estão cheios de vassou-ras, foices e enxadecos. Compre fiado. Quanto às carroças, quero todas circulando hoje. Pertencem ao sobrinho do prefeito, estou por dentro de tudo. E para não perdermos tempo, cada qual adapte a orientação à sua pasta e estamos conversados. Na próxima semana, na mesma hora, vamos avaliar os resultados. Quem falhar, adeus.

O gesto que fez quando pronunciou a palavra adeus tanto podia sig-nificar demissão sumária como execução imediata.

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Capítulo 7

Como diria a madre superiora

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adre superiora

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O DELEGADO, TENENTE NOMEADO POR ARRAES, laureado no Curso de Formação de Oficiais, era uma águia. Procurava se informar sobre tudo, tinha alcaguetes espalhados por todos os setores da sociedade. Assim, quando o xerife chegou, se acercou dele cuidadosamente. Passou informações importantes, ofereceu um plano que faria a autoridade ser reconhecido como grande revolucionário no estado e no País. Com uma habilidade tão grande que nem parecia que as ideias vinham dele.

À noite, a autoridade se reuniu com o próprio delegado mais o promo-tor e o juiz. Excelências, temos duas prioridades, disse ele. Combater a corrupção e a subversão. Quanto à corrupção, deixem comigo, não vou exigir maiores sacrifícios de ninguém. Agora, para enfrentar e derrotar o perigo vermelho, preciso da colaboração de todos os patriotas de boa vontade, os senhores à frente.

Apesar da revolução ter sido vitoriosa, os inimigos continuavam à es-preita, serpentes preparando o bote. Boi Pintado e arredores eram um ninho de subversão.

Por exemplo, sabiam eles que as Ligas Camponesas tinham transferi-do o seu comando-geral para o município? Isso é informação sigilosa, só nós e as paredes sabemos, não pode vazar de jeito nenhum. Não co-mentem nem com suas esposas, nem com suas raparigas, nem com seus amigos de maior confiança. Vamos pegá-los de jeito na primeira oportu-nidade, que está próxima.

Discutiram a estratégia a seguir. Cada qual recebeu suas tarefas. Quando o juiz ousou falar que tinha algumas sentenças urgentes para

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prolatar e talvez não pudesse fazer o que era pedido no curto prazo estabelecido, recebeu um olhar tão fulminante que imediatamente se desculpou e voltou atrás.

A ordem era para o juiz usar sua credibilidade junto aos comerciantes mais abastados e aos latifundiários para arrecadar os recursos neces-sários para financiar as milícias que iriam formar. Precisavam de re-cursos, veículos, armamento, munição e toda a infraestrutura. A úni-ca justificativa a ser apresentada é que tudo se destinava a combater a subversão. O magistrado deveria anotar o comportamento de cada um. Qualquer gesto de má vontade deveria ser relatado. Os veículos, com motoristas bons e de confiança.

O delegado recebeu a incumbência de providenciar imediatamente o reforço da cadeia local. Localizado numa esquina, o prédio era velho e dispunha apenas de uma cela e uma solitária. Ou seja, sem nenhu-ma segurança. Como não dava tempo de reformar adequadamente as instalações, que convocasse os pedreiros da cidade e montasse uma operação para, na noite do dia seguinte, duplicar todas as paredes.

Além disso, o delegado seria o encarregado de comandar pessoalmen-te a milícia nas ações de campo, cuja liderança hierárquica passaria pelo cabo e pelos dois soldados que formavam o minguado destaca-mento local.

O promotor, nascido nas redondezas e muito querido pela comuni-dade, teria duas missões: a primeira, falar com o coronel Honorato e principais latifundiários para escolher trinta homens de confiança, pis-toleiros com experiência, frieza, pontaria e disciplina. Esses homens deveriam deixar os lugares onde viviam e se concentrar em local que o promotor escolheria junto com o juiz e o delegado, nisso teriam au-tonomia total. Formariam a milícia revolucionária destinada às mais altas missões em defesa da Pátria.

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A sugestão de incorporar a esse projeto os rapazes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, foi enfaticamente descartada por su-gestão do delegado. Esses são amadores, o jogo é de profissionais. Eles terão seu papel no momento certo, mas por hora devem ficar de fora e to-talmente desinformados quanto aos nosso planos. Falando nisso, inter-rompeu o xerife, onde se encontra o líder deles, o senhor Raul Meneses, de alcunha Bondinho?

Alguém respondeu que o sujeito havia viajado. Deve estar, a essas altu-ras, no Rio de Janeiro ou Brasília, articulando alguma coisa com os ge-nerais. Isso só serviu para reforçar as convicções do intruso. Esse povo endinheirado não merece confiança. Abandonam sem mais nem menos seu campo de luta, só pensam nos seus próprios interesses. Deixam a corrupção e a subversão imperar no seu próprio quintal. Não podemos contar com eles para nada decisivo.

A outra tarefa do promotor era articular uma rede de informação que mantivesse o grupo atualizado com os movimentos do inimigo. Quando a autoridade argumentou que não era fácil, o mandão foi implacável: E se por acaso fosse fácil eu estaria convocando o senhor? As informações estão aí, vagando na sociedade; nossa tarefa é captar e organizar, nisso consiste o serviço de inteligência. Por isso mesmo é chamado de inteligência. O senhor identifica quem pode ter informações valiosas e manda falar comigo na Prefeitura.

Essa atribuição dada ao promotor era na verdade uma tapia, também sugerida pelo delegado. Assim, só ele e o xerife ficariam sabendo os ver-dadeiros informantes que já estavam na pista dos líderes camponeses.

A verdade é que o promotor não merecia a confiança do grupo. De-mocrata por convicção, tinha uma enorme resistência íntima ao golpe. Estava fazendo das tripas coração para não transparecer. Nem queria correr riscos nem servir ao novo regime.

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O xerife pediu também que espalhassem a notícia de que ele estava re-cebendo no gabinete e remunerando muito bem qualquer pessoa que fizesse delação quente, capaz de levar à prisão os subversivos da região. Essa tarefa de gerar o boato era fácil: bastava qualquer um deles pro-curar Lizânio da Farmácia de um modo que parecesse casual, contar o fato e pedir rigoroso segredo. No outro dia, todo mundo estaria saben-do, era a maneira mais rápida de disseminar qualquer informação em Boi Pintado. Como a farmácia de Lizânio estava de plantão naquela noite, a tarefa ficou mais fácil ainda. O delegado saiu direto da reunião para comprar um cachete para dor de cabeça.

No dia seguinte, logo cedo, todos começaram a se mexer para cumprir suas missões. Dois dias era o prazo estabelecido, era concentração total, não dava tempo para fazer mais nada. Todos abrigavam um pouco de dúvida, mas tinham assistido a enquadrada do xerife no secretário de Agricultura do estado e ao recado desaforado que mandara para o go-vernador. Era melhor seguir suas diretrizes, ninguém tinha nada a per-der. Pelo contrário, vai que o homem era forte mesmo, a colaboração po-deria render bons dividendos. Todos tinham uma carreira para cultivar.

Sem querer maiores comprometimentos, o promotor resolveu se es-corar no juiz. Convenceu o magistrado de que agindo juntos teriam mais agilidade e mais poder de fogo. Resolveram que prioritariamente tratariam da formação da milícia e por isso conversariam inicialmente com os principais fazendeiros.

A tarefa, realmente, não era fácil, em função principalmente do prazo curtíssimo. O primeiro procurado, o coronel Honorato, rodou a baia-na. Recebeu a dupla com quatro pedras na mão. Os senhores são muito ingênuos, pelo amor de Deus. Quem é esse mequetrefe para chegar aqui dando ordens, dizendo o que quer e o que não quer? Quem ele pensa que é? Enquanto eu for vivo, isso aqui não vira casa de Noca.

Aí foi a vez de o juiz engrossar a fala. Coronel, devolvemos todas as per-guntas. Quem é esse xerife? Ele é o que pensa que é? Responda o senhor,

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que tem dois filhos deputados e anteontem foram esculhambados por ele em plena exposição de animais. Além de não terem dado um pio de reclamação, rasgaram elogios a ele nos discursos que proferiram a seguir.

E continuou: Por que o senhor mesmo não liga para o governador ou para o comandante do IV Exército e pergunta? Por que seus filhos de-putados não se informam? Se o senhor tiver qualquer notícia relevante, estamos prontos para escutar. Se não tiver, por gentileza, mande entre-gar amanhã às 18 horas neste local três caminhonetes Veraneio com motoristas qualificados e dez homens armados, prontos para a Terceira Guerra Mundial. E visivelmente irritado entregou um papel com as referências do sítio onde iriam reunir a milícia.

Antes de se retirar, ainda lançou um aviso desaforado na direção do velho chefe: Coronel, conselho de amigo, não falhe. Se não fizer pela revolução, faça por mim. Lembre-se dos processos do seu interesse que estão esperando minhas sentenças.

Foi a maior humilhação sofrida pelo coronel Honorato Francisco das Chagas em sua vida inteira, primeira de várias que viriam se seguida. Apesar disso, ou por isso mesmo, sequer comentou com seus filhos. Sabia que se ligasse para o governador ou o general, naquele momen-to, não seria atendido. Ainda mais para perguntar algo que poderia fazer parte do projeto revolucionário, se arriscava a ouvir uma des-compostura ainda maior. Passou o dia com a cabeça fervilhando, reco-lheu-se para dormir da mesma forma. Deitou na rede, chamou Rolete de Cana, que era o contador oficial de histórias da carochinha que o faziam dormir. Nada. Amanheceu o dia em claro. Porém na hora e no local determinados chegaram os homens e as viaturas.

Vendo que não daria mesmo tempo de sair conversando de um por um, o juiz chamou os três oficiais de Justiça, alugou três carros de pra-ça e entregou a cada a relação de cinco fazendeiros com intimação para comparecerem ao fórum às 16 horas, sem falta. Onze foram encontra-dos e compareceram, era o bastante. Cada qual contribuiu com dois

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pistoleiros, os mais abastados com algumas caminhonetes. No dia se-guinte, a milícia estava formada, armada, com viaturas e aquartelada.

O xerife passou os cruciais dois dias seguintes recebendo gente na Prefeitura, era um entra e sai infernal. Quase sempre o delegado esta-va ao seu lado. As pessoas chegavam, ficavam na sala de espera, eram chamadas pela ordem, entravam. Trancavam a porta. Respondiam a uma ou duas perguntas triviais e eram dispensadas. Não raro, em pou-co tempo, recebiam novo chamado, o ritual se repetia, a conversa era um pouco mais longa, dois ou três minutos, Obrigado, até mais ver. Alguns vieram várias vezes, sem motivo aparente. Uma maluquice, di-ziam alguns.

Na verdade, tratava-se de uma estratégia montada pelo delegado. A movimentação servia para acobertar a presença dos informantes, que o mantinham atualizado e também de pessoas que quisessem colabo-rar fazendo delação espontânea. Como quase todos desconheciam o que estavam fazendo ali, os que sabiam ficavam bem protegidos. Nin-guém desconfiaria deles.

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Uma operação bem-sucedida

No princípio da noite o xerife chegou com o delegado ao QG da mi-lícia. Agradeceu e dispensou a presença do juiz e do promotor. Os se-nhores voltem para a cidade, jantem, visitem amigos, fiquem em lugares visíveis e se preparem para expedir amanhã cedo os mandados das pri-sões que vamos realizar.

Quando ambos saíram, reuniu os homens. Passou a palavra ao dele-gado, que, rapidamente, organizou a milícia. Formou três colunas de dez pistoleiros, comandadas respectivamente pelo cabo e pelos dois soldados. Estes obedeciam ao delegado, o delegado, da boca pra fora, seguia a orientação do xerife. Ninguém faria nada sem ordem nem po-dia vacilar na execução.

A missão era prender e desbaratar a cabeça das Ligas Camponesas. O xerife perguntou se alguém conhecia a casa de zequinha, parente do líder maior das Ligas, o deputado cassado Juliano, na Fazenda Barra da Onça. Alguns conheciam, inclusive, o delegado e os soldados. Já tinham andado por lá mesmo antes do golpe, dando batidas em busca de armas ilegais.

O delegado abriu uma planta tosca do lugar. Determinou o roteiro das três colunas para efetuarem o cerco e a prisão. Cada uma chegaria por um lado. Como não havia algemas suficientes, a ordem era prender, deitar todos de costas, amarrar as mãos para trás e revistar cada um minuciosamente.

Tudo entendido, partiram imediatamente. O QG não era longe da ci-dade e a casa de zequinha também ficava perto, embora do outro lado. Um deslocamento de légua e meia, no máximo meia hora de percurso.

As informações procediam. As principais lideranças camponesas do estado que escaparam da prisão no primeiro momento estavam re-unidas à luz de candeeiros de querosene, já que a energia não tinha

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chegado até o local. A discussão era áspera em torno do tema que divi-dia a esquerda e os adversários do regime militar em geral: resistência pacífica ou armada.

Juliano não fundou as Ligas, como muita gente pensa, nem era comu-nista, conforme acusavam os militares. Inicialmente atuou como advo-gado da entidade, depois assumiu a liderança maior. Sempre se definiu como agitador. Até para tomar remédio é preciso agitar, costumava di-zer. Chegou a pregar a reforma agrária na lei ou na marra. Mas naquelas circunstâncias não concordava com a violência. De Minas Gerais, onde se encontrava refugiado, enviou explicitamente sua posição.

Os seus porta-vozes defendiam mais uma vez que as Ligas Campo-nesas não deveriam descambar para um confronto armado com o re-gime. O principal argumento era que não deveriam dar motivo para os militares os acusarem de recorrer à violência e terem pretexto para exterminar o movimento. Se nós entrarmos nesse jogo, ficaremos iguais a eles, à margem da lei, defendia ardorosamente zequinha.

Naturalmente nem todos concordavam. Alguns camponeses, de for-mação ideológica marxista ou simplesmente de espírito mais aguer-rido, defendiam uma posição oposta. Viam a outra proposta como uma atitude covarde. Sem lutar não conseguiremos nada, perderemos o respeito da massa e vamos ser abatidos pela ditadura como patinhos na lagoa. Essa era a tese de Capivara, nome de guerra do líder camponês Amaro Luiz de Carvalho.

Este fizera treinamento ideológico e militar na China, defendia o levante armado dos camponeses e a estratégia maoista do cerco da cidade pelo campo. Se a posição do companheiro Juliano, que todos respeitamos como um guerreiro da causa do povo, prevalecer, vamos jogar de vez a reforma agrária no lixo da História desse País, afirmava emocionado.

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O impasse persistia quando estourou um rojão ao longe. Era o sinal para avisar que a repressão se aproximava. Haviam postado vigias em pontos chave para não serem surpreendidos. Capivara levantou, bateu a mão ao revólver e falou dramaticamente: Chegou a hora da decisão, companheiros. Quem ficar vai ser preso, torturado, talvez assassinado. Quem fugir vai ter que virar guerrilheiro e viver perseguido, nunca mais terá paz. Quem vai? Quem fica?

Imediatamente levantaram-se os camponeses Ventania e Amaro Félix, o intelectual Clodomir Moraes, e alguns outros, inclusive Alexandra, companheira de Juliano, mas que nesse ponto discordava do marido. Capivara perguntou se podiam levar as armas e munições. A respos-ta foi afirmativa. Algum documento comprometedor levamos conosco, pelo menos vocês ficam limpos. Feito isso, em menos de três minutos, o grupo saiu pela porta dos fundos da casa simples de taipa, correu abaixado sob a proteção de uma cerca de varas e chegou até uma plan-tação de cana no balde de um açude próximo. A partir dali, estavam entregues à própria sorte. E foi por pouco. A coluna que cobria aquele lado fechou o cerco alguns minutos depois.

Como diz Lenine, a prática é o critério da verdade. Nada como uma situação real para decidir grandes impasses.

Os que permaneceram estavam muito tensos com a perspectiva de prisão. zequinha pediu calma. Falou que se preparassem para dias di-fíceis. Mas estava convencido do acerto da decisão que tomaram. Se morrermos, disse ele, seremos mártires inocentes das ideias que defen-demos. Vamos ser os novos cristãos jogados aos leões, nosso suor e nosso sangue servirão para alimentar a nossa causa.

Quando a milícia chegou e cercou a casa, não houve resistência. Al-guns peixes grandes procurados em todo o estado estavam entre eles. A caçada valera a pena.

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Os prisioneiros foram amontoados na carroceria de uma caminhonete de caçamba com capota de madeira, um tipo de apetrecho muito usa-do naquele tempo. Mãos atrás das cabeças, permaneciam sob a mira das armas dos pistoleiros. Nem tudo é perfeito. Falou-se em amarrar os prisioneiros, mas ninguém lembrou de levar as cordas. Acontece.

Enquanto isso, o delegado e o xerife faziam uma busca minuciosa na casa usando uma poderosa lanterna. Foi o delegado quem viu primeiro e chamou o superior. Bem disfarçado na parede de taipa, um buraco que parecia servir de esconderijo. Depois de cutucar o vão para verifi-car se não continha uma cobra ou outro animal peçonhento, o delega-do enfiou o braço e trouxe um envelope de correio, daqueles tradicio-nais com as bordas em verde e amarelo. Era uma carta de Juliano com as orientações e, melhor de tudo, um telefone para contato. O xerife ficou tão contente que abraçou o delegado, esse negócio de homem trocar abraço ainda era uma raridade. Só faltou beijar na boca do outro.

Este, calmamente, foi conversando com o outro sobre um ajuste nos planos. Em vez de transportarem os prisioneiros para a cadeia pública, onde chamariam a atenção da cidade acabando com o sigilo da ope-ração, por que não recolher todos, por enquanto, ao próprio QG da milícia? Não seria difícil manter os camponeses desarmados e cerca-dos. Enquanto isso, eles iriam até a Fazenda Esperança, no município próximo de Bom Jardim, onde estavam abrigados os filhos menores de Juliano.

Antes que o xerife argumentasse, ele emendou: A gente captura as crianças; depois telefona para Juliano e negocia a rendição dele em tro-ca da vida dos filhos. O delegado mais uma vez surpreendia. E o mais interessante é que ele falou de uma maneira tão envolvente que ao ter-minar o xerife já estava convencido de que o plano era dele próprio.

Assim foi feito. As colunas do cabo e de um soldado deslocaram-se para o QG para guardar os prisioneiros, que ao todo eram oito. A coluna comandada pelo outro soldado mais o xerife e o delegado se

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deslocou nas três Veraneios mandadas pelo coronel para capturar os filhos de Juliano. Em plena noite, arrombaram a porta da casa grande da fazenda, que ficava na beira da estrada, entraram residência aden-tro, renderam os vigias e empregados, arrastaram as crianças e se man-daram para Bom Jardim.

Lá, foram direto para o posto telefônico, onde o operador dormia de roncar. Acordaram o homem. Mandaram fazer a ligação. O delegado argumentou que era melhor ele falar; o xerife ficaria como uma ins-tância superior em caso de dificuldade nas negociações. O encami-nhamento foi simples: quando o próprio Juliano atendeu, o delegado se identificou e disse que estavam de posse das crianças. Em seguida, passou o aparelho para um dos garotos, que, candidamente, falou: Pai, o homem tá dizendo que vai cortar a orelha de Cletinho, tá com uma faca na mão. Cortar o delegado não cortou, apenas fingiu, mas deu um puxão tão violento que quase arrancou a orelha do garoto. Esse caiu num choro desconsolado, o pai ouvindo tudo do outro lado.

Depois de tirar as crianças do recinto, o delegado retomou a ligação com toda a frieza: Deputado, o senhor viaja agora para o Rio de Ja-neiro e pega o primeiro voo para o Recife. Antes de embarcar, o senhor me avisa pelo telégrafo de Boi Pintado a companhia aérea e a hora da chegada. Quando se entregar ao IV Exército, os seus filhos estão livres, e mais: sob a minha proteção. Empenho minha palavra de que ninguém tocará neles.

De manhã bem cedo, os dois entraram na agência dos Correios e fo-ram direto à mesa do telegrafista. Mais uma vez foi o delegado quem falou: Seu Marcondes, o senhor é comunista, todo mundo sabe, mas é um profissional sério e correto. Temos uns telegramas absolutamente si-gilosos para passar. Até tudo estar concluído e confirmado, o senhor não se levanta dessa cadeira nem para mijar. Nem eu nem ninguém aqui sabe mexer nessa estrovenga desse telégrafo, de modo que o senhor vai poder fazer o que quiser. Só que, se alguma coisa der errado, eu mesmo

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tiro o cabaço de sua filha Glorinha e como o cu de D. Isolina, antes de lhe capar e deixar sangrar até morrer. Estamos entendidos?

Estavam. Aí foi a vez do forasteiro ditar o telegrama urgente e confi-dencial dirigido ao comandante do IV Exército. Informou a prisão das lideranças, entre as quais os temidos zequinha, Chapéu de Couro, Pino de Granada e Messias, esses dois últimos eram particularmente odiados pelos usineiros reacionários da zona da Mata. Informou tam-bém sobre a breve rendição de Juliano, ficando de informar logo mais a hora precisa e o local. Solicitava retorno e confirmação do recebimen-to. Assinou. Edilberto de Abreu Menezes Lima, xerife revolucionário.

Recém-chegado, o comandante do IV Exército nunca tinha ouvido fa-lar no xerife. Com o telegrama na mão, temendo cair em alguma espar-rela, resolveu ligar para o governador. O senhor conhece Edilberto de Abreu Menezes Lima, que se intitula xerife revolucionário em telegrama endereçado a mim? Conhecia. Então escute aí.

E leu o comunicado sem mencionar a parte relativa a Juliano. Adian-tou que a sua intenção era enviar um contingente para trazer os prisio-neiros. O governador concordou. Ao cabo da conversa, o general, pre-cavido, perguntou se o xerife era realmente um revolucionário fiel. A resposta foi positiva. Tratava-se de um homem obstinado na luta con-tra a corrupção e a subversão. Tinha formação militar, era um homem culto, pertencente a uma família tradicional. Mas... O governador a essa altura gaguejou, procurando as palavras certas para prosseguir. O general o interrompeu, não tinha um minuto a perder. Viva a Revolu-ção Democrática, viva.

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Guerra é guerra

Sem pertencer à linha dura, o comandante do IV Exército era tido como frouxo e simpatizante de Jango por muitos dos seus pares. Quando assumiu, os principais líderes comunistas ou democratas do Nordeste já estavam presos. Restavam uns poucos bagres miúdos, cuja captura não causaria maior repercussão. A rendição de Juliano, um nome conhecido internacionalmente, junto com parte do coman-do das Ligas, representava um indiscutível triunfo para ele. Caso tudo saísse conforme previsto, calaria os críticos, poderia circular de cabeça erguida nas reuniões do alto comando. Sabia cumprir com o seu dever.

O general respondeu imediatamente o telegrama e pediu confirmação do recebimento. O sistema de telégrafo do Recife estava sob total con-trole dos militares desde o segundo dia do golpe. Informou o envio de um comboio para apanhar os prisioneiros. No máximo em três horas estaria chegando, que estivessem prontos. Discretamente, sem o xerife perceber, o delegado ordenou o envio de uma cópia do telegrama em seu nome ao comandante da Polícia Militar. Nada fazia sem comuni-car, por esse caminho seus feitos chegariam a quem interessava, estava cuidando da sua carreira.

Chegara a hora do xerife montar o seu circo. Fecharam a agência dos Correios, deixaram o telegrafista sob guarda e foram direto para o QG da milícia. Lá, enfiaram os prisioneiros de volta na caminhonete e se dirigiram para a delegacia, a autoridade à frente de tudo num jipe sem capota. O delegado declinou do convite para sentar ao seu lado, pre-feriu a cabine do carro dos prisioneiros. Sabia reconhecer o seu lugar.

Desde cedo, já chamava a atenção das pessoas a obra de reforço das paredes da delegacia, executadas durante a noite. Quando a caravana chegou, juntou uma multidão, que os pistoleiros armados até os den-tes se encarregavam de manter à distância.

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Em poucas horas adentrou em Boi Pintado um comboio formado por quase dez veículos do Exército, incluindo vários camburões e até am-bulância. O major comandante parou em frente à igreja e perguntou ao primeiro passante, por acaso o ainda sonolento Cumpade Deca, onde poderia encontrar o xerife Edilberto. Cumpade pensou em ti-rar onda, respondendo que o lugar de xerife é em filme de faroeste. Porém, diante da persuasiva metralhadora pendurada no pescoço do oficial, preferiu mesmo indicar o prédio da Prefeitura.

Avisado por algum xeleléu, o intruso já se encontrava à porta quando a comitiva estacionou. O oficial prestou-lhe continência, apresentou suas credenciais e dali rumaram para a cadeia pública. Os presos fo-ram algemados, encapuzados e atirados nos camburões. Tudo isso sob a vigilância de dezenas de soldados portando fuzis e apontando em todas as direções, como se o Exército chinês estivesse prestes a atacar a qualquer momento.

Operação concluída, mais algumas continências prestadas, partiu o comboio. O xerife retornou aos Correios, o telegrama de Juliano aca-bara de chegar confirmando o voo e o horário. Imediatamente as in-formações foram repassadas ao IV Exército.

Bem que o povo diz: Quando as coisas têm que dar certo, tudo acon-tece nos conformes. Na hora em que o comboio chegava ao Recife, o avião trazendo Juliano taxiava no Aeroporto dos Guararapes. Antes dos passageiros descerem, um grupo de militares subiu na aeronave, identificou o ex-deputado. Ordenaram o desembarque e, quando to-dos tinham descido, foi a vez do prisioneiro.

Desceu sozinho. O general em pessoa estava perfilado ao pé da esca-da para receber a rendição do popular líder. Ele mesmo colocou as algemas no prisioneiro. A imprensa, convocada sem saber do que se tratava, deitou e rolou. Foram fotos de todos os ângulos, uma notícia realmente espetacular. Pela excitação geral, parecia que Fidel Castro estava se entregando a Lindon Jonhson.

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Tinha sido providenciado um verdadeiro desfile militar. Artilharia pesada, cavalaria, tanques de guerra, motos com estridentes sirenes se deslocaram com o prisioneiro rumo ao bairro da Madalena, onde o comboio vindo de Boi Pintado se incorporou ao cortejo. Circula-ram pelo Centro com todo o estardalhaço, os presos em carro aber-to, aviões da FAB dando voos rasantes, a cada quarteirão tiros de festim. No comando de tudo, o general fazia seu marketing pessoal, parecia o imperador Otávio Augusto entrando em Roma depois de conquistar o Egito.

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A dama e o xerife

Naquela noite, o xerife já se aprontava para dormir quando ouviu um discreto toque na soleira do quarto. Abriu a porta e qual não foi sua surpresa quando se deparou com a Dama de Ouro em pessoa. Posso entrar? Naturalmente, minha senhora. A própria dama se encarregou de fechar a porta. Mais bonita, não digo, porém estava bem mais dese-jável e provocante do que no dia em que se conheceram. Saia curta e justa, mostrando parte das coxas roliças e sugerindo ainda mais encan-tos. A blusa decotada e meio transparente, exibia o desenho de belos seios rijos e prometia outras delícias. As possíveis falhas do rosto esta-vam bem disfarçadas por pesada maquiagem, a boca vermelha parecia uma melancia pedindo degustação.

Antes de narrar o que se passou entre as quatro paredes do aparta-mento, vamos descrever, em linhas gerais, o que levou a esposa do pre-feito até aquela situação inesperada. Depois da ríspida conversa com o usurpador do seu cargo, Jônio tratou de levantar as possibilidades financeiras para atender à determinação do depósito. Em princípio, 500 contos não era quantia do outro mundo. Desde que assumira já embolsara muito mais, e, com a inflação do período, o dinheiro repre-sentava menos da metade do que valia na época da transação. Porém, se existe uma coisa que evapora ligeiro, é grana mal adquirida, parece cachaça derramada no terreiro. Principalmente no caso dele, que tinha família grande e quatro mulheres gastadeiras. Além da ordem ser to-talmente atrabiliária, o prazo também era absurdo. Ou o cabra safado pensava que o cara rouba o dinheiro público e fica com ele disponível, guardado no colchão, para devolver a qualquer momento?

Sem dispor do montante em dinheiro vivo, com as linhas de crédito dos bancos andando a passos de cágado naqueles dias confusos, sem tempo para vender uma boiada ou apurar o algodão que restava da safra passada, viu que não ia conseguir a bufunfa no prazo estabele-cido. O que fazer? A cada minuto o forasteiro que ousara ocupar sua cadeira e agora mandava no município como se fosse dono parecia

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mais poderoso. Depois da demonstração daquela manhã, do prestígio e da força que exibiu para quem quisesse ver, qualquer desafio a sua vontade podia representar a desmoralização e, quem sabe até, a morte.

Conhecedor da malícia dos homens, Jônio percebeu o olhar comprido e pidão que o intruso dirigiu à primeira-dama. Reuniu as quatro mu-lheres e expôs sem rodeios a situação. Se ele fosse preso ou até morto, o que seria delas? Pesando os riscos, a menor desmoralização para ele era levar um chifre tentando salvar a cabeça. E para elas, era melhor trepar com uma autoridade revolucionária do que correr o risco de ficar ao relento, sem amparo nem proteção. Aceita a tese, maliciosa-mente ele não indicou quem iria para o sacrifício; colocou em votação e o resultado saiu por unanimidade.

Quando a porta do apartamento se fechou e o corpo da mulher pas-sou roçando no seu, além do perfume estonteante que ela usava, o fo-rasteiro sentiu o coração disparar e as mãos ficarem geladas. Homem acostumado às mais intrincadas batalhas, naquele terreno do amor sentia-se um aprendiz.

Minha senhora, o que a traz aqui? Xerife, vou ser sincera, nenhum ho-mem nunca me atraiu como o senhor. Além disso, ofereço o meu corpo e a minha honra pela glória da revolução que o senhor representa.

Não foi preciso mais qualquer argumento. Antes de ser patriota, o ho-mem era macho da gota serena. Aquela constituía uma tentação muito além de suas forças. Abraçou e beijou a dama, começou avidamente a tirar a sua roupa, acariciando cada detalhe do corpo que, quase despi-do à meia-luz, era ainda mais tesudo e perturbador.

Quase estourando de desejo, mal conseguindo segurar uma ejacu-lação há tempos reprimida, faltava ao herói apenas retirar a calcinha da parceira para consumar a relação. Sentiu uma certa resistência. A mulher começou e negacear o corpo. O que está acontecendo? Já que o senhor perguntou... Foi aparteada: Tire esse senhor! Ela aproveitou a

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brecha e emendou de imediato: Já que você perguntou, eu estou com uma preocupação que não me permite uma entrega tranquila. Que preo-cupação é essa?

Rapidamente a mulher sentou e puxou uma coberta, para esconder o corpo, desfazendo um pouco o clima. Choromingou: O senhor, quer dizer, você sabe que a tesoureira da Prefeitura era eu. Tudo de dinheiro da nossa, digamos assim, família, é comigo. E eu não tenho condições de depositar 500 contos amanhã. Como eu posso ser sua desse jeito?

A vida é assim, todo homem tem seu preço ou seu ponto fraco. O prefei-to descobriu o calcanhar de Aquiles do seu algoz. As lágrimas amolece-ram o coração do xerife. E o efeito foi imediato: Ora, querida, isso não é problema, esqueça esse prazo. Está contente agora? Deixe de ser dengosa. Não chore, seu sorriso é lindo. Venha pra cá, minha morena, vamos cha-megar gostoso para tirar o atraso. E, complementando, a poesia tirada das músicas de Luiz Gonzaga: Vem cá que eu quero te matar de cheiro.

A partir dali mergulharam no poço do prazer, o intruso nunca tivera uma parceira tão fogosa e insaciável. Aquela mulher nunca conhecera e se-quer sabia que um homem podia ser tão viril. Quando o relógio marcou duas horas da madrugada, ainda sem notícias, mas certo de que a demo-ra era sinal de desfecho positivo, pelo lado financeiro, o prefeito pensou umas caraminholas e sentiu uma pontada de ciúme lhe ferrar o peito.

A dama chegou com o dia amanhecendo. Está tudo certo, confirmou; o cara está no papo, agora me deixa dormir que eu estou um bagaço.

Na manhã seguinte e pela primeira vez, o usurpador não foi cedo para a Prefeitura. Indisposto, ficou no quarto até a hora do almoço e, no início do expediente da tarde, chamou o secretário de Obras e ordenou a construção de um banheiro e um pequeno aposento por trás do gabinete.

A revolução não dorme; os homens é que precisam descansar, senten-ciou vagamente para justificar a sua determinação.

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O GOLPE MILITAR PEGOU DE SURPRESA TAMBÉM AS lideranças políticas de Boi Pintado.

Desde a redemocratização de 1945, o coronel Honorato, com o con-trole do PSD, deu as cartas sozinho na região. Elegia prefeitos e depu-tados, indicava delegados, mandava em promotores e juízes de direito. Tomava as dores de donzelas descabaçadas, desmanchava noivados e determinava casamentos. Metia-se em todos os aspectos da vida do seu eleitorado. Chegava ao ponto de revogar negócios combinados no sagrado fio do bigode ou até mesmo de papel passado, porque entre muitas outras coisas, ele mandava e desmandava no cartório do seu correligionário Acioli.

Impunha-se, principalmente, através dos capangas, que formavam um miniexército privado conhecido como Os Meninos do Coronel, comandados pelo temido pistoleiro Mané Tiro Certo. Colocava-se muito acima do reduzido contingente da Polícia Militar, cuja atuação, praticamente, limitava-se a dar ares de legalidade às prisões que o che-fão efetuava ou mandava fazer. Ordenava surras ou promovia a des-moralização de quem lhe desobedecesse ou mesmo desagradasse. Em casos extremos, determinava quem devia viver ou morrer.

Esse poder sem limites durou até ser desafiado pelo padre Afonso. O jovem vigário chegou a Boi Pintado no final dos anos 40 do século XX, cheio de novidades, como quem não quer nada, querendo. Lançou a ideia e conseguiu verbas para construir um hospital com maternidade, uma escola profissional, um posto de puericultura e até um ginásio, entregue à gestão dos afamados educadores maristas. Desenvolvia também ações sociais, como a realização de Semanas Ruralistas para

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organizar e educar os agricultores, e fundou um Círculo Operário, de clara orientação direitista. Com essas práticas, arregimentava os traba-lhadores longe da influência das esquerdistas Ligas Camponesas de Juliano e dos sindicatos de trabalhadores rurais, permanentemente em formação, cuja atividade se desenvolvia sob forte liderança comunista.

Depois de acumular enorme prestígio através dessa atuação aparen-temente apolítica, o pároco entrou para a UDN, partido radicalmente oposto ao PSD, instalou a oposição em Boi Pintado e passou a dispu-tar a liderança política do município.

O padre Afonso contava, além do mais, com a força econômica e ideo-lógica da Igreja Católica e o respeito imposto pela batina preta. Perma-necia usando sempre a indumentária, mesmo após a liberação dessa vestimenta soturna e inadequada aos trópicos ter sido recomendada pelo Concílio Vaticano II. Com isso, ganhou dos desafetos o trata-mento pejorativo de Capa-Preta. Também era chamado de Satanás de Capa Preta e outras variações em torno do mesmo tema.

Bem se diz que a concorrência é a alma do negócio. A disputa pela liderança só trouxe vantagens para a população de Boi Pintado. Os seguidores do coronel reagiram ao hospital criando um centro social que dava atendimento médico e dentário e distribuía remédio de gra-ça na cidade e nos distritos. O vigário reivindicou e conseguiu a luz elétrica de Paulo Afonso. O coronel respondeu trazendo água encana-da. O padre anunciou uma rádio, o coronel construiu uma moderna quadra de esportes. A companhia telefônica também chegou, ambos reivindicaram a paternidade. Não ficou claro de quem foi o mérito.

Os seguidores do padre passaram a chamar os adversários de marim-bondos, porque ferroam e não produzem nada de útil. O povo do co-ronel devolveu apelidando os adversários de embola-bostas, besouros que não voam e vivem na lama.

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Com a radicalização do quadro, após as primeiras escaramuças elei-torais, em pouco tempo os embola-bostas impuseram uma primeira e inesquecível quase derrota aos marimbondos, ainda no final dos anos 50. O candidato que rezava pela cartilha do padre só perdeu a Pre-feitura graças a notórias fraudes na apuração dos votos dos distritos. Passou a ser chamado de Prefeito Moral.

Para piorar a situação, o usineiro Cid Sampaio, da UDN, ganhou o embate travado entre as elites do litoral contra os chefes do interior. Elegeu-se folgadamente governador no pleito de 1958.

O coronel conheceu, então, todas as agruras da oposição. Perdeu os seus privilégios, assistiu a adversários ocupando cargos que havia anos estavam nas mãos de fiéis seguidores seus. Foram tempos de sofrimento.

Quatro anos passam depressa, tentavam consolar os mais próximos. Só que quando chegou 1962, o PSD, partido dos coronéis, não dispunha sequer de um nome competitivo para enfrentar o candidato da situa-ção, o também usineiro João Cleofas.

Os chefões do interior compreenderam que os tempos eram outros. Cientes do seu enfraquecimento, resolveram ousar. Decidiram apoiar o esquerdista Miguel Arraes, que se destacara como prefeito do Reci-fe, para concorrer ao Governo do Estado. O PSD cedeu a cabeça da chapa ao representante do Partido Socialista e se contentou em indi-car o candidato a vice-governador. O escolhido foi o fazendeiro Paulo Guerra, político tradicional, amigo de todos e reconhecido como edu-cado e boa-praça. Assim, somando a votação urbana com os votos de cabresto dos grotões, teriam chance de ganhar.

Não deu outra. Com a vitória apertada dessa exótica e inédita aliança eleitoral, os coronéis recuperaram pelo menos o sagrado direito de fre-quentar o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo pernam-bucano. Melhor perder os anéis do que os dedos.

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Não foi uma reconquista total e absoluta, como seria ideal. Mas pelo menos o conservador PSD assistiu a arquirrival UDN amargar a der-rota, desocupar as gavetas do Palácio e se recolher à insignificância da oposição.

Navegando nos ventos favoráveis do pleito e gastando dinheiro como nunca, o coronel Honorato reelegeu os seus filhos Honorato Meu Doutor e o caçula Francisquinho como deputados federal e estadual, respectivamente. Porém às custas de um sacrifício inimaginável: teve que descer do pedestal e pedir votos pessoalmente, visitando eleitores de casa em casa, apertando mãos na feira, lembrando favores antigos, bebendo cafezinho sem querer, comendo buchada de bode nos sítios dos cabos eleitorais.

Para o coronel, isso era uma violência contra os seus métodos. O máximo que fazia, até então, era aviar uma ou outra receita de elei-tor, providenciar um enterro, distribuir chapéus e bonés enfeitados com os nomes dos seus candidatos. Também fazia parte do seu ritual fornecer ponche e cachaça nos comícios. E, no dia da eleição, provi-denciar transporte, além de pirão e churrasco para encher a pança dos eleitores.

Dessa vez, sem poder mais confiar no seu taco, viu-se forçado a recor-rer a práticas que sempre criticara nos adversários. Providenciou a dis-tribuição de sapatos em massa para famílias carentes dos sítios onde não tinha controle completo dos votos. Claro que espertamente só entregou o pé direito; o outro somente após os votos saírem nas urnas.

Essa iniciativa pitoresca gerou o fenômeno da turma de um sapato só. Depois da eleição, não era raro aparecerem pessoas, e às vezes famílias inteiras, calçadas com o sapato do pé direito e um chinelinho de cou-ro no pé esquerdo. Alguns, tentando disfarçar, simulavam um curati-vo no dedão do pé para justificar a munganga, porém isso não colou. Todo mundo sabia que se tratava de eleitor que não cumpriu o trato com o coronel.

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A procedente preocupação do coronel o levou a também comprar apoios de chefetes políticos em currais eleitorais do Sertão. Logo ele que, dono absoluto dos seus votos, sempre criticara esse método quando usado pelos adversários. E que, a bem da verdade, também contrariava a sua visão de política e a sua autoestima.

Os dois filhos eram tidos como ruins de campanha, tinham pouco traquejo na rua. Eram motivo de zombaria até de correligionários. Honorato não abre a mão nem para dar adeus, diziam. Francisquinho, quando a verdade termina, ele prossegue com a maior tranquilidade e, se ninguém parar, vai longe, comentavam sobre o caçula. Ambos eram chamados de mamulengos do coronel.

A eleição dessas duas peças e uma vitória difícil de Arraes nos seus domínios custou todo o lucro de duas boas safras de algodão. Doeu no bolso que, como todo mundo sabe, é a parte mais sensível do corpo humano.

A verdade é que os votos de Boi Pintado e cidades vizinhas foram tão divididos que o padre Afonso também conquistou um mandato na Assembleia Estadual e seu candidato a deputado federal, um almofa-dinha importado que nunca antes tinha sequer posto os sapatos de couro de crocodilo na região, teve quase tantos votos quanto Hono-rato Meu Doutor.

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Pra baixo, todo santo ajuda

O filho mais velho do coronel carregava seu apelido desde a infância. A formatura em medicina sempre foi um sonho do pai. Nas suas an-danças ou quando recebia visitas, apresentava o menino a todos dizen-do: Este vai ser o meu doutor, para mostrar a esses bestas daqui como se cura de verdade. O destino traçado acabou se cumprindo, embora por linhas um pouco tortas. Honorato fracassou nas primeiras tenta-tivas de entrar na “falcudade”, como dizia seu pai, que tinha certas “di-filcudades” com a língua. Por exemplo, nunca conseguia pronunciar corretamente a palavra ódio. Depois que rompeu com o vigário, não perdia a oportunidade de mostrar seu “óidio” pelo padre, que classifi-cava como safado, mulherengo e ladrão.

Honorato levou pau em vários vestibulares para Medicina. Tentou inicialmente as instituições mais conceituadas, como as do Recife e Salvador, depois apelou para uma entidade particular do interior de Goiás, sem o menor sucesso. Fazia os melhores cursos preparatórios, gastava noites e noites queimando as pestanas e, na hora H, derrapava. Parecia uma ziquizira.

Acabou recorrendo a um curso quase por correspondência na Bolí-via, onde conseguiu o título como aluno laureado. Apesar de toda a solidez da sua formação técnica e da influência política da família e dele próprio, jamais conseguiu ter o diploma reconhecido no Brasil. Mexeu os pauzinhos como pode, esgotou a argumentação, sem suces-so. Certas barreiras da burocracia são intransponíveis. Apesar desse pequeno detalhe, usava anel de esmeralda do tamanho de um limão, motivo de mangação dos adversários, que afirmavam ter melhor des-tino o ornamento caso enfeitasse o rabo de um cachorro.

Já Francisquinho, que até então não tinha apelido, ganhou o seu logo no dia da estreia como deputado estadual. Estrela de uma entrevis-ta coletiva, motivada pelo fato de ser ele o mais jovem integrante da Assembleia Legislativa em todos os tempos, o repórter perguntou

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por que decidiu abraçar a carreira política. Órfão de mãe desde muito cedo, educado por uma tia que pregava falar a verdade como um bem supremo do caráter dos cidadãos e ainda meio verde no traquejo da política, Francisquinho respondeu encabulado: Porque pai mandou.

Para aprender que uma coisa é conversa de tia velha pelos quartos da casa e outra muito diferente é a vida real aqui fora, e também tomar ciência de que a sinceridade dificilmente é recompensada na vida pú-blica, foi ridicularizado de forma absolutamente desproporcional.

Na época, existia no Recife um programa de rádio de grande audiên-cia, que repercutia em todo o estado, chamado A Hora da Carrocinha. Quando um político ou pessoa famosa dizia ou fazia bobagem, o apre-sentador contava e recontava o caso, exagerando nos detalhes para fi-car ainda mais engraçado. Além disso, fazia uma falsa enquete, com ele mesmo perguntando se jogava ou não jogava o fulano na carroça do lixo. Cada vez que perguntava, a resposta era engrossada em crescente por várias vozes: Joga! Joga! Joga! Em pouco tempo, graças aos efeitos de sonoplastia, a impressão era de que a emissora tinha sido invadida por uma irada multidão. Quase nenhum escapava da condenação e geralmente a pilhéria culminava com a vítima sendo impiedosamente atirada na carrocinha. Tudo isso acompanhado do som de ferraduras batendo no calçamento, além de relinchos de cavalos.

O jovem parlamentar, não só foi passear na carrocinha por vários dias seguidos, como, por pura maldade da produção, a emissora ficava re-petindo, inclusive nas chamadas, o trecho fatal da entrevista, de modo que até hoje, aposentado e com a saúde precária, carrega o apelido de Francisquinho Pai Mandou.

O declínio do coronelismo, na verdade, era um processo irreversível. Faça tudo na vida menos tropeçar descendo uma escada. Depois do passo em falso, é muito difícil o vivente se aprumar outra vez. Foi o que aconteceu, no sentido figurado, é claro, com o coronel Honorato Francisco das Chagas.

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Ele nunca teve motivo para se queixar de Arraes. O governador bem que retribuiu o apoio recebido. O coronel recolocou em todos os cargos estaduais de Boi Pintado e adjacências os seus protegidos que tinham sido defenestrados no governo anterior. Saboreou os seguido-res do monsenhor Afonso voltarem para a planície com o rabo entre as pernas.

Francisquinho foi indicado líder da bancada na Assembleia. Ele pró-prio jamais esperou na antessala de nenhum secretário. Mesmo sem marcar audiência, era imediatamente recebido. Isso é prova de prestí-gio. Na política, vale muito.

Entretanto não estava totalmente feliz. O seu poder sofria evidentes limitações. Já não controlava mais a polícia e muito menos a Justiça. Perante as novas práticas republicanas, todos os eleitores passaram a ser iguais, independente do partido. Onde já se viu?

O coronel não tinha mais cobertura para ordenar sequer uma boa pisa de cipó de boi em adversário desrespeitoso, como era do seu agrado. Ou seja, o seu tempo de arbitrariedades chegara ao fim. Isso lhe con-trariava. Poder que não pode, que tem que respeitar direito de adver-sários, não é poder.

Por isso, pesando os prós e os contras, não se alterou quando parte do Exército Brasileiro quebrou a hierarquia, rasgou a Constituição e implantou uma nova ditadura no País. O presidente Jango foi deposto e exilado? Já foi tarde. Os comunistas estavam levando pau no lombo? Bem feito, deviam era fuzilar todos eles. Políticos foram cassados? Fi-zeram por onde. Artistas, estudantes, camponeses, operários, jornalis-tas e intelectuais estavam sendo presos e seviciados? Rezando é que não estavam. Eram esses conceitos que o coronel emitia para os seus interlocutores.

Lamentou que a avalancha tenha atingido o governador de Pernam-buco, Miguel Arraes e o prefeito do Recife, Pelópidas da Silveira.

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Ambos o tratavam muito bem. Mas foi pura teimosia dos dois. Como se explica que tenham se recusado a entregar os seus mandatos aos militares vitoriosos?

Não adianta ir contra rio cheio, pica dura e faca de ponta. Para ele, era contra o bom senso um homem como Arraes, com pouco mais de 40 anos, viúvo, pai de 8 filhos menores, recém-casado de novo, desafiar o golpe vitorioso. Com o Palácio cercado, devia ter renunciado e ir para casa. Ao invés disso ficou no posto, com a conversa de que seu manda-to fora dado pelo povo e só o povo podia tomá-lo de volta. Resultado: acabou deposto, preso e remetido para Fernando de Noronha. Regis-tre-se que, na época, a atual paradisíaca ilha turística não passava de um remoto presídio isolado no meio do Atlântico.

Esse povo não quer botar na cabeça que política é um negócio, a gente entra para se dar bem na vida. Política com P maiúsculo, para defender ideias e programas é coisa de gente lesa. O sujeito se arriscar e ameaçar até a segurança dos filhos para defender princípios só pode ser idiota. Era isso que ele pensava e dizia.

Acompanhando a marcha dos acontecimentos da rede na casa grande de sua fazenda predileta, o coronel ordenou aos filhos, por telefone, a adesão imediata e irrestrita ao novo regime. Apesar do apoio que dera a Arraes, o coronel se iludiu achando que sua hora tinha chegado no-vamente. O movimento militar tinha como objetivo conjurar o perigo vermelho do Brasil. Ele, anticomunista e adesista de primeira hora, de-veria ter sua atitude reconhecida e sua importância valorizada.

Se o velho líder tinha perdido o faro, não sei. A dinâmica do proces-so social deixa para trás pessoas que em algum momento foram tidas como sábias ou imbatíveis. A vida não prospera pelo caminho da lógi-ca. São as contradições que constroem a História.

No lugar de restaurar o antigo poderio dos coronéis conservadores, o novo regime militar acelerou a sua trajetória descendente. Disposta a

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acabar de vez com as arcaicas e inconfiáveis estruturas de mando do interior do Nordeste do Brasil, a ditadura recém-instalada golpeou e enfraqueceu de morte o coronelismo em geral.

O que sucedeu nos meses seguintes em Boi Pintado, embora total-mente atípico, acabou sendo indicativo do destino que estava reserva-do para todos os coronéis.

Para Honorato Francisco das Chagas, antigo senhor de baraço e cutelo de Boi Pintado e região, o golpe trouxe como consequência uma via crucis particular, exclusiva. Com um encaminhamento que nenhum outro coronel sofreu. E, por mais paradoxal que pareça, ainda bem que o seu desfecho foi rápido, certeiro e mortal.

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Capítulo 9

Um enterro do outro mundo

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JÁ FOI DITO QUE O ESTILO DEFINE O HOMEM. JOTA França tinha a sua marca registrada: transmitia qualquer aconteci-mento como se estivesse descrevendo uma acirrada peleja esportiva. Missa solene, batizado, casamento, sessão do grêmio escolar, comício, entrega de título de cidadão, enfim, todo e qualquer evento, das mais diversificadas naturezas, era sempre narrado com a paixão, a sinceri-dade, a volúpia com que descrevia as imortais pelejas futebolísticas da localidade. Não faltava quem alertasse para ele diminuir a dose da emoção. Cuidado, Jota, diziam os amigos, qualquer dia desses um gol de placa te mata.

Entrou para a posteridade a cobertura realizada pelo locutor do gogó de aço do enterro que depositou na cidade dos pés juntos o coronel Honorato Francisco das Chagas.

Logo que chegou a Boi Pintado, de cara, sem qualquer motivo aparen-te, o xerife tomou assinatura com ele. Não deu o menor cabimento. A um emissário que veio sondar o terreno disse que oportunamente iria conhecer pessoalmente o chefão.

Agora, fortalecido, partiu para decidir a parada, estimulado pelo relato do juiz sobre a resistência do velho líder em colaborar para a formação da milícia. Fez a ele sua prometida visita, que deveria ter sido de corte-sia. No entanto, o clima foi o mais azedo possível.

Cara a cara, sustentando sem piscar o duro olhar do líder, exigiu a dis-persão dos pistoleiros e a entrega das armas privativas das forças arma-das ao delegado de polícia. Deu um prazo de 48 horas, levantou-se, e saiu sem sequer dizer até logo.

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Porém o golpe mais doloroso, a maior humilhação possível e ima-ginável, foi ter baixado, a seguir, o Ato Municipal nº1, para atingir o chefe político. Pregado nos postes, afixado nas repartições públicas, distribuído na feira e lido nos atos religiosos, o documento proibia, sob pena de prisão inafiançável, o uso de títulos militares para se re-ferir a qualquer indivíduo que não fosse integrante efetivo das Forças Armadas.

Tendo amargado nos últimos anos a perda do seu poder ilimitado de mandar e desmandar, com mais essa, o coronel ficou em um estado de espírito indescritível. Estava furioso, sim. Frustrado, também. Aba-tido, com certeza. Triste. Irritado. Desconfiado. Nunca imaginou que a alma humana pudesse acomodar tantos sentimentos negativos ao mesmo tempo.

À noite, reunido com a sua equipe de confiança, os amigos leais e mais chegados, desabafou: Essa tal Revolução Redentora que os militares fi-zeram é uma boa porcaria. Um desastre. Uma esculhambação. O País estava à beira do precipício, precisava mesmo de uma intervenção. Só que esses gorilas filhos da puta deram um passo à frente. Caímos direto no abismo. Enquanto falava, ia se exaltando. Querem saber de uma coi-sa? Dirigindo-se ao portão da casa gritou a plenos pulmões: Revolução Redentora é o caralho de asa. Essa porra é um golpe militar de merda.

Vindo da boca de um comunista ou adversário ferrenho do regime, a frase já soaria forte. Emitida pelo maior latifundiário do Agreste per-nambucano, direitista por convicção, torcedor declarado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, comprovava, mais uma vez, que a vida não segue um roteiro baseado na lógica.

A resposta da rua foi o silêncio. A seleta plateia não encontrava pa-lavras para argumentar. Apesar de assustada, balançava a cabeça com sinal de aprovação, em apoio moral ao chefe. Vou romper com essa merda, declarar guerra a esse governo safado, dar uma surra de cipó de boi nesse xerife farsante, decretar a independência de Boi Pintado como

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Pereira fez em Princesa na Revolução de 30. Compadre Aurélio, junte os Meninos que a brincadeira vai começar.

Se os revezes dos anos anteriores tinham calejado seu espírito, ainda não passara pela desdita de dar uma ordem ao seu grupo de confian-ça e não ser imediatamente obedecido. O correligionário olhou para os outros, coçou a cabeça e, pela primeira vez na vida, ousou ponde-rar uma ordem do chefe. Coronel, disse ele, não seria melhor ouvir as opiniões dos demais? Deputado Honorato Meu Doutor, o que o senhor acha dessa proposta?

Antes que o coronel conseguisse se recuperar do impacto de ter de imediato percebido que seu tempo passara de vez, o filho assumiu a palavra: Papai, com o reconhecimento e obediência que todos lhe deve-mos, eu respeitosamente lhe peço que reconsidere essa decisão. Isso vai nos expor a um conflito sem futuro. No mínimo, vamos começar perden-do nossos mandatos, Francisquinho e eu...

O velho leão despertou da letargia. E vociferou: Por acaso vocês nas-ceram deputados, seus dois filhos de rapariga? Mandato a gente perde e recupera; agora, vergonha na cara, quando se derrete, é para sempre. Ninguém é líder por acaso. Se a gente comanda um povo e não toma posição clara e firme, anoitece mandando e amanhece sem ter quem lhe obedeça.

O velho líder estava, como diz o povo, com a moléstia dos cachorros. Aproveitou uma brisa que soprava para tomar um fôlego e prosseguiu: Que falta me faz Mané Tiro Certo! Aquele sim, era bamba no uso do Colt 45, do rifle papo-amarelo, da espingarda doze, no punhal, na gota serena, na febre tifo do rato. Com ele aqui, esse intrometido ia dormir hoje para todo o sempre sem fim com um buraco bem no meio dos olhos.

Lamentou: A vida é assim mesmo. Falhei com ele, estou pagando caro. E depois de alguns segundos de reflexão: Querem saber de uma coisa? Fiquem vocês aí, bando de maricas. Eu mesmo vou acertar as contas

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com esse papangu, mequetrefe, mangangá, ordinário, pustema, rato de esgoto, monturo de estrume, falsário, canalha e degenerado desse xerife filho de uma égua manca.

Vou dar uma boa pisa de urtiga nesse porra, arrancar os culhões dele e mandar entregar na sede do IV Exército. Só assim essa revolução de meia-tigela vai respeitar a gente. Estou contra essa ditadura mofina e não abro nem para um trem carregado de pólvora com o maquinista bêbado e fumando charuto.

Levantou, verificou as condições do 38 na cintura e se dispôs a ir para a rua. Tentaram contê-lo. Estrebuchou. Honorato Meu Doutor foi fir-me: Não deixem ele sair, está sob violenta emoção, não sabe o que está fazendo. Se ele atirar no xerife, vai ser uma tragédia para ele e para to-dos nós. Podem segurar o homem, por minha conta.

Contido, ainda mais contrariado, teve que tomar remédio à força e pela primeira vez na vida dormiu sob efeito de medicamentos.

Para ele, foi o fim da linha.

Com a cassação do seu título, Honorato nem mais de coronel podia ser chamado. O povo, com medo dos longos e onipresentes braços da repressão, não sabia mais como se dirigir a ele ou sequer fazer menção do seu nome a terceiros. Doutor ele não era, podia até parecer uma forma irônica de tratar, naquelas circunstâncias. Chamá-lo de seu Ho-norato era quase humilhante, até o vendedor de farinha no mercado tinha direito a esse tratamento. Honorato simplesmente era excesso de avacalhação, nem em campanha eleitoral, quando todo mundo vira íntimo de todo mundo, ele era chamado dessa forma. Assim, de uma tacada só, perdeu a patente, a identidade, a vaidade, o amor próprio e o orgulho. Tornou-se uma sombra do que era. Um verdadeiro zumbi. Quase uma assombração.

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Tamanha humilhação tirou de vez sua vontade de viver. Dizem que a maior dor que um ser humano pode sofrer não é a do parto, do cálculo renal, nem mesmo de um chute nos testículos. É a dor da alma. Aco-metido irremediavelmente por várias nuanças desse sofrimento sem fim, Honorato Francisco das Chagas faleceu melancolicamente pouco tempo depois.

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Gol de placa

O que não se consegue nesta vida, pode se alcançar na outra.

Com o velho Honorato funcionou mais ou menos assim. Paradoxal-mente, a morte funcionou como uma instantânea redenção. Reacen-deu como que por encanto a magia antiga da liderança meio mística que exercera sobre os agricultores pobres e mesmo entre o povo mais esclarecido das áreas urbanas.

Uma multidão nunca vista se aglomerou para prestar-lhe a última ho-menagem. Eleitores que tinham se bandeado para as hostes do padre Afonso choravam convulsivamente com as cabeças cobertas de cin-zas. Até gente que tinha levado pisa, facada ou mesmo escapado de tiro dos seus capangas, cabras que foram obrigados a casar a contra-gosto, fazendeiros que sofreram confisco de bens, maloqueiros que tiveram as cabeças raspadas, todos se aglomeravam engrossando as honras póstumas.

Dona Cecinha, anos antes, foi pivô de um dos crimes mais comenta-dos de Boi Pintado. Frequentadora da igreja, integrante da corpora-ção das Filhas de Maria, que reunia as mulheres mais devotas, acabou fazendo a cabeça do marido. Antes defensor ferrenho do coronel, o correligionário Tobias terminou virando a casaca, bandeando-se para as hostes do padre Afonso. Um dia, ambos estavam no restaurante Pa-nela de Ouro, na Rua Sete de Setembro, que lhes garantia o digno sus-tento, quando apareceu um elemento provocador enviado pelo chefe político que acusou o golpe da traição e decidiu desmoralizar o casal para servir de exemplo.

Dia de feira, o restaurante cheio de matutos tirando a barriga da misé-ria, chega o capanga, arrogante, autossuficiente e certo de ter imuni-dade conferida pela fama de arruaceiro. Bebeu uma lapada de cachaça com tripa assada e na primeira oportunidade passou a mão na bunda da mulher. Não satisfeito, largou o chiste em alto e bom para todos os

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presentes ouvirem: Dona Cecinha, além da senhora, o que tem de bom para comer aqui?

Nem teve tempo de piscar. Tobias veio por trás e plantou-lhe na caixa dos peitos a faca peixeira de 30 polegadas com que cortava uma talha-da de charque. O cabra caiu estrebuchando e morreu ali mesmo. O as-sassino aproveitou o tumulto, fugiu pela porta de trás, ganhou o mato, escafedeu-se no oco do mundo. Nunca foi preso, dizem que refez a vida para as bandas de São Paulo, jamais voltou a viver com a esposa.

O episódio arruinou a existência de dona Cecinha, a partir de então viúva de marido vivo. Pois bem; até ela chorava copiosamente no ve-lório, de mantilha na cabeça e terço na mão. Bem que se diz que a me-mória do povo é curta.

Apesar da ausência das autoridades civis, militares e eclesiásticas do estado, o enterro do coronel foi, sem dúvida, o mais concorrido e tu-multuado do Agreste. Depois de narrar a partir de um carro de som os principais lances do deslocamento da massa humana que se espremia pelas ruas estreitas para acompanhar o cortejo, o aplicado locutor Jota França trepou no portão do cemitério, mal se equilibrando na ponta dos pés, para não perder qualquer detalhe da etapa final do ex-coronel neste lado da terra.

Descreveu cada lance da jornada: Lá vem a multidão se deslocando pela direita, pela esquerda, pelo centro. Deliram os aficionados, os homens so-luçam, as mulheres em prantos. Antigos companheiros fazem força para tocar no féretro. Os filhos carregam o caixão nos ombros, avançam com dificuldade, ajudados por ex-auxiliares e pelos mais importantes cabos eleitorais. O relógio não para, são 17 horas e 15 minutos, vivemos os últi-mos instantes da fase complementar da existência deste grande homem. Podemos dizer que já estamos nos descontos. O cortejo vai invadindo o cemitério, passa com dificuldade sob meus pés, entrou na área santa, as pessoas driblam as sepulturas. Bate e rebate das coroas de flores, os fi-lhos e amigos próximos já não conseguem manter o caixão sob controle,

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é pimba no envelope. O povo rouba o ataúde que agora evolui de mão em mão, um verdadeiro olé nos minutos finais, chega até a marca fatal da cova, vai baixando à sepultura, vai baixando, vai baixando... Bai-xooooooooooooooooooou!!! O imortal ex-coronel Honorato Francisco das Chagas beija o véu da noiva e adentra à sua última morada.

E finalizando em grande estilo, no tom epopeico que aprendera ou-vindo as transmissões em ondas curtas das jornadas esportivas do Rio de Janeiro e de São Paulo: Retira-se o público, o cenário da peleja está deserto, cerram-se as cortinas do fúnebre espetáculo.

A cidade estava triste, até os embola-bostas mais ferrenhos manifes-tavam o seu sincero pesar. Percebendo esse clima, o monsenhor se inspirou para a jogada de mestre que daria ainda nessa mesma noite.

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A ameaça do anticristo

O certo é que a existência humana, como diz o povo, é assim mes-mo. O ciclo se fecha para alguns, mas logo vai se abrindo para outros. Como o futebol na linguagem dos locutores de antigamente, a vida também é uma caixinha de surpresas.

No dia seguinte, na missa matinal que o padre Jovino rezava na ca-pelinha do Hospital Santo Afonso para confortar os doentes e apoiar o trabalho da dedicada Ordem das Freiras Beneficentes, ocorreu um fato ligado à natividade e que daria muito o que falar.

A protagonista foi a jovem e bela irmã Maria do Espírito Santo. Em plena hora da comunhão, quando abriu a boca para receber a hóstia, que naquele tempo ainda era colocada ali pelo celebrante, desmaiou. Ficou totalmente desacordada. Parecia que estava morta.

Por sorte dela, o Dr. Hidelbrando vinha chegando para assumir suas atividades e fez imediatamente os primeiros atendimentos.

A freira foi levada para uma sala de exames e, depois de certo tempo, Dr. Hidelbrando saiu, puxou pelo braço para um canto a madre su-periora, que aguardava disciplinadamente do lado de fora, como os demais, e cochichou no seu ouvido: Temos uma questão delicada. A irmã Maria está grávida. E ainda por cima, o seu hímen está inviolado. Ou seja, grávida e virgem.

A madre superiora caiu das nuvens e repetiu em tom mais alto do que o conveniente: Grávida e virgem? Como pode ser isso, doutor? O senhor tem certeza?

Certeza absoluta, irmã. Gravidez de aproximadamente 4 meses. Hímen inviolado. Claro que faremos exames complementares para confirmar, mas não espere outro resultado.

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A madre estava completamente perdida: Meu Deus do céu, e agora? Agora, sugeriu o médico, ela deveria comunicar imediatamente aos escalões mais altos da ordem e aguardar orientação. Da parte do Dr. Hidelbrando, podia contar com discrição total. Mas não esperasse qualquer concessão quanto ao laudo. O atendimento ficaria registra-do e o resultado anotado com as devidas prescrições, de acordo com o protocolo hospitalar. O que podia fazer era deixar a irmã Maria in-ternada, aos cuidados da enfermeira que acompanhara o atendimento, de modo que o segredo se mantivesse preservado até a chegada de orientações.

Tudo estaria muito bem encaminhado se as paredes não tivessem ou-vidos. A fala da madre foi escutada por pessoa bisbilhoteira, curiosa e fofoqueira. Em menos de meia hora começou a chegar gente na porta do hospital. Em pouco tempo estava organizada uma novena, com as pessoas cantando, rezando o rosário, com velas acesas na mão.

Foram logo contar ao xerife, mas este teve a feliz iniciativa de não in-terferir. Sequer entrou em cena quando o beato Elias chegou arrastan-do seu séquito e se postou no pátio do hospital sem dizer nada. Horas depois levantou a voz e bradou uma frase aterradora para aqueles fiéis: Mais um sinal de que o fim dos tempos está chegando. O anticristo, con-cebido pelo Satanás, está no ventre dessa falsa Virgem Maria.

Fez outra longa pausa. Quando uma beata puxou a reza novamente, interrompeu e voltou a falar com sua voz de trovão: Não louvem, ir-mãos. Eis que está concebido o Príncipe das Trevas, o filho do Belzebu. A Besta Fera Calibã vai vir ao mundo em forma de gente para perseguir os justos, reforçar os ímpios, destruir o céu e trazer o reino da injustiça para a face da Terra.

Deu meia-volta e retirou-se, deixando as pessoas ali aglomeradas sem saber como reagir. Passaram-se umas duas horas quando, finalmen-te, uma voz de beata puxou uma ladainha e aos poucos todos foram

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engrossando novamente o coro de orações. Mas as palavras de Elias permaneceram pairando sobre a cabeça de todos.

Na cidade, embora por pouco tempo, pois coisas diferentes não para-vam de ocorrer, não havia mais outro assunto.

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Capítulo 10

O perigo vem do alto

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A PARTIR DO PRIMEIRO ATO MUNICIPAL, INSPIRADO NO Ato Institucional nº 1 da ditadura, o usurpador não parou mais. Estava solto na buraqueira, como se falava. Tornou-se o mais prolífico e de-talhista legislador. No seu ímpeto, desagradou muita gente e comprou briga com diversos segmentos. A vida é assim mesmo. Bem diz o povo que, quanto mais alto o sujeito sobe no coqueiro, mais perto está da queda. Boi Pintado é conhecida nacionalmente como a Capital da Va-quejada, esporte nordestino de cabra macho que apaixona e arrasta multidões. Pois o sujeito resolveu proibir, alegando, imagine, maus--tratos aos animais.

Isso na cidade pioneira da formatação moderna e profissionalização do esporte, onde o invicto e marrento boi Carrapeta desafiava a perícia de gente que vinha de longe para tentar sua derrubada. O prêmio acu-mulado para quem conseguisse o feito parecia o da extração de Natal da Loteria da Caixa.

O alto valor oferecido pela derrubada de Carrapeta se devia ao fato de que quem se inscrevia para correr atrás dele pagava uma taxa extra. O proprietário do animal embolsava metade, a outra parte ia aumentar a premiação acumulada. Como provavelmente Carrapeta não volta-rá a ser mencionado neste relato, fique dito que, após tudo voltar ao normal, o barbatão continuou desafiando a perícia dos corredores e morreu de velho, sempre competindo e sem nunca ter sentido o gosto de beijar a poeira.

Outra iniciativa polêmica foi proibir homem de se vestir e requebrar como mulher, sem sequer abrandar o ato com um parágrafo libera-tório, referente ao Carnaval. Tentando restringir a atividade de dois

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ou três travestis, que eventualmente, nas caladas da noite, ousavam desfilar pelas ruas do Centro, acabou irritando muita gente. É o que acontece com quem dita regras para um lugar sem conhecer suas par-ticularidades culturais.

O bloco das Meninas Virgens ainda hoje é a maior atração carnava-lesca fora de época do estado. Antigamente o Carnaval durava so-mente três dias e acabava na quarta-feira ingrata. Em Boi Pintado, inventaram de fazer a festa no fim de semana seguinte, para fugir da concorrência. Foi um sucesso. Quase todos os rapazes do lugar e das redondezas aderiram à brincadeira. Capricham nas vestes femininas e saem pelas ruas em folia, tradição que não tem nada a ver com pre-ferência sexual, tanto que quase todos penduram entre as pernas uma taluda macaxeira; alguns até um pequeno cacho de bananas. Verdade que uns poucos se aproveitam para dar vazão a certas tendências re-primidas, mas isso é totalmente residual. Caso tivesse prevalecido a preconceituosa determinação, o bloco teria fechado as portas e não seria o sucesso que é até hoje.

De invenção em invenção, a autoridade, que, na prática, administra-va o município como se tivesse nas mãos os Poderes Executivo, Le-gislativo e Judiciário, foi angariando antipatia em todos os setores da sociedade. Ao proibir qualquer reunião de mais de cinco pessoas sem prévia autorização, quer fosse de noite ou de dia, atingiu diretamente os Tetéus, que foram impedidos de prosseguir com suas tertúlias. Até o beato Elias, que sempre andava acompanhado por seus doze discí-pulos e mais uma pequena multidão, virou novamente fora da lei. Os padres e pastores protestantes, por via das dúvidas, enviavam ofícios comunicando os horários de missas e cultos.

Uma comprovação de que estava sem sintonia ou não dava mesmo bolas para o sentimento da população está na sua atitude no dia do ve-lório do coronel, vítima fatal de suas arbitrariedades. Por todos os can-tos, os marimbondos destilavam rancor acusando-o de ter provocado o passamento do líder. Uma verdadeira comoção tomava conta das

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ruas, como foi descrito. Pois, indiferente a tudo, como se não bastasse o que estava acontecendo, o ingriziento foi comprar briga com o mon-senhor Afonso, chefe dos embola-bostas, sem sequer marcar hora. Quando assumiu o mandato de deputado estadual, o monsenhor foi afastado da posição de vigário. O bispo, intransigente e de olho num potencial concorrente, não permitiu o acúmulo dos cargos político e eclesiástico. O padre, entretanto, não abdicou dos confortos da casa paroquial que ele mesmo construiu com dinheiro da paróquia, com todos os requintes da modernidade.

O visitante inesperado bateu na porta, D. Severina veio atender. Tro-caram cumprimentos em pé, a fiel criada do lado de dentro, o visitante do lado de fora. Travou-se lacônico e ríspido diálogo. Boa tarde. Boa tarde; O deputado, por favor? Desculpe, sua excelência reverendíssima está repousando. Então, faça a gentileza de chamá-lo.

Sem cerimônia, de acordo com o seu feitio, empurrou a porta, entrou sem ser convidado e se aboletou na cadeira de balanço mais confortá-vel, exatamente a preferida pelo monsenhor.

Preocupada com a presença incômoda, D. Severina preferiu acordar o sacerdote, mesmo sabendo que ele detestava ser incomodado durante as suas sonecas. O monsenhor desceu as escadas visivelmente irritado. Dirigiu-se à autoridade, de cara fechada, estendeu a mão esperando o beijo respeitoso com que o brindavam os fiéis. O indivíduo fez que nem viu, sequer apertou-lhe a mão, respondeu com um gesto ambí-guo, que tanto podia significar somos iguais como conheça o seu lugar.

Embora não fizesse maior esforço para isso, o visitante estava muito bem informado sobre a vida e as mutretas passadas, presentes e até ar-ticuladas para o futuro envolvendo os dois principais grupos políticos do lugar. Todo santo dia, partidários dos marimbondos e dos embo-la-bostas pediam um particular com ele para futricar acerca do grupo adversário. Denúncias de todo tipo se acumulavam dos dois lados. O monsenhor não estava acima das leis e das regras estabelecidas. Sua

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presença não era visita de cortesia. Estava em missão revolucionária e, como não era de perder tempo com rapapés, entrou direto no assunto.

Deputado, o senhor sabe que a moralidade é uma preocupação primor-dial do nosso governo. Como a mulher de César, nós, revolucionários, temos que ser honestos e parecer honestos. Por isso, como o senhor é um dos mais importantes símbolos da nova era que vamos construir neste País, nenhuma dúvida pode pairar sobre as suas importantes atividades sociais. Então eu gostaria que o senhor me apresentasse a planilha dos custos da construção da sua nova igreja, futura catedral, para que eu possa calar os maledicentes que insistem em dizer que houve superfatu-ramento e desvio para sua campanha das doações dos fiéis.

O padre ficou lívido, o corpanzil tremia dos pés à cabeça, o rosto suava em bicas. Dona Severina, que ia chegando com água gelada e cafezi-nho recém-passado, viu a hora de presenciar um infarto ou um aciden-te vascular. A autoridade, impassível, parecia não notar a situação do interlocutor, tanto que dispensou água e café. E, sem dar uma trégua para que o reverendo pudesse se recuperar, foi logo engatilhando ou-tras questões tão ou mais desconfortáveis.

Preciso também - disse ele - de uma prestação de contas circunstancia-da da organização não governamental de propriedade da paróquia intitulada Círculo Operário. Segundo documentação em meu poder, a entidade recebeu recursos federais, estaduais e municipais, emendas par-lamentares mais doações de governos estrangeiros e entidades interna-cionais suficientes para qualificar pelo menos dois milhões de campone-ses. Consta dos registros que foram realizadas duas Semanas do Campo, com três agrônomos orientadores e cerca de trezentos e doze agricultores da primeira vez, e duzentos e oitenta e sete da segunda. Falta o senhor comprovar a qualificação de exatamente um milhão, novecentos e no-venta e nove mil, quatrocentos e um agricultores, afirmava, com segu-rança, lendo uma anotação que puxara do bolso da enfeitada túnica.

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O vigário sentou, apoiou a cabeça entre as mãos, e até cogitava um des-maio na esperança de encerrar a conversa. Como a decisão demorou, foi forçado a ouvir a continuação do discurso. Embora o monsenhor estivesse se sentindo atirado em queda livre num poço escuro, o ora-dor prosseguia imperturbável, como se tudo estivesse absolutamente normal. Essa era uma das suas marcas registradas: tocava fogo no circo e persistia em estado de absoluta tranquilidade.

Assim, prosseguiu, metralhando o ilustre líder dos embola-bostas: Um caso delicado, eminência, é o destino dos alimentos doados à paróquia pela Aliança para o Progresso visando a minorar a fome dos pobres. Fui informado de que o senhor requisitou e obteve desse vigário de fachada que lhe substitui para inglês ver que a distribuição dos gêneros america-nos fosse feita sob seu comando pessoal e direto. Está correto?

O silêncio do prelado foi entendido, de acordo com o secular provér-bio, como consentimento. O visitante, então, retomou a artilharia. In-dagou em tom mais agressivo: Então, como o senhor explica que grande parte dos queijos e manteigas foi parar nas despensas e geladeiras mais abastadas da região? E quedou-se, esperando a resposta.

O monsenhor até pensou em dizer que os grandes proprietários de terra recebiam os víveres para distribuir com os trabalhadores rurais e moradores de suas propriedades. Desistiu. Se explicasse uma coisa, teria que explicar tudo. Era melhor manter o silêncio. Aquele intrujão de opereta não tinha autoridade de coisa nenhuma. E, embora a imu-nidade parlamentar não estivesse valendo um vintém furado naqueles dias, tinha sobre os ombros o manto protetor da Igreja conservadora; nada poderia lhe acontecer.

Não obtendo resposta, o abelhudo continuou: Além desse desvio in-justificável, dessa ação corrupta e anticristã de tirar dos pobres para dar aos ricos, os demais enlatados viraram objeto de comércio em toda a região. Abastecem padarias, mercearias e bodegas daqui e de outros mu-nicípios. Não adianta contestar. Isso eu já verifiquei pessoalmente. Fui a

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Santa Maria, Vertentes, João Alfredo e Bom Jardim, além dos distritos de Casinhas e Vertentes do Lério, Chéus, Oratório, Lagoa da Vaga e Gangungo.

Em todos os lugares o quadro se repete. Os receptadores confirmam que os produtos vieram daqui. Isso no seu dicionário pode ter outra palavra, monsenhor, mas de onde eu venho chama-se simplesmente roubo.

O reverendo estava a par da conversa do interlocutor com o coronel. Na ocasião, até achara bom. Porém, por muito menos do que estava ouvindo, o homem não resistiu e bateu as botas. Mas ele, apesar do im-pacto e da taquicardia, não estava pretendendo morrer nem tão cedo; tinha um bispado para alcançar.

O outro prosseguia falando como se ele sequer estivesse ali, em vias de ter um troço. Se o senhor não estiver convencido, terei prazer em lhe acompanhar para juntos confirmarmos os desvios. Aliás, neste momen-to, todos os delegados de polícia e autoridades judiciárias com fé de ofí-cio estão dando batidas nos estabelecimentos, autuando os proprietários e confiscando as mercadorias irregulares. Também mandei avisar que quem foi enganado pode entregar espontaneamente o produto do roubo nas prefeituras e será imediatamente anistiado. Devido ao velório do co-ronel, aqui essa operação vai começar amanhã. Espero o apoio da Igreja na divulgação das mensagens.

E ainda, para encerrar o assunto, fez questão de dizer: As más línguas falam que a parte efetivamente distribuída foi direcionada exclusiva-mente para o seu eleitorado. Falam que os pobres só tiveram acesso à comida através dos vereadores e cabos eleitorais integrantes do seu grupo político, ou seja, os chamados embola-bostas. Caso tudo isso tenha acon-tecido sem o seu conhecimento, gostaria da sua colaboração para que possamos preservar os inocentes, determinar responsabilidades e punir exemplarmente os culpados.

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O monsenhor nunca imaginou enfrentar uma, digamos, batina justa como aquela. Que os inimigos murmurassem, inventassem, calunias-sem, exagerassem, tudo bem, fazia parte do jogo. Vindos de uma auto-ridade democrática e revolucionária, os questionamentos eram inacei-táveis. Procurou forças para dizer isso, mas teve que engolir seco como farinha com bolacha o restante da diatribe. Por incrível que pareça, o pior estava por vir.

Há um detalhe mais desagradável, excelência reverendíssima - disse pe-gando carona no tratamento solene e meio ridículo adotado pela fiel caseira. Isto porque pode ser facilmente comprovado através de docu-mentação cartorial. Circulam rumores de que o senhor colocou a pro-priedade do hospital, da escola profissional e de outras obras realizadas com dinheiro público e da comunidade em nome de seus sobrinhos. Tal prática caracterizaria tecnicamente o que se chama de nepotismo. Caso esta acusação também seja verdadeira – sublinhou o também no tom de voz -, esse caso, além de imoral também seria ilegal. Representaria a apropriação pelos seus parentes do patrimônio público. E permitiu-se ensinar padre-nosso a vigário: Embora tenha sido largamente pratica-do pela Igreja Católica ao longo dos séculos, o nepotismo é totalmente inaceitável em nossos dias.

E arrematou: Como sois vós quem sois, não vou dar, por enquanto, pu-blicidade à nossa conversa. Nem vou estabelecer um prazo para o cum-primento das solicitações e o cabal esclarecimento das denúncias. En-tretanto, não julgo demais recomendar uma certa presteza; os rumores danificam, não apenas o seu conceito de sacerdote e reserva moral deste estado, como o da própria Igreja Católica, que deve ser sempre imacula-da. Creio que o senhor concorda com minha argumentação, aliás o seu silêncio comprova isso. E à guisa de despedida: Ande rápido, monse-nhor, o tempo agora é outro. A Pátria não pode esperar, nossa revolução tem pressa.

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Ninguém oferece a outra face

Assim que se recuperou da surpresa e da raiva, o padre não perdeu tem-po. Sentindo o tamanho da trolha, percebeu que precisava reagir. E, so-zinho, não iria muito longe. Resolveu que era hora da jogada que sur-preenderia a todos. Em política não existem as palavras nunca e jamais.

Na mesma noite, deixando de lado o orgulho e as raivas do passado, fez uma visita de solidariedade cristã aos familiares do recém-sepulta-do e momentaneamente sem título Honorato Francisco das Chagas. Chamou para uma conversa reservada Honorato Meu Doutor, que, com a morte do pai, herdava a liderança dos marimbondos. Demons-trou indignação com o tratamento recebido pelo coronel, disse que contasse com ele para o que desse e viesse. Certas questões como esta estão acima da nossa rivalidade paroquial, o trocadilho involuntário caía como uma luva na situação dos dois grupos.

Agora que a revolução nos colocou no mesmo lado, já que ambos faze-mos parte da base aliada do governo, precisamos nos unir para manter nosso prestígio e nosso poder. Caso contrário, daremos vez a aventureiros como este, cuja presença tanto nos infelicita. Hoje foi com vocês, amanhã pode ser comigo. Espertamente o monsenhor antecipava, com essa frase bem colocada, uma provável quebra do segredo de que se encontrava sob severa investigação.

Ofereceu-se para expressar o espírito cristão celebrando a missa de sétimo dia. Seria um gesto simbólico assinalando a pacificação. E com-binaram de marcar uma data para uma peregrinação de lamúrias junto às autoridades constituídas. Juntos representavam uma expressiva for-ça moral e política. Por mais autoritária que fosse, a revolução devia favores e respeito à ala conservadora da Igreja, como também, um dia, haveria de precisar dos votos de Boi Pintado e região.

A partir daquele dia, o monsenhor Afonso reassumiu, de fato, a pa-róquia. Aproveitando que ninguém cobrava a presença de ninguém

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na Assembleia, voltou a celebrar missas diariamente. Não perdia uma oportunidade para fazer demoradas homilias, que começavam sem-pre com o bordão “Meus amados irmãos em Nosso Senhor Jesus Cris-to” e, na sequência, tome cacete velado no inimigo do momento. Na verdade, estava era se antecipando. A qualquer momento a autoridade poderia tornar públicas as acusações. Como ele abriu guerra primeiro, teria a desculpa de que se tratava de retaliação do atrevido pelas críti-cas recebidas na igreja.

Todo mundo sabe que as escrituras condenam quem deseja a mulher do próximo, e ainda por cima prevarica com ela. Os cobradores de impostos, os ricos, os poderosos, os sepulcros caiados, os filisteus, os falsos profetas também são personagens bem pouco populares.

Porém, ninguém tinha ainda percebido como o livro sagrado é im-placável com quem se mete no que não lhe diz respeito, adultera far-damentos, usa falsas comendas, inventa leis, utiliza título sem direito legal, age sem mandato em nome de uma causa nobre. Mais surpreen-dente parecia as condenações bíblicas aos que se enfeitam, àqueles que sentam na cadeira dos outros, dão cabimento a futricas, são cas-cas-grossas, chegam sem ser anunciados, invadem as casas alheias, se hospedam sem pagar a conta, proíbem títulos consagrados pelo uso e por aí vai. Os que acreditam em fuxico sobre a vida de sacerdotes, então, cometiam pecado sem perdão, punido com o fogo eterno do sétimo círculo do inferno.

Bem se diz que cada qual interpreta a Bíblia como quer. Naqueles dias o padre achava um jeito de enfiar a figura do xerife em todas as alusões a Satanás, aos espíritos das trevas, aos falsos profetas, aos cavaleiros do apocalipse. Chegou a afirmar, no limite da explicitação, que o pior tipo de sepulcro é o caiado na cor de azeitona. Para bom entendedor, meio sermão já era suficiente.

Faltava ao usurpador coragem suficiente para interferir na igreja, mas nem por isso ficou inerte. Alegando que o Estado revolucionário

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brasileiro era laico, proibiu o funcionamento dos alto-falantes da igreja. Alegou que perturbavam o sossego público com pregações re-ligiosas, o que era contrário à Constituição desde a Proclamação da República. O que não produziu muito efeito. O povo, como se sabe, gosta de uma baixaria. Como a popularidade do forasteiro andava um tanto abalada, até maribondos tradicionais deram para frequentar as homilias do monsenhor.

Os atos religiosos na matriz ganharam frequência extra e cada fiel que comparecia se encarregava de espalhar as críticas, o que não descumpria as proibições, desde que se tratava de assunto religioso e não político.

O clima da cidade, quase irrespirável, piorou mais ainda com os prepa-rativos e a execução da Marcha da Família com Deus e pela Revolução, e com o início da campanha Ouro para o Bem do Brasil. É certo que esses dois movimentos tinham inspiração nacional, o exemplo vinha de cima.

As Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, reunindo beatas, damas da sociedade, pilantras de todo tipo e reacionários em geral, compuseram parte importante da estratégia visando a criação de um ambiente favorável para o golpe militar. Vitorioso o movimento, os municípios que não tinham feito antes, correram para realizar suas marchas, agora demonstrando apoio ao fato consumado. O que não deixava de ser útil ao golpe. Ajudava a convencer o Brasil e, principal-mente, os demais países do mundo que os militares tomaram o poder atendendo ao apelo e com amplo apoio da sociedade.

Da mesma forma, em todo canto prosperava a pilantragem intitulada Ouro para o Bem do Brasil. Na verdade era um bando de sabidos arre-cadando dinheiro dos trouxas.

O xerife marcou a terça-feira seguinte como data da marcha. Evitava, assim, o sábado, quando se realizava a principal feira da semana, e o domingo, dedicado ao descanso, aos cultos religiosos e ao futebol. Além do mais, era dia de expediente público e de atividades escolares.

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Ficava mais fácil mobilizar funcionários e estudantes. Concedeu fe-riado cívico e cobrou chamada tanto dos funcionários quanto dos alunos. Quem faltasse sem justificação convincente estava ferrado. Avisou logo que atestados de saúde não serviriam de álibi; ele não confiava na isenção dos médicos locais.

Determinou também para a mesma data o início do recolhimento das doações. Logo na abertura do ato, um fazendeiro entregaria um enorme cheque simbólico, desses que os atletas recebem nas premia-ções esportivas. Como esta promoção prosseguiria até o próximo fi-nal de semana, todos teriam oportunidade para registrar sua generosa contribuição.

Surpresas acontecem. Na dia do grandioso ato, quase todas as casas da cidade amanheceram com panfletos enfiados debaixo das portas. Fora o xerife opressor, Morte ao imperialismo ianque, Abaixo à ditadura, eram as palavras de ordem que entrecortavam um texto radical, em-bora de difícil leitura em virtude da falta de qualidade do mimeógrafo em que foi impresso. Nada se descobriu sobre os autores da façanha. Foram em vão as ameaças ou mesmo algumas porradas bem distribuí-das pelo destacamento policial. Como, na prática, vigorava um toque de recolher, ninguém estava na rua de madrugada, Desse modo os subversivos agiram sem ser perturbados nem identificados.

Os três guardas-noturnos nada viram. Passaram parte da noite tentando soltar meia dúzia de famintos cachorros de rua que foram trancados com grossos cadeados e correntes numa espécie de nicho gradeado. A cons-trução, na praça principal, servia exclusivamente para colocar a gigantes-ca estátua de São José na semana dedicada ao padroeiro. Os cachorros presos não estavam deixando ninguém dormir com seus ganidos.

Isso só pode ser obra dos Tetéus. Foi a primeira ideia que acorreu ao usurpador, ao juiz, ao promotor, a quase todo mundo, menos ao dele-gado. Assim que apanhou o panfleto, atrevidamente enfiado por baixo da porta do seu quarto na pensão onde morava, viu que a linguagem

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não era dos Tetéus. Onde Cumpade Deca, Továrish Lói, o professor Natércio iriam falar em luta de classes, mais-valia, ditadura do proleta-riado e imperialismo americano? Isso era linguagem marxista. Tivera aula sobre o assunto no curso de formação de oficiais.

Além disso, todos eles menos o professor Natércio Pai dos Burros esta-vam inscritos e efetivamente participando de um seminário de forma-ção política de cunho direitista, realizado em Maceió. Católico e lega-lista, o professor estava, por natureza, acima de qualquer suspeita em participar de um ato daqueles. Como se não bastasse, passou a noite no hospital aos cuidados do enfermeiro plantonista. Alegava que não con-seguia falar. Sua oportuna rouquidão, não identificada pelos médicos, o levou a declinar da honra de ser um dos oradores da marcha.

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Nem todo dia é dia santo

Conforme programado, assim transcorreu o evento. Foi inquestioná-vel sucesso de público. A convocação obrigatória já garantia o quorum necessário. Mas que foi desanimado, lá isso foi. O abre-alas com uma caminhonete de som trazia na caçamba, apertados feito sardinhas dentro da lata, o xerife, o prefeito, a Dama de Ouro, mais o promotor, o juiz de direito, o presidente da Câmara de Vereadores, os deputados Honorato Meu Doutor e Francisquinho Pai Mandou e o gerente do Banco do Brasil. Monsenhor Afonso, acometido por uma indisposi-ção repentina, mandou o sacristão como representante, mas este, não tendo direito a subir no carro de honra, seguiu a pé mesmo, como os mortais comuns.

As pessoas saíam das casas ou postavam-se nas janelas, fazendo cara de paisagem, mais interessadas na dança das nuvens no firmamento. Inácio Palma de Trovão, o maior animador de comícios, parecia mais que estava caçando moscas, olhando para um lado e para o outro antes de bater as mãos totalmente fora do ritmo. Mestre Evaristo comandava a banda regendo em tom triste dobrados patrióticos. O repertório era mais adequado para a Semana Santa. Os estudantes mais velhos esta-vam preocupadíssimos em preservar os bicos dos sapatos das pedras irregulares do calçamento; tanto que não tiravam os olhos do chão. Os funcionários públicos traziam no rosto expressões que tanto podiam representar profunda concentração cívica, como enorme contrarie-dade. Alguns chegavam a fazer muxoxos o tempo inteiro, certamente espantando mosquitos.

Chamou a atenção o cavalheirismo do intruso que, a todo momento, segurava no braço ou protegia com seu corpo a Dama de Ouro, evitan-do que tombasse com os saculejos do percurso.

Dias antes ele fora obrigado a convocar a distinta senhora para uma audiência privada no fim do expediente, para esclarecer as muitas dú-vidas acerca da contabilidade municipal. Por coincidência, naquele

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dia ficara pronto o apartamento na Prefeitura e fora colocada uma cama, mais larga que as de solteiro, mais estreita que as de casal, do tipo que o povo chamava solteirão. Acomodava bem o movimento de duas pessoas, desde que abraçadas ou superpostas. O próprio in-trometido adquiriu, sem pagar, roupa de cama e banho na loja de zé Paulino, bem como os sabonetes mais cheirosos disponíveis na loja chamada O Depósito, campeã em perfumarias de qualidade.

A dama chegou pontualmente no horário estabelecido, mais exube-rante do que de costume. Estava de fechar o comércio, conforme co-mentou um maloqueiro à distância. Como faltava cerca de uma hora para o fim do expediente e o desejo era inadiável, a autoridade passou a chave na porta e partiu para a mulher como um esfomeado encara um prato de comida. Após praticamente arrancar as roupas, colocou-a no colo e adentrou ao novo apartamento que apresentou como o nos-so ninho de amor.

Amaram-se voluptuosamente, uma transa intensa e barulhenta, quen-te feito boca de caieira. Nenhum dos dois foi econômico nos gritinhos e gemidos, bem como naquelas palavras apimentadas que os amantes costumam utilizar. Podia-se até pensar que a Dama de Ouro arrulhava em tom acima do razoável, como se estivesse interessada em dar ciên-cia ao mundo da sua nova paixão.

O zelador, que todo dia varria o quintal recolhendo as folhas que caíam dos pés de castanhola e ouvia tudo pela claraboia que ventilava o ambiente, não resistiu à tentação. Avisou a alguns funcionários ho-mens, amigos e de confiança. Mesmo correndo o risco de demissão a bem do serviço público, cerca de dez pessoas formaram uma silencio-sa e emocionada audiência, sendo que de vez em quando um corria na ponta dos pés para se aliviar no banheiro.

A partir de então até seu o último momento na cidade, o forasteiro passou a ter um terceiro expediente dedicado aos complexos mean-dros financeiros. A Dama de Ouro, nomeada como assessora especial

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para assuntos financeiros, chegava perto das 18 e geralmente só saía depois das 22 horas. Bem que se diz: a economia é a alma da adminis-tração pública...

Não com tanta clareza de detalhes como no quintal da Prefeitura, po-rém com qualidade suficiente para incendiar as imaginações nas áreas externas, nos alpendres e até mesmo outros ambientes das casas pró-ximas, era possível ouvir os arrulhos dos dois pombinhos, principal-mente quando a cidade fazia silêncio.

Dessa forma, após o sino da matriz tocar a Hora do Ângelus, até os rádios eram desligados, as televisões ficavam com imagem, mas sem som. No máximo, ouvia-se o grito de uma mãe mandando um pirralha para a cama. As famílias que moravam nas imediações foram atingidas por um surto de popularidade. Toda noite recebiam visitas, amizades antigas se revigoravam, parentes descuidados de repente tornaram-se assíduos; até intrigas bestas foram superadas. Os funcionários das lo-jas próximas à Prefeitura ganhavam gorjeta dos clientes retardatários para espichar o horário de atendimento. Trocando discretos olhares apaixonados no veículo, os dois tentavam esconder um segredo de polichinelo.

Ao chegar à Prefeitura, onde se daria a apoteose da manifestação, a autoridade declinou de usar da palavra e sequer subiu no palanque. Fi-cou no meio do povo para melhor saborear os louvores que certamen-te seriam feitos para enaltecer a Revolução Redentora e a ele próprio. Os discursos, entretanto, foram mornos, desprovidos de criatividade e entusiasmo. Todos elogiavam sem alma, faltava alguma coisa, não se sabia o quê.

O representante dos maristas, cometendo indesculpável ato falho, disse que o nome do marechal ditador indicava a sua predestinação. Forte como um castelo e branco como a paz. Só depois se apercebeu de que falara o título proibido: ditador. Em seguida, perdeu um tempo enorme tentando remendar. Explicou, sem convencer ninguém, que

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na Roma Antiga o título de ditador era atribuído ao comandante su-premo dos exércitos. Mas o pior de tudo foi a emenda no final. Tentan-do se recuperar da merda que dissera, atacou aqueles que aproveitam a tranquilidade da madrugada para semear ideias contrárias à ordem e à cristandade. E pediu uma moção de repúdio a esses fantasmas verme-lhos que eram um perigo para a sociedade.

Pronto. A juventude comunista que agia na clandestinidade ganhou, de graça e do adversário, o rótulo perfeito. Fantasmas Vermelhos. Essa nem Lenin nem Trótski tinham pensado.

O prefeito, por sua vez, falou que lugar de comunista era em Cuba e se prontificou a financiar a passagem de ida sem volta para quantos quisessem se mudar para a ilha caribenha. E por aí foi.

Furioso mesmo o xerife ficou com o discurso de Hebron, escolhido para falar em nome dos estudantes. O rapaz era um tanto idoso para ainda estar cursando o ginasial. Mas isso era comum por ali. Antes da chegada do Ginásio Pio XII, muitos rapazes concluíam o primário e as famílias não podiam custear os estudos em Limoeiro ou na capital. Quando o ginásio chegou, aproveitaram para tentar recuperar o atra-so. Muitos eram autodidatas, alguns tinham cultura acima do padrão dos professores.

Hebron era um desses, pelo menos parecia. Chegara à cidade no ano anterior, matriculou-se no terceiro ginasial. Já na primeira reunião do grêmio escolar foi o único voluntário inscrito. Subiu ao palco e anun-ciou que falaria sobre as sete artes. Começou pela música, terminou pela literatura, discorrendo com profundidade e segurança acerca de cada uma delas. Impressionou. Foi eleito orador por unanimidade.

Daí para a frente, em qualquer evento cultural, aparecia a sugestão para Hebron discorrer sobre as artes. Sempre havia alguém importante que ainda não presenciara a performance, ele não se fazia de rogado. Era simplesmente brilhante.

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Pois naquele acontecimento de nuanças exclusivamente políticas, anunciado com todo o alarido pelo locutor como porta-voz da juven-tude revolucionária, Hebron se danou a falar sobre as sete artes. Lá para as tantas, como alguém lhe puxou pela camisa e soprou no ou-vido que o tema era outro, atrapalhou-se, não lembrou onde estava e começou tudo de novo. Quando o usurpador impaciente levantou as mãos sinalizando para ele encerrar de qualquer jeito, entendeu errado e concedeu um aparte à autoridade.

Era hora de prevalecer a experiência. Honorato Meu Doutor pegou o microfone. Puxou um Viva à Revolução Redentora! Em seguida, excla-mou Temos dito e sinalizou para Mané Fogueteiro acionar a girândola. O próprio Meu Doutor providenciara para o foguetório ter o dobro do tamanho padrão, a fim de valorizar o evento.

Ninguém ficou sabendo quem danado mexeu na posição dos fogos. A culpa ou mérito, dependendo do ponto de vista, terminou atribuído aos recém-batizados Fantasmas Vermelhos. Mané alegou que deixou tudo em ordem. O cabo até podia provar, porque foi até lá em busca do pagamento de um empréstimo ao fogueteiro, a ocasião para rece-ber era aquela. Depois de armar tudo e vistoriar novamente no início das falações, deslocou-se para um ponto de onde pudesse visualizar a ordem para dar início à pirotecnia.

Nesse meio tempo, ardilosamente, a posição das tabocas foi invertida. Assim, depois de disparados, ao invés dos foguetões se dirigirem para cair no descampado, como sempre acontecia, subiram quase levemen-te inclinados na direção da Prefeitura. E começaram a cair exatamente onde a plateia estava concentrada.

Foi o maior ataque aéreo acontecido em Boi Pintado até hoje. A rua virou um furdunço sem limites. Parecia uma cena da Segunda Guer-ra Mundial, conforme um filme havia pouco exibido no Cine-Teatro Navona. Foi um corre-corre dos diabos. Quando finalmente aca-bou o bombardeio, a praça estava deserta, muitos se protegeram nas

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[ 10 ] O perigo vem do alto

marquises da lojas ou invadiram casas até de intrigados. A igreja estava entupida de refugiados, as crianças choravam, muitos exibiam esco-riações, galos na cabeça e pequenas queimaduras. Só restavam na rua poucos moleques que corriam para todo lado atrás de pegar as tabocas dos fogos e o xerife.

Este permaneceu imóvel no seu lugar; foi o único que estava ao relento e não correu. Por sorte dele nenhum foguete queimado caíra na sua cabeça, o seu fardamento de estimação sequer ficou tisnado.

Tendo sua atenção despertada pela algazarra que acompanhava o es-trondo dos fogos, o monsenhor Afonso levantou da cama e espiou cuidadosamente pela janela. Do seu ponto de observação, entendeu claramente o angu de caroço no qual o adversário estava metido.

Apesar dos ensinamentos do catecismo, valorizando o perdão aos ini-migos, que sempre repassava aos fiéis, e do Pai-Nosso que rezava vá-rias vezes ao dia, não pode evitar a comemoração e o xingamento. Bem feito para esse filho de uma cadela aprender, gritou a plenos pulmões. Apesar do fuzuê reinante, foi ouvido à distância, mas não foi visto. Com uma agilidade inesperada, jogou-se sobre o tapete, de modo que quando os olhares se dirigiram à janela, encontraram o vazio.

Fora das vistas, ajoelhou-se, dirigiu às mãos aos céus e agradeceu: Obrigado, Senhor, por teres quebrado o orgulho desse filho do Leviatã. Confesso humildemente, meu Lord, que nem sei se isto está na Bíblia Sagrada, mas é uma verdade divina: quem aqui faz, aqui paga.

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Capítulo 11

Fé demais, bem, você sabe

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O USURPADOR NÃO PERDEU UM MINUTO. SE QUEREM guerra, vão ter guerra. Com os Tetéus fora da cidade, a panfletagem e o atentado aéreo só podiam ser obra ou dos comunistas ou dos brizolis-tas. Estes, antes barulhentos e mobilizadores, pareciam ter se evapora-do. Depois que a polícia local deteve, maltratou e tentou desmoralizar o líder deles, o ex-deputado Laércio Travassos, era mais fácil encontrar um jabuti penteando o cabelo do que alguém usando um lenço ver-melho no pescoço. A absurda prisão de Travassos, aliás, expressava o grau de arbitrariedade a que estava submetida a sociedade brasileira naqueles tempos sombrios. E que muitas vezes ia além dos limites do ridículo.

Transcorreu durante uma festa no Sport Club de Boi Pintado, agre-miação que reunia a elite da cidade. O deputado recém-cassado, in-fluente integrante do PTB, que privava da amizade de Leonel Brizola e do próprio presidente Jango, seria um dos homenageados no Baile das Personalidades. Anualmente, o clube distribuía diplomas e troféus a pessoas que se destacavam nos seus respectivos campos de atividade. Como a escolha dos premiados já estava feita e anunciada antes do golpe, a diretoria achou por bem não alterar a lista, esperando que as figuras não gratas ao novo regime favorecessem com a sua ausência por vontade própria.

Apesar de suas principais bases eleitorais serem em outras áreas do estado, Laércio Travassos era bem votado no município, pois recebia em peso o apoio dos trabalhistas locais. Circulava bem, era uma figura amena, cordial, estimada por pobres e ricos. Provavelmente por conta desse perfil, apesar do seu mandato ter sido cassado logo na primeira leva, escapara até então de ser preso.

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A ameaça que pesava sobre sua cabeça não o intimidava. Achava que cabia ao líder dar o exemplo. Para mostrar que não tinha razão para se esconder ou demonstrar medo e também levantar o moral de quem sempre confiou nas propostas brizolistas, confirmou que iria buscar sua condecoração. Devidamente informados, o xerife e o delegado combinaram um plano maquiavélico. Organizaram os detalhes e de-terminaram que, no primeiro deslize, o político deveria ser preso, alge-mado e arrastado do recinto direto para a cadeia.

O ex-deputado chegou com sua elegância de sempre, paletó branco, gra-vata vermelha. Atravessou o vestíbulo sob os olhares de todos que ali se encontravam e caminhou direto para o salão de festas. Acenou com a cabeça cumprimentando as pessoas à distância, apertou duas ou três mãos que se estenderam no seu percurso e sentou sozinho em cadeira de mesa de pista. Chamou o garçom, pediu refrigerante e tira gosto.

Quando a entrega dos prêmios que antecedia ao baile estava prestes a se iniciar, o garçom chegou com o pedido e, meio nervoso ou de propósito, ninguém sabe, pisou em falso no pequeno degrau que de-marcava a pista de danças. Refrigerante, gelo e salgadinhos rolaram so-bre a mesa. Para não ser atingido, Travassos teve que se levantar brus-camente e, naquele movimento de surpresa, abriu os braços e soltou um “epa”. Em seguida, pegou o guardanapo vermelho para enxugar os respingos que caíram sobre seu paletó. Foi então que recebeu ríspida voz de prisão, seguida do procedimento preestabelecido, totalmente inadequado ao ambiente. A partir do episódio, a festa ficou morgada.

O auto lavrado para justificar a prisão registrou que o respeitado ho-mem público se levantou, xingou o regime militar e desfraldou uma bandeira vermelha tentando sublevar a plateia. Agora, os militares tinham um fato concreto, apesar de forjado, para fundamentar uma punição mais severa ao ex-deputado.

Foi mais um ponto para o forasteiro e o delegado. Recambiado no dia seguinte para o Recife devido àquela acusação específica, Travassos

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teve que escolher entre a prisão e o exílio. Escolheu o exílio. Como se encontrava a caminho do estrangeiro, não podia ser apontado como mentor dos panfletos subversivos e muito menos pelo bombardeio das tabocas de fogos que transformaram a Marcha da Família Boipin-tadense com Deus e pela Revolução no mais completo, total e absolu-to fiasco.

Como era preciso encontrar culpados rapidamente e dar uma satisfa-ção à sociedade, o xerife apelou para a surrada receita de responsabili-zar os velhos comunistas do lugar. Até então, os antigos militantes ou notórios simpatizantes do velho PCB tinham sido deixados em paz. Considerava, totalmente coberto de razão, que eles não representa-vam qualquer perigo imediato para o movimento golpista ou para o governo militar que se instalou. Eram lobos desdentados, conforme costumava se referir a eles.

Naquele caso, entretanto, à falta de outros bodes expiatórios, acusar os comunistas era o único jeito. Convocou a milícia dos pistoleiros e daquela vez os integrantes do CCC, já que a ação era eminentemente urbana. Sequiosos por dar porrada nos subversivos, esses acorreram em festa. Realizou-se um verdadeiro arrastão ao longo da noite, arran-cando da cama e prendendo todos os partidários da União Soviética que foram encontrados. Os jovens comunistas, como sempre manti-veram o anonimato, não foram incomodados.

A dor, o medo e a apreensão tomaram conta de mulheres, jovens e crianças em muitos lares da cidade. O choro e os gritos de desespe-ro quebravam o silêncio da noite e despertaram quase que a cidade inteira. A operação, batizada como a Noite de São Bartolomeu da Ca-terva Vermelha, durou até quase duas horas da madrugada, quando, cansados e exultantes, os bravos defensores da ordem e do progresso se recolheram às suas casas para o merecido repouso. O mandão, que geralmente estava nos braços de Morfeu antes da meia-noite, caiu na cama ferrado no sono, de túnica e tudo. Dormiu de alma lavada, sem sequer tirar as botas.

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Um jumento puxando o outro

É ruim cantar vitória antes do tempo.

Ainda bem cedinho, quando estava no terceiro sono, sonhando justa-mente com os belos seios da Dama de Ouro, o intruso foi bruscamen-te interrompido por batidas na porta. Levantou meio atarantado; era o cabo Patrício, pálido como se tivesse visto assombração. Excelência, me desculpe, mas o senhor tem que ver uma coisa antes que a cidade acorde. Saíram às pressas, foi a vez da autoridade perder a cor: no muro do hotel, pintada com tinta vermelha, a frase subversiva e desafiadora: Abaixo à ditadura. Fora o xerife.

Se fosse só isso seria fácil resolver. O problema era que a palavra de ordem estava espalhada por todo canto da cidade. Escritas com tin-ta, spray ou riscadas a carvão com várias caligrafias, atestavam que a ação subversiva contara com diversos participantes. O estranho per-sonagem mandou acordar seu Ribeiro, do armazém, e confiscou latas e mais latas de piche. Os funcionários da Prefeitura passaram a manhã inteira cobrindo as inscrições com tarjas pretas.

Duas ou três pessoas que foram flagradas mangando da situação aca-baram em cana, de modo que, embora nenhuma proibição tivesse sido formalizada neste sentido, para evitar interpretações equivoca-das, todo mundo naquele dia evitou dar risada em via pública.

A ideia de cobrir as inscrições não foi exatamente a mais feliz. Como todo mundo sabia o que estava escrito por baixo, as tarjas pretas só faziam reforçar a contestação e funcionavam como um lembrete, uma propaganda subliminar contra a Revolução Redentora e seus repre-sentantes locais. Os matutos ou visitantes queriam saber o porquê da-quilo, de maneira que o assunto ficou rendendo um tempão, até ser determinado que os proprietários deveriam pintar seus muros para esconder as tarjas. Não foi simples; uma mão de cal era insuficiente para a desejada ocultação. Para ser eficaz, tinha que ser utilizada tinta a óleo, o que era muito pesado para o bolso da maioria.

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Com o seu plano de culpar os velhos comunistas desmoralizado, ten-do passado recibo de que os inimigos estavam mais fortes e organiza-dos do que qualquer um poderia supor, o mandão, pela primeira vez, parecia totalmente perdido.

Toda a estratégia planejada estava fazendo água. A marcha deveria ser o ponto de partida para alavancar a campanha de doações. Com o cli-ma de euforia cívica que, segundo imaginava, estaria instalado na ci-dade, ficaria mais fácil despertar a generosidade das pessoas. Deu tudo ao contrário. Também naquele dia não apareceu ninguém para fazer doações, o prazo estava ficando exíguo. O livro de ouro permanecia com a maioria das folhas imaculadas, a campanha caminhava para ren-der bem menos que o esperado. Além de não resolver nada, a prisão dos comunistas criou novos problemas.

Decidiu manter os prisioneiros encarcerados mais alguns dias, saben-do que teria que soltá-los em pouco tempo. Todos eram benquistos na comunidade. Um alfaiate, dois ferreiros, dois marceneiros, um ti-pógrafo, três mecânicos, alguns pequenos comerciantes, gente tida e havida como inofensiva.

A cadeia local não oferecia condições para uma detenção mais pro-longada de um grupo tão grande. Além do mais, não havia acusação específica para justificar a remessa para o Recife. Por lá, os quartéis e presídios também já estavam botando gente pelo ladrão.

Outra consideração importante feita pelo delegado e assimilada pelo intruso: Depois de ganhar fama e prestígio remetendo ao IV Exército prisioneiros importantes, que geraram repercussão até internacional, não iam agora baixar de padrão enviando uma carrada de cafuçus, pia-bas de barreiro, gente sem nenhuma expressão nem culpa formada. Era andar para trás, o conceito deles cresceria feito rabo de cavalo. Melhor parar por ali.

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Diz-se que quando urubu está de azar, o que voa em baixo suja a ca-beça do de cima. Pois assim, na madrugada daquele dia, o ônibus que se deslocava para o Recife, totalmente lotado, quebrou na ladeira de Biu Preá. E apenas a equipe de Cabeçote, ou seja, os 3 mecânicos co-munistas que estavam presos, dominava os segredos para o coletivo já cansado de guerra voltar a andar.

A bem da utilidade pública, a prisão do trio teve que ser relaxada. Es-coltados por milicianos, recolocaram horas depois o ônibus em mo-vimento. Retornaram ao cárcere saudados como verdadeiros heróis.

Para dificultar ainda mais as coisas, uma pequena multidão de familia-res decidiu fazer uma vigília na frente da cadeia em busca de notícias dos presos, sem falar nos muitos curiosos que se agregavam esponta-neamente. De vez em quando, um dos prisioneiros escalava a grade de ferro no alto da parede da cela e acenava, recebia aplausos, havia choro, a repressão sofria revezes um atrás do outro.

O monsenhor Afonso pronunciou um sermão duríssimo contra um certo xerife do faraó do Egito, que obrigava as pessoas a marcharem ao redor das pirâmides apagando inscrições e instituiu trabalhos for-çados sob vigilância armada. O degenerado tinha a mania de prender quem não pensava como ele, sem se preocupar se eram culpados ou inocentes. Mais direto, impossível. De acordo com o sacerdote, o tal puxa-saco do faraó despertou a ira de Deus, que primeiro, à guisa de aviso, despejou uma chuva de setas sobre a sua cabeça e, como o fari-seu teimou em não entender o recado, o condenou a vagar pelo de-serto onde ladrões lhe roubaram as medalhas e o sol quente derreteu seus miolos.

O usurpador, apesar de imprudente, não tinha nada de burro. Perce-beu que estava ficando isolado. Nem a Dama de Ouro apareceu para minorar suas mágoas. Passou parte do tempo disponível conversando com o único amigo que fizera na cidade e que se mostrava inteiramen-te fiel, uma figura folclórica que atendia pelo apelido de Garapa. Até aí,

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normal, apelido é coisa muito comum no interior. Também é frequen-te a pessoa ter o nome relacionado a um familiar ou a uma atividade profissional ou ainda uma habilidade pessoal. Júnior de zé Bodega, Antônio de Tromba Fina, Maria do Xaxado, Pedro de Vela Branca, zé Gravatinha, Leto Cuscuz, quase todo mundo tinha apelido. Uns gos-tavam dos seus, outros não.

No caso de Garapa, ele não fazia questão, atendia educadamente, só não gostava de ouvir o seu apelido tratado como deboche. Numa con-versa trivial, caso os interlocutores mencionassem sua alcunha com a naturalidade com que se referiam a Honorato Meu Doutor, Lambe Cu, Moço de Coco, Biu zanoio, Buchecha de Alumínio, Bico de Pato, Maria Frouxa, Bode Rouco, Burra Cega, Buchinho, índio Tabajara e tantos outros, não havia problema. O que o doido não aguentava era ouvir seu nome achincalhado.

Sabe-se lá por que, um grito do nome Garapa, principalmente se acom-panhado de um palavrão, tirava o cidadão do sério. Se espalhava todo, saía na porrada, não respeitava qualquer ambiente. Como ele gostava de andar pelo meio da rua, a maloqueirada adorava provocá-lo. Água, gritava um de lá; açúcar, respondia outro de cá. Garapa ameaçando a todos com um cacete que sempre conduzia, babava de raiva repetindo para todos os lados: Mistura, fela da puta, mistura, filho de rapariga... E quando alguém misturava, de longe, naturalmente, era certeza de, pelo menos, uma correria.

Gostava do xerife, que sempre o tratava respeitosamente de senhor Garapa, desde o dia em que bateu na Prefeitura em busca de uma au-diência denunciatória. Já estava sendo enxotado quando a autoridade, tendo ouvido o fuzuê, interveio, abriu as portas do gabinete, escutou suas denúncias que não poupavam ninguém. A partir dali, sempre que convocado, Garapa ouvia as reflexões do outro com os olhos arregala-dos. Embora não entendesse o seu linguajar frequentemente comple-xo, prestava muita atenção e concordava com tudo, parecia a coruja da

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piada. Naquele dia, ouviu durante horas as mágoas, preocupações e planos da autoridade.

O demorado monólogo serviu para o forasteiro clarear as ideias. Deci-diu soltar os prisioneiros no domingo. Os matutos e comerciantes que encheriam a cidade na feira do sábado saberiam que ali havia autori-dade: escreveu, não leu, o pau comeu. Primeiro, ostentaria a plenitude do seu poder. No dia seguinte exercitaria a magnanimidade. Mandou avisar às famílias que, se não houvesse mais manifestações na frente da prisão, podiam preparar as galinhas; o almoço do domingo seria com todos em casa.

Só que as coisas nem sempre transcorrem conforme o planejado, e aquele sábado, que deveria servir para a poeira baixar, reservaria novas emoções e principalmente contrariedades. Ainda cedo uma confusão inusitada se espalhou pelas ruas. De repente, quando a feira começou a se animar, uma manada de não sei quantos jumentos partiu das ban-das dos currais onde se comercializavam animais dirigindo-se, em ga-lope ensandecido, rumo ao coração da cidade.

Alguns traziam busca-pés e rojões amarrados nos rabos que se acen-diam à medida que os estopins iam chegando ao final. Muitos estavam devidamente pintados com as inscrições fatais de Abaixo à ditadura e Fora o xerife. Escoiceando, os irracionais invadiram a feira, atrope-lando as pessoas, derrubando bancas, pisoteando mercadorias. Foi a maior desordem jamais perpetrada em Boi Pintado. E uma claríssima demonstração de que a cidade estava ao deus-dará.

Como se sabe, o humor é sempre uma arma usada contra o arbítrio. Fazia sucesso naqueles tempos a piada do sujeito acorrentado em ca-labouço da ditadura, com uma faca enfiada na barriga. Profundamente consternado, um prisioneiro recém-chegado pergunta se estava doen-do. Só quando eu dou uma risada, era a resposta. Pois naquele dia a cidade perdeu o medo de rir. Os integrantes do CCC, mobilizados às

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pressas, executaram a ridícula tarefa de retirar os asininos das ruas, pa-ralelamente à nobre ação de socorrer os matutos feridos.

A primeira missão deu um trabalho danado. Imagine os babaus em-pancados no meio da rua, os bravos agentes revolucionários arras-tando cada animal. Em alguns casos, a força humana foi insuficiente. Tiveram que recorrer ao trator recém adquirido para modernizar a limpeza urbana. O hospital, por sua vez, estava com a emergência en-tupida; alguns feirantes apresentavam traumatismos por quedas e coi-ces, outros sangravam com dentadas de jegue. Felizmente na maioria dos casos tratava-se de escoriações relativamente leves.

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Bola murcha? Nada disso, muito cheia

A pergunta era recorrente, feirantes e donos dos jumentos queriam saber quem pagaria o prejuízo. Ninguém respondeu.

Desta vez, fosse para prender cada um dos debochados que manga-ram da situação, era mais fácil passar uma cerca de arame farpado em torno da cidade. Apesar do lado trágico da coisa, a turma ria às ban-deiras despregadas, como se falava antigamente. Não demorou muito e já se dizia, à boca miúda, que o CCC tinha se transformado em CCJ, Comando de Caça aos Jumentos. Ou que a perseguição do xerife aos animais era a prova de que, como os veados, os jubaios também cons-tituíam uma classe desunida. Era como se falava naquele tempo, a Lei Afonso Arinos, como foi dito, ainda estava longe de fazer efeito.

O usurpador tirou do ar por 48 horas a Rádio Surubim, pois entendeu que a narração entusiasmada que Jota França fez do episódio foi clara-mente favorável aos jumentos. Erro de avaliação. Na verdade houve im-parcialidade total. O locutor não exagerou um pingo e até alertou mui-tos feirantes e comerciantes, o que evitou mais escoriações e prejuízos. Jota apenas exercitou seu consagrado estilo e cobriu o acontecimento como se estivesse sendo disputado um Grande Prêmio Brasil de Turfe.

A clara injustiça foi percebida por todos. Na missa do dia seguinte, o monsenhor Afonso disse que quem não é capaz de distinguir o cer-to do errado será condenado a sentar eternamente do lado esquerdo de Satanás. Não fosse pelo lado escolhido, todos pensariam que ele se referia ao mandão. Contou aos fiéis que quando o xerife Herodes decretou a matança das criancinhas, um magote de jumentos invadiu Jerusalém. Um deles, na verdade um anjo disfarçado de jegue, serviu de montaria para a fuga do Menino Jesus para o Egito.

Mal terminou a missa, o intruso deu início à sua agenda positiva. Au-torizou a soltura dos prisioneiros, todos saíram a pé da cadeia para suas casas. Atrás de cada qual se formou um pequeno cortejo. Logo

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apareceram galhos de árvore nas mãos, parecia procissão de Domingo de Ramos. Alguns gritavam: Viva a liberdade! Outros: Salve a demo-cracia! Houve até um discurso curto, emocionado e recheado de fra-ses ambíguas.

Naquela noite o Cine-Teatro Navona exibiu uma comédia na qual os Três Patetas representavam delegados de uma cidade do velho oeste americano. Nas trapalhadas habituais ao trio, acabaram se prendendo a si mesmos e perdendo a chave da cadeia. Ninguém sabe quem puxou um coro bem adequado à fita. Logo a plateia inteira repetia o refrão: Xerife pateta, teu destino é a prisão.

Diante daquilo tudo, o monsenhor Afonso e Honorato Meu Doutor resolveram antecipar a entrega às autoridades constituídas do estado da sua pauta de reivindicações, cujo primeiro e único item era o afasta-mento imediato do intruso. Resolveram que iriam só os dois. Eram os maiores líderes, representavam todos os grupos. A terceira via ensaia-da pelo prefeito, que tinha ganho o novo apelido de Cabeça de Tou-ro, sucumbira ante a desmoralização e o peso dos chifres. Além disso, quanto mais gente numa reunião, pior. Basta uma opinião desafinada para tirar a conversa do prumo. Sem falar que, quanto maior a plateia, menor a sinceridade.

Procuraram primeiro o governador, que era amigo dos dois, tendo sido recebidos assim que houve uma folga na agenda. Pensavam que seria fácil fazer a cama do intrometido. Mas bem que se diz: não adianta ensaiar conversa. Adivinhando o assunto e querendo evitar o tema, a autoridade manteve na sala o chefe de gabinete e o secre-tário da Casa Civil. Em vez de se prontificar a ouvir, falou e fez mui-tas perguntas. Parecia até que a convocação partira dele. Analisou o quadro político nacional, elogiou a união dos marimbondos e em-bola-bostas; afinal eram os dois grupos políticos mais tradicionais e representativos do Agreste setentrional O gesto foi muito bem rece-bido pelos militares.

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Adiantou, pedindo reserva, que a tendência era a criação de um úni-co partido para abrigar todos as correntes que apoiavam a revolução. Já está tudo desenhado, só esperando o momento oportuno. Vão ser criados dois partidos, um grande, do governo, e outro de faz de contas, da oposição. O do governo vai se chamar Aliança Renovadora Nacio-nal, com a sigla ARENA. Para acomodar PSD, UDN e a parte adesista do PTB. Nas disputas locais haverá uma ARENA 1 uma ARENA 2 e uma ARENA 3, uma solução genial para todos se acomodarem no partido da situação.

Sem demonstrar pressa para que os visitantes não alegassem que não receberam a devida atenção, manifestava interesse em assuntos os mais diversos, querendo minúcias sobre temas que aparentemente em nada diziam respeito à atuação governamental. Pediu detalhes sobre o caso do beato Elias. Dizem, Honoratinho, que é o mesmo Mané Tiro Certo que chefiava a guarda privada do seu pai. É verdade, governador, dizem, o povo fala demais.

Falam também que ele desafiou o coronel e foi morto em praça pública; depois ressuscitou. Como se explica, monsenhor? É uma história com-plicada, governador, o homem foi enterrado sob as ordens do próprio coronel, o deputado Meu Doutor pode falar melhor sobre isso. O certo é que após três ou quatro dias o túmulo apareceu violado, o corpo sumiu. Depois surgiu esse boato sem nexo de ressurreição.

Será boato, monsenhor? Ouvi do compadre Anésio, de Boca de Dois Rios, que Mané desceu do céu na Vila do Oratório pilotando uma car-ruagem de fogo. Ele não presenciou, mas escutou o relato da boca de várias testemunhas que assistiram ao fato, gente de prumo no juízo. Os visitantes não escondiam o desconforto. É o que dizem, governador, é o que dizem. O homem não estava satisfeito e insistia no assunto: Afinal o beato é ou não é Mané Tiro Certo? Difícil dizer, governador, os cabelos assanhados, a barba grande e a indumentária esquisita deixam margem para dúvidas. Tem muita gente parecida no mundo, falou Ho-norato Meu Doutor.

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Aproveitando que chegou uma ligação de Brasília e o governador foi atender na outra sala, os dois combinaram acabar com a conversa fia-da. Pediram para falar a sós e tentaram ir direto ao ponto. Governador, a razão da nossa vinda... o outro cortou a conversa, abruptamente. Se for para falar sobre o xerife, perdem o seu tempo. Meus correligionários, vivemos um período muito difícil, minha gestão é cercada de desconfian-ça por todos os lados. Nos dias de hoje, uma palavra mal colocada pode custar o meu mandato. Se são meus amigos, me deixem fora disso.

E completou: Eu conheço Edilberto desde rapaz, muito antes dele virar o xerife. Sei tudo sobre a sua vida, seu jeito, não me contariam nenhuma novidade. Querem saber? Vocês são pessoas da minha confiança, vou confidenciar uma parte da história, façam bom uso dela, desde que não citem a fonte. E firmou um pacto com a dupla, na verdade um aviso ri-goroso: se envolvessem seu nome, não apenas negaria, como não teria contemplação, os dois seriam tratados como traidores e entregues à polícia política. Querem ouvir mesmo assim?

Queriam, claro. O governador, baixando a voz até um tom quase inau-dível, foi narrando a trajetória e as peripécias do adversário comum aos dois visitantes. A cada frase, a surpresa dos dois parlamentares só fazia aumentar.

Depois de algum tempo, o governador deu por encerrada a conversa. Bateu amistosamente no ombro dos interlocutores e, já em pé, finali-zou: Eu tentei puxar o assunto com o general comandante do IV Exérci-to, recebi um verdadeiro cala a boca. O xerife prendeu Juliano, desbara-tou o comando das Ligas Camponesas, prendeu indivíduos perigosos e ainda fundamentou um inquérito contra Laércio Travassos, um sujeito tão escorregadio que ninguém conseguira flagrá-lo em ato conspiratório até então. Vocês estavam lá, o que fizeram pela revolução? É melhor bai-xarem a bola, conselho de amigo

O homem é o xodó do general, que o considera um exemplo a ser segui-do. Na última conversa comigo ele disse que a revolução precisa de um,

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, você sabe

dois, mil xerifes. Porém, se quiserem procurá-lo, fiquem à vontade, vocês são adultos e vacinados, só não botem meu nome no meio.

Saíram caminhando, foram tomar um sorvete no Gemba para esfriar a cabeça. Estava claro que as pisadas de bola do intrometido não reper-cutiram na capital. Até agora só estavam sendo contabilizados os seus feitos. Era o bola cheia do momento. Como proceder?

Honorato Meu Doutor propôs a estratégia a ser seguida: Vamos man-ter a audiência que solicitamos ao comandante do IV Exército. Em vez de levar queixas, vamos conhecer o general e manifestar nossa irrestrita solidariedade à revolução. O simples fato de estarmos juntos é significati-vo. Registraremos que, como a atividade legislativa no País anda de fogo brando, estamos praticamente de férias, aguardando instruções.

Se Mané Tiro Certo ressuscitou e desceu do céu, se os Fantasmas Ver-melhos pintam o sete na cidade, se os comunistas aumentam a popu-laridade a cada dia, é problema de quem usurpou o poder. Eles eram vítimas, a prova maior foi a morte do coronel. Veja como são as coisas, monsenhor. O governador enviou um telegrama formal e hoje sequer lembrou de me dar os pêsames. A vida é assim, quem nunca comeu mel, além de se lambuzar, pensa que o danado nunca acaba.

E prosseguiu: Com as informações sigilosas que o governador nos pas-sou, no momento oportuno daremos conta desse farsante. Mas não podemos ser nós a fazer a caveira dele com o general. Isso vai acabar acontecendo, de um jeito ou de outro, talvez a gente não tenha que fazer nada, só esperar. Uma maluquice dessas não pode durar para sempre. Isso só acontece num momento histórico como esse que estamos vivendo. Um golpe que gera uma mudança radical de parâmetros e hierarquias deixa a gente sem saber quem manda e abre espaço para uma aventura dessa natureza.

O monsenhor concordou e dessa vez o planejamento deu certo. No outro dia, após a apresentação formal, o general tomou a iniciativa e

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foi logo perguntando: Como vai o nosso xerife? Honorato Meu Doutor encaixou a conversa ensaiada. Político experiente como era, não elo-giou nem criticou, não disse que sim nem que não.Falou um bocado, esgotou seu limitado estoque de elogios, mas não afirmou rigorosa-mente nada.

O monsenhor, por sua vez, na base do improviso, fez sua pregação de genéricos lugares comuns e finalizou a conversa com chave de ouro: A lealdade ao movimento revolucionário, general, está em se cumprir fiel-mente os seus desígnios, mesmo quando não compreendemos as razões. A revolução expressa a vontade de Deus, não é uma questão de razão, e sim de fé.

Mesmo sendo fé demais, ou até por causa disso, o general gostou da conversa.

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Capítulo 12

Os Tetéus retomam à vanguarda

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LIVRES DE QUALQUER ACUSAÇÃO OU SUSPEITA DE vínculo com os atos contrarrevolucionários, os Tetéus retornaram à cidade. Um investigador menos emocional desconfiaria da provi-dencial ausência deles e do álibi perfeito que dispunham exatamente quando a coisa esquentou. Como se sabe, coincidência é uma coisa que acontece, porém a gente deve desconfiar sempre que se depara com uma.

Na verdade sabiam que algo estava sendo tramado à revelia deles. Saí-ram mesmo para não levarem a culpa. Contudo, ninguém se deu ao trabalho de atentar para isso. As autoridades constituídas já tinham muitos problemas para resolver. Além dos Fantasmas Vermelhos, os guerrilheiros brizolistas da Mata Virgem de vez em quando botavam as unhas de fora. Algumas grandes fazendas das proximidades já ti-nham sido assaltadas. Barracões foram arrombados e assim a turma estava conseguindo alimentos para se manter. Não dormiam duas noi-tes no mesmo local. Como estavam sempre em movimento, era difícil planejar um cerco.

Por isso, as milícias não conseguiram êxito. O delegado estava prepa-rado para investigações convencionais, e os pistoleiros tinham expe-riência em tocaias e surras. Os guerrilheiros só se dispersaram quando, após o julgamento, tropas do Exército fizeram uma varredura da mata palmo a palmo. Uma operação de esmagamento que o Exército chama de martelo e bigorna. Diante desse embate desproporcional, fugiram sem baixas e sem derrotas, como foi dito.

Entretanto, naquele momento, eram os próprios Tetéus que se sen-tiam muito incomodados. Eles, que sempre estiveram na vanguarda

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de todas as presepadas que aconteceram na região, agora tinham fica-do definitivamente para trás. A hora e a vez eram dos Fantasmas Ver-melhos, estes tinham conquistado um lugar no imaginário de todos e no coração de muitos.

A vaidade é um sentimento sem limite que se apodera das pessoas como se fosse um porre de cachaça. Naqueles dias, no Recife, cons-ta que um renomado intelectual, rico e metido a progressista, ficou incomodado pelo fato de todos os seus amigos já terem sido presos ou pelo menos chamados para depor. Ele, eloquente esquerdista, não tinha sido sequer incomodado pela polícia política. Tomou então a iniciativa de telefonar anonimamente para o secretário de Segurança. Disfarçando a voz, se autodenunciou como perigoso comunista. Após ouvir a conversa, o secretário respondeu ao suposto dedo-duro: Meu amigo, fique tranquilo, nós conhecemos bem esse cara, ele não é comunis-ta e muito menos perigoso. Na verdade, não passa de um grande idiota.

Em Vertentes, cidade perto de Boi Pintado, um forasteiro foi preso du-rante uma arruaça e levado à delegacia. Cheio de afazeres, o delegado tratou de se livrar do caso dizendo que ia liberar o preso porque se tratava de réu primário, com bons antecedentes. Para quê? Sentindo-se diminuído, o cabra foi logo contestando: Primário uma pinoia. Eu passei no exame de admissão em Garanhuns. Não fiz o ginasial porque fui expulso pelos padres. E meus antecedentes são os piores possíveis; só de condenações tenho três nas costas na Comarca de Bom Conselho.

Na mesma linha, agora combinado com um toque de ignorância, um sujeito tentava um empréstimo vultoso no Banco do Brasil. O geren-te, cumprindo o protocolo para preenchimento da ficha, perguntou se ele era inadimplente. O candidato encheu o peito: Doutor gerente, pode perguntar por aí, pode até ter igual, mas ninguém nesse estado é mais “inadimprente” do que eu.

Pois os Tetéus também foram contaminados pela vaidade. Davam por encerrado seu período de recolhimento. Queriam a todo custo

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retornar ao centro das atenções. Só não tinham encontrado ainda a fórmula. Precisava ser algo com a cara deles: impactante, anárquico e contra a ordem estabelecida.

Como estavam proibidas reuniões na rua, passaram a procurar um lugar seguro para os seus encontros na noite alta. Primeiro tentaram a capela do colégio das freiras, que ficava mais perto das casas da maioria deles. A zeladora era, como se diz, arriada os quatro pneus por Cum-pade Deca, deixava uma porta lateral aberta, eles iam chegando aos poucos, geralmente pulando o muro do vizinho posto de puericultura. Conversavam baixinho, sem incomodar ninguém, era um bom lugar. A partir das 8 da noite as freiras já estavam recolhidas à clausura e as alunas internas aos dormitórios. O que não impedia que uma ou outra desse uma fugidinha de vez em quando para namorar. Numa dessas noites, a superiora estava com insônia, sentindo uns estranhos calores. Saiu andando pelos corredores desertos, ouviu rumores suspeitos e se dirigiu pé ante pé na direção da capela.

Naquela ocasião comemoravam aniversário de Továrish Lói, que es-tava mais liso do que muçum ensaboado. A turma toda andava meio dura, de modo que ninguém lembrou de trazer nem um bolo para so-prar as velinhas. Aí o próprio Továrish deu a ideia de comemorarem bebendo vinho armazenado para as celebrações e tirando gosto com o estoque de hóstias, que, aliás, eram deliciosas. Tinha gente que vi-nha comungar na capela do Colégio do Amparo apenas para saborear as guloseimas sagradas, preparadas pelas mãos de fadas das próprias freiras.

A madre flagrou a turma em plena libação. Passou um sermão, man-dou que limpassem tudo e acabou com a boquinha. Sorte deles que os princípios da ordem religiosa não autorizavam a delação.

A partir de então mudaram os encontros para um local absolutamente seguro. Em qualquer lugar do mundo o cemitério é um lugar que impõe respeito e temor. A maioria das pessoas evita passar nas imediações a

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partir de certa hora da noite. Até quem não acredita ou não tem medo de alma do outro mundo prefere, por prudência, manter a distância regulamentar. E depois da ressureição do beato Elias, o campo-santo de Boi Pintado ganhou uma prolongada fama de mal-assombrado.

Inspirados pelo exemplo dos primeiros cristãos, que, para escapar da implacável perseguição dos imperadores romanos, se reuniam nas ca-tacumbas, os Tetéus passaram a se encontrar toda noite no cemitério local. Quando chovia, reuniam-se apertados na capelinha que ficava no centro do campo-santo. Para as noites de lua ou estreladas, escolhe-ram, como base, o túmulo retangular do capitão zé Albino, um herói local morto precocemente. Ficava localizado bem na área central da necrópole. Portanto, mais resguardado de olhares e ouvidos curiosos.

O capitão foi uma das figuras mais respeitadas de Boi Pintado. Um legendário combatente que, depois de perseguir Antônio Silvino, de-dicou-se à caça de Lampião e deu uma grande contribuição para o fim do cangaço. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, sentou praça na FEB e teve participação decisiva no destino do conflito. Foi até con-decorado por bravura na batalha do Monte Castelo, na Itália, durante a qual as tropas brasileiras a bem dizer decidiram o conflito ao impor uma derrota decisiva às tropas do nazi-fascismo. De acordo com al-guns historiadores locais, foi o bravo capitão quem deu o tiro de mi-sericórdia em Mussoline e na rapariga dele, uma tal de Clara Pettace.

O monumento que acobertava o repouso eterno desse renomado he-rói passou a ser a plataforma literal das discussões dos Tetéus. Diferen-temente das grandes escolas filosóficas, como a dos peripatéticos de Platão, dos atomistas, dos pitagóricos e tantas outras na Grécia Antiga, eles não tinham uma orientação clara, uma linha ortodoxa e definida. Cada qual pensava como quisesse, isso até animava os debates.

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O sexo dos anjos

A sabedoria popular diz que não se deve discutir religião, política e futebol. Esses eram exatamente os temas preferidos pelos Tetéus, além de filosofia. Quando o debate enveredava por esse caminho, pratica-mente só dois falavam: o professor Natércio Pai dos Burros, que tinha esse apelido por ser um verdadeiro dicionário ambulante, e o ávido lei-tor Cabaceira, que se considerava ele mesmo um pré-filósofo da linha atomista e heraclitiana. Filosofia e religião eram temas que proporcio-navam sempre os embates mais ásperos e animados.

O Universo, na sua essência, é ideia ou matéria? É permanência ou mudança? A lógica permite alcançar a verdade, ou fica apenas nas apa-rências? Quem tem razão, Heráclito, que diz que tudo muda o tempo inteiro, ou Parmênides, quando afirma que nada muda na essência, toda mudança é apenas na aparência? Nada há de novo sob o sol ou há um novo sol a cada dia?

A questão de Deus também às vezes aparecia. Existe um ser ideal eter-no, que num dado momento criou o mundo físico ou a matéria é que é eterna e vive em movimento permanente? Cabaceira dizia que é mais fácil entender que o Universo não teve início nem terá fim do que pen-sar que uma entidade não material existe eternamente e, de repente, resolve criar do nada o Universo e o tempo. Ele argumentava que é impossível que um ser puramente espiritual tenha criado o mundo. Como uma ideia pode ter criado a existência objetiva?

Quem está certo? Os atomistas, defensores da ideia de que tudo o que existe pode ser reduzido a um elemento material, que denominam átomo, ou Sócrates, que afirma que a ideia do bem é o fundamento da existência? A Escola de Mileto, que defende ser o ar, o fogo ou a água os elementos essenciais e eternos do qual se derivaram todos os demais, ou os subjetivistas seguidores de Pitágoras? Estes diziam que a essência do Universo são os números imateriais.

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Quanto mais o tema se aproximava da origem de tudo, mais a dis-cussão esquentava. Deus criou o ser humano ou foi criado por ele? Se criou, foi de acordo com o que a Bíblia judaico-cristã narra ou foi conforme a mitologia de outros povos? Se foi criado pelos homens, qual a versão verdadeira ou pelo menos mais razoável para se crer: a dos persas, dos babilônios, dos gregos, dos egípcios, dos judeus, dos cristãos, dos árabes? Por que a Bíblia merece mais fé do que o Alcorão?

Eram assuntos sobre os quais, tinham consciência, nunca chegariam ao consenso. Isso sem falar que, de vez em quando, a discussão envol-via temas ainda mais polêmicos. Por exemplo: Cristo existiu historica-mente ou não passa de um mito? A Igreja romana está de acordo com o Novo Testamento ou é uma invenção completamente oposta aos en-sinamentos dos Evangelhos? O uso de imagens nos templos é ou não manifestação de idolatria? Cristo, sendo humano, também pecava? A graça de tudo estava no respeito à diversidade de opiniões.

Temas como esses provocaram, ao longo da História, excomunhões, polêmicos debates, alimentaram guerras, cisões, e condenações à fo-gueira e outros tormentos. Foram discutidos por filósofos, acadêmi-cos, concílios. E jamais, sobre qualquer um deles, chegou-se a uma conclusão consensual. Portanto, não eram eles que iriam conseguir. Os Tetéus discutiam pelo prazer da polêmica, sem acrescentar nada de novo ao debate secular. Eram discussões de pouca profundidade, já que lastreadas em informações extraídas, na sua maioria, dos livros de História Geral de Armando Souto Maior e História da Civilização Ocidental, do americano Edward Burns. No máximo, baseavam-se na Enciclopédia Britânica, cujo único exemplar completo estava na Biblioteca Municipal de Limoeiro. Era preciso se deslocar até lá para fazer a consulta.

Naqueles dias as discussões se arrastavam sem muita energia, repe-titivas e meio sem graça. É que, no fundo, cada um deles estava aca-brunhado por ter saído do centro das atenções na cidade. Agora, só se falava nos Fantasmas Vermelhos, os subversivos que, partindo do

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nada, realizavam atentados que estavam deixando louco o status quo local. Desafiavam a capacidade da Prefeitura, da polícia, da Justiça, da milícia e do CCC.

Jamais os Tetéus tinham pensado em coisas práticas significativas, marcantes e de grande repercussão, como trancafiar os cachorros no oratório ou promover uma invasão da feira pelos jumentos. Muito me-nos em desencadear um ataque aéreo como o das tabocas.

Esses feitos, objeto de comentários e da admiração geral, estavam atravessados na garganta do grupo. Sem ninguém ter explicitado claramente, a única preocupação real deles era encontrar uma ma-neira de recuperar o seu conceito e retomar o papel de destaque que sempre tiveram. Necessitavam encontrar uma solução politizada, algo de grande impacto. Uma ação contestatória, subversiva, sem se confundir com estereótipos de direita ou esquerda, fugindo aos tra-dicionais com chavões políticos. Com o cuidado de evitar o deboche pelo deboche. Isso tinha virado coisa da direita, dos filhinhos de pa-pai, dos alienados políticos.

À época, falava-se muito em problemática, era um vício de linguagem que estava na moda. Ajudou até a fazer a fama do jogador de futebol Dario, chamado Peito de Aço, por sua coragem de se meter entre qual-quer zaga. Certa vez, o atleta respondeu para um repórter que veio de lá com o chavão: Não me venha com problemática que eu tenho a solucionática.

Exatamente naquela noite, os Tetéus encontraram a solucionática para a problemática que os afligia.

Debatiam modorrentamente a responsabilidade de Deus pelas tra-gédias da natureza, quando Cumpade Deca, até ali demonstrando pouco interesse, com a cabeça distante, deu um tapa na cachola. É isso, pessoal. Deus é culpado ou inocente? Por que a gente não resol-ve isso em um júri?

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Inicialmente, a proposta foi recebida com o deboche habitual. Mas aos poucos foram vendo que a ideia era boa. Cumpade entusiasmou--se. Fazemos um júri simulado. Acusamos Deus e concedemos a ele o mais amplo direito de defesa. Criamos um caso local e nacional. Aqui, é um desafio para esse porra desse xerife que parece aquele do filme de Chaplin, que além de tudo já está caindo pelas tabelas. Derrubamos ele de vez.

Fazemos também uma grande afronta ao monsenhor Afonso, que vive usando o nome de Deus em vão. Ao mesmo tempo é uma provocação à ditadura e um achincalhe à Igreja reacionária que apoiou o golpe. Tam-bém vamos incomodar aos marimbondos, aos crentes, e até a esses filhos da puta desses Fantasmas Vermelhos. Vamos dar uma rasteira em todos eles de uma vez.

Cada vez mais animado com sua ideia, Cumpade Deca complemen-tou: Como o xerife bem disse e está na Constituição, o estado é laico. Ninguém pode nos chamar de comunistas por isso.Fazemos uma subver-são bem feita, por cima dos panos, sem precisar ninguém ficar se escon-dendo pelos cantos. E damos a nossa contribuição histórica para contes-tar o regime sem fugir do nosso perfil, que é grear com tudo e com todos.

Tomou fôlego e alertou: Agora ninguém se iluda e cada um se prepa-re. Os militares, os reacionários e a Igreja conservadora vão ficar muito putos com a gente. Em compensação, se tudo correr bem, vamos para o centro dos comentários não apenas aqui, em Boi Pintado, como em todo o Brasil e talvez até no exterior. O mundo dá muito valor a qualquer coisa que nunca foi feita antes.

A realização de júris simulados estava muito em moda naquele tempo. Mesmo antes do golpe, estudantes de todos os níveis e até entidades da sociedade civil organizavam esse tipo de evento para debater as ques-tões mais polêmicas. Julgava-se de tudo. Tiradentes, que na vida real foi condenado, enforcado e esquartejado, era sempre absolvido. Cala-bar, que se passou para o lado holandês quando os batavos invadiram

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Pernambuco, no século XVII, e morreu executado, invariavelmente ti-nha a condenação referendada. O divórcio, que naquele tempo ainda não existia no Brasil, ou o controle da natalidade, temas polêmicos e que desagradavam a Igreja, também sempre levavam couro.

Depois do golpe militar, a quantidade dos júris simulados cresceu muito, incluindo temas como a democracia grega, a liberdade, o na-zismo e outros que davam margem para uma argumentação de duplo sentido, de modo a embutir críticas veladas ao regime. Era uma boa válvula de escape para a juventude amordaçada.

De todos os temas já abordados naquele tipo de evento, em qualquer lugar do mundo, nenhum se comparava ao julgamento de Deus. Em um contexto de ditadura militar, era uma ousadia sem limites. O po-tencial era incomparavelmente mais polêmico e desafiador do que tudo o que se fizera até então no gênero. Por isso e antes de mais nada, discutiram os perigos da iniciativa.

A ideia acabou aprovada por unanimidade. O argumento de Továrish Lói foi decisivo e convincente: A gente nunca vai pegar em armas, fa-zer guerrilha ou escrever panfleto contra os militares. Ninguém aqui é comunista. Essa porra dessa ditadura vai demorar. Ou a gente faz al-guma coisa contra ela, agora, que não temos filhos para criar, ou não vamos fazer nunca mais. Porém eu só entro com a cambada toda, é um por todos e todos por um, como no filme dos Três Mosqueteiros.

Fizeram também um pacto de sangue para que nada fosse comentado com ninguém fora do grupo até estarem com tudo organizado. E re-solveram logo marcar a data de sete de setembro para a realização do polêmico evento.

No final do encontro, uma zelação, como se chamavam as estrelas ca-dentes, triscou a noite. Era um sinal. De quê? A natureza apoia a nossa iniciativa, antecipou-se o professor Natércio.

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Boi Pintado falando para o mundo

As noites seguintes foram dedicadas a discutir e planejar todos os de-talhes do empreendimento. Agosto estava caminhando para o fim, o feriado nacional de Sete de Setembro se aproximava apressado. De tempo em tempo, o tempo dá um salto, como diz o poeta.

Optaram pela seguinte estratégia: organizariam debaixo de sete capas toda a formatação do evento e depois dariam a notícia no exterior. Sil-vio T 4 estudou com Carlos Guerra no Recife e ficou amigo dele. Veio passar umas férias na cidade, enturmou-se. Virou amigo da cambada, conversava sobre jornalismo com Flávio Guerra, Antônio Heliodoro, Geraldo Guerra, que mais tarde fundariam um jornal intitulado A Re-gião. Noticioso e independente, circulava quando conseguiam recur-sos. Teve vida breve e marcante. Nunca se submeteu à censura prévia. Sucumbiu à repressão logo após o AI-5, depois de estampar uma man-chete com Dom Helder Câmara e denunciar o sistema financeiro do País, isso numa só edição.

Antes do golpe, Silvio T 4 já engatara uma brilhante carreira de jorna-lista em Londres. Fazia parte do Departamento de Língua Portuguesa da BBC.

O jornalista veio passar o São João com os amigos e ficou horrorizado com o que acontecia em Boi Pintado e no País. Ficou ainda mais irrita-do porque sua diversão predileta àquela época do ano era soltar busca-pé nas ruas e essa tradição estava proibida pelo usurpador. Conversou bastante com os Tetéus, com quem sempre se deu muito bem, a ponto de ser considerado sócio honorário do grupo. Nas conversas sugeriu que, se tivessem alguma notícia importante, podiam estar certos: ele botaria a boca no mundo.

No retorno à Europa, deu umas boas tacadas na ditadura e principal-mente no forasteiro. Nos comentários cunhou a frase: Na ditadura o perigo maior não está nos generais, mas nos xerifes que aparecem do

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nada como donos ilimitados do poder. Mais tarde, um alto prócer do re-gime adaptou a sentença, despejando a culpa nos guardas da esquina.

De um jeito ou de outro, ambos estavam equivocados. O perfil das ditaduras nasce da sua essência totalitária. As arbitrariedades mudam de forma e intensidade, mas têm a mesma fonte. Tanto as praticadas pelos generais, pelos xerifes ou até pelos irmãos das raparigas dos ca-bos de polícia.

Antes de soltar a notícia que Silvio, através da BBC de Londres, espa-lhou com repercussão estrepitosa mundo afora, os Tetéus organiza-ram tudo muito criteriosamente. Primeiro, quem deveria ser o juiz? Era imprescindível alguém com conhecimento técnico capaz de man-ter a imparcialidade e aguentar pressões de todos os tipos.

Escolheram o jovem advogado e ex-seminarista Amarildo Fernando. Apesar de católico fervoroso, ou por causa disso, aceitou a missão. Não sem antes ir ao Recife e consultar o novo arcebispo, que o recebeu sem dificuldade. Os desígnios de Deus não são percebidos pelo ser humano. Se ele o escolheu para esta missão, aceite. Melhor nas mãos de um justo do que de um ímpio, falou o pastor. Amarildo aproveitou, fez o convite, o prelado disse que faria o possível para comparecer. Se acontecesse, representaria de certo modo uma imunidade para o evento.

Definiram quem seriam os advogados de acusação e defesa. Não era qualquer um que teria coragem de ser o promotor contra Deus. Eval-do Cavalcanti, que vivia se preparando para ser advogado, embora sem se aplicar muito nos estudos, foi o escolhido e aceitou. Inteligente, tinha coragem para mamar em onça parida. Não ia aliviar no cumpri-mento do seu papel.

Para a defesa foi escolhido o professor Natércio Pai dos Burros. Cató-lico fervoroso, tolerante a ponto de fazer parte do grupo e gozar da ir-restrita confiança dos Tetéus, conhecia a Bíblia como poucos pastores

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protestantes. Sua coragem e sua coerência eram reconhecidas pela ci-dade inteira.

Apesar de não ter se formado, pois com a morte do pai precisou tra-balhar para ajudar no sustento dos irmãos menores, Natércio cursou alguns anos na Faculdade de Direito do Recife, assistiu a muitos julga-mentos e palestras na área penal, a sua paixão. Estava apto para a missão.

Através de Kirk e Douglas, filhos do dono do Cine-Teatro Navona, conseguiram a cessão do lugar. Dispunha de um bom palco, sistema de som, espaço para acomodar jornalistas, convidados, e ainda sobra-riam cadeiras para o público em geral. Mesmo assim, era certo que muita gente não ia conseguir entrar. Combinaram que a Rádio Suru-bim retransmitiria todo o evento para que a população pudesse acom-panhar da rua, dos bares ou de suas próprias casas. Jota França topou e organizou a estrutura necessária.

O Cine-Teatro Navona merece um registro à parte. Como em toda ci-dade do interior, até o surgimento da televisão, o cinema era a alma da vida coletiva e cultural. Além das notícias do País e do mundo veicula-das no informativo, que, como vimos, era chamado de natural, havia o futebol através da magia do Canal 100. Só isso bastaria para justificar a ida aos filmes pelos fervorosos amantes do velho esporte bretão, como se dizia. E eram muitos.

Antes dele, funcionara desde os anos 30 o cinema pioneiro de Antô-nio Justo, que também era dono do motor de luz. Esse era bem precá-rio, exibindo filmes mudos que chegavam quando as primitivas sopas, como eram chamados os ônibus da época, conseguiam vencer os ria-chos cheios no inverno ou a buraqueira da estrada no verão. Contam os mais antigos que o proprietário guardava duas ou três fitas para es-sas emergências.

No inverno, quando as chuvas impediam a chegada dos ônibus por vários dias, Justo era obrigado a repetir as fitas muitas vezes para os

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aficionados. Uma delas era de faroeste. De vez em quando, já cansados de ver as mesmas cenas, a pessoas pediam e a fita era invertida. Todos morriam de rir com os índios perseguindo os búfalos pelas pradarias de cabeça para baixo.

O Navona representou outro momento. Era o tempo do cinema fa-lado, em preto e branco. Verdade que as fitas se partiam muito. Cada quebra que interrompia a projeção recebia uma boa vaia. Na Semana Santa, além da matinê, eram duas sessões à noite para atender a todos os que faziam questão de ver a Paixão de Cristo. Uma bela noite, um matuto, irritado com a injustiça, deu um tiro em Pôncio Pilatos. Foi a única vez, fora dos júris simulados, que o procurador romano recebeu merecido castigo.

Nos domingos havia a matinê para a criançada com os seriados que sempre terminavam cada capítulo com uma cena de suspense, que se-ria resolvida na semana seguinte. Daí a expressão o perigo da série, que classificava o mais alto grau de risco possível e imaginário.

Outro detalhe interessante é que a tela do cinema ficava colocada à frente do palco. Portanto, restava um espaço atrás. Algumas pessoas, geralmente as que prestavam serviços ao proprietário, conseguiam autorização para assistir as fitas ali. O danado é que como a maioria dos filmes era em língua estrangeira, por trás as legendas ficavam ao contrário, feito a escrita inventada por Leonardo da Vinci. Ninguém conseguia ler.

Ninguém, virgula. Virabrequim, aprendiz de mecânico, meio comu-nista e semianalfabeto, aprendeu a decifrar as legendas de trás para a frente vai-se lá saber como. De modo que sempre ganhava alguns trocados extras fazendo a tradução simultânea dos diálogos. Com o tempo, o dono do cinema percebeu que havia ali um nicho de mer-cado e passou a cobrar o valor de 30% do ingresso normal para quem quisesse assistir aos filmes nas costas da tela e em pé. Com direito de levar seus tamboretes de casa.

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Em ocasiões especiais, como na Semana Santa ou no lançamento de grandes sucessos do cinema, o palco por trás da tela se transformava em verdadeiro camarote, com ingresso cinco vezes mais caros. Fazen-deiros analfabetos vinham com suas famílias e sentavam em confor-táveis poltronas para assistir e entender o que era dito graças à arte de Virabrequim.

A atuação do mecânico deixaria no chinelo qualquer narrador atual da entrega do Oscar na televisão. Falava rápido e claro, como se tivesse aprendido tradução com Rui Barbosa e oratória com o próprio De-móstenes, aquele que brilhava na Grécia Antiga.

Já o modelo do espaço exclusivo, copiado e reproduzido Brasil afo-ra, serviu de inspiração para os grandes camarotes que hoje existem em todos os tipos de evento. Podem pesquisar à vontade. Enquanto não chegarem ao Cine-Teatro Navona, as investigações sobre a origem desse negócio que movimenta milhões estará incompleta.

Quando ficou tudo organizado, Továrish Lói e Cumpade Deca fala-ram com Silvio T4 através do radioamador de Luiz Augusto. Passa-ram todas as informações, combinaram um cronograma. No dia se-guinte a BBC entrou no assunto que, como a gente já sabe desde os primeiros capítulos, ganhou o mundo. E despertou paixões intensas e incondicionais.

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Capítulo 13

Cada coisa em seu lugar

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DEPOIS DAQUELA DESASTROSA REUNIÃO NO PALÁCIO do Planalto em que ninguém se entendeu, o ditador decidiu mudar o rumo da condução do problema.

Considerou que a balbúrdia entre os integrantes do núcleo central do governo fora o suficiente para atestar que não haveria convergên-cia de opiniões. Sentiu-se, pois, liberado do compromisso de ouvir o grupo. E totalmente autorizado a decidir. E assim fez. Afinal era o seu governo e o seu próprio nome que estavam em jogo perante a opinião pública mundial.

Formou um núcleo de comando da crise com os chefes das Casas Ci-vil e Militar, o coronel do Serviço Secreto e o chanceler. Ponto. Ou-tros só participavam para receber ordens ou esclarecer algum aspecto específico.

O próprio embaixador americano nem foi mais recebido pelo presiden-te, naqueles dias. Teve que ir ao Itamaraty passar ao chanceler a posição do seu governo. O ditador sequer quis ouvir. Argumentou: Ele teve a pa-lavra e não falou, quando sua opinião poderia ter importância. Agora já traçamos nossa linha e definimos o nosso caminho. Não quero mais ouvir raciocínios de terceiros. Qualquer posição do governo norte-americano só tem duas possibilidades: ou concorda com a que já decidimos e, portanto, é inútil, ou discorda, e nesse caso só pode ou lançar dúvidas ou atrapalhar.

O episódio, aparentemente de pouca relevância, pode ser considerado um marco no governo do marechal. Antes ele não mandava de ver-dade. Era uma espécie de biruta de aeroporto, girando ao sabor dos embates dos grupos rivais e imobilizado pela embaixada americana.

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Agora, pelo menos no assunto do julgamento, quem dava as ordens era ele. Tomou gosto pela parada. Dali para a frente foi deixando de ser um papangu no poder.

A vida, já comentamos, é paradoxal. Ao mesmo tempo em que repre-sentou o início de sua autonomia, este processo significou o começo do seu fim. Conseguiu, no ano seguinte, ter o seu mandato prorroga-do. Mas não comandou a sua sucessão. Acabou substituído pelo seu mais ferrenho adversário, o ministro da Guerra, líder da ala dos gorilas.

A partir da sucessão, a ditadura envergonhada tomou novo rumo até tirar a máscara de vez. Findou por se tornar a ditadura escancarada, para usar títulos de livros de Elio Gaspari no seu excelente estudo so-bre o período de governos militares.

O marechal acumulou muitos inimigos internos e passou a despertar ódio mortal entre os integrantes da linha-dura. Quando saiu do go-verno, foi literalmente abatido durante um pacato voo de teco-teco no Ceará. Um avião da FAB derrubou a aeronave onde se deslocava o ex-presidente em companhia do piloto, rumo à tal fazenda que ele frequentava no interior do estado. Ambos morreram.

A explicação oficial foi de que aconteceu um choque acidental das aero-naves e o teco-teco presidencial levou a pior. O avião de combate con-seguiu pousar em absoluta segurança, sem ter aparentemente sofrido nenhum arranhão. Desconheço alguém que, na época, tenha acreditado na versão oficial. A crédula Velhinha de Taubaté, personagem do genial Luis Fernando Veríssimo, jamais acreditaria tratar-se de acidente. A dú-vida é se foi um atentado envergonhado ou um assassinato escancarado.

Mas essa morte lamentável aconteceu tempos depois, como uma con-sequência remota dos episódios envolvendo o julgamento. Nas ime-diações do primeiro Sete de Setembro do seu governo, o marechal es-tava com a corda toda, descobrindo os encantos inebriantes do poder. Fora picado pela famosa mosca azul.

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O núcleo para administrar a crise do julgamento se reunia todos os dias, algumas vezes pela manhã, à tarde e à noite. Foram aprofundan-do as informações e aprimorando as decisões para que o governo saís-se o menos arranhado possível do episódio.

O marechal ficou muito tranquilo quando recebeu o núncio apostó-lico. O representante do papa mostrou preocupações sobre o julga-mento, mas sem exageros. Primeiro, tranquilizou sobre o caso da freira grávida. Estava sob o controle e a alçada da Igreja; podia tirar o assunto das suas preocupações.

Em seguida, gentilmente submeteu à sua apreciação a nota que o Vati-cano estava pensando em emitir sobre o julgamento. No documento, a Igreja minimizava inteiramente o episódio. Dizia que nada havia de teológico em pauta; eximia-se, portanto, de opinar.

A nota abordava o julgamento como um mero ato de expressão po-lítica, uma iniciativa secular de um grupo de jovens. Um julgamento simulado como tantos outros, impactante porque tinha como objeto a imaterial e sagrada figura de Deus. Rebeldia própria da juventude, sempre insatisfeita com os governos. Portanto, o papa não era contra nem a favor. O assunto não dizia respeito à Igreja e esta não iria mais se manifestar.

Habilmente, o marechal convenceu o núncio a retirar da nota a men-ção ao governo e ficou tudo acertado. Só que o documento foi pu-blicado no jornal oficial do Vaticano no dia seguinte, sem a alteração combinada. Não faz mal, comentou o supremo mandatário. Quem tem com que me pague não me deve nada.

De certo modo, a posição do Vaticano inspirou a pauta do governo. O ministro-chefe da Casa Militar, que desempenhava o papel de um Goebbels tupiniquim foi o primeiro a comprar a ideia. Argumentou: Tem uma parte do estrago que já está feita. Mas no começo a encrenca parecia mais complicada do que realmente é. A gente viu a sombra do

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bicho e pensou que ele tinha aquele tamanho todo. Se agirmos com inte-ligência, podemos reverter vários pontos a nosso favor. Vamos fazer do limão uma limonada.

Em lugar de prender e arrebentar, falou encarando o chefe do Serviço Secreto, cercaremos o julgamento de todas as garantias. Ao contrário de proibir ou dificultar o acesso de jornalistas brasileiros e estrangeiros, vamos abrir as portas do País, do estado e da cidade e facilitar a vida de todos. E nada de esconder o presidente da imprensa nem mais um dia. Marcamos para amanhã mesmo uma entrevista coletiva para falar sobre um grandioso projeto de integração nacional e defesa da soberania da Amazônia.

Planejaram tudo em minúcias. Como de hábito nas coletivas, no final os jornalistas vão querer perguntar sobre o tema do momento. Aí, no meio daquele tumulto de perguntas simultâneas que transformam toda entrevista coletiva numa grande algazarra, o presidente pediria calma e se prontificaria a responder a todas as perguntas de uma só vez.

Aguarda que se faça silêncio o tempo que for necessário. Quando to-dos calarem, chega a vez dele falar, com a voz tranquila e segura. De-clara que o governo não tem nada contra o julgamento, não se sente atingido de nenhuma forma. Vai tomar todas as medidas para garantir a realização do ato. Registra que, no seu entendimento, o objetivo dos jovens era comemorar, à maneira deles, o Dia da Pátria.

Para que nada de anormal acontecesse, anunciaria o envio de tropas federais para assegurar a realização pacífica do evento e evitar tumul-tos, como se fazia em dia de eleição. A medida tinha sua razão de ser. É que alguns grupos religiosos mais ortodoxos não gostaram da brinca-deira e estavam ameaçando perturbar o acontecimento.

Esses, prosseguiria o marechal, também terão resguardado o sagrado direito de manifestação, mas em outro local, de modo que cada um expresse livremente suas convicções sem perturbações ou conflitos.

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A entrevista transcorreu conforme programado. O marechal deu o depoimento decorado sobre o Projeto Amazônia Brasileira e, na se-quência, após a aguardada balbúrdia dos repórteres ávidos por uma manchete bombástica, repetiu quase sem alterações a resposta combi-nada. Falou que o governo era democrático e laico, cada qual podendo se manifestar livremente sobre assuntos religiosos. No seu governo, só não tinham vez a subversão comunista e a corrupção. Agradeceu e se retirou. A imprensa internacional ficou no ora-veja.

É que praticamente todo dia os principais jornais do mundo davam notícias sobre o julgamento interpretando que o ato colocaria o go-verno contra a parede. Com essa tacada de mestre, o marechal jogou a batata quente para cima. Ficou no ar um recado tipo “Esse negócio de Deus é com a Igreja.” Quem pariu Mateus que o embale. Foi um bom troco na nota do Vaticano.

O assunto continuou rendendo na imprensa internacional. Mesmo re-gistrando a nova posição oficial do governo brasileiro, àquela altura, o mundo inteiro já estava envolvido no assunto. Ninguém sabe como esses fenômenos sociais aconteciam e se espalhavam como rastilho de pólvora mundo afora antes das invenções da telefonia celular e da internet.

Em pouco tempo, de Boi Pintado a Paris, de Nova York a Londres, os que torciam para Deus ser condenado trajavam roupas ou portavam adereços cor de laranja. Os partidários de Deus, preferiam o branco.

A coisa esquentou de um jeito que parecia véspera de decisão da Copa do Mundo de Futebol. O tema envolvia também governos. Os Esta-dos Unidos e seus aliados mais ligados torciam naturalmente pela ab-solvição do réu. Já os países comunistas, como Cuba, URSS, China e seus aliados, mal escondiam o desejo da condenação.

Boi Pintado começou a respirar o julgamento 24 horas por dia.

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Um jeito mais suave de impor

O ditador, apesar das piadas que corriam acerca de sua limitada inteli-gência, de besta só tinha a peia. Como besta é fêmea e não tem peia, o povo usa essa expressão para dizer que de otário o cara não tem nada. Com eficiência, o governo federal foi resolvendo um a um os casos periféricos que transformavam inicialmente o julgamento em uma verdadeira teia de conexões. A primeira e mais delicada foi a do xerife. Depois do Serviço Secreto levantar toda a sua ficha, os integrantes do governo ficaram perplexos. Quer dizer que o homem é...é... Gaguejou o marechal. Isso mesmo, senhor. Doido. Completamente maluco. Pirado de carteirinha, em espécie de liberdade condicional do manicômio. Isso era o chefe do Serviço Secreto mostrando que finalmente o serviço que comandava estava com as engrenagens azeitadas.

O marechal ficou impressionado. Como explicar tantas ações acerta-das, tantas coisas positivas que ele fez?

Quem explicou foi o Goebbels caboclo. Presidente, entre a loucura e a genialidade a distância é muito pequena. Veja os grandes personagens da história. A rigor eram quase todos doidos de pedra. Por exemplo, Ale-xandre da Macedônia. O cara era filho do rei de um país do tamanho de Sergipe. Inventou de conquistar o mundo. Formou o maior império de todos os tempos, fundou dezenas de cidades, construiu bibliotecas, integrou culturas. Um gênio. Mas se formos olhar o comportamento dele no dia a dia, a conclusão é muito diferente. Matou o pai, transou com a mãe, assassinou friamente os melhores amigos, tomava cachaças ho-méricas. Quando estava bêbado, se vestia e se comportava sexualmente como mulher. Ou seja, era um louco completo. Se fosse hoje estaria inter-nado em manicômio.

O xerife não passou nem perto de Alexandre ou outro grande nome da História. Praticou maluquices completas intercaladas com coisas inteligentes. Aliás, é marca de todo doido que se preze ter ideias bri-lhantes. Biu, que naquele tempo andava pelas ruas de Boi Pintado com

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um vistoso relógio sem ponteiros no braço esquerdo, teve certo dia uma tirada genial. A um gaiato que lhe disse que relógio sem ponteiros não adianta, ele respondeu de bate pronto: Nem atrasa.

Naquele tempo, qualquer sonho servia de inspiração para o se jogar no bicho. Atividade que em Pernambuco nunca foi perseguida, nem antes nem durante nem depois do golpe. Resultado dessa liberdade consentida: jamais virou antro de marginalidade, nem fachada para tráfico de drogas e prostituição. Era e é um negócio honrado e res-ponsável, apesar de informal. Mais uma prova de que proibir as coisas, além de ser uma grande burrice, favorece a marginalidade e alimenta o ciclo perverso que abarrota as cadeias. Não aumenta em um milímetro sequer a segurança dos cidadãos.

Mas voltando ao doido: alguém perguntou a Biu como devia proce-der, desde que sonhara com sua casa pegando fogo. Jogo o quê, Biu? E ele, prontamente: Água.

Esse mesmo Biu quando arranjava alguns trocados, antes de se reco-lher à sua miserável morada, parava numa bodega e dizia num chiste: Seu Felôzinho, me bote meio metro de cana. O dono do bar entendia; colocava meio copo da branquinha, Biu bebia, pagava, ia embora.

Um dia, seu Felôzinho estava de folga e deixou o ajudante no seu lugar. Este era amigo dos maloqueiros que frequentavam a bodega. Com-binados, resolveram tirar onda com a cara de Biu. Quando o doido chegou e disse o tradicional bordão, o sujeito, ante a risadagem geral, pegou uma fita métrica, mediu meio metro no balcão e derramou a cachaça de um canto a outro. Como Biu nada disse, ele perguntou: E agora, faço o quê? O doido não vacilou: Agora, cabra safado, tu embru-lha que eu vou beber em casa.

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O forasteiro reencontra o seu destino

Enquanto em Brasília a fina flor do poder discutia o seu destino, o xeri-fe continuava aboletado na cadeira do prefeito de Boi Pintado, dando ordens que àquelas alturas ninguém mais cumpria. Trocando ideias sobre a melhor forma de se livrar dele antes da invasão da imprensa estrangeira, chegaram a duas opções: a primeira, capturá-lo à noite no hotel e embarcá-lo secretamente para o Recife. A outra, a que prevale-ceu, foi proceder tudo à luz do dia.

A argumentação vencedora levou em conta que caso o sujeito sim-plesmente desaparecesse, nunca se esclareceria se ele agiu a mando do regime ou por conta própria. Depois, ficaria o mistério sobre o seu destino pairando no ar. E interrogação sem resposta é danado para ge-rar lenda ou mito na cabeça do povo.

Do jeito que o misticismo campeava por ali, era capaz dele logo reen-carnar em alguém ou alguém reencarnar nele, o que dava no mesmo. E lá estaria o problema de volta. E vai que a moda pega e começassem a aparecer xerifes em todo lugar, como chegou a querer o general do IV Exército. Aí eles estariam fritos para administrar a confusão.

Melhor fazer tudo às claras. Atestando que o cara era louco, o governo não assumia nenhuma responsabilidade pelos seus atos e arbitrarie-dades. E também pelos desvios de recursos públicos e privados que ele tinha promovido. Que já não eram poucos, a exemplo do que se generalizava rapidamente pelo governo como um todo.

A maioria dos militares que participaram do golpe realmente tinha uma vida austera e honesta. Imaginavam completar a obra que Jânio Quadros anunciou e não fez: varrer a corrupção do País. Mas os bons propósitos não duraram muito. Corrupção faz parte do sistema. Se não for combatida e vigiada pela sociedade, se multiplica feito erva da-ninha. Quando é praticada pelos outros, dói como pimenta no nosso rabo. Quando é da lavra da gente, no próprio rabo é refresco.

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A escalada da patifaria começava pelo que os empresários chamavam de dar um banho de uísque nos milicos. Convidavam aqueles que ocu-pavam postos estratégicos na burocracia para festas onde, além da be-bida farta, circulavam belas e solícitas mulheres. Prosseguia pelo ofere-cimento de pequenos favores, uma joia para a esposa, a conta paga do internamento da sogra, um emprego para o genro. Daí para a propina clara e aberta era um passo.

Ficou famoso o caso de um coronel que assumiu um posto importan-te na área de financiamento habitacional. Ao tratar de pareceres que dependiam da sua assinatura, para financiamento de grandes projetos, certo empresário interessado chegava e reclamava da burocracia. O coronel defendia a instituição. Aí vinha a patifaria. O pilantra apostava um carro dele contra um litro de uísque do coronel como os burocra-tas mandavam mais do que ele. Desafiavam que em 15 dias tal docu-mento não seria liberado de jeito nenhum.

O general impunha sua autoridade, vencia as dificuldades no prazo, entregava o parecer, ganhava a aposta. Levava um carro zero para a fi-lha, para a amante ou vendia para pagar dívidas de jogo.

Utilizando métodos como esse, o sacripanta aplicou um trambique tão monumental que escafedeu-se e virou banqueiro na Suíça. E não foi o único, pelo contrário. Com o passar dos anos os escândalos fo-ram se multiplicando, a diferença para os dias de hoje é que a imprensa não dava um pio.

Em pouco tempo, o governo estava contaminado. Fatos como esse se repetiam nos mais variados setores. A economia popular, desprotegi-da, sofria golpe em cima de golpe. Os empresários desonestos come-moravam: Os milicos não têm noção do dinheiro envolvido em grandes obras. Arrancar um parecer de um órgão dirigido por um coronel na ditadura sai mais barato do que do que corromper qualquer burocrata civil de terceiro escalão.

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Sem falar na patifaria miúda generalizada. Como o caso da arrecada-ção beneficente de recursos que, ao invés de salvar o País, iam parar no bolso dos organizadores. Cinicamente, os picaretas diziam ao roubar: Essa grana vai para ajudar as criancinhas. As lá de casa, é claro.

Esse mal acometeu o xerife. Dinheiro fácil, sobrando sem controle no cofre. Tanto o da Prefeitura como os das doações. A Dama de Ouro merecia belas joias, por que não? Em pouco tempo, estavam sentindo-se asfixiados na reclusão dos seus atos de amor. Precisavam respirar outros ares, passar de mãos dadas, trocar carícias em frente ao mar. Viajou com ela, inicialmente para Salvador. Gostaram. Logo depois, a dama foi levada para realizar o sonho de conhecer o Rio de Janeiro. Uma lua de mel e tanto.

Ele, trajando paletó e gravata de primeira linha, ela, usando roupas de grifes internacionais. Hospedaram-se no Copacabana Palace, pa-reciam um casal de magnatas. Restaurantes de luxo, joias caras, carro alugado, lá se foi o Ouro para o Bem do Brasil. Nada disso passava ba-tido, o povo sabia dos desvios; os secretas do Serviço Secreto reporta-ram tudo aos superiores.

Uma bela manhã de segunda-feira, o xerife estava contando o apurado do dinheiro arrecadado pelos fiscais na feira do sábado, quando che-garam logo três ambulâncias cheias de falsos médicos e enfermeiros. Existiam no meio deles um médico e dois enfermeiros de verdade, para aplicar os sedativos. Os demais eram soldados da Polícia do Exér-cito vestidos de branco para disfarçar. Nas ambulâncias estava escrito em enormes letras vermelhas: Hospital da Tamarineira.

Qualquer pessoa em Pernambuco, à época, sabia que o Hospital da Tamarineira era o maior recolhimento de loucos do Nordeste. De modo que todo mundo entendeu imediatamente o que muitos já des-confiavam. A equipe invadiu a Prefeitura, arrombou a porta do gabine-te, que estava trancado, imobilizou e dopou o forasteiro.

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O movimento atraiu muita gente. A personagem, olhos trocados, me-tido numa camisa de força, foi arrastado pelo meio da Prefeitura. Na porta, demoraram mais tempo do que o necessário com o homem imobilizado naquela situação para dar tempo de ser visto pela maior quantidade de pessoas possível. A ambulância na qual foi transporta-do ficou estacionada um pouco distante para dar oportunidade a um pequeno deslocamento, ampliando a exposição.

O prisioneiro gritava que estava sendo sequestrado por subversivos cubanos, pedia socorro, as pessoas balançavam negativamente a cabe-ça. Um verdadeiro elogio da loucura. Quanta coisa a gente vê nesse mundo, quem podia adivinhar um desfecho desses?

Jônio é que ficou feliz. Reassumiu imediatamente a Prefeitura. Antes do meio-dia, desinfetou o birô e a cadeira, mandou fazer uma faxina no gabinete e à tarde já estava aboletado no lugar. Tomou a precaução de manter o afastamento das quatro damas para não afrontar a morali-dade do regime nem chamar a atenção naqueles dias em que a cidade recebia cada vez mais visitantes.

Antecipo que não adiantou. Seu destino já estava traçado. Os milicos só deixaram passar o julgamento. Na semana seguinte Jônio foi inape-lavelmente cassado a bem da moralidade pública e seus bens confisca-dos. Teve que se exilar para as bandas de Mato Grosso, sem o direito de levar as quatro Damas.

Duas delas, as de Copas e Espadas, não demoraram a casar com fazen-deiros das redondezas. As duas outras, as de Ouro e Paus abriram uma empresa de consultoria para assessorar prefeitos. Como o negócio não prosperou, caíram na prostituição em boates de luxo na capital. Fize-ram relativo sucesso.

O grupo de monitoramento presidencial seguiu à risca a estratégia militar já desenhada pelo ditador na primeira reunião para tratar do assunto. Foi limpando a área, removendo um por um os problemas.

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Realmente, como dissera o embaixador americano, todos eram cafés-pequenos.

A irmã Maria do Espírito Santo, grávida sabe-se lá por quais mistérios, desde que permanecia virgem como a mãe de Jesus, tornou-se objeto de veneração. Isso, apesar da oposição constante do beato, que todo dia vinha repetir sua diatribe sobre a origem maligna da concepção.

Como sempre acontece nesses casos, começou a aparecer gente vinda de longe e não demoraram a acontecer os primeiros milagres. O que os médicos não resolviam, a irmã curava, pela força da fé que remove montanhas, ali mesmo no ambiente do hospital. O mais significativo é que de vez em quando a multidão começava a gritar por ela. A irmã era forçada a aparecer para confortar a turba e abençoar a todos. A vida no hospital ficou impossível.

Dessa forma, a própria ordem, seguindo ditames vindos diretamente do Vaticano, tratou de remover a freira para o Recife. Não demorou e o seu local de internamento foi descoberto. Em menos de 72 horas as cenas de romaria se repetiam, ampliadas em número de participantes. A solução foi encaminhá-la imediatamente para a sede da instituição, na Alemanha, sem dar satisfação a ninguém.

Ali foi, ao que consta, submetida a severos interrogatórios, coisa de alemão do tempo da guerra combinada com a Inquisição. Meses mais tarde deu à luz em parto normal, deixou de ser virgem. O bebê foi dado para adoção anonimamente. A irmã Maria do Espírito Santo foi transferida pela Santa Sé para outra ordem religiosa, que fazia opção pelo ascetismo. Faleceu recentemente, respeitando o compromisso do silêncio perpétuo.

Até hoje é muito reverenciada na região, continua operando feitos prodigiosos nas áreas de saúde, amor e dinheiro. Corre um abaixo assi-nado pedindo a sua beatificação. Muitos se dispõem a atestar milagres e graças que receberam. A Igreja oficial desconhece o assunto.

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Resolvido o caso da freira, o próximo, menos emocionante, foi escla-recer o desaparecimento das doações da campanha Ouro para o Bem do Brasil. O coronel do Serviço Secreto continuou trabalhando posi-tivamente apesar da, digamos assim, cavalice do seu comportamento social. Levantou todas as informações sobre o suposto sumiço. No co-meço, a Dama de Ouro, que tinha irrestrito acesso aos cofres da Pre-feitura, ficou encabeçando a lista de suspeitos. Logo a seguir, o juiz de Direito, desde que realmente andou arrecadando recursos para a formação das milícias.

Quando foi procurado sobre o assunto por agentes federais, como ho-mem prevenido que era, estava munido de todas as anotações, notas fiscais e recibos, dando conta da entrada e saída do dinheiro. O saldo entregou ao xerife mediante recibo. E foi ele quem esclareceu a ques-tão. Não havia dúvida de que a campanha rendera algum cacau.

O valor exato, jamais será identificado. É que à medida que os dias passavam e o montante arrecadado estava aquém da expectativa, para estimular adesões, o próprio xerife passou a anunciar falsas doações misturadas às verdadeiras.

Todo dia dava longas entrevistas à Rádio Surubim, o que logo se transformou em um dos seus passatempos prediletos. Ali dizia que D. Fulana tinha doado joias seculares de família, e seu Beltrano doara as alianças de ouro 24 quilates dele e da esposa. E no outro dia mandava receber. Ninguém desmentiu, mas poucos doaram o valor anunciado. No final do prazo, o resultado ficou impreciso.

Antes de viajar para o Rio em lua de mel, o xerife trocou o segredo do cofre e assim somente ele continuou tendo acesso. O resultado da campanha supostamente estava lá. Quando ficou impossível adiar a hora da prestação de contas, o indivíduo fez uma armação grosseira. Para não passar por mentiroso ou ladrão, simulou um roubo.

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Assim, certo dia, quando os funcionários chegaram para fazer a limpe-za, encontraram o cofre estranhamente arrombado. As travas estavam acionadas, mas não se encontravam encaixadas nos ferrolhos. Ou seja, a caixa-forte estava fechada, porém aberta. Para criar um cenário de invasão, a própria autoridade, na calada da noite, vestido com roupas civis e uma máscara de bandido de faroeste, simulou o arrombamento da janela da Prefeitura. Não houve testemunhas.

O delegado procedeu a uma revista rápida no local, abriu rigoroso inquérito que nunca saiu do fundo da gaveta e tudo ficou por isso mesmo. Como o povo não esqueceu facilmente o assunto, desde que alguns tinham contribuído com quantias expressivas, surgiram as pro-cedentes suspeitas.

Após o afastamento do xerife, um delegado da Polícia Federal desven-dou toda a trama também em entrevista à Rádio Surubim e ao jornal Correio do Agreste. O assunto rendeu mais alguns dias e se esgotou, soterrado pelas notícias mais bombásticas do julgamento.

O núcleo da crise tirou ou pelo menos tentou tirar de evidência os secretas do Serviço Secreto. Esta questão foi engraçada. Tão logo as notícias sobre o inusitado julgamento começaram a ser veiculadas através da BBC britânica, cujos boletins em língua portuguesa tinham boa audiência, começaram a aparecer na cidade uns caras esquisitos. Eram os agentes enviados inicialmente pelo coronel que se trajavam de forma muito parecida com os protagonistas do conhecido filme Os Homens de Preto.

No lugar, todos se vestiam de modo simples. Simplicidade não quer dizer desarrumação. A maioria dos homens, mesmo pobres, usava pa-letós brancos pelo menos para ir à feira e à missa. Às vezes feitos até de pano de saco, mas o que valia era seguir o costume. De repente, aqueles caras trajando estranhos paletós pretos, óculos escuros, que se postavam em pontos estratégicos ou puxavam conversa com as pes-soas a troco de nada, chamaram grande atenção.

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Além disso, fotografavam tudo, estavam sempre anotando alguma coi-sa. Tinham toda a pinta e eram mesmo os secretas. Comportavam-se, nesse primeiro momento, como agentes secretos de anedota de por-tuguês. Parecem gatos, miam como gatos, têm bigodes de gatos, rabos de gatos e são gatos, sentenciou Cumpade Deca. O povo dizia que eles estavam “urubuservando” todo mundo.

Pois bem, o gabinete da crise detectou até isso. Ordenou a retirada dos paletós escuros, mas não adiantou muito, desde que agente secreto, pelo menos naquele tempo, parece que só conseguia enxergar usando enormes óculos escuros. Mas pelo menos diminuiu o calor que sen-tiam durante o dia. Podia-se dizer que o entorno do marechal estava aprendendo rapidamente.

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A competência está de volta

À medida que o dia do julgamento se aproximava, o reboliço na ci-dade só fazia aumentar. O Hotel Municipal, a pensão de seu Pacífico, a hospedaria de dona Cora não dispunham mais de nenhuma vaga. Foi a vez do governador entrar no circuito. Acionado pelo ministro chefe da Casa Civil, em nome do marechal, fez questão de mostrar a sua eficiência.

Para que nada saísse errado do seu lado, convocou Marco Antônio, um jovem executivo e intelectual, que conhecia muito bem a região, vez que sua família morava em Nazaré da Mata, cidade próxima. Com car-ta branca na mão, Marco, que já era um nome respeitado e conhecido no estado inclusive como escritor, se saiu muito bem. Executou com perfeição a primeira de muitas missões que receberia na vida. Anún-cio da brilhante carreira que seguiria, galgando os mais altos postos de burocracia governamental e da intelectualidade.

Inicialmente, o rapaz usou um critério infalível para selecionar as me-lhores residências da cidade. Requisitou a lista e mandou ligar para as noventa e nove residências que dispunham do privilegiado serviço te-lefônico. Identificou-se e solicitou que cada uma dessas famílias dispo-nibilizasse pelo menos um cômodo para acolher jornalistas, prelados, visitantes ilustres. Todos fizeram questão de atender e se esmeraram na acolhida.

Foi montado um receptivo no Aeroporto dos Guararapes para dar boas vindas aos jornalistas e representantes de entidades internacio-nais que não paravam de chegar para transmitir ou acompanhar o evento. Devidamente identificados, estes eram acomodados em ho-téis de luxo da capital. Pernoitavam e, a partir do dia seguinte, eram levados em veículos confortáveis para Boi Pintado.

Ou seja, tudo caminhava da melhor forma possível para o governo, depois do susto inicial. Além do mais, cidade pequena é chegada a

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criar rápidas intimidades. A coisa foi ficando tão embaralhada que, na véspera do julgamento, ocorreu um surpreendente evento esportivo. Com o objetivo de mostrar ao mundo a hospitalidade boipintadense, foi organizado o Primeiro Torneio Internacional de Futebol de Salão do Interior de Pernambuco.

O caráter internacional da competição foi assegurado pela presença do time dos jornalistas estrangeiros. Participaram ainda as duas prin-cipais equipes da cidade, o Sport e o Independência, a equipe dos jornalistas nacionais, o Colombo, de Limoeiro e, pasmem, a seleção dos secretas do Serviço Secreto. Se no Rio de Janeiro tudo acaba em samba e em Brasília tudo acaba em pizza, em Boi Pintado tudo virava pelada ou pega de boi.

Naquela noite, brilhou a estrela de Luizinho, que acumulava as fun-ções de alfaiate, sacristão, zelador da igreja, músico, técnico da seleção local e respeitado árbitro de futebol.

Por sua identificação com a Igreja e intimidade com todos os santos, jamais ninguém questionou a capacidade ou a imparcialidade de Lui-zinho. Constitui-se ele no único juiz de futebol do mundo que atuou em dezenas de partidas decisivas e nunca, em campo algum, foi cha-mado de filho da puta ou sequer ladrão. Registre-se em seu favor que era ótimo juiz, conhecia as regras, que já achava claras muito antes da frase virar bordão nacional.

E mais: como responsável pela afinação das serafinas de todas as igrejas da região, tinha ouvido apuradíssimo, sabia distinguir com perfeição os sons dos jogos. O ruído de uma canelada é diferente de um tropeço, o barulho da bola batendo no braço é muito diverso da carimbada na barriga ou nas partes baixas; um tranco legal sequer parece com o som de um empurrão. Muito menos uma cabeçada pode ser confundida com um soco na pelota.

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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar

Até a discussão sobre se a bola entrou ou não entrou, nos lances mais confusos de gol, Luizinho resolveu com a ajuda criativa de Belo Pran-cha. Não tendo conseguido, por mais que tentasse, identificar de ouvi-do se a esfera bateu aquém ou além da linha de gol, providenciou um praticável de compensado, que colocava cuidadosamente um pouco além da linha final. Se a bola fazia ruído na madeira, não havia dúvida: era gol.

Vejam que uma invenção genialmente simples e eficaz como essa nun-ca foi adotada pela FIFA, que ainda hoje perde tempo e gasta rios de dinheiro discutindo como solucionar um problema que é mais resol-vido do que o Teorema de Pitágoras.

Lamentável é que tenha se perdido na história a magistral invenção daquela noite, sugerida pelo gênio dispersivo de Vanildo Ôião: Um minuto de barulho!

Se no mundo inteiro se usa um minuto de silêncio para expressar tris-teza, nada mais lógico do que a grande alegria de Boi Pintado estar no noticiário internacional e recebendo tanta gente ilustre ser demons-trada pelo caminho contrário. E assim se fez. Antes da partida come-çar, os primeiros competidores perfilados na quadra, os demais em forma na lateral, Luizinho decretou o minuto de barulho.

A algazarra foi tão grande e tão espontânea que ninguém ouviu o apito anunciando o começo do jogo. Se ele não tivesse providencialmente erguido o braço até terminar a homenagem e abaixado vigorosamente talvez todos estivessem berrando até hoje, sem começar a partida...

Com jogos curtos, emocionantes decisões por pênaltis, acabou vito-rioso, lá pela meia-noite, o esquadrão de aço do Independência, lide-rado pela habilidade de Sostinho.

A comemoração, em clima de espíritos desarmados, varou a noite na sede do clube vencedor. Até os secretas apareceram para confraternizar.

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Capítulo 14

Como é gostosa a liberdade

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EM DECORRêNCIA DA DECISÃO DA DITADURA DE flexibilizar as relações políticas e cercar o julgamento de uma aura de liberdade, o País, imediatamente, passou a respirar outro clima.

Bem se diz que basta você dar um dedo do pé para o povo querer a mão. Em matéria de liberdade, o valor maior que a civilização conquis-tou em todos os tempos, ninguém perdia um minuto.

Assim, não só em Boi Pintado, mas no País inteiro, aquele momento se converteu em uma ilha de democracia no mar de tirania em que havia se travestido o Brasil.

Palavras que nunca mais tinham sido pronunciadas voltaram ao vo-cabulário da maioria. Assuntos que só eram tratados debaixo de sete capas agora tomavam conta das conversas dos bares, alto e bom som. Pessoas que tinham saído de circulação, voltaram a aparecer. Artistas que ficaram recolhidos, pois não encontravam pauta em nenhum lu-gar, de repente começaram a organizar apresentações em salas teatrais, em ambientes fechados, em circos e até em praça pública.

Desde o golpe a imprensa brasileira vivia uma situação peculiar. Em-bora ainda não tivessem sido instalados censores dentro das redações para ler antes tudo o que seria publicado, como aconteceria no futuro próximo, havia uma pauta de assuntos a evitar. Em alguns momentos a autocensura é pior do que a censura ostensiva. As pessoas ficam sem saber se podem ou devem abordar um assunto, até que ponto sem pode ir a fundo, qual a forma mais adequada para não correr riscos. Trabalhar assim não é impossível, mas fica muito sem graça. E os jor-nais perdem quase totalmente o molho e o charme.

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Os noticiários políticos vinham ficando cada vez mais lúgubres, me-nos irreverentes, pareciam a edição do dia do Diário Oficial. Os noti-ciários radiofônicos tinham poucas diferenças para ao padrão oficial da Voz do Brasil. As publicações andavam cheias de NOTAS DE AR-REPENDIMENTO e outras de teor semelhante.

É que qualquer pessoa que tivesse feito parte de entidades ou movi-mentos simpáticos ao comunismo, a Cuba ou a União Soviética estava na lista negra do regime. Estes, para conseguir um emprego, uma de-claração de qualquer natureza, tirar um passaporte ou título de eleitor, ingressar em escola pública ou até conseguir uma folha corrida da po-lícia, tinham que vir a público se retratar.

Eram declarações humilhantes onde o sujeito se dizia arrependido, ou pior, que tinha sido enganado e que seu interesse ao se filiar a tais entidades era meramente cultural. E só valiam se publicadas em ór-gãos reconhecidos como de grande circulação. Em Pernambuco, não adiantava o sujeito tentar esconder seu arrependimento no Diário da Madrugada, um jornal que era e ainda é impresso todo dia. Naquela época ainda amanhecia pregado em tabuletas nos postes do Recife. Como trazia manchetes espetaculosas e cheias de sangue, muita gen-te parava para dar uma olhada. Por isso, intitulava-se garbosamente o mais lido. Nos postes. Hoje esse lado pitoresco acabou.

A tal publicação imprime um número restrito de exemplares. Era e é usado por quem quer cumprir determinações legais, sem gastar muito e sem ser lido. É o destino de balanços de empresas em dificuldades, notificações de abandono de emprego, avisos de sequestro de bens ou leilões de inadimplentes e outras do mesmo teor. Quem, logo após a decretação da ditadura, pensou em se livrar escondendo seu arrepen-dimento nessa publicação, se ferrou. Os milicos não aceitaram. A exi-gência era publicação no Jornal do Commercio, no Diario da Noite ou no Diario de Pernambuco, órgãos que realmente tinham grande circu-lação. O objetivo era todo mundo ficar sabendo do arrependimento.

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Só quem burlou a proibição que eu saiba foi o conhecido e respeitado jornalista Aldo Paes Barreto. Fazia parte da Associação dos Amigos da União Soviética. Ou demonstrava arrependimento através do jornal ou perdia o emprego.

Na época, era mero foca, que é como se denominam os aprendizes de jornalistas. Naquele tempo, a impressão definitiva do jornal era antecedida de uma prova para revisão. O responsável providenciou o anúncio de Aldo na página da prova e excluiu da edição definitiva. Conforme ele mesmo confessa, levou à autoridade encarregada, que estranhou não lembrar de ter lido. Ele, que sempre estava atento a tudo, essa lhe escapara. Mas diante da apresentação da página provan-do a publicação, não foi atrás e liberou a ficha de Aldo.

De repente, naquela brecha que apareceu em decorrência do julga-mento, as grandes novidades eram as notas de PROCURA-SE DE-SESPERADAMENTE. As famílias de presos e sequestrados políticos aproveitaram o momento para colocar apelos emocionais dirigidos a qualquer pessoa que soubesse do paradeiro de fulano de tal, acom-panhado de características físicas e das circunstâncias do desapareci-mento. Era uma denúncia e, ao mesmo tempo, uma esperança de pre-servar, se não a integridade, pelo menos a vida do desaparecido. Todos sabiam que, se um sequestrado tivesse sobrevivido, estaria jogado nas masmorras de alguma unidade militar.

Ficou muito claro também o recuo de grande parte dos jornais no apoio ao regime. Como já foi dito, a imprensa muito contribuiu para criar o clima propício para o golpe. O jornal O Globo, inclusive, já fez um mea-culpa público e histórico sobre esse apoio.

Pois bem, naqueles dias o jornal voltou a assumir ares de livre e in-dependente. O mesmo aconteceu com o alegre Jornal do Brasil, o moderno Correio Brasiliense e toda a cadeia dos Diários Associados de Assis Chateubriand. Este, não apenas liberou geral, como a maio-ria. Aproveitou para descer o cacete no regime sem dó nem piedade.

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No futuro, pagaria um preço muito alto. Em São Paulo, tanto o Esta-dão como a Folha, pela simples modificação da forma de abordar as questões, demonstraram que também não estavam à vontade com os golpistas. No mínimo esperavam outra coisa do movimento que estimularam.

Também nos estados, as famílias que controlavam os meios de co-municação já demonstravam impaciência com o regime e trataram de demonstrar isso. Os Sirotski no Rio Grande do Sul, os Alves no Rio Grande do Norte, os Maiorana em Belém do Pará, os Queiroz em Fortaleza, em entre tantos outros, logo colocaram seus veículos em outro tom.

Os departamentos comerciais dos órgãos de imprensa são muitas ve-zes acusados de se preocupar excessivamente com o vil metal. É até engraçado. Tem gente que pensava que salários de jornalistas e fun-cionários, papel, distribuição, tinta, máquinas, manutenção, veículos e até fitas de máquinas de escrever e papel ofício caíssem do céu. Talvez as redações e oficinas fossem sustentadas, nas cabeças deles, por obra e graça do Espírito Santo. Pois apesar das permanentes dificuldades de caixa, também os departamentos comerciais deram sua mãozinha. Atribuíram às notas de PROCURA-SE DESESPERADAMENTE um preço simbólico, de modo que até as famílias mais humildes podiam registrar o desaparecimento de seus entes queridos.

Isso sem falar que no dia seguinte, no País inteiro, as notas eram re-produzidas mais ou menos no estilo da divulgação do resultado do jogo do bicho, na época proibido e perseguido, pelo menos no Rio de Janeiro. Pregaram no poste, diziam os jornais, e em seguida vinha a relação das milhares do primeiro ao quinto prêmio. Nem a ditadura conseguiu argumento para censurar esse singelo respeito ao fato.

Falando em fato, a imprensa redescobriu o velho princípio de que este é sagrado, mas a interpretação é livre. Além disso, políticos de certo

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renome que não tinham sido cassados, mas estavam na moita, tiveram novamente espaços generosos para manifestar seu pensamento.

Ali mesmo em Boi Pintado as repercussões não tardaram. Além da Rádio Surubim que, como a gente já sabe, não era uma emissora de verdade, desde que funcionava exclusivamente através de alto-falantes nos postes da cidade, havia o jornal Correio do Agreste, cujo repór-ter, redator-chefe, colunista, revisor e proprietário dançava na chapa quente para conseguir fazer uma tiragem mensal. Com a movimen-tação da cidade e o interesse em torno do julgamento, o jornal virou temporariamente diário. Vendia no Recife e até no Sul do País.

Aproveitando o clima favorável, uma jovem que sonhava em ser jorna-lista conseguiu apoios inesperados e lançou o jornal Terra da Gente, intitulado o primeiro diário do interior do Nordeste. Existe até hoje, circulando mensalmente, com sua proprietária lutando para conse-guir patrocínios. Mas, à época, ela não precisou correr atrás. As verbas generosas apareciam do nada, provavelmente pelo fato da publicação ter assumido a defesa intransigente dos partidários de Deus.

A Câmara de Vereadores de Boi Pintado também aproveitou a janela. Num gesto de autonomia, revogou de uma penada só todos os atos arbitrários do xerife. O vereador Pantera, maribondo roxo, aproveitou para dizer que, simbolicamente, Boi Pintado estava varrendo o lixo da legislação autoritária daquele ditador farsante. Colocou o dedo na fe-rida da questão das leis emanadas do autoritarismo. Esse tema voltaria à baila no País, décadas depois, com Fernando Lyra no Ministério da Justiça do que deveria ter sido o governo de Tancredo Neves.

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[ 14 ] Como é gostosa a liberdade

Leis que não valem nada

A dura verdade é que até hoje ainda se discute, sem chegar a uma solu-ção satisfatória, o alcance e o valor, a aplicabilidade de tal ou qual item das leis da ditadura. O caso mais notório, mas longe de ser único, é o da Lei da Anistia.

Em 1979, quando não se aguentava mais nas pernas, a ditadura fez aprovar uma lei de anistia. O Congresso Nacional, eleito sob regras de exceção, estava também contaminado pela participação de senadores nomeados pelo governo que o povo logo apelidou de biônicos. Era uma referência a personagem artificial de um popular enlatado da te-levisão. No meio da lei, a ditadura agonizante enfiou um trecho que pode ser interpretado como autoanistia.

Pois bem, com base nessa arrumação, que não menciona sequer a pa-lavra torturador, nenhum desses criminosos foi punido, sequer preso ou processado. Não sofreram um carão oficial do governo ou sequer um padre-nosso de penitência.

Muitos juristas se enrolam feito bobinas quando vão discutir o tema. Prendem-se a aspectos tecnicistas irrelevantes e inconclusivos. A Constituinte Cidadã, que veio em seguida, trouxe, sem dúvida, mui-tos avanços institucionais para o País. No entanto, omitiu-se de tratar de temas polêmicos como a anistia, e a coisa veio embolando até hoje.

A discussão nunca deveria ser jurídica, e sim política. Quando os mi-litares e seus apoiadores rasgaram a Constituição e submeteram o Po-der Judiciário ao seu jugo, assumiram a responsabilidade de produzir um amontoado de leis sem alicerce jurídico e portanto sem legitimi-dade. Toda a legislação política da ditadura só deveria ser acatada na democracia depois de submetida à chancela das instituições democrá-ticas. Como isso não aconteceu, essas leis da ditadura, que na essência são letra morta, continuam como fantasmas a assombrar os vivos.

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Na realidade, toda legislação autoritária tem o mesmo valor das dis-posições amalucadas do xerife: só valiam porque impostas pela força. Fora disso, são nulas de pleno direito.

O certo é que naqueles dias de liberdade, em Boi Pintado, os dois ou três travestis da cidade voltaram a circular nas madrugadas com seus arremedos de feminismo; as brigas de galo recomeçaram; Cleto Filho começou imediatamente a preparar as fantasias e adereços do Bloco das Meninas Virgens; pena que não deu tempo para fazer a vaquejada no tradicional mês de setembro, mas os responsáveis anunciaram logo o evento para o feriado de 15 de Novembro.

Perdeu-se assim uma oportunidade de ouro. Com a cobertura milio-nária e gratuita em todos os principais jornais do mundo, que certa-mente ocorreria se a vaquejada tivesse sido feita no tempo certo, hoje seria um esporte muito mais importante que os rodeios. Por conta desse pequeno lapso, a vaquejada continua um evento expressivo, po-rém provinciano.

O certo é que além de respirar outros ares, Boi Pintado parecia um formigueiro. Jornalistas de todo o mundo estavam ali. Depois do no-ticiário da BBC, os famosos tabloides londrinos tomaram gosto pela parada. Cada dia era uma manchete espetacular, nem parecia que o júri era simulado. E após a publicação da nota papal no Observatore Romano, a imprensa italiana mergulhou de cabeça no assunto. A mí-dia conservadora desceu o pau no julgamento e exigia do governo bra-sileiro o fim da palhaçada ou, pelo menos, a garantia da absolvição do réu por unanimidade.

A mídia progressista, por sua vez, defendia o direito à livre manifes-tação. Os jornais mais à esquerda chegavam a pregar que deveria se aproveitar a oportunidade para uma desmoralização cabal e definiti-va dessa divindade fictícia que é utilizada há milênio pelas elites para manter o povo alienado e oprimido.

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[ 14 ] Como é gostosa a liberdade

Esse quadro de diversidade de opiniões se repetia em todos os países democráticos. Já nos países socialistas, a posição era monolítica: não só torciam como argumentavam, mobilizavam e estimulavam os ata-ques ao Deus dos judeus e dos cristãos. Nos lugares onde prevalecia um ranço antissemítico, a torcida pela condenação do réu era clara e sem disfarces.

Desse modo o assunto incendiou o mundo. A BBC mantinha a neu-tralidade, paradoxalmente a mesma posição da Rádio Vaticano. As rá-dios dos países socialistas torciam abertamente pela condenação do acusado. A combativa Rádio Tirana, da Albânia, chegava a pregar a execução do réu, o extermínio total e definitivo de Deus, denominado de ópio do povo a serviço do imperialismo.

Em Boi Pintado, a Rádio Surubim e o Correio do Agreste eram neutros. O jornal Terra da Gente nasceu torcendo abertamente e até fazendo força pela absolvição. Estava com Deus para o que desse e viesse.

Os Tetéus, ciosos da paternidade e até propriedade do projeto, não da-vam muito cabimento a ninguém. Só eles vazavam os furos sempre via BBC. Nem Marco Antônio conseguiu furar esse bloqueio. Foi sempre bem recebido, dialogou com amenidade, mas não conseguiu brecha para interferir nos procedimentos do júri simulado. De modo que até o fim prevaleceu um certo suspense sobre o que os cabras poderiam estar aprontando.

O governo não ficou nervoso porque as fichas, ligações, situações fa-miliares de cada um, analisadas e reavaliadas com pente-fino não suge-riam maiores preocupações. Todos eram aquilo mesmo que se sabia, não havia nenhum comunista infiltrado. O rapaz que fará o papel de promotor é esquerdista, mas estava longe de ser o que no jargão da época se chamava porra-louca. Deveria bater forte, isso já estava na conta.

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Chegou tanta gente que a ideia do Governo do Estado de colocar as melhores residências à disposição dos visitantes ilustres tornou-se in-suficiente. Logo, a criatividade popular entrou em cena. Na maioria das casas podia-se ver cartazes, alguns em inglês, colocando cômodos para alugar. Não deu para quem quis.

Quando o grande dia raiou, dentro do contexto, a cidade estava tran-quila. O julgamento tinha sido marcado para 14h e 30 minutos, a fim de não concorrer com as transmissões pelo rádio dos grandes desfiles militares programados para assinalar o Sete de Setembro País afora. Assim, de manhã, o povo ficou em calma, curtindo o feriado. Na rua, o vaivém dos jornalistas, repórteres, radialistas, principalmente os que chegavam de última hora.

No cinema, assim que as portas abriram, às 11 da manhã, todos os lugares já estavam ocupados e reservados. A primeira fila era dos ju-rados; outras para os verdadeiros convidados, os parentes e amigos dos protagonistas. Como organizadores, usaram o privilégio de con-vidar gente conhecida, que não ia causar bagunça. Umas tantas outras para não convidados, porém personalidades ditas importantes, os tais VIPs, que foram prestigiar o evento.

Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Déborah Brennand, Ângelo Monteiro, José Mário, Armando Monteiro, Pinto Ferreira foram algu-mas personalidades estaduais que deram o ar da graça.

A surpresa mesmo ficou por conta da presença de personalidades do primeiro time da política nacional. Chegaram sem se anunciar o ex-presidente Juscelino Kubitscheck, o ex-primeiro ministro do bre-ve regime parlamentarista, Tancredo Neves, além de Teotônio Vile-la, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Esses últimos estavam entre os principais líderes civis do golpe. Anos depois tentariam formar a Fren-te Ampla Civil para enfrentar os militares. Segundo se diz, as articula-ções para a constituição da Frente começaram já naquela ocasião, em Boi Pintado. Não deu certo. Terminou mal para alguns.

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O arcebispo de Olinda e Recife, apesar de anunciar que pretendia ir, não apareceu. Dizem que recebeu uma ligação afetuosa do próprio papa sugerindo que sua presença seria inoportuna. Como ele sempre buscava na mídia internacional os espaços que lhe eram sonegados aqui dentro, é verossímil essa hipótese.

Já outros representantes menos notáveis da Igreja não receberam co-mando nenhum. Compareceram e brilharam por sua livre iniciativa. O bispo paraibano Dom Coutinho, o prelado mato-grossense Pedro, o frade franciscano Roberto deram tantas entrevistas à imprensa inter-nacional, criticando o regime, que ficaram conhecidos no mundo in-teiro. Viraram referências e iriam dar muita dor de cabeça aos milicos.

O resto do espaço era para a imprensa. As emissoras de rádio, sem a certeza de que a cobertura seria autorizada e naturalmente sem patro-cinadores, não mandaram equipes técnicas nem equipamentos. A so-lução foi se entenderem com Jota França, o dono da Rádio Surubim, o locutor do gogó de aço, o comunicador de todos e mais alguns, como se intitulava.

Já conhecemos o estilo de Jota da descrição da sua performance espe-tacular na transmissão do enterro do coronel Honorato e da invasão dos jumentos na feira. Nada, porém, se compara a esse dia, nem na vida de Jota nem de qualquer outro radialista do planeta em todos os tempos.

Quando algumas emissoras o procuraram para retransmitir em cadeia o seu trabalho, não se fez de rogado. Graças à combinação dos talen-tos eletrotécnicos de Batata e João do Rádio, montaram uma estrutura para o som chegar perfeito a qualquer lugar do Brasil e do mundo.

Copiando uma famosa cadeia de transmissão esportiva, criou em cima da perna sua poderosa Rede Verde, Amarela, Azul e Branca, do Oiapo-que ao Chuí. À medida que as emissoras sentiam que as transmissões estavam mesmo liberadas e que naquela tarde de feriado sem futebol o

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povo não queria saber de outra coisa, uma a uma as emissoras de rádio foram se integrando à cadeia radiofônica de Jota.

As emissoras internacionais também entraram no circuito, transmitin-do via BBC. Silvio T 4 foi escolhido para fazer a tradução simultânea.

O resultado é que nunca, em tempo algum, uma transmissão radiofô-nica tinha alcançado tamanha audiência. Nem a cobertura da farsa da chegada do homem à Lua atingiu os mesmos índices, porque teve que dividir espaço com a televisão. E provavelmente o feito de Jota jamais será alcançado. Segundo auditoria independente, mais da metade da população do planeta ouviu o emotivo locutor acompanhar passo a passo o julgamento. A transmissão dos votos dos jurados alcançou pi-cos superiores a 60% da população. Jota é o único cidadão boipinta-dense a fazer parte oficialmente do aclamado Livro dos Recordes. Essa conquista gloriosa, provavelmente, estará preservada para sempre.

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Capítulo 15

Ataque contra defesa

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[ 15 ] Ataque contra defesa

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OS TETÉUS FIzERAM QUESTÃO DE MOSTRAR AO mundo como se organiza um evento. Na hora exata, estava todo mun-do devidamente paramentado no seu lugar. A surpresa ficou por conta de uma performance não anunciada: um ator local, que trabalhava em circo e entendia bem dessas coisas de maquiagem, barbas e cabelos postiços atendeu ao convite para representar o acusado. Caracterizou--se muito bem copiando a imagem de Deus na cena do Juízo Final da Capela Sistina. Se estava na sala de escolha dos papas, então era a ima-gem oficial do Criador, ninguém podia contestar. Ficou muito pareci-do. Foi um deleite para os fotógrafos.

Para não haver perda de tempo em coisas que não interessavam, a escolha dos jurados foi realizada antes da entrada em cena pela orga-nização, conforme o ritual. Numa lista de vinte foram sorteados seis dos sete jurados, porque um, Cumpade Deca, já estava escolhido por antecipação e unanimidade. Acusação e defesa tiveram direito a três vetos cada, tudo transcorreu sem atritos na presença do representante do governador.

Quando todos tomaram seus lugares, Amarildo Fernandes, no papel de juiz, bateu com o martelo na mesa e explicou à plateia e ao mundo as regras do julgamento. Mais ou menos como os apresentadores de debates eleitorais na televisão fazem antes de cada porfia.

As determinações eram simples e claras: o réu em pauta era o Deus judaico do Antigo Testamento. Qualquer menção a Jesus Cristo ou a outro personagem do Novo Testamento deveria ser desconsidera-da. O acusado deveria ser mencionado respeitosamente. Poderia ser tratado pelas formas bíblicas de Senhor, Deus, Adonai, Elohim ou

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[ 15 ] Ataque contra defesa

Iavé. Jeová, nome que não faz parte das antigas tradições bíblicas, também seria acatado.

O Antigo Testamento, com versões oferecidas pelo padre Jovino e pelo pastor Bernardo, estavam à disposição da acusação e defesa para consultas.

Cada lado teria uma hora para suas exposições com direito a apartes. Depois, réplica de meia hora nos mesmos moldes e considerações finais de quinze minutos. Ao contrário dos julgamentos oficiais no Tribunal, os jurados não fariam reunião em sala secreta para anunciar a sentença. Como era costume nos júris simulados, cada jurado se le-vantaria e daria seu voto aberto, com direito a uma breve justificativa, se quisesse.

Fez-se também uma rápida, porém oportuna, explicação sobre os pa-péis dos integrantes do júri. Ao juiz cabe conduzir o processo com isen-ção e aplicar a sentença. O advogado de defesa não precisa acreditar no seu constituinte, mas tem a obrigação de dar tudo de si para defendê-lo. O promotor, independentemente de suas crenças, tem o dever de acusar o réu sem contemplação. E os jurados devem votar não de acordo com o que já pensavam antes, e sim estritamente de acordo com a argumen-tação que for apresentada durante o julgamento pela acusação e pela defesa. Só vale para fundamentar a sentença o que for apresentado ali. Nada que não for mencionado no júri deve influir na decisão de cada um. Nenhuma dúvida? Vamos ao contraditório.

Evaldo Cavalcanti, alto e forte, buscou inspiração para o seu desempe-nho assistindo a meia-dúzia de sessões no Tribunal do Júri do Recife. Ficou particularmente impressionado com o estilo de um jovem ad-vogado, Bóris Trindade, que teatralizava suas atuações. Assim tentou fazer Evaldo, depois de ter ensaiado horas diante do espelho. Subia e descia o tom, se descabelava, se jogava, gesticulando. Aparentemente indignado, fazia pausas bem planejadas para pontuar as perorações ou sublinhava as frases de maior impacto. Mal comparando, parecia um

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desses pastores da madrugada na televisão querendo convencer que o Diabo está fungando no cangote dos fiéis que não pagam suas contri-buições à Igreja.

Deus. Deus. O Senhor Deus, criador do céu e da terra, de tudo o que existe é o maior criminoso da História, o ser mais cruel de que se tem notícia, começou ele. Capa preta nos ombros, figura impressionante, conseguiu seu objetivo de começar impactando a plateia e também a audiência radiofônica.

Se ele é fonte de tudo o que existe, é responsável por todo mal, todo so-frimento, todas as guerras, golpes militares, sequestros, torturas, prisões políticas, ameaças, espancamentos e até xerifes, disse, arrancando risa-das pela primeira vez.

De onde tirei esta conclusão? Perguntarão as senhoras e os senhores. De onde? Da minha cabeça? Da minha imaginação? Das críticas dos que não creem? Dos ateus? Dos comunistas? ... Não... tirei das próprias con-fissões do acusado. Aí subiu o tom: Tirei, senhoras e senhores, da própria Bíblia Sagrada. Neste livro onde ele se revela aos homens, vejam bem, se-nhoras e senhores jurados, poucas páginas não contêm cabais confissões dos mais perversos comportamentos e de crimes contra a humanidade, hediondos e inafiançáveis.

A reação da plateia não se fez esperar. Foi preciso o juiz pedir ordem pela primeira vez. Jota França, que, instalado na cabine de projeção, não perdia um lance, se esmerava na transmissão. Com a ajuda da sua enxuta equipe técnica, botava som nos microfones dos diversos prota-gonistas na hora certa, a cobertura estava à altura do evento. Nenhum ouvinte perdia uma palavra sequer.

Vamos começar pela gênese de tudo, prosseguiu o promotor. Esse Deus, me permitam dizer que estou usando letra maiúscula ao me referir a ele, resolveu criar o homem a partir do barro. Para que criar o homem? Já não lhe bastavam as loas que recebia dos anjos, arcanjos, querubins

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e serafins, seres que ele inventou para lhe servirem com a docilidade de áulicos na sua corte eterna?

Esses seres celestiais não sofrem, não morrem, não adoecem, não sen-tem dor. Então, até aí, não se pode acusar Deus de nada, a não ser de vaidade. Mas quando o seu preferido, Lúcifer, o traiu, e tentou tomar o seu lugar, já estava então provado que esse ser supremo não é perfeito, inclusive nas suas escolhas e preferências.

Em segundo lugar, fica atestado que ele criou os seres humanos de forma premeditada pelo prazer de assistir a sua perdição e a sua desgraça. Se o anjo da luz pecou, se rebelou, o que esperar de criaturas feitas de barro? Estava na cara que os homens iriam se desviar para o pecado e a dor. O Senhor os criou por crueldade, uma espécie de diversão mórbida para seus dias de tédio celestial.

Nunca os fiéis presentes e ouvintes haviam escutado tantas acusações ao seu Deus. Embora, pensando bem, o promotor não estivesse di-zendo nada de novo, apenas interpretando de um jeito diferente do habitual.

Evaldo prosseguia implacável: O reino celestial não era suficiente para satisfazer a desmedida vaidade desse Deus que se diz Senhor do Univer-so. Resolveu criar os seres humanos aumentando o seu séquito de bajula-dores; com o destino de virarem pecadores e como tais subservientes ao seu poder e à sua glória. E assim lhe fizessem adorações através de preces e oferecessem sacrifícios de animais e até de seres humanos.

Àquelas alturas a indignação era geral. Esperava-se do advogado de defesa pelo menos um aparte. Este, entretanto, aparentava estar absor-to, alheio a tudo. Parecia que nem estava ali nem nada daquilo lhe dizia respeito. O núcleo da crise instalado em Brasília acompanhava tudo pelo rádio e recebia informações a todo instante. Estava em contato com o governador e o comando do IV Exército.

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Naquele momento de surpresa inicial, o impacto era tão grande que foi cogitado interromper a transmissão ou até mesmo adotar a linha do coronel do Serviço Secreto. Ou seja, acabar a festa e arrebentar tudo na porrada. Prevaleceu a prudência. O jogo está apenas começan-do e, além disso, só nos resta aguentar o tranco, falou o ministro chefe da Casa Militar. Qualquer emenda pode sair pior do que o soneto. Até agora a questão é com a Igreja que adotou esse Deus dos judeus. Eu sempre achei que essa raça não merece confiança, falou transparecendo seu antissemitismo.

Aproveitamos para registrar que, após a parada da manhã daquele dia, tropas do exército tinham se deslocado em direção à cidade, utilizan-do comboios que ficariam nas proximidades aguardando ordens. Es-quadrilha da Aeronáutica permanecia de prontidão na Base Aérea do Recife. O contingente do Quartel da Polícia Militar de Limoeiro tinha sido triplicado; se necessário alcançariam a cidade em menos de uma hora. Esse aparato estava pronto até para varrer Boi Pintado do mapa.

O juiz pediu ordem pela segunda vez e ameaçou que qualquer ma-nifestante seria imediatamente retirado do recinto, fosse quem fosse. Era um evento privado, tinham que respeitar as regras. E a regra para a plateia era o silêncio absoluto. Já bastava o barulho natural da impren-sa, esse não podia ser evitado. Nos bares do mundo ocidental, com falta de adversários para brigar, os partidários de Deus começavam a se espancar mutuamente, como ocorre frequentemente com as ditas torcidas organizadas dos times de futebol.

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Deus na berlinda

Ordem garantida, Evaldo prosseguiu: O réu é responsável pelo primei-ro adultério da espécie humana. E pelo primeiro assassinato. E por mui-tas desgraças que vieram depois. Por quê? Porque ele é onipotente, ou seja, pode tudo; onisciente, ou seja, sabe tudo; onipresente, ou seja, está em todo o lugar, no passado, no presente e no futuro.

Ora, ele já sabia que Eva iria trair Adão quando os colocou no Paraíso e, apesar disso, colocou lá a serpente e a árvore da sabedoria. Providenciou todas as circunstâncias para a traição ocorrer. Até aí não há crime. Este começa a ocorrer quando Iavé expulsou o primeiro casal do Éden. Fez isso sabendo que eles iriam ter dois filhos, e um deles, Caim, mataria Abel.

A culpa é de Caim? Sem dúvida. É o executor. Porém a culpa maior des-se cruel fratricídio é do seu mentor. Quem plantou a inveja no coração de Caim? Deus. Quem lhe proporcionou os meios para perpetrar seu crime? Deus. Quem poderia ter impedido e não o fez? Deus. Depois de filosofar ironicamente que ninguém sabe o que vai acontecer, desde que o futuro a Deus pertence, lançou um temeroso alerta: Quem é que garante que esse julgamento chegará ao fim? Em seguida, pode-se dizer que fez um desafio direto ao réu: Também, se o Senhor Deus de Israel ficar irado comigo a exemplo da raiva que teve da mulher de Lot, talvez eu termine esse júri transformado numa estátua de sal. Se isso ocorrer, podem me aproveitar para salgar carne de sol, mais uma vez a turma riu.

E se antecipou, precavidamente: Se alguma coisa me acontecer, fique registrado que estou pedindo às senhoras e senhores jurados a conde-nação do réu à pena máxima, como autor intelectual do assassinato de Abel, com os agravantes de premeditação, inibição da capacidade de de-fesa e estímulo ao uso de meio cruel.

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Fez uns dez segundos de pausa de olhos fechados, de costas para a plateia, mas com a cabeça virada para ela, como se estivesse esperando se transformar em estátua de sal. Como isso não ocorreu, voltou à car-ga com gosto de gás: Pensam que ficou só nisso? Foi apenas o começo. Como nosso tempo é restrito, vou direto ao ponto. Requeiro a conde-nação, não por um, mas por...deixe ver... Consultou suas anotações e soltou o número bombástico. Peço a condenação do Senhor Deus de Israel por 2.270.371 assassinatos identificados por minha assistente no Antigo Testamento. Crimes indiscutíveis e confessados. Perpetrados, quer sejam diretamente pelo próprio Deus ou por ordem dele ou com o seu consentimento.

E prosseguiu: Vejam bem, senhoras e senhores. Não se tratou de um, dois, três, trinta assassinatos, como os cometidos impunemente aqui nas redondezas por um certo pistoleiro Mané Tiro Certo. Curiosamente, este antes servia ao coronel e hoje, travestido de beato, é pistoleiro a serviço do Deus de Israel, como se esse fosse o coronel do Universo.

Soletrou repetindo: Foram dois mi-lhões, du-zen-tos e se-ten-ta mil, tre-zen-tos e se-ten-ta e um assassinatos, incluído aí o de Abel. Todos com agravantes de utilização de meios cruéis e inibição do direito de defesa para as vítimas. Na totalidade cometidos por ele ou com sua au-torização e devidamente constatados e identificados na Bíblia.

Como é impossível citar caso a caso, vou escolher alguns mais conheci-dos, e também outros menos comentados.

A indefesa mulher de Ló foi transformada em estátua de sal pelo crime de ser curiosa. Quantas senhoras aqui já não cometeram esse crime? Já pensaram no risco que correram? As pessoas riam, o promotor era en-graçado mesmo.

Muitos foram assassinados por motivo fútil. Um por blasfemar. Outro por ser perverso. Outros sem motivo algum, como os dois filhos de Arão. Já Onan, segundo a Bíblia, foi morto por se masturbar. Felizmente esse

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critério não virou regra, senão poucos homens estariam vivos nesta sala, disse, arrancando gargalhadas mais uma vez.

Vejam, senhores jurados, como era malvado esse Deus dos judeus. Um homem foi morto por ele pelo simples fato de recolher lenha no sábado. Outro, o senhor Jezebel, foi simplesmente atirado aos cães. Usava assim dos meios mais cruéis para executar suas sentenças que, com o devido respeito, parecem as determinações do xerife que até há pouco atormen-tou a nossa cidade. Devido respeito ao xerife, quero esclarecer. Com ti-radas como essa, Evaldo fazia rir até os mais ferrenhos torcedores de Deus.

Com a Bíblia na mão, para impressionar, ia abrindo nas páginas pre-viamente marcadas: Sete filhos de Saul foram enforcados pelo Senhor de Israel. Cento e dois outros sujeitos foram queimados vivos por ele. Três pessoas mortas pelo simples crime de serem estrangeiros. Está aqui no Livro dos Reis.

Os casos são os mais inacreditáveis, porém constam da Bíblia Sagrada. Esse Deus cruel, impiedoso, covarde, vingativo e arrogante matou uma pessoa pelo simples fato de a vítima acreditar na mentira de um profeta. Para quem duvida, está aqui no Livro de Reis.

Devidamente autorizado pelo juiz, fez uma pausa enquanto a bela as-sistente mostrava o exemplar da Bíblia, com cada versículo marcado para facilitar a leitura dos jurados.

A situação estava neste pé quando, para felicidade geral da torcida di-vina, o juiz avisou que o tempo da acusação tinha se encerrado: Mais 2 minutos para concluir.

Concluo, excelência: Falei de crimes no varejo, mas muitos foram no atacado. Para finalizar esta primeira intervenção, recorro ao Livro dos Reis para dizer que o Senhor Deus matou 185.000 soldados enquan-to dormiam e ajudou Sansão a exterminar, contado nos dedos, 4.030

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inimigos. Recorro ao Livro de Números para denunciá-lo pelo massacre de 90.000 Midianitas. E está no Livro de Samuel que 70.000 pessoas fo-ram massacradas porque Davi resolveu fazer um censo. Reitero o pedido de condenação e, por hora, tenho dito.

Sinceramente, fora um ataque arrasador. Embora Jota França manti-vesse seu entusiasmo habitual, a enorme torcida divina estava cabis-baixa. Já em Havana, fogos espocavam nas ruas, e na Praça Vermelha, em Moscou, aproveitando o clima de verão, uma multidão incalculá-vel vibrava com a atuação do promotor. Com essa, Deus tá fodido e mal pago, sentenciou Oito dos Grudes.

Toda a expectativa agora era voltada para a atuação do professor Na-tércio Pai dos Burros. Desalentados depois da primeira lapada, muitos comentavam mundo afora que só um milagre reverteria tão demoli-dora acusação.

Passada a palavra, o professor mal se deu ao trabalho de levantar. Disse uma única e decepcionante frase: Nada a declarar por enquanto, Ex-celência. A defesa se reserva ao direito de só se manifestar no momento que julgar oportuno.

Assim também era demais. O alarido foi tão grande que dessa vez o juiz nem fez esforço para acalmar a multidão. O professor corria o ris-co de ser agredido ou até linchado. A plateia gritava coisas como trai-dor, covarde, safado, filho da puta, marmelada. Enfim, uma barafunda total.

Továrish Lói, encarregado da segurança do evento, achou por bem, discretamente, solicitar ao comandante dos soldados da Polícia do Exército, que faziam a segurança externa do prédio, o envio de alguns homens armados para dentro, a fim de conter possíveis excessos e ga-rantir que o julgamento pudesse prosseguir em ordem.

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O juiz decretou um intervalo de 10 minutos e chamou o promotor e o advogado para uma conversa reservada. Ouviu as razões do profes-sor e recomendou que usasse pelo menos 2 minutos do seu tempo para explicar sua linha de defesa, senão poderiam sair todos mortos dali. E o pior é que não seria pela ditadura, mas pelo próprio povo. E assim foi feito.

Reabertos os trabalhos, o professor Natércio Pai dos Burros, que em nenhum momento perdeu a calma, usou da palavra. Senhoras e senho-res, vou me dirigir ao público em geral desde que aos jurados falarei na hora que julgar oportuna. A mim foi confiada uma delicada tarefa e só aceitei porque me sinto preparado para tal.

Bebeu um gole d’água e prosseguiu no seu tom persuasivo, contras-tando com o estilo espetaculoso do acusador: Tenho uma estratégia de defesa montada e fundamentada, que não depende nem vai ser pautada pelas vociferações diabólicas da acusação. Por mim, quanto mais a pro-motoria investir contra o réu, melhor. São palavras que não valem de ab-solutamente nada. No momento certo, apresentarei meus argumentos e tenho certeza de que o acusado será absolvido. Obrigado pela confiança.

Convenhamos que se não foi uma fala convincente, pelo menos acal-mou a maioria. Bem, se ele tem uma estratégia, vamos aguardar o an-damento. Jota França, que naquele momento já não escondia que ti-nha abandonado a neutralidade e torcia abertamente por Deus, emitia sua opinião para o mundo, puxando a brasa para a sardinha dos assus-tados partidários do Senhor. Fiquem calmos, meus amigos, o professor Natércio é craque, sabe jogar no contra-ataque; vai ganhar o jogo nas costas do adversário.

O núcleo da crise, com a ajuda de juristas e especialistas em estratégias, constatou que a acusação, inteligentemente, estava deixando claro que o réu era o Deus de Israel, a divindade do Antigo Testamento. Ou seja, dava carga aos judeus sem jogar a Igreja Católica contra a parede. Até porque, disse um deles, Jesus afirmou que não veio cumprir a lei, mas

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revogá-la. O promotor estava acusando o Deus Pai judaico original e não a Santíssima Trindade do Novo Testamento.

Outro analista afirmou que ficassem tranquilos, ele já tinha sacado a estratégia da defesa. Aposto um mês do meu salário contra um café pe-queno que o cara sabe o que está fazendo. Vou escrever o que ele vai dizer nas considerações finais e colocar nesse envelope. Quando terminar, a gente abre para conferir. Registre-se que acertou. Bem, só por esse diá-logo se vê que a tensão tinha se dissipado bastante.

Veio a réplica. O promotor deu vez à assistente. Esta manteve a linha de ataque, mas focou nos excluídos e nas minorias. Com sua voz doce, porém firme, lamentou que o Senhor Deus de Israel praticasse aberta-mente o crime de racismo, inclusive executando gratuitamente estran-geiros. 100.000 homens foram mortos por ele em um só dia pelo fato de serem sírios. Chocante.

Acusou a prática de crueldade contra crianças, citando o exemplo do filho de Abraão, amarrado a uma fogueira prestes a ser acesa. Desen-cavou que 42 crianças foram mortas pelo Senhor pelo simples fato de terem, na sua inocência, caçoado de um profeta. Àquelas alturas, fez uma pausa para o promotor exibir aos jurados o local exato da citação.

A assistente de acusação mostrou, explicitando a localização de cada caso na Bíblia, que milhares de mulheres foram mortas por praticarem a prostituição, e outro tanto de homens, por se deitarem com outros homens como se estes fossem mulheres. Apesar da suavidade, o estra-go que estava fazendo era tão grande ou ainda maior que o operado pelo titular.

Pela primeira vez elevou o tom de voz transbordando indignação e im-pressionando fortemente todos. O Deus de Israel, que aqui está sendo julgado, não só permite a escravidão como autoriza que os pais vendam suas próprias filhas menores para fins de exploração sexual. Está aqui, no Livro do Êxodo, capítulo 21.

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E o que dizer do abuso de crianças autorizado em Juízes, 11, 24, 40? E da autorização para executar bebês jogando-os contra pedras, como está em Oseias e em Salmos? Esse Deus hebraico era tão preconceituoso que autorizava o apedrejamento das mulheres adúlteras. E, dirigindo o olhar para as duas mulheres que faziam parte do corpo de jurados: Uma mulher que mantivesse relação sexual estando menstruada era condenada à morte. Peço especificamente a condenação, também, pela violação dos direitos das minorias e desrespeito aos direitos fundamen-tais da pessoa humana.

Agora, prosseguiu ela, vem o capítulo dos genocídios não quantificados. Ainda não falamos da destruição e morte de inocentes em Sodoma e Gomorra, na Torre de Babel e no mais absurdo genocídio jamais regis-trado na face da Terra, o dilúvio universal. Milhões de inocentes foram exterminados por esses absurdos atos de vontade e tirania.

Ainda bem que o tempo acabou. O juiz não deu um minuto de tole-rância. A assistente voltou ao seu lugar. A defesa, mais uma vez, reser-vou sua manifestação para as considerações finais, que eram o próxi-mo passo do roteiro.

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Acabou a zorra

A língua portuguesa é muito dinâmica e rica. As palavras, com o tem-po, vão tomando novas conotações. Para um apreciador, é um deleite acompanhar essa evolução.

A palavra zorra, por exemplo. Ali, em Boi Pintado, naquele tempo, ex-pressava uma pelada de futebol onde não se conseguia formar sequer um time. Funcionava assim: formava-se um pedaço de time que jo-gava contra um único adversário, o goleiro. Se houvesse gol, era gol mesmo dos atacantes. Se a bola fosse por fora, na trave ou o goleiro defendesse, o gol era dele.

Até então, o julgamento tinha sido uma zorra, que continuaria en-quanto a palavra estivesse com a acusação. Quantos gols esta havia fei-to, só se saberia depois. Mas o goleiro iria mostrar as defesas e as bolas fora. Nem tudo está perdido, animavam-se os partidários de Deus.

Nas considerações finais, a acusação arrebentou a boca do balão mais uma vez. Evaldo começou lendo o seguinte trecho da Bíblia: Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas, o que sozinho estendi os céus e sozinho espraiei a terra.

E prosseguiu: Está claro, minhas senhoras e meus senhores, que o Se-nhor Deus de Israel assumiu sozinho toda a responsabilidade, não ape-nas pelos seus atos diretos, como também por tudo o que decorresse da sua criação e todo o mal que viesse a existir no mundo.

Citei milhões de assassinatos perpetrados diretamente e assumidos por ele no livro onde se revelou aos homens. Mas ainda não disse, como digo agora, e peço que seja considerado na pena a ser aplicada, que o Deus Criador é responsável pelo sofrimento, dor, pecado, crime de cada um. Bem como é responsável por cada guerra, golpe militar, tortura, malda-de praticada pelo mais vil ser humano a serviço de qualquer ditadura. Quando criou a humanidade, ele já sabia de tudo o que aconteceria, em

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qualquer época. De modo que no momento em que qualquer ser huma-no é gerado, os seus passos já são completamente conhecidos pelo cria-dor. O alegado livre arbítrio não passa de uma ilusão.

Finalizou resumindo tudo o que dissera e pedindo a condenação do réu por homicídio triplamente qualificado e assassinatos dos mais variados tipos, além de crimes hediondos contra a vida, a infância, as minorias, a honra. E mais: por latrocínio, extorsão, provocação de epidemia com re-flexo em mortes, terrorismo e genocídio. Tudo devidamente amparado por constatações que estão na Bíblia. Agradeceu e sentou.

Finalmente chegou a vez da defesa se pronunciar. O professor Natér-cio levou a sério a história de desempenhar o papel visando absolver o acusado sem se preocupar com o que os outros iriam dizer. Como já foi afirmado e repetido, ele era indiscutivelmente um católico fervo-roso. Mas sua linha de defesa surpreendeu todos os que pensaram em algum momento que ele enveredaria por essa rota.

Meus amigos, como o Dr. Amarildo, nosso juiz, explicou muito bem, não estou aqui para defender o que acredito. O objetivo do advogado de defe-sa é livrar o réu da condenação, como aprendi em conferência magistral, proferida pelo notável penalista Roque de Brito Alves.

E é isso o que vou tentar fazer em poucas palavras. A verdade não preci-sa de longos palavreados para se expressar.

Deixei, de propósito, a acusação enfeitiçar-se consigo própria, deslum-brar-se com o impacto de suas colocações. Mas as juradas e jurados não vão decidir baseados em meras palavras proferidas pela acusação. Nes-se ponto foi elevando o tom de voz. O mundo, pode-se dizer, mergu-lhou no mais profundo silêncio para ouvir. Nem os cachorros latiam.

A decisão deve e tem que ser baseada no fundamento da Justiça, que são as provas. É princípio universal do direito: cabe à acusação o ônus da prova. E qual prova foi apresentada para pelo menos um dos crimes alegados? Nenhuma.

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Nascido de sete meses como era, o promotor já estava pedindo aparte. Natércio concedeu: Que seja o único e breve.

Evaldo partiu para reforçar sua argumentação. Como não apresentei provas? Citei e mostrei dezenas de passagens do Livro Sagrado...

O advogado cortou-lhe a palavra e deu por encerrado o aparte. Afinal, o escasso tempo era dele.

Vossa Excelência disse muito bem. Livro Sagrado. Livro Sagrado não é prova de nada na justiça terrena, é uma questão exclusivamente de fé. E não podemos condenar nenhuma pessoa ou entidade com base em crenças. Temos que nos apoiar na verdade dos fatos. Só a verdade de-vidamente comprovada pode servir de fundamento para uma sentença condenatória de qualquer natureza.

A Bíblia, senhoras e senhores jurados, apesar de conter registros religio-sos, históricos, legais e até profanos, é um conjunto de textos sagrados, com o fim único e exclusivo de servir de guia para os fiéis, para os que acreditam nos mistérios da fé. Nenhuma outra finalidade se espere dela. Qualquer outro uso é distorcido e inválido. Principalmente, como se fez aqui, deslocando tudo do seu contexto, querendo transformar alegorias didáticas e simbolismos catequéticos em autos de um processo judicial.

Jamais, senhor promotor simulado, senhora nobre e bela assistente, se pode fundamentar uma decisão racional amparada em princípios de fé. Principalmente quando utilizados como chicana por quem não acredita neles, como assistimos aqui.

Arrasou com sua estratégia. Apesar do pouco tempo, os adversários não podiam contestar nada, a última impressão é a que fica. Os torce-dores de Deus, inclusive os que já tinham entregue os pontos, ressurgi-ram das cinzas. O enterro voltou da porta do cemitério, como se diz. A euforia era consagradora. Nos tradicionais pontos de aglomeração das cidades ocidentais, a torcida ia ao delírio. Nos domínios adversários,

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onde a plateia continuou firme apesar do avançado da hora, como em Moscou, Pequim, Seul e Tirana, instalou-se um certo desânimo.

Breve, direto e objetivo, o professor Natércio repetiu sua argumen-tação para que os jurados entendessem bem. Pediu, inicialmente, a absolvição do réu de todas as falsas e infundadas imputações que lhe foram levianamente atribuídas. A absolvição é uma questão moral dos senhores jurados diante da absoluta falta de provas da acusação. Mas tem uma segunda questão que eu gostaria de levantar.

E prosseguiu: Não existe crime sem vítima e muito menos sem autor. A promotoria não foi capaz de provar neste processo a existência de uma vítima sequer. E faço questão de chamar também a atenção para este ponto: nada foi demonstrado sobre o réu, sequer a sua existência. Ora, se a acusação não provou que o réu existe, como quer que lhe imputemos uma condenação, mesmo que simbólica?

E mais um golpe de mestre: Eles sabiam dessa falha na sua peça acu-satória. Tanto que tentaram suprir esta lacuna fundamental impressio-nando os jurados e o público através dessa triste figura fantasiada. E dirigindo-se ao juiz: Meritíssimo, posso fazer duas perguntas ao artista aí sentado?

Júri simulado tinha dessas liberalidades, não seguia à risca o protocolo do processo penal. Autorizado, dirigiu-se ao ator: O senhor, pode decli-nar aos jurados o papel que o senhor desempenha nos circos?

Foi a vez de o professor fazer o mundo rir. O ator deu a resposta fora do microfone, quase ninguém ouviu. Ele então se deslocou, repetiu a pergunta dessa vez com o microfone bem perto da boca do depoente. E veio o retorno: Sou palhaço.

Depois que as risadas diminuíram, Natércio voltou à carga: O senhor pode declinar ao distinto público o seu nome artístico? A resposta, alto e bom tom, não deixou dúvidas: O meu nome artístico é Palhaço Bunda Mole.

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Quando o silêncio finalmente se fez no recinto, o professor solicitou - e foi atendido - que o tempo perdido na balbúrdia fosse acrescido ao que dispunha.

Finalizou em grande estilo: Senhoras juradas, senhores jurados, repito o meu pedido de absolvição do acusado mais injustiçado de todos os tempos. Quantas foram mesmo? Dois milhões, duzentas e setenta mil trezentos e setenta e uma acusações, sem nenhuma prova. E imitou a performance do promotor, soletrando e repetindo: ne-nhu-ma pro-va.

E caso os senhores não entendam assim, deixo já solicitada ao meritíssi-mo senhor juiz a extinção do processo por imaterialidade do réu.

E diante da impactada plateia, complementou: Eu acredito firmemente em Deus, Pai todo poderoso, criador do céu e da terra, e em suas mãos coloco o meu destino todos os dias. Porém, minha fé não está em julga-mento nem serve como argumento de defesa. Bem como o que acredita a promotoria de nada vale como prova de acusação. O promotor e sua bela assistente tiveram todo o tempo do mundo. Em nenhum momento foram sequer aparteados. E não tiveram condições de apresentar uma única prova válida, em qualquer tribunal do mundo, demonstrando a culpa do acusado.

Lembro para refrescar as memórias que, como disse o excelentíssimo senhor juiz, só vale para a condenação o que foi demonstrado aqui. E, como já disse, aqui nada foi provado. Ouvimos muitas palavras insensa-tas, injustas e fora do seu contexto. Mas não se preocupem com as blasfê-mias que declamaram. Palavras são palavras, nada mais que palavras. Deus perdoa os que não sabem o que dizem.

Agradeceu, sentou, saboreou os aplausos do recinto e a gritaria que vinha das ruas.

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Capítulo 16

O voto decisivo

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SOMENTE APóS CERCA DE 15 MINUTOS A ALGAzARRA acalmou e foi possível o prosseguimento dos trabalhos. É verdade que nem o juiz, Amarildo, nem o encarregado da segurança, Továrish Lói, fizeram muita questão de restabelecer logo a ordem. Deixaram que a tensão acumulada ao longo da tarde fosse extravasada, tanto no recin-to do Cine-Teatro Navona como no resto do mundo.

Assim, quando a relativa paz voltou a reinar, Amarildo começou a re-colher os votos.

O jurado Cecéu Barros, como vota? Absolvo, excelência. Ninguém pode ser condenado sem provas. Muito menos o Criador do Universo.

A jurada Luciana Lima, como vota? Absolvo, excelência. Acompanho a tese da defesa. Além do quê, Deus é só bondade, generosidade e grandeza.

O jurado Alarico Barbosa, como vota? Condeno, excelência. A defesa não defendeu, saiu pela tangente. Acolho os argumentos da acusação.

A jurada Marinalda Silva, como vota? Condeno, senhor juiz. Sou cató-lica, apostólica, romana, uma moça de fé, mas minha consciência man-da julgar o que presenciei aqui. A defesa foi omissa, a acusação se saiu melhor.

É repetitivo dizer que cada voto favorável a Deus era seguido por uma comemoração digna da final da Copa do Mundo de 1958. No recinto e em muitos lugares a declaração condenatória era acompanhada por um silêncio parecido com o do Maracanã depois do fracasso de 1950. Nos locais em que o público estava dividido, o comportamento era naturalmente diversificado.

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O mundo de respiração presa acompanhava o andamento do placar.

O jurado Joselito Travassos, como vota? Condeno. A Bíblia vem sendo usada há séculos como prova da existência e dos atos de Deus, merece crédito irrestrito. A acusação foi convincente.

Se o próximo voto fosse novamente pela condenação, seria o fim e Deus estaria irremediavelmente derrotado. Fez-se um silêncio sepulcral.

A jurada Marta Cecília, como vota? Absolvo. O Senhor é meu pastor e nada me faltará.

Jota França naquele instante alcançava o seu recorde como a maior audiência radiofônica de todos os tempos. Ciente da responsabilidade que pesava sobre os seus ombros, vinha dando o melhor de si desde o começo da tarde. Além disso, estava dominado pela emoção, de modo que exigiu o máximo de sua aclamada capacidade pulmonar e do vo-zeirão que a natureza lhe deu. Quando saiu o empate, berrou do mais profundo do seu ser:

Empatoooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooouuu...

Enquanto o seu brado retumbante ainda ecoava mundo afora, teve um passamento e caiu apagado em cima da acanhada mesa de transmissão.

A cobertura prosseguiu com o som de todos os microfones abertos, resultado do desmaio de Jota sobre os botões de controle, de modo que o mundo inteiro pode ouvir o juiz se dirigir e solicitar ao último jurado o voto absolutamente decisivo:

O jurado Adeclínio Vieira, conhecido como Cumpade Deca, como vota?

Cumpade pegou o microfone e, antes de justificar o voto, aproveitou que falava para o mundo e deu, vindo dele, um surpreendente recado político. Como todos sabem, o País vive sob uma ditadura militar. A

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ideia inicial do julgamento era realmente contestar o regime e o sistema e desafiar a Igreja conservadora que apoiou o golpe militar. Porém nossa iniciativa ganhou uma dimensão inesperada que surpreendeu a todos e deu ao País uma oportunidade de respirar democracia de novo. Só por isso, tudo teria valido a pena. Agradeceu à imprensa mundial, a todos os que ajudaram na realização do evento, inclusive ao governo. Puxou um Viva a Liberdade! E se preparou para votar.

O meu voto é ... e fez aquele suspense característico dos apresentadores dos prêmios de cinema. Na verdade, o vacilo foi decorrente de uma dúvida inesperada que o acometeu. O coração disparou, as mãos sua-ram frio.

Exatamente nesse momento alguém da plateia soltou o grito fatal: Ga-rapa, filho da puta!

Ninguém tinha prestado atenção. Aproveitando o relaxamento da se-gurança naqueles momentos emocionantes e decisivos, o doido tinha entrado no recinto e se posicionado no primeiro degrau da pequena escada que dava acesso ao palco. Ouvir seu nome gritado debochada-mente era a senha para ele se espalhar. Não deu outra.

Alucinado, brandindo o cacete de jucá ferrado que sempre conduzia, partiu para cima da plateia. Cumpade teve que correr para tentar con-tê-lo, instalou-se a confusão. Nisso, a luz apagou.

Sentindo que era o fim da linha, o juiz aproveitou que o seu som ain-da funcionava, anunciou aos gritos que a sessão estava suspensa e que os trabalhos seriam reiniciados ali mesmo, às 14:30 do dia 11 de setembro.

É que o próprio Amarildo tinha compromissos profissionais nos dias seguintes e raciocinou rápido: Se marcar para antes, vão ter que me substituir, o que não é bom. O dia 11 é feriado municipal, o cinema es-tará disponível. O País ganha alguns dias extras de liberdade e a cidade

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continua faturando um pouco mais com a presença de tantos visitantes. Decidiu, anunciou e se escafedeu pela saída do quintal, por onde To-várish Lói já providenciava a retirada em segurança de todos os parti-cipantes do espetáculo.

A confusão nas ruas era tamanha que nem foi possível reunir todos os Tetéus naquela noite. Mais uma vez na privacidade da casa de Cumpa-de, avaliaram tudo o que se passou. Estavam eufóricos. Conseguiram até ali todos os objetivos. Voltaram a ser o centro das atenções, não apenas de Boi Pintado como do mundo. A palavra Tetéu só perdia, na-quele momento em termos de reconhecimento no exterior, para Pelé e Garrincha. Apagaram temporariamente os Fantasmas Vermelhos, esses jamais conseguiriam tanta notoriedade como eles. Só se seques-trassem o embaixador norte-americano. E olhe lá.

Evaldo, o promotor, não estava presente, até porque não fazia parte do grupo. A atuação do professor Natércio Pai dos Burros justificou seu nome e sua fama. Não faltavam abraços e cumprimentos: Cara, que ideia genial, de onde tirasse isso? Modesto como era, revelou que apenas adaptara um livro de bolso de autor norte-americano sobre um julgamento polêmico que tinha lido há tempos.

Cumpade Deca ocupava, como não podia deixar de ser, o centro das atenções. Todos sabiam que era inútil, mas ninguém deixava de tentar pescar antecipadamente o seu voto ou a tendência dele. Deca, assim que se refez da emoção, botou ordem no grupo e anunciou seus planos.

O tumulto causado por um provocador infiltrado, o corte da energia e logo mais dos microfones era prova de que o anúncio do resultado estava preocupando demais certos setores poderosos. Assim, se ele ficasse por ali nos dias seguintes, sofreria pressões. Correria, quem sabe, até perigo de vida. A ditadura já fez seu papel de boazinha, daqui pra frente está liberada. A Igreja aparentemente lavou as mãos, mas a gente sabe que não é assim. Tanto tem milico quanto muito capa preta disfarçado por aí. Sem falar de grupos religiosos radicais, como

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os iluminati que estão infiltrados, tentando passar despercebidos. Eles não se conformam com o julgamento e são capazes de tudo.

Combinaram o plano: Pessoal, eu vou sumir para um lugar secreto, não vou dar nem pista para nenhum de vocês. Assim, é mais fácil escapar das pressões. No dia 11, começo da tarde, vocês reúnem a imprensa e anun-ciam uma coletiva minha no auditório do colégio das freiras. Eu chego à cidade disfarçado. Conheço os corredores do colégio como a palma da mão. Quando estiver tudo pronto, chego ao auditório. Dou uma rápida entrevista e de lá vamos todos para o cinema. Eu, cercado pela imprensa internacional, estarei seguro. E quando Amarildo abrir a sessão, pego o microfone e leio imediatamente o meu voto.

E complementou: Para evitar qualquer erro, vou aproveitar esses dias para pensar e justificar bem o meu voto. Ainda não decidi, juro. Escrevo e leio na hora, aí não tem atrapalho. Se me acontecer alguma coisa, o voto já fica nas mãos da imprensa. Daí para a frente nem eu sei o que fazer. Se for pela absolvição, não tem problema, fico por aqui. Se for con-tra, minha cabeça estará a prêmio. Até lá, traço meu plano B.

Todos avaliaram que quem corria risco real era Evaldo. O promotor simulado bateu muito mais duro em Deus do que alguém jamais tinha ouvido falar. E, se o voto de Deca fosse pela condenação, ele também certamente sofreria represálias.

Fiquem aqui mais um tempo, vou pular o muro pelo juazeiro, sei como sair sem ser visto mesmo que a casa esteja cercada. Quando a ambu-lância passar dando um toque de sirene, é sinal de que consegui. Me deem mais 15 minutos e saiam normalmente. Deixem uma luz acesa, não precisa trancar a porta, quando saírem, basta encostá-la.

Abraçou um por um, pegou um matulão que já estava pronto com man-timentos, saiu pela porta dos fundos e desapareceu. Uns 10 minutos de-pois a ambulância passou pela frente da casa e deu um breve toque de sirene. No tempo combinado, cada qual seguiu o seu destino.

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O mistério revelado

Depois que pulou o muro de casa por dentro dos galhos do juazeiro, trajetória onde não deixava espinhos crescerem exatamente para uti-lizar daquela forma, Cumpade Deca rastejou um pouco, esgueirou-se entre cocheiras e cercas do descampado onde criavam bode. A partir dali atravessou pelas sombras e entrou no terreno do hospital por uma passagem secreta que ele mesmo providenciara. Procurou o motorista da ambulância que ficava de plantão, seu amigo, e pediu que fizesse o procedimento do sinal combinado.

Em seguida, caminhou pelos matos sombrios até a saída antiga da ci-dade, onde se deixou ser visto pedindo bigú a alguns caminhoneiros. Naquele tempo Boi Pintado não conhecia a palavra carona.

Esses deslocamentos eram só tapeação, para confundir. Na primeira oportunidade, ganhou os matos de novo e caminhou para uma granja que ficava na área conhecida como Manduri, a poucas léguas da cida-de. No percurso, teve o cuidado de trocar de sapatos, andou sobre pe-dras e colocou alpercatas novas calçadas ao contrário, para parecer que o caminhante ia na direção inversa. Não seria fácil seguir o seu rastro.

A granja era de uma pessoa de relacionamento distante com o seu pai, um velho esquisito que não gostava de gente na sua propriedade, de modo que o lugar era pouco frequentado. Até os moleques que apro-veitavam a safra para roubar caju, umbu ou jabuticaba preferiam ou-tras paragens. Poucos dias antes o proprietário viajou para a Bahia e deixou a chave da casa com Deca para alguma eventualidade. Se resol-vesse que a mudança era definitiva, Deca venderia o lote e mandaria o dinheiro para ele.

Assim, Cumpade pôde se instalar com tranquilidade, embora tivesse que passar o dia trancado em casa e sem cozinhar, para a fumaça não chamar a atenção. Ele abria umas brechas nas janelas, de modo que o vento corria, a área era bem arborizada, o calor não incomodava.

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Aproveitou para dar um balanço na sua vida e relembrar algumas coisas que tinham acontecido e o desconcertavam. Recordava espe-cificamente o acidente a que nos referimos, quando uma das armas artesanais que fizera disparara pela culatra. Atingido pela pólvora, pelo chumbo e mais os resíduos de metal e madeira, escapou por pouco.

Lembrou os longos dias em que ficou no hospital e recebia os curativos através das mãos gentis da irmã Maria do Espírito Santo. A freira coloca-va um biombo e delicadamente tratava os ferimentos de Deca, inclusive nos testículos e no pênis. Era uma agonia. Cumpade, tão logo melhorou um pouquinho, não conseguia evitar a ereção. A irmã se comportava profissionalmente; fazia de conta que não estava vendo, até que um dia Deca puxou sua cabeça e deu um prolongado beijo na boca.

O namoro engatou. Apaixonado e irresistível. Os curativos passaram a ser feitos duas vezes por dia, mas o tempo disponível era curto, e o perigo de flagra, enorme.

Quando a alta foi anunciada, combinaram um encontro na mesma noite, no lugar mais seguro que conseguiram imaginar: o necrotério do hospital. Foi por isso que Cumpade preparou sua rota de fuga pelos fundos de casa e seu acesso secreto ao terreno do Santo Afonso.

O necrotério, por razões óbvias, era evitado por todos, naturalmente quando não estava ocupado. Era nessas noites que Deca e a irmã Ma-ria do Espírito Santo se encontravam ali. Cumpade providenciou um colchonete de plástico que deixava guardado na ambulância e dimi-nuía o desconforto de deitar na pedra fria que acolhia os mortos.

Isso, quando passaram a deitar. O progresso das intimidades foi lento. Levantar as saias mais leves e mais curtas do hábito de ficar em casa e apreciar as lindas coxas da freira à luz do luar pareceu levar uma eter-nidade. Uma bela noite conseguiu chegar ao local perseguido. Freira não usa calcinha, felizmente. Pelo menos, a irmã não estava usando naquela noite. Sussurrando as palavras suaves e envolventes que os

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apaixonados utilizam nessas ocasiões, conseguiu ajeitar o pênis na en-trada do aquilo-bom da freira.

Enquanto ela apelava para o tradicional para por aí, meu bem, não entra de jeito nenhum, Deca prometia o que todos asseguram: É só a cabecinha, meu amor.

Sabe-se que pênis não tem ombros, passou a cabeça, passa o resto. Mas não foi o que aconteceu naquela noite. Cumpade, com a cabecinha enfiada, ainda hesitava se prosseguia ou voltava atrás quando o tesão prevaleceu e decidiu por ele. Ejaculou toda a gala acumulada há mais de uma semana. Quando puxou a estrovenga, foi tarde.

O leitor que vem acompanhando o desenrolar da narrativa desde o início já juntou os pontos do novelo e sabe o resultado dessa aventura. Está mais bem informado sobre o andamento do caso do que Cumpa-de Deca naqueles dias de reflexão e lembranças.

Quando constatou a gravidez, a irmã suspendeu de vez os encontros. Deca queria que fugissem para casar. A freira preferia permanecer e enfrentar as consequências sem dizer nada a ninguém. Ele insistia: Va-mos embora, meu amor, a gente desaparece daqui, esse Brasil é grande, vamos viver como marido e mulher em algum lugar e criar nossos filhos, seremos felizes. Tudo inútil.

A freira também amava Deca, porém amava mais a Deus e queria estar sempre a seu serviço. Se erramos, Ele nos punirá; se acertamos em vi-ver nosso amor, Ele nos recompensará. Contava com o hímen inviolado como uma proteção. Ingênua ou meio louca, não deu para saber, disse que sonhou que o Espírito Santo tinha tomado a forma de Deca para concebê-la. Ficou difícil o diálogo. Além do mais, ela passou a viver dos plantões para a clausura, da clausura para a igrejinha do próprio hospital, circulando internamente pelos corredores, sob forte vigilân-cia. Só saía por poucos instantes para abençoar a multidão.

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A única forma de avistá-la, mesmo assim só de passagem, era assistir à missa no local. Passou a fazer isso diariamente Todos o conheciam como não religioso e devasso, a súbita conversão era atribuída a um agradecimento pelo milagre de ter sobrevivido ao acidente com a combleia desculatrada.

Era a saudade da irmã que fazia o apaixonado ficar macambúzio na-queles dias que antecederam ao julgamento. Fora levada para onde? As notícias chegavam confusas e o estrangeiro era inacessível para ele. Estava abalado. Mas só perdia a calma e ficava totalmente puto da vida quando ouvia, sem poder reagir nem esclarecer, o beato Elias dizer que o pai do garoto era o próprio Satanás. Engraçado, lembrou Deca no seu retiro, ninguém ainda cogitou em nenhum momento que pu-desse nascer uma menina.

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Voto secreto

O último jurado estava realmente embaralhado quanto ao conteúdo do seu voto. A irmã Maria era um dos fatores dessa confusão. Ela ficaria sabendo? O que pensaria? Se fosse seguir os ditames da sua vontade, votava pela condenação e pronto. Se usasse a razão, o voto era para ab-solver, o que, além disso, lhe causaria com certeza menos problemas.

Porém sua escolha como jurado por unanimidade e sem entrar na lis-ta do sorteio decorria da irrestrita confiança que todos depositavam nele. Confiavam na sua capacidade de ser justo, separar como nin-guém o joio do trigo. Nem era para dar sua opinião pessoal e muito menos para agradar sua namorada secreta, a freira aprisionada em algum convento remoto em outro continente. A rigor, repensou, ela não queria que ele votasse por Deus ou contra Deus. Se estivesse ao seu lado opinaria para que decidisse de acordo com a sua consciência. Esse voto independente, sem querer agradar a A ou a B, a faria ficar orgulhosa dele.

Durante a noite saía para olhar as estrelas, ouvir os grilos e sapos, sen-tir a brisa fria beijar seu rosto. Assim passou os dias, alheio a tudo que estava acontecendo no mundo. Nem queria saber de nada, repercus-sões, expectativas, mobilizações, nenhum assunto lhe dizia respeito naqueles dias. O desinteresse era tanto que sequer verificou se a bate-ria do rádio da casa estava em ordem. Não ligou o aparelho.

A suspensão do julgamento funcionou para ele como uma interrupção do tempo. Retomaria a normalidade só depois de dar o seu voto. Até lá o mundo permaneceria parado, qualquer novidade podia contaminar o que observara no júri. Era isso que embasaria a sua decisão. Tinha uma linha de raciocínio esboçada, sentia que era muito boa, mas ainda não conseguira expressar com clareza.

Assim passou parte da noite da véspera do ato final escrevendo e reescrevendo o seu voto. Sabia que iria falar para o mundo todo. Seu

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parecer seria analisado por juristas, teólogos, governantes, jornalistas os mais credenciados do mundo. Não podia fazer feio, decepcionar sua cidade, seus amigos e parentes. A mãe, onde quer que estivesse, aproveitaria a oportunidade para, pela primeira vez, ficar orgulhosa dele - sempre fora um filho relapso e problemático para os pais.

Quando o documento ficou pronto, leu, releu, passou a limpo em letra de forma. Seu perfil intelectual estava longe de ser analfabeto. Em matéria de literatura, sabia mais ou menos onde tinha as ventas. Gostou do resultado. Surpreenderia pela argumentação; interpretava com pertinência pontos que certamente passaram desapercebidos nos raciocínios da acusação e da defesa. Podiam até não gostar porque torciam contra. Mas ninguém teria coragem de dizer que seu voto de-finidor não fora justíssimo. Botaria o peso que faltava no prato certo da balança.

Destruiu cuidadosamente todos os rascunhos. Rasgou em mil pedaci-nhos e depois saiu caminhando devagar, soltando aos pouquinhos ao vento, como invisíveis confetes na noite.

Recolheu-se e dormiu. De manhã tomou banho, colocou roupas de caminhante, pegou um chapéu de palha de abas largas para esconder o seu rosto. Naquele dia acendeu o fogo e tomou um café quentinho que bem sabia preparar.

Seu percurso estava definido. Concebeu um roteiro digno de filmes de espionagem. Enquanto todas as atenções da imprensa e a vigilância dos prováveis inimigos estivessem voltadas para o local onde deveria ser a coletiva, ele entraria disfarçado na casa da família do dono do cinema. Trocaria de roupa lá mesmo. Mandaria um recado para Tová-rish mudando o local da entrevista para o próprio cinema e, quando os jornalistas estivessem entrando pela frente, ele já estaria na coxia, debaixo do palco.

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Sairia de lá surpreendendo a todos, ficaria no meio dos jornalistas até chegar sua hora de falar. Não anteciparia seu voto a ninguém. Voto é secreto, só revelaria na hora da apuração.

Assim, deixou tudo organizado, abriu a porta, saiu para o terreiro. Como é agradável o sol da manhã. Se espreguiçou lentamente e, quan-do se preparava para fechar a porta e partir, percebeu um movimento numa touceira de capim nas proximidades. Seria um animal? Enquan-to apurava a vista, ouviu o pipoco do rifle papo-amarelo e sentiu o im-pacto no ombro. Caiu, o papel com o voto que estava na sua mão saiu voando. Não foi longe, enganchou num arbusto no final do terreiro.

Com os olhos embaçados, notou duas pessoas caminhando em sua direção. Quando chegaram mais perto, percebeu que ambas usavam vestes eclesiásticas. Um era o beato Elias, com seu inconfundível cami-solão de profeta. O outro era um jesuíta, de batina negra, que chegara entre os muitos estranhos que vieram acompanhar o julgamento. Esse, Deca conseguiu logo identificar, porque, além do monsenhor Afonso, ninguém mais usava batina preta por ali. Na semana anterior avistou o sujeito entrando na casa paroquial. Perguntou quem era. Responde-ram. Ele gravou a fisionomia.

Elias atirou para abater, não para matar. O padre apanhou o papel, leu vagarosamente o voto. Chegou perto de Deca, levantou sua cabeça com o pé e falou com discreto sotaque estrangeiro: Pois muito bem, o senhor tem vocação para teólogo. Percebeu sutilezas no julgamento que, para a maioria, foram inacessíveis. Considerando a sua ignorância geral e específica no assunto trata-se de um milagre comparável à conversão de Saulo de Tarso. É uma pena que esse voto não vá ser divulgado, en-traria para a história da Igreja.

Se isso lhe traz alguma paz nos seus últimos momentos, ser contra ou a favor, não faria diferença. A Santa Madre Igreja se alimenta de misté-rios, não da ciência ou da lógica. Esse julgamento que os senhores inven-taram para tentar nos atingir fortaleceu como nunca a nossa sagrada

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instituição. Não quero fazer troça com o seu acidente, porém foi mais um tiro pela culatra a lhe atingir.

Nesse tempo de Guerra Fria, o mundo só queria saber de Marx. Todos ou eram contra ou a favor. Praticamente não havia espaço para o cresci-mento de outro tipo de fé.

Com a iniciativa dos senhores, o nosso Deus, que andava meio esque-cido, voltou a ocupar o centro das atenções no mundo inteiro. Dividiu opiniões, fortaleceu a corrente dos que creem. Time que não joga não tem torcida, não é assim que os senhores dizem? Pois bem, o Senhor Deus Todo Poderoso entrou no jogo novamente. E vai ganhar.

Nosso inimigo no século XX não é o Demônio, como foi ao longo de milênios. É Marx com o seu séquito de apóstolos cegos pela ideologia pagã. Hoje, começamos a reverter o quadro, vamos vencer essa guerra, pode anotar.

Riu com o que ele mesmo dissera. Claro que o senhor não pode ano-tar, foi só uma expressão. Mas vai poder conferir no inferno quando os grandes e arrogantes impérios vermelhos desmoronarem. Posso garan-tir: diferente das previsões do Apocalipse de São João, isso vai acontecer ainda nessa geração.

Portanto esse seu voto não poderia ser dado de jeito nenhum. Nem para condenar, nem para absolver.

Devo lhe dizer uma coisa, se isso lhe serve de consolo: o senhor estava marcado para morrer, se não hoje, outro dia próximo. Por outro motivo.

Fez uma pausa e voltou à conversa. O senhor pensou que poderia ser o novo São José do século XX e isso ia ficar barato? Sua amante, ar-rependida, fez uma confissão completa e minuciosa. Sabemos todos os detalhes, mesmo os mais íntimos e sórdidos. A vida é assim. Uns choram porque não têm, outros porque não lhe dão, outros porque querem mais.

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Cumpade Deca, não é como lhe chamam? Com tanta mulher no mundo, o senhor tinha que se meter logo com a irmã Maria do Espírito Santo?

Mas já que se envolveu com ela, o senhor podia ter se contentado em manter relações simuladas ou mesmo anais. E porque não consumar a penetração? Não haveria problemas maiores. Quando fossem descober-tos, nada de grave lhes aconteceria. Seria apenas mais uma freira que quebrou os votos de castidade com um cabra safado qualquer. Seria ex-pulsa da ordem e pronto.

O grave, o imperdoável, senhor Cumpade Deca, foi a tentativa de forjar uma nova concepção mariana.

O seu maior pecado foi, através do silêncio cúmplice, contribuir na ten-tativa de ridicularizar um dos mistérios mais importantes da Santa Ma-dre Igreja.

Olhou mais uma vez para o manuscrito que tinha nas mãos. Belo voto. Quer se confessar? Não? De qualquer modo, vou perdoar seus pecados, pode morrer em paz.

Aplicou solenemente a bênção e fez sinal com a cabeça autorizan-do o atirador a liquidar a fatura. Elias, como Tiro Certo sempre fa-zia, acertou a bala no meio dos olhos. O jesuíta caiu para trás, morto instantaneamente.

O beato tirou o papel da sua mão, olhou para ele, seu analfabetismo crônico fazia qualquer escrita ser igual. Acendeu um fósforo, queimou o voto. Cuspiu de lado, falou alto para Deca ouvir. Esse aí se dizia sol-dado de Deus, mas nem atirar sabia. Que soldado mais mucufa é esse. É danado a gente ter matado esse padre, Cumpade. Mas eu sabia que isso ia acontecer.

O beato conhecia Deca de outras jornadas. A rigor, devia um impor-tante favor a ele. Iria pagar? Afinal, favor se concede pelo prazer de fazer; o que se oferece visando a retorno é investimento. Quando o

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cabra tem consciência, paga o favor, se tiver oportunidade. Como o sargento Firmino, quitou a Mané Tiro Certo o bem que este lhe fez ao salvar-lhe a vida, episódio ocorrido numa parada antiga.

Quando o pistoleiro foi baleado na porta da delegacia e dado como morto, o sargento arriscou tudo para retribuir o enorme favor que re-cebera. Simulou a morte, acobertou a convalescença, fez um enterro falso com pedras de cal dentro do caixão. Combinou que Tiro Certo partiria para longe. Mas o safado, já com a cabeça perturbada, inven-tou de voltar para ver o que tinha dentro do seu túmulo. Abriu o ataú-de, espalhou as pedras, acendeu velas, pulou o muro do cemitério. E foi desse jeito que aconteceu a ressureição.

A sorte do sargento é que o coronel não mandava mais na polícia. Aca-bou punido com mera transferência para uma cidade do Sertão.

O favor de Cumpade Deca ao beato está ligado ao episódio da carrua-gem de fogo. Por mais fantasiosa que seja uma versão, quase sempre tem um fundo de verdade, embora interpretado equivocadamente. O que aconteceu foi que um grupo de fora passeava num balão partindo de Vicência, onde até hoje se pratica este tipo de esporte, os ares são favoráveis.

Só que a turma era novata, perdeu-se e terminou por aterrissar violen-tamente no leito seco de um riacho, entre Bom Jardim e Boi Pintado. Deixaram lá o balão amarrado e foram em busca de ajuda, dando prio-ridade aos curativos dos ferimentos que sofreram. Deca soube do caso e foi atrás de tentar resgatar o balão para ver se ganhava algum trocado.

Localizou o artefato, conseguiu ligar o maçarico e estava tentando transportar para um local mais perto da estrada. Durante a operação, Tiro Certo apareceu. Deixa eu andar nisso, Cumpade. Deca perdia dinheiro, mas não deixava passar a chance de uma presepada. Aco-modou o pistoleiro na caçamba, aumentou fogo e lá se foi Tiro Certo

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pelos ares. Era tardezinha, saiu voando ao sabor do vento. Ao anoite-cer, o balão pegou fogo e caiu no meio da rua de Oratório.

O favor foi ficar de bico calado, deixando prosperar a lenda do beato que desceu do céu numa carruagem de fogo. No íntimo, morria de rir. Esperava uma oportunidade para contar quando o beato começou a esculhambar a gravidez da freira. Aí engavetou o segredo para narrar mais adiante, quando o caso estivesse esquecido.

Naquela hora, Tiro Certo ou Elias, tanto faz, nem lembrava de nada disso. Só queria cumprir sua missão com a precisão de sempre. Con-tinuava falando sozinho: A gente recebeu ordens direto das autoridades da Igreja, a verdadeira, a que fala com Deus e o Espírito Santo.

Resmungava: As ordens eram pra nós lhe caçar, tomar esse papel e não deixar ninguém ler. Quem lesse morria também, feito você. Bem se diz que a curiosidade matou o gato. O padre leu, morreu. Deu um muxoxo. Soldado de Cristo uma porra. Soldado de Cristo sou eu.

Deca então percebeu que, enquanto falava, o pistoleiro arrumava dois grandes caçuás de um formato bem diferente no lombo de um burro. Com habilidade, usando sua força descomunal, quebrou o corpo do padre ao meio e meteu dentro de uma espécie de pote de barro. Com certa dificuldade, colocou o pote no caçuá, a cangalha pendeu para a direita. Era assim que ele carregava suas vítimas até o ponto de desova, para usar uma linguagem de hoje.

Olhou para o animal, fez o comentário óbvio: Ficou penso, concorda? Vamos equilibrar essa carga. Deu meia-volta, olhou para Deca, comen-tou debochado: O senhor não queria julgar Deus? Pois dê lembrança a ele. Ato continuo, disparou também no meio dos olhos de Cumpade Deca. Repetiu o procedimento com o corpo, acomodou a carga no lombo forte do burro.

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Tirou um galão de gasolina do lombo de outro burro, espalhou pela casa, não sem antes vistoriar tudo. Fez uma pilha com todo papel que encontrou, tocou fogo. E saiu na direção da Cova do Urubu, um bu-raco de profundidade ignorada, encravado na rocha, onde Tiro Certo e os demais pistoleiros da região costumavam jogar as suas vítimas. Naquele dia o beato pistoleiro não queria urubus sobrevoando por ali para não chamar a atenção. A ordem era o último jurado sumir sem deixar rastros. Com isso o seu voto viraria um mistério eterno.

Para a Igreja, o caso estava resolvido, o empate era o resultado ideal. Assim, ficaria bem para todos.

O objetivo do beato era não possibilitar a identidade de ninguém mes-mo que alguém descesse ao fundo do poço para revolver os cadáveres que existiam lá. Eram muitos. Só ele já arremessara quase trinta, sem contar aqueles dois.

Quando chegou no pé da Cova, pegou cada um dos potes, acabou de encher com querosene, reforçou com algodão, tocou fogo e jogou os dois no poço de uma vez. O resultado foi quase uma bomba atômica. Subiu uma coluna de fogo assemelhada a um gigantesco vulcão ju-nino. Elias foi atirado à distância, ficou um tempo apagado. Quando acordou, tinha virado Mané Tiro Certo de novo.

Despiu suas roupas de beato e também as jogou na cova, onde ainda crepitavam algumas labaredas.

Nasci pra isso não. Deus quer que eu volte a ser pistoleiro, ele mesmo me encomendou essas mortes.

Era uma volta às raízes, uma retomada de crenças ambíguas, que o fi-zeram trafegar do crime ao ascetismo e retornar sem tropeços. Afinal, todo pistoleiro que se preza acredita que é parceiro do Criador: Eu só puxo o gatilho, quem mata é Deus, costumam afirmar, jogando a culpa para o alto.

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[ 16 ] O voto decisivo

O destino de cada um

Muita gente acredita que cada pessoa nasce com o destino traçado por Deus. Certos ateus dizem que as coisas acontecem como têm que acontecer. Os marxistas falam que os homens fazem sua própria his-tória, mas não do jeito que querem, e sim da maneira que conseguem.

Só existe uma verdade inquestionável: todos vamos morrer, mais dia, menos dia. Desse socialismo, ninguém escapa.

Naquela tarde, instalada a sessão sem a presença do principal persona-gem, o mundo inteiro perguntava o que fora feito de Cumpade Deca. Ele não era de farrapar, muito menos a um compromisso como aquele. Coisa grave acontecera, com toda a certeza. O governador mobilizou as polícias Civil e política para procurar qualquer pista. O ditador bo-tou a Polícia Federal imediatamente no caso. Interrogados separada-mente, os Tetéus contaram a mesmíssima versão. Nem uma acareação era necessária. Dispensava-se o uso da violência. Estava claro que to-dos falavam a verdade.

Esgotado o prazo regulamentar, Továrish Lói, representando os Te-téus, reuniu-se com o juiz simulado, o representante do governador, o juiz de Direito e o promotor. Chegaram ao consenso, quem tem um-bigo tem medo. Lavraram a ata oficial do julgamento simulado: Resul-tado inconclusivo.

Em poucos dias, a imprensa retornou aos seus pagos, a exemplo dos demais visitantes. O assunto foi gradativamente sumindo do noticiá-rio. Percebendo que não ficaria seguro no Brasil, o promotor simulado seguiu para o exílio voluntário acompanhado por dezenas de jornalis-tas. Ganhou mais alguns anos de vida.

Um major interventor foi nomeado para Boi Pintado, a existência vol-tou ao normal. Melhor dizendo, à medida que o assunto esmaecia, a ditadura retomava seu curso com tintas cada vez mais fortes.

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Para alguns participantes do Julgamento do Século, como a imprensa europeia batizou o evento, a morte chegou mais cedo. Pensando bem, para os principais.

Espalhou-se até a ideia da maldição do julgamento de Deus. O povo não pode ver meia dúzia de mortes relacionadas que não invente uma lenda.

Cumpade Deca, foi o primeiro. O segredo do desaparecimento não durou nem quinze dias. Tiro Certo, de volta à condição de pistoleiro, não aprumou mais o juízo. Atormentado, tomou certa noite uma cana monumental, como fazia antigamente. Desacostumado do batente, logo ficou embriagado. Contou toda a história ao bar inteiro, confes-sou o assassinato de Deca, a cumplicidade da Igreja, um salseiro. No final, deu um tiro na cabeça e morreu de vez. Oficialmente, ficou na conta de delírios de um louco suicida. Mas todos sabiam que o Cum-pade partira desta para a pior.

O juiz simulado faleceu em um acidente automobilístico muito mal explicado. Ele era precavido com a manutenção do seu carro de esti-mação e sempre dirigia com cuidado. Chamou a atenção o estado dos pneus após o desastre, todos esburacados, e o pior: qualquer borra-cheiro ou mecânico atestaria que foram trocados após o acidente. A conta, dessa vez, foi para os ladrões de estrada.

Dos três jurados que votaram contra Deus, nenhum teve vida longa. Marinada e Alarico também faleceram em estranhos acidentes de trânsito. Joselito Travassos foi visto pela última vez caminhando em di-reção a uma praia deserta, usando apenas calção de banho. Se chegou a mergulhar, ninguém sabe, ninguém viu. Desapareceu para sempre.

O brilhante promotor, concluiu o curso de Direito no exterior e vol-tou para exercer a profissão em Boi Pintado. A rigor, nada pesava con-tra ele. Apesar disso, não obteve sequer o benefício do disfarce. Ar-mado com um Código Civil e conduzindo pela mão uma criança, foi

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[ 16 ] O voto decisivo

assassinado a tiros por pistoleiros na mais perfeita luz de um dia de verão em Boi Pintado. E mais: em pleno sábado, no meio da feira.

Tratou-se de uma vingança impiedosa, cruenta e sobretudo covar-de. Os verdadeiros mandantes, naturalmente, nunca foram punidos, embora todo mundo desconfiasse de quem eram. Mais uma demons-tração de que as instituições democráticas às vezes também deixam a desejar.

O professor Natércio Pai dos Burros morreu de precoce e inesperada morte morrida. O mesmo aconteceu com Továrish Lói e, por incrível coincidência, com Jota França. O comum entre os três casos é que, por mais que examinassem, os legistas não detectaram nada de anormal. Sequer as doenças de que porventura padecessem foram identificadas.

O Palhaço Bunda Mole, que representou Deus, sempre fazia bicos nos circos que passavam por ali. Tinha um número gaiato no trapézio, an-dava meio enferrujado. Logo no primeiro treino, alguém desarmou a rede de proteção e ele se esbandalhou. Morreu na hora.

Pensando bem, é muita gente morta. Dos que subiram ao palco ou estiveram à frente do julgamento só sobrou a assistente da promotoria. Esta escapou de duas ou três armadilhas do destino logo depois do julgamento. Batida de carro, tentativa de atropelamento, até queda de elevador. Acho que desistiram. Desenvolveu sua vocação para o Direi-to, é advogada brilhante, defensora dos direitos humanos, bem casada, avó e continua bonita.

Os três jurados que votaram pela absolvição continuam todos vivos. Ninguém parece gostar do assunto. Dizem que não lembram bem, há quem ponha em dúvida a própria realização do julgamento.

No Brasil os registros da imprensa ou qualquer outro documento relativo ao evento sumiram durante os anos de chumbo. Restam os registros da imprensa internacional, além do testemunho de muita

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gente ainda viva. Alguns lembram detalhes ou sabem até mais do que foi narrado aqui.

Waldemir Rabo de Arraia é um desses. Fez parte da lista de jurados, mas não foi sequer sorteado. Por via das dúvidas, quando todo mundo começou a morrer, arrumou as malas e mudou-se para o Rio de Janei-ro, onde se deu bem, constituiu família e mora até hoje no subúrbio.

Recentemente, reuniu amigos para cerveja e churrasco. Estava pre-sente outra figura boipintadense, Fernando Arroz Doce, que também arribou mais ou menos nessa época. Começaram a recordar tempos antigos, a conversa escorreu para o julgamento, os dois relembraram várias circunstâncias.

A neta de Waldemir, Deyse, uma adolescente adepta dos rolezinhos nos shoppings da zona sul, estava por ali e achou a história muito massa, embora tenha perdido alguns detalhes. Curiosa como as jo-vens costumam ser, aproveitou a ocasião e perguntou a essa impor-tante testemunha ocular: Afinal, vovô, o réu desse júri foi condenado ou absolvido?

Waldemir refletiu, coçou a cabeça e pronunciou a enigmática e defini-tiva sentença: Só Deus sabe, minha filha. Só Deus.

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