O jogo como metáfora da Criação

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    A hiptese deste estudo consiste em considerar a categoria dejogo como

    elemento epistemolgico e hermenutico para pensar teologicamente a criao.No me afao a uma problemtica indita, nem sequer a um questionamentooriginal. Inspiro-me basicamente no pensamento do telogo belga, AdolpheGesch, de quem tive o privilgio de ser discpula, desde 1992 at 1999. Sendouma questo recorrente entre ns, nos dilogos informais de orientao da tesede doutoramento e no quadro dos Seminrios Teolgicos, Gesch retoma-a,em 1994, agora de forma sistemtica, no IV tomo da coleco teolgica Deuspara pensar, intitulado O Cosmos1. Gesch pensa que a noo de jogo, associada ideia de criao, pode constituir uma mais valia operatria e fecunda para opensamento contemporneo ao permitir, precisamente, a articulao deste comelementos da tradio teolgica.

    esta perspectiva que, de forma nuclear e referencial, preside a este estudo,mesmo se uma outra referncia aparece incontornvel. Trata-se da obra do je-suta francs, Franois Euv. Fsico de formao, doutorado em Teologia e pro-

    1 Cerf, Paris, 1994.

    Nem acaso, nem necessidade.

    O jogo como metfora da Criao

    Isabel Varanda

    Faculdade de Teologia ( UCP), Braga

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    2 Cerf, Paris, 2000.3 Franois EUV, Penser la Cration comme jeu, op. cit., 50-51.4 Utilizaremos o ortgrafo Criao para falar do agir original e originante de Deus Criador, pelo qual ns somos,

    e o ortgrafo criao para falar da criao que somos.5 Cf. Ibidem, 144-145.

    fessor no Centro Svres de Paris, Franois Euv retoma o pensamento de

    Adolphe Gesch, ao qual se refere directamente e repetidas vezes, resultando apublicao de um livro, no ano 2000, intitulado Penser la cration comme jeu2.

    Assumir o jogo como categoria para pensar a criao tem implicaes nacompreenso do cosmos e de todas as criaturas, particularmente da criatura hu-mana o que procuraremos mostrar mas tambm tem implicaes na repre-sentao de Deus; aqui reside talvez o ncleo mais irredutvel da epistemologia,que no passa despercebido a Franois Euv. Para ele, a articulao da categoriade jogo com a ideia teolgica de criao tem implicaes na imagem de Deus:a aco criadora j no se concebe somente sob o signo de uma potncia dedominao e de senhorio, tendncia da teologia clssica. O Criador aceita entrar

    e comprometer-se no jogo da sua criao. Enquanto nos detivermos numa acep-o estrita de uma criao realizada no comeo do tempo, aco concluda deum agente exterior sua produo, obra prima de um soberano trabalhador,prevalece a omnipotncia. Mas se se recusa racionar a economia da salvao, se-parar criao e redeno, a imagem de Deus Criador no pode distinguir-se es-sencialmente da imagem de um Deus que entra por Jesus Cristo na histria domundo. A criao um acto de salvao na medida em que Deus aceita entre-gar-se liberdade de um outro. Neste sentido, o jogo da criao uma knosede Deus: a de aceitar no ser o nico mestre, o nico todo-poderoso3.

    Falar da criao como jogo de Deus no faz da criao um jogo-joguete,nem de Deus um jogador, afirmaes que encontrariam paralelos directos emcertas mitologias cosmognicas, nas quais o ciclo das criaes e destruies,dos nascimentos e das mortes representado como jogo. Ao contrrio, emperspectiva teolgica, pensar a criao como jogo faz aparecer, em toda a suasingularidade, o universo de liberdade da Criao4, das criaturas e do Criador,para l de toda e qualquer finalidade, causa ou arbtrio; o universo da gratui-dade, do dom, da graa, para l da necessidade e do constrangimento. Pensar acriao como jogo coloca-nos no corao de um dinamismo de transcendnciaque nos atravessa, nos constri e nos significa uma Alteridade que, no seu Algu-

    res Absoluto, paradoxalmente nos constitui.5 O jogo, como o amor, o conhe-

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    cimento, ou a aco, pertence nossa definio mais constitutiva. um exis-

    tencial do ser humano6, lembra Gesch.Falta, no entanto, perceber o que o jogo diz de verdade sobre a criatura hu-

    mana e perceber tambm o poder deste existencial de dizer algo de Deus e doque est em jogo na criao. Vamos tentar perceber em que sentido (prprio oufigurado) se pode falar dejogo da criao, dejogo de Deusou de um Deus joga-dore das virtualidades do conceito de jogo na hermenutica da criao comoacontecimento teolgico. Adolphe Gesch pensa na utilidade de uma fenome-nologia do jogo7. Ora, a fenomenologia necessita e supe uma hermenutica8

    da aparncia9 e consequentemente da profundidade que ela manifesta e devefazer aparecer.

    1. O jogo como fenmeno ou a aparncia de uma profundidade

    difcil propor uma definio de jogo, diante dos mltiplos significados edimenses que o conceito evoca e significa10. A tarefa fica razoavelmente sim-plificada devido ao carcter universal do jogo: actividade compreensvel, aces-

    6 Ibidem, 147.7 Cf. Ibidem, nota de rodap 35, 147.

    8 No que respeita fenomenologia e hermenutica do jogo, inspiramo-nos nos seguintes autores: Johan HUI-ZINGA, Homo ludens. Essai sur la fonction social du jeu, Gallimard, Paris, 1951 (1 edio 1938); Eugen F INK, Le jeu commesymbole du monde, Les ditons de Minuit, Paris, 1966 (ed. al. 1960); Jean-Jacques WUNENBURGER, La fte, le jeu et le sa-cr, ditions Universitaires, Paris, 1977; Alain DUNAND, Lespace du jeu, Cerf, Paris, 1978; Zeno BIANU et. Al., Lesprit desjeux, Seghers, Paris, 1980 ; Alain COTTA, La socit ludique. La vie envahie par le jeu, ditions Grasset et Fasquelle, Pa-ris, 1980; Jean DUVIGNAUD, Le jeu du jeu, ditions Balland, Paris, 1980; Helne TUZET, Le Cosmos et limagination, Li-brairie Jos Corti, Paris, 1965; Michel COSTER-Franois PICHAULT, Le loisir en 4 dimensions, op. cit., C. VII, Le jeu,141-169 ; Adolphe GESCH, Dieu pour penser. IV. Le Cosmos, op. cit., 144-149.

    9 Veremos mais frente que o jogo traz, com efeito, uma nova aparncia realidade. No a substitui, no aoculta, antes a vitaliza e plenifica.

    10 Para os socilogos Coster e Pichault, o jogo designa tanto a actividade ldica propriamente dita, quanto os instru-mentos simblicos necessrios ao seu funcionamento e mesmo toda a srie mais ou menos completa de objectos idnticos ouparecidos. O jogo qualifica o estilo de um intrprete, msico, actor de teatro, de cinema esta palavra sugere tambm a ideiade liberdade medida, quando se trata de facilitar o movimento de um mecanismo ou de uma engrenagemum sistema deregras e de convenes a respeitar, Michel COSTER-Franois PICHAULT, Le loisir en quatre dimensions. De la critique des tho-

    ries la formulation dune sociologie, ditions Labor, Bruxelles, 1985, 141. Vale a pena procurar em diferentes dicionrios e en-ciclopdias as definies do verbetejogo e teoria do jogo. No Dicionrio Enciclopdico Temas e Debates(Printer Portuguesa,1998) encontra-se uma diversidade de jogos: jogo da pela, jogo de azar, jogo do pau, jogos Nemeus, jogos Olmpicos, jogoPan-Americano; No Dicionrio de Lngua Portuguesa Contempornea(da Academia das Cincias de Lisboa) encontram-seainda outras modalidades que no esgotam, todavia, as inmeras variaes do jogo: jogo da macaca, jogo da verdade, jogo dastbuas, jogo do fanico, jogo de mos, jogo de paus, jogo de sala, jogo de vocbulos, jogo de damas, jogo verbal, jogo de mesa,jogo de vaza, jogo de vdeo, jogos florais, jogos seculares, jogo de parada, jogo do bicho, jogos de luz, jogos polticos, jogo debastidores, jogo do empurra, jogo duplo, jogo limpo, jogo poltico, abrir o jogo, alinhar no jogo, aparar o jogo, mostrar o jogo,ter o jogo na manga, e um sem nmero de outros tipos de jogo e de semnticas derivadas.

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    11A noo de jogo, mais do que outra qualquer, presta-se a extenses metafricas que fazem falar do jogo a pro-psito de numerosas actividades humanas analogicamente o jogo pode invadir toda a realidade, Franois EUV, op.cit., 252.

    12Adolphe GESCH, Dieu pour penser. IV. Le Cosmos, Cerf, Paris, 1994, 144.13Johan HUIZINGA, Homo ludens, op. cit., 129.14 Ibidem, 281.15 O ser humano prova a sua posio de domnio relativamente a todas as coisas no humanas, porque ele as olha,

    as conhece e as reconhece, Eugen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 154.

    svel e familiar a todos os seres humanos, independentemente da forma sob a

    qual o experimentam11.No falaremos, de forma explcita, do jogo de competio institucionali-

    zado nas nossas sociedades, onde, na maioria dos casos, o econmico joga afuno maior e volta do qual se instala uma organizao complexa, dando lu-gar a operaes financeiras considerveis. Tambm no falaremos dos mltiplos

    jogos de sociedade e do esprito de competio que lhes est associado. Noanalisaremos o jogo (game) na sua dimenso de eficcia e de rentabilidade. In-teressa-nos a funo simblica do jogo, do jogo livre (play): o que ele diz de ver-dade sobre o ser humano e o que ele pode eventualmente trazer como novacategoria (vinda, no entanto, das mais longnquas e antigas eras) para pensar a

    criao. No estamos habituados a esta categoria, diz Adolphe Gesch, no en-tanto, ela est bem presente na nossa mais antiga tradio crist, pois os Padresda Igreja no hesitaram em a integrar, mesmo a invent-la como jogo de Deusna sua teologia da Criao12.

    Aparncia de uma profundidade, profundidade de uma aparncia, o desa-fio do jogo define-se entre estas duas grandezas.

    O historiador holands Johan Huizinga (1872-1945), ao estudar a funosocial do jogo, procura estabelecer a relao deste com a cultura. Para ele, acultura no nasce com o jogo, nem do jogo, mas no jogo13. O jogo aparece

    como anterioridade e categoria primeira da cultura. A cultura jogo; ela jo-gada e desenrola-se no jogo e como jogo14. Tambm verdade, todavia, queo jogo no seja exclusivo, nem mesmo especfico, dos humanos. Os animaistambm jogam. No obstante, somente a criatura humana capaz de reconhe-cer o jogo15 e capaz de pr em evidncia a sua riqueza fenomenal.

    Na epistemologia do jogo como dado antropolgico, um primeiro passoparece impor-se. O de definir a distino tarefa a que se dedica o filsofo ale-mo Eugen Fink entre o jogo que os humanos realizam e as condutas dosanimais, similares s dos seres humanos, mas somente do ponto de vista biol-

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    gico16. O animal joga e o ser humano joga, mas o animal no joga como o ser hu-

    mano. No mundo, o ser humano no se contenta com existir sem se colocar ques-tes sobre si mesmo, sobre o mundo que o rodeia e onde habita e sobre o sentidoda sua vida. Aqui reside a diferena fundamental em relao ao jogo do animal.

    No momento em que o ser humano se coloca a primeira questo, a co-mea o jogo17. No simplesmente o que aparece que o intriga. Ele suspeitaum mais alm das aparncias. Tem a intuio de uma profundidade, rebelde tentativa de apreenso; uma espessura escondida, uma aparncia, para almdo aparecer. O jogo parece oferecer a possibilidade de tecer um lao com aprofundidade escondida das coisas, ao mesmo tempo que revela o nosso lugarsingular no mundo e o papel da nossa criatividade no universo. No ser for-

    ado dizer que o jogo nasce do esforo humano de se medir transparncia e aoenigma do mundo, de o compreender e de o integrar. por esta razo que Eu-gen Fink diz: para compreender ojogo, precisamos de compreender o mundo,e para compreender o mundo como jogo, precisamos de aceder a uma intuiomais profunda do mundo18.

    No seu acontecer, o jogo rasga frestas que tornam possvel a transgresso doquotidiano mundano e a sua abertura a outros cenrios de existncia que no ofalsificam, no o disfaram, antes acrescentam sentido, simbolizando, ao mesmotempo, o mundo de possibilidades que ele comporta. O jogo denuncia as profe-

    cias de uma imanncia hermtica como condio definitiva da humanidade19

    .Seja relegado ao estatuto de fenmeno marginal ou considerado expresso exce-lente do poder de distanciamento (Paul Ricur), que o ser humano podeexercer no seio das suas pertenas, importante reconhecer na vida humana co-lectiva esta regio ldica que invade primeiro a existncia, depois o sonho, a con-vivialidade, a festa e as inumerveis especulaes do imaginrio20.

    16 Ibidem, 32.17 No jogo milenar que confronta o homem aos segredos do cosmos, o impulso interrogativo constituiu sem d-

    vida a primeira modulao da inteligncia. Nos primeiros alvores da sua conscincia, o sujeito humano procura fazer face

    ao desafio que o universo lhe coloca de se pr prova numa resposta criadora, Zeno BIANU et Al., Lesprit des jeux, op.cit., 213.

    18 Eugen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 63.19 No se trata de opor dimenses da existncia, mundo factual e mundo imaginrio, mas de estabelecer e man-

    ter pontes com livre circulao e real acesso a outras dimenses da realidade.20Jean DUVIGNAUD, Le jeu du jeu, op. cit., 26. Razo ldica que se oporia razo tcnica, calculadora Pen-

    sar o mundo segundo a categoria de jogo restituir-lhe gratuidade, o perptuo jorrar da sua origem, a sua dimenso decriao, que um olhar demasiado preocupado com a eficcia est sempre disposto a negligenciar, Franois EUV,op. cit., 254.

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    21 Engen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 224.

    22A funo do jogo, como da festa, aliviar as pessoas da excessiva gravidade da histria, introduzindo-lhe umelemento de fico que a alivia na festa que uma espcie de jogo, manifesta-se a dimenso esttica da existncia,Franois EUV, op. cit., 137.

    23 Franois EUV, op. cit., 50.24 Ibidem, 49.25 C. DUFLO,Jouer et philosopher, Paris, PUF, 1997, 57. Ideia partilhada por Franois Euv: Se a atitude ldica

    critica a absolutizao da lei, ela no nega a sua necessidade. No h jogo sem regras do mesmo modo, no cosmos hversatilidade e plasticidade porque ele firme, possui uma consistncia prpria O sistema de regras sustm o jogo noseu desenrolar. Sem elas o jogo cessaria, Franois, EUV, op. cit., 246-247.

    Todo o ser humano capaz de jogar. A abertura do homem ao mundo no

    somente lingustica, nem somente individual o jogo humano um modo dis-tinto e singular de uma relao social com o mundo21. Nesta singularidade de in-teraco com o mundo, o jogo aparece como provocao ao fluxo da existnciaquotidiana22. Ele descerra os lugares fechados do nosso imaginrio domesticadopela regularidade que cimenta a lgica social. Ele reinveste o trivial atravs do ima-ginrio e lana, assim, um desafio estagnao do mundo ao fecund-lo com no-vas criatividades. Ele acontece como ruptura e transgresso. Vale a pena, noentanto, lembrar que se no jogo se entra, normalmente por gosto, em alegria e des-contraco, para libertao das regularidades montonas e esquecimento das pre-ocupaes da vida quotidiana, o jogo no desprovido de constrangimentos:

    possui um sistema de regras e comporta aleatrios, imprevisibilidade e risco23.De imediato, a noo de jogo investida de uma singular polaridade semntica,abarcando, como prprio do jogo como aquilo que faz com que o jogo seja jogoe no um mero acaso ou, ento, necessidade , a liberdade e a lei ou a liberdade ea regra. Carcter polar bem explicitado por Adolphe Gesch e secundado porEuv. Nas palavras deste, o jogo nem totalmente liberdade desenfreada, fanta-sia sem constrangimento, nem, ao contrrio, submisso absoluta e passiva a umaregra. A alegria e o prazer pertencem-lhe, mas tambm a tenso, o sofrimento, porvezes. Desenrolando-se fora da vida corrente desenvolve-se num mundo fictcio

    ele mantm, no entanto, ligao com o mundo ordinrio contribuindo para asua transformao24. Este duplo carcter do jogo percebido e traduzido, pelo fi-lsofo C. Duflo, numa expresso brilhante: o jogo a inveno de uma liberdadena e atravs de uma legalidade25.

    O jogo no iluso. Ele realizao de um outro modo de ser. Fink con-firma esta perspectiva quando diz que os ornamentos manifestam-se verdadei-ramente no meio da realidade objectiva das coisas, no como uma coisasimplesmente real ao lado de outras coisas simplesmente reais, mas investidos

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    de uma aparncia que subsiste objectivamente, que repousa sobre as coisas

    simplesmente reais e as reveste de uma forma particular26. Tambm Wunem-burger refora o aspecto no da substituio da realidade pelo jogo, mas antes,da fecundao da realidade pelo jogo, pois, se o jogo transgresso ele tambm mediao, se ele soberania ele tambm lei, se ele smbolo tambm coisareal, mesmo sendo diferentemente real. O jogo assim compreendido pode edeve servir no de modo de vida, mas de duplo da vida, de experincia pelaqual o sonho se instala na existncia sem risco de alienao27, diz Wunembur-ger. Com efeito, o jogo como modo de vida no seria o jogo do ser humano,mas o jogo do humano jogado. Ao contrrio, o jogo como duplo da vida ma-nifesta a capacidade do ser humano se transcender a si prprio e de transcender

    as determinaes que o rodeiam. Ele manifesta, tambm, a importncia dotempo e do espao ldicos como tempo e espao favorveis recuperao daenergia da pessoa, de renovao da energia criativa, de liberdade, de inconfor-mismo, para assumir as asperezas do quotidiano.

    A pessoa que joga uma pessoa insubmissa. Pelo jogo, ela entra numa re-gio de soberania mundana. A pessoa joga porque mundana28. um sermundano; e ser mundano uma qualidade constitutiva, que assegura a compe-tncia de abertura inter-activa ao mundo e s coisas; o ser mundano vive em re-lao familiar com todos os seres que povoam o mundo e no existe sem esta

    relao. Por isso, jogando, a pessoa manifesta e exerce a sua mundaneidade.Neste carcter mundano assenta o princpio prtico de que nenhum ser hu-mano joga sozinho. O jogo exige alteridade para ser jogado e cria alteridadequando jogo jogado. Ele recompe a palavra corrente, os movimentos quotidi-anos, as imagens, os sons, as cores, as formas, os objectos e as coisas da vida co-mum em harmonias extraordinrias29. Em todas as criaturas est latente estapotencialidade de ir mais alm, de ser capaz de se transcender a si mesma,competncia que se manifesta de forma singular no jogo. Jogar com o objecto arranc-lo banalidade, sua unilateralidade para o tornar equvoco e inven-tariar o mundo dos possveis que ele comporta30. O ser humano no o pode-

    ria fazer se o objecto no possusse a potencialidade de se constituir alteridade.

    26 Engen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 236.27Jean-Jacques WUNENBURGER, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 236.28 Cf. Eugen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 236.29 Mais do que um estilo trata-se de um estado de esprito. Mais do que de um estado de esprito, uma pr-

    tica do imaginrio, Jean DUVIGNAUD, Le jeu du jeu, op. cit., 106.30Jean-Jacques WUNENBURGER, La fte, le jeu et le sacr, op. cit., 36.

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    31 Cf. Paul RICUR, La mtaphore vive, Seuil, Paris, 1975, 23-27.32 Ibidem, 32.33 Ibidem, 383-384.34 Cf. Ibidem. A imaginao criadora esta provocao dirigida ao pensamento conceptual, Ibidem, 384.35 Ibidem, 384. esta luta para pensar mais sob o impulso e a orientao do princpio vivificador que a alma

    da interpretao, Ibidem.

    2. O jogo como metfora da criao

    A metfora, como a parbola, revela-se figura adequada para caracterizar ojogo. Naquilo que nos ocupa e para alm do aspecto que a metfora indicia dealguma coisa que acontece ao nome, ou seja, alguma coisa que acontece como ser em geral, alguma coisa para alm do movimento e da transposio que acaracterizam31, importa reter as evases que a metfora produz ao engendraruma nova ordem de existncia, um movimento, um espao de jogo32. Paul Ri-cur traz um importante contributo ao pensamento conceptual ao forjar oconceito de metfora viva. A metfora provoca a um pensar mais, diz ele.Concretamente o jogo da imaginao e o entendimento recebem uma tarefa

    das Ideias da razo mas, onde o entendimento falha, a imaginao ainda temo poder de apresentar a Ideia33. atravs desta qualidade imaginativa prpriada metfora que o pensamento conceptual convidado e provocado a deixar asmargens da conceptualizao univocamente racionalizadora e a pensar mais34.

    A metfora interessa-nos na sua qualidade de metfora viva. No porquevivifica, simplesmente, uma linguagem constituda. A metfora viva na me-dida em que ela inscreve o movimento da imaginao num pensar mais ao n-vel do conceito35. A este ttulo, o jogo como metfora viva poderia sercompreendido como uma figura que transfigurao pensamento conceptual-

    mente fechado e lhe permite ir mais alm, abrir-se a umpensar maissob formade um pensar de outra maneira. Como metfora viva, o jogo tambm figura apossibilidade de inscrever na vida uma ordem de significao que no se esgotana visibilidade das palavras, das coisas e dos seres, mas impulsiona a existnciapara um horizonte de transcendncia no qual chamada a inscrever-se.

    Todavia, o jogo pode tornar-se uma metfora desencantada, desanimada,mesmo uma metfora morta. Tentemos explicitar esta ideia antes de conside-rarmos o jogo como metfora viva.

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    2.1. Metfora desencantada

    Na abordagem do fenmeno do jogo, Eugen Fink distingue duas perspec-tivas opostas: uma interessa-se pelo charme ldico e pelo encantamento do

    jogo, enquanto que a outra desvaloriza esse mesmo charme, olha o jogo numaptica desencantada, desiludida. Nesta segunda perspectiva, o jogo perde a suaessncia de smbolo do mundo e reduzido a uma cpia, reproduo, repre-sentao, mera imitao da seriedade da vida. Assim, o jogo-imitao revela-se

    jogo-submisso e o jogo-submisso incompatvel com a metfora de inven-o. , antes, metfora-forada e atrofia do vigor criativo36.

    Para Eugen Fink, apesar do jogo ser sempre um fenmeno importante da

    vida, perde valor quando olhado de forma desencantada. Torna-se recreaorelativamente aos modos de vida dotados de um sentido profundo e grave;torna-se cio fcil, uma serena perfrase do azedume do srio37. Deste pontode vista, a funo do jogo parece resumir-se a uma funo teraputica e utilit-ria; copia, simplesmente, as preocupaes do quotidiano, tornando possvelum momento de descontraco e de alvio das tenses e das angstias, muitasvezes perigosamente caladas. Deste modo, o jogo oferece uma espcie de esca-patria que permite gerir melhor as paixes e canalizar o excesso que o quotidi-ano no consegue utilizar38. Nesta forma de ver o jogo, Fink reconhece uma

    lucidez de interpretao que a lucidez prpria do desencanto e da desiluso.Para ele, tal lucidez abraa o jogo na sua integridade, mas justamente na pers-pectiva desiludida39. Ora, a desiluso e o desiludido desvitalizam a metfora.O olhar desiludido, desencantado, age sobre as coisas; olha-as friamente. verdade que ele as faz jogar mas de repente elas aparecem sob uma luz gelada,diz Eugen Fink.

    Os prembulos assim esboados de uma fenomenologia do jogo, tran-spostos para o jogo da criao, dizem qualquer coisa sobre o projecto de reali-zao inscrito nas criaturas. Uma realizao isolada e solitria seria redutora. A

    intentio profundiorda criao visa mais uma realizao mundana, numa din-

    36 Para um aprofundamento dos dois conceitos, metfora de inveno e metfora forada, ver Paul RICUR, La m-taphore vive, op. cit., 84.

    37 Eugen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 136.38 Cf. Ibidem, 136-137.39 Ibidem, 104. O jogo figura a dignidade supra-biolgica da vida social, uma dignidade de algures sempre ame-

    aada de regresso sempre que se perde o esprito de jogo, Fanois EUV, op. cit., 265.

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    40 Ibidem, 247.41Adolphe GESCH, Dieu Pour penser. IV. Le Cosmos, op. cit., 80.42 Ibidem, 99.

    mica legislativa aberta que permite a inveno de uma liberdade. Cada ser est

    em relao incessante com o ser de todas as outras coisas, num jogo perma-nente de liberdades que s so verdadeiramente livres quando exercidas noquadro de uma legalidade reguladora. Mas uma realizao estritamente mun-dana tambm seria redutora. A perspectiva teolgica convida a ir mais-alm dasimples emergncia progressiva de uma liberdade atravs de um sistema de re-gras, conduzindo o olhar para o termo salutar desse jogo. Porque o jogo tam-bm exprime a alegria da salvao, o riso da libertao40. Vm a propsito aspalavras de Zacarias referindo-se festa e alegria que reinaro quando chegaro dia messinico: ento, as praas da cidade encher-se-o de meninos e de me-ninas que brincaro nas suas praas (Za 8,5). O jogo das crianas diz que o

    tempo do Senhor, a era messinica festividade, superao do espao e dotempo pela transcendncia ritmada, em canto, dana, ritmo, alegria, jogo.

    No poderemos ver perfilar-se aqui um horizonte de aco e de responsa-bilidade, noutros termos, um horizonte de jogo onde se desenha a vocao decada criatura para ser mediao incontornvel da realizao de cada outra cria-tura? No ser neste sentido que devem ser entendidas as palavras de AdolpheGesch quando diz que a transcendncia do homem arruna-se quando ela sesujeita servialmente a um mundo no qual ela no conseguiu dar realce a qual-quer outro valor que o de um universo de coisas 41? No ser questo aqui do

    tal olhar frio e desencantado que desactiva as coisas e falseia o jogo da criao nasua peregrinao para a plenitude e consumao? As coisas esto l, mas estovazias e mudas42. Vale a pena lembrar a interrogao de Jesus e a resposta queEle mesmo d: a quem vos comparar esta gerao? Ela como crianas senta-das nas praas, a desafiarem-se mutuamente: Ns vos tocmos flauta e nodanastes! Entomos lamentaes e no batestes no peito (Mt 11,16-17). Ve-mos nesta passagem do Evangelho segundo S. Mateus uma dinmica de jogofalseada porque esta gerao revela-se incapaz de compreender. Por isso, JooBaptista e Jesus no so acolhidos (Mt 11,18-19), dito no seguimento. Duasatitudes que so postas em oposio, diz Franois Euv: aqueles que entram

    no jogo, que se deixam levar pela msica, e cujos gestos estaro em sintoniacom a msica tocada (dana ou lamentao) e aqueles que permanecem senta-dos, nas bancadas, como meros espectadores de um espectculo que no lhes

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    diz respeito e que, em consequncia, eles no podem compreender43. A opo

    por uma ou outra atitude de jogo faz toda a diferena: o jogo como metforamorta ou como metfora viva da criao?

    2. 2. A aventura de Pinquio ou Pinquio como metfora viva

    Era uma vez um pedao de madeira. No era um pedao de madeira precioso. Era um

    simples tronco como os que, no Inverno, se pem nas lareiras para acender o lume e aquecer

    as casas Quando o pai La Cerise descobriu este pedao de madeira ficou muito contente

    e murmurou entre dentes, ao mesmo tempo que esfregava as mos de contentamento: este

    pedao de madeira vem mesmo a calhar, vou us-lo para fazer uma perna para a mesa.

    Dizendo isto, o pai La Cerise, pegou numa machada para o esfolar e trabalhar, mas no mo-

    mento em que se preparava para dar o primeiro golpe, ficou paralisado, com o brao no ar,

    ao ouvir uma vozinha de cana rachada que lhe dizia: No me batas com tanta fora.

    O pai La Cerise levou consigo o pedao de madeira e resolveu d-lo ao seu amigo Gepeto.

    Estes so os antecedentes de uma pequena criatura que se tornou patrim-nio da humanidade: Pinquio.

    A histria de Pinquio uma metfora que ilustra o sentido a dar ao jogocriador. Inicialmente, o pai La Cerise lana um olhar desencantador e desen-

    cantado sobre o pedao de madeira. No passa de um bocado de madeira, tilpara fazer uma perna para a mesa. La Cerise olha-o como coisa a manipular aosabor das suas necessidades. Logo ele se apressa a pr a madeira a jeito, mas, derepente, o pedao de madeira comea a falar. Num misto de estupefaco e demedo, o pai La Cerise pra para escutar um pedao de madeira dirigir-lhe a pa-lavra, gemer e chorar.

    O jogo que o pai La Cerise est prestes a jogar tira o bocado de madeira dasua banalidade. La Cerise f-lo entrar no jogo, e assim, permite-lhe exprimir o seucarcter extraordinrio, ou seja, a possibilidade de transcendncia que o constitui.

    O pai La Cerise aparece como mediao que torna possvel a realizao da coisa.Ele d-se conta da diferena entre as suas razes e as razes da prpria coisa. Po-der estabelecer esta diferena condio primeira para que o sentido do jogo ir-rompa na sua criatividade e se traduza naquilo a que Zeno Bianu chama os

    43 Franois EUV, op., cit., 189.

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    44 Zeno BIANU et Al., Lesprit des jeux, op. cit., 338.45Alain DUNAND, Lespace du jeu, op. cit., 239.46 Podemos procurar paralelos semnticos entre a histria de Pinquio e o desejo expresso, na dcada de 70, por

    Ilya Prigogine, prmio Nobel da Qumica, e Isabelle Stengers, filsofa das cincias, de um novo sentido para as cincias,uma metamorfose, para usar a expresso por eles avanada, a partir da aliana dos saberes e da escuta potica da natu-reza: A nossa cincia tornou-se enfim uma cincia fsica ao admitir a autonomia de todas as coisas e no somente das coi-

    sas vivas. Em consequncia, concluem Prigogine e Stengers, o saber cientfico pode compreender-se hoje como escutapotica da natureza, processo aberto de produo e de inveno, num mundo aberto, produtivo e inventivo, Ilya P RI-GOGINE Isabelle STENGERS, La nouvelle alliance. Mtamorphose de la science, Gallimard, Paris, 1974.

    47 este, alis, o sentido que Prigogine e Stengers quiseram dar expresso escuta potica. Numa nota a prop-sito da singularidade das cincias, Stengers escreve: o termo escuta potica da natureza escandalizou aqueles que esque-ceram de ler o que se seguia: no sentido etimolgico em que o poeta um fabricante e que desta forma confundiram aideia de capacidade, para a fsica, de respeitar a natureza que aquela obriga a falar com a ideia de um respeito da natu-reza tal como ela aparece, Isabelle STENGERS, Linvention des sciences modernes, Flammarion, Paris, 1995, 146 (Ed. LaDcouverte, 1993, 393).

    momentos de estado de graa onde o eu coincide consigo mesmo, mas tam-

    bm com as formas e existncias que o rodeiam e jogam com ele44.Gepeto retoma o jogo. Aceita o presente do pai La Cerise, pensando talhar

    com ele um boneco articulado. Chegado a casa com o seu pedao de madeira,pensa num nome para o seu boneco. Vai chamar-se Pinquio, decide Gepeto,pondo-se logo de seguida a esculpi-lo.

    Vejamos que, antes de tudo, Gepeto confirma uma identidade ao seu bo-neco, dando-lhe um nome e assumindo, assim, um universo relacional. Aindano est feito, mas j o respeita como diferente. Pinquio objecto de uma in-teno de criao que corresponde, neste caso, a uma inteno de alteridade.

    Depois de ter dado o nome ao boneco, Gepeto comea a esculpi-lo. Co-mea por talhar os olhos, e eles comeam a mexer e a olh-lo; talha o nariz e,imediatamente, este comea a crescer; feita a boca, logo comea a rir; enfim,mal tinha acabado de talhar as mos, Gepeto sente que lhe tiram a peruca; elev, ento, a sua peruca amarela entre as mos do seu boneco.

    Pinquio representa aqui uma metfora da criao. Parbola do jogo cria-dor; jogo que cria as condies que permitem a um ser, necessariamentenico, singular, demasiado diferente para que alguma norma comum se lhepossa aplicar, de viver a sua prpria aventura45. Jogo que se desenrola na din-mica de uma escuta potica46, como nova ordem relacional e condio para o

    verdadeiro conhecimento. Escuta potica que no pode ser compreendidacomo atitude passiva que rompe a relao e torna impossvel o jogo de produ-o e de inveno mas comopoitica, como prtica que, na aventura de inte-raco exploradora, se pe a escutar com respeito as razes prprias das coisas47.Foi atravs de uma prtica desta ordem que o pai La Cerise pde escutar uma

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    voz saindo do pedao de madeira e Gepeto despertar, neste mesmo pedao de

    madeira esculpido na forma de um boneco, um menino que lhe ensina a jogar.Pinquio, como metfora viva, ensina-nos que, para jogar, preciso ser cri-

    ana. No esqueamos que, no final das suas aventuras, o pequeno boneco demadeira torna-se um menino em carne e osso, um menino como todos os ou-tros. Deve-se ao facto, conclui Colodi, o narrador da histria de Pinquio, de ascrianas nos seus jogos criativos terem o poder de conferir um aspecto novo e ju-biloso s coisas que os rodeiam. H muitas coisas que as crianas no sabem fa-zer; ainda no sabem fazer. Mas brincar/jogar algo que elas sabem fazer desdea mais tenra idade e com um espantoso savoir-faire. Na marioneta de madeiradormia uma criana maravilhosa. O jogo e a aventura conseguem despert-la.

    Tambm a criana que dorme em cada um de ns, opuer, s acorda no jogo epelo jogo. Sem jogo no h criao; sempuerno h jogo: dando aopuer, es-pontaneidade infantil, a possibilidade de se exprimir plenamente, est a colabo-rar-se num acto de co-criao48. Mas no se pode ser co-criador sem primeiroencontrar e despertar opueradormecido no senexde cada um.

    A salvao da criatura humana passa pela sua capacidade de se tornarpuer. isto mesmo que Jesus explica a Nicodemos, dizendo repetidas vezes: se novos tornardes como as crianas, de modo algum entrareis no Reino dos Cus(Mt 25, 14-30) pois a elas que pertence o reino dos Cus (Mt 19, 14).

    No h criao sem jogo; no h jogo sempuer; no h criao e no hsalvao sem jogo e sempuer. Lembre-se o destino daquele servo na Parbolados Talentos (Mt 25,14-30). O mestre que parte em viagem delega nos seusservos a misso de gerir a sua fortuna. Assim, distribui uma parte a cada um de-les. No seu regresso, os servos prestam contas da sua gesto. Dois de entre elestinham feito render a parte que lhes coubera. O terceiro havia feito um buracoe enterrado a sua parte. A este, o Mestre chamou-lhe servo mau, pois no haviacolaborado na criao; no tinha jogado o jogo.

    Pinquio no simplesmente parbola viva do jogo das criaturas; ele tam-bm serve como metfora dojogo do Criador. Vejamos at onde nos pode con-

    duzir esta afirmao.

    48 Matthew FOX, Le Christ cosmique(ed. ing. 1988), Albin Michle, Paris, 1995, 295.

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    49 Cf. Franois EUV, op. cit., 271.50 A associao regra - liberdade especfica da actividade ldica, Ibidem, 273.51 Cf. Adolphe GESCH, Dieu pour penser. IV. Le Cosmos, op. cit. : La cration comme jeu, 144-149, especialmente

    144-145.52 Ibidem, 144.53 Citado por Matthew FOX, Le Christ cosmique, Albin Michle, Paris, 1995 (ed. original americana 1988), 295.54 Segundo Adolphe Gesch, a criao atravessada por uma estrutura imanente de autognese e de inveno e

    que juntamente com o ser humano tomar o nome de uma estrutura de liberdade, op. cit., 137.55 Cf. Ibidem.

    3. Poder-se- dizer que Deus joga?

    No criou Deus o monstro marinho, Leviat, para brincar com ele? (Sl104,26b). Gepeto tambm cria um boneco para jogar/brincar, porque o jogoexige alteridade e reciprocidade. Leviat e Pinquio no so brinquedos, masantes companheiros de brincadeira, parceiros no jogo. Lembremos na histriade Pinquio como a boca ainda mal concluda comea logo a rir-se e a provo-car Gepeto, para sua grande estupefaco.

    Deus no deseja que as suas criaturas sejam Pinquios de madeira, me-ros fantoches, inanimados, susceptveis de serem manipulados, usados, explo-rados. Deus cria criaturas capazes de lhe falarem, de o desejarem ou repelirem;

    capazes de recusarem ou, ento, de entrarem no jogo, conjugando de formacriadora regra e liberdade49. Nesta conjugao e s nesta conjugao da regrae da liberdade, o jogador poder experimentar a verdadeira emoo da criativi-dade, ao inventar um caminho indito, uma maneira singular de conduzir oseu jogo50.

    No h verdadeiro jogo sem criao e no h criao sem jogo.Deus ama o jogo51. Antes de algo ser criado, eu estava junto com Ele

    todo o tempo brincava na sua presena, diz a Sabedoria (Prv 8,30). Para Deus,ela era o encanto de todos os dias (Prv 8,30). Deus no faz uma obra por ne-

    cessidade (como Atlas). Ele cria por prazer52

    . Num rir contagiante, diz MatreEckhart: No seio da Trindade, o Pai comea a rir e faz nascer o Filho. O Filhori, por sua vez, e faz nascer a criao53. A criao , pode dizer-se, obra cheia dehumor. Na gnese da criao, Deus inscreve nas criaturas genes de criativi-dade54. Ao humano criado Sua imagem e semelhana (Gn 1,27) dada a pos-sibilidade de ser criador, co-criador, jogador no relvado csmico e no meroespectador de bancada. Rindo, diria Mestre Eckhart, e com razo, pois se so-mos criados num rir contagiante, como poderamos louvar o Criador numaatmosfera lgubre?55.

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    Israel aprende com a Sabedoria o que agrada a Deus: a festa, o riso, o canto,

    a dana, a msica, em suma, o jogo de toda a criao que , no fundo, onde osentido e o destino da criao se joga. O Salmista louva, com o toque da trom-beta com ctara e harpa com dana e tambor com cordas e flautacom cmbalos sonoros com cmbalos retumbantes (Sl 150,3-5), o mistriodo rir do Criador e a maravilhosa faanha da criao, obra das suas mos. NosSalmos, todas as criaturas so convidadas a cantar Deus, a bendizer o seu nome:Que o cu se alegre! Que a terra exulte! Estronde o mar, e o que ele contm!Que o campo festeje, e o que nele existe! As rvores da selva gritem de alegria (Sl95,11-12). Os cus, o dia e a noite so testemunhas do jogo da criao. No htermos, no h palavras, nenhuma voz que deles se oua (Sl 19,4), somente a

    vida que revela, sem termos e sem palavras, o jogo do Criador e a entrada emjogo das criaturas: os cus contam a glria de Deus, o firmamento proclama aobra de suas mos. O dia entrega a mensagem a outro dia, e a noite faz conhe-cer a outra noite (Sl 19,2-3). A Sabedoria conta-nos como o Criador rejubilacom a alegria das suas criaturas. Como o riso de Pinquio, logo que escapou dasmos de Gepeto, os risos, os jogos e as festas das criaturas so delcias para Deus.

    Poder-se- dizer que Deus joga? O mistrio da incarnao do Verbo deDeus pode tambm aduzir elementos para ajudar a formular um princpio deresposta. Deus deseja participar no jogo do mundo. Como jogador e como jo-gado, Deus assume o jogo humano tornando-se o que no era; renunciando a

    todo o seu poder para se dar a si mesmo56. O jogo de Deus, ou nas palavras deGregrio de Nazianzo o jogo do Verbo57, knose, renncia a todo o po-der, a toda a cincia, e aceitao das regras do jogo do mundo, que respeita atao fim. Na cruz exaltada, Ele recapitula o jogo da criao desde a sua origem,colorindo para sempre, com o seu sangue, a outra dimenso do jogo da vida, aliberdade, sem a qual o jogo da vida seria um mero jogo repetitivo de uma re-gularidade e no um jogo criador de uma liberdade.

    4. O jogo humano, smbolo do jogo da criao

    De entre todas as criaturas que povoam o mundo, somente o ser humanopossui a extraordinria capacidade de o recriar. S ele capaz de agir sobre a

    56 Ibidem, 247.57 PG37, 624a.

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    58 O filsofo belga Jean Ladrire, estabelece de forma clara a diferena entre o comportamento animal e a exis-tncia humana. O ser humano no pode ser analisado com os mesmos termos usados para analisar um organismo.Certo, ele situa-se num meio exterior no qual age e pelo qual influenciado; como organismo, portador de necessidadesespecficas. Todavia, ele possui a capacidade espantosa de fazer aparecer novas necessidades e, correlativamente, de modi-

    ficar o significado dos objectos exteriores e de transformar as propriedades do meio em conformidade com os seus prpriosesquemas organizadores. Assim, para l das significaes biolgicas, aparecem significaes culturais em constante evolu-o, Jean LADRIRE, Monde, in Encyclopaedia Universalis, t.XI, Encyclopaedia Universalis, France, 231-232.

    59 Cf. Paul RICUR, La mtaphore vive, op. cit., 399.60A figura de fora de jogo em futebol bem representativa deste aspecto espacial. Do mesmo modo, mas no que

    respeita ao tempo, um golo marcado no milsimo de segundo aps o apito do rbitro dar por terminado o jogo, no contado.

    61 A imprevisibilidade do jogo est ligada noo de risco, Francois EUV, op. cit., 266.62 Ibidem, 270.

    histria e de modificar as condies da sua existncia. O ser humano no passa

    a sua vida a seguir um plano previamente estabelecido, um destino inexorvel.As determinaes que o envolvem no so irrevogveis58. O jogo humano con-firma-o. O jogo humano produz solues de continuidade, irregularidades edistncias que revestem o fluxo ordinrio da existncia de um aspecto de intrigae de peripcia; um aspecto de criao que se joga entre a pertena e a distn-cia59. O jogo humano, sendo realmente expresso extraordinria da existncia,no por isso um fenmeno menos real, como procurmos evidenciar nas p-ginas precedentes.

    A partir de tudo o que foi dito at aqui, possvel propor uma sntese dasprincipais caractersticas do jogo humano. Seguindo Roger Caillois e Adolphe

    Gesch, Franois Euv destaca 6 caractersticas do jogo, as mesmas que me pa-rece importante evidenciar: a) liberdade no s liberdade daquele que pre-tende entrar no jogo, mas tambm liberdade interna do jogo, na medida emque o jogo reside precisamente na livre criao de estratgias; b) separao o

    jogo desenrola-se no quadro de um espao e de um tempo fixados previa-mente60; c) Imprevisibilidade se o resultado for conhecido partida (jogo vi-ciado), o interesse pelo jogo desaparece ao desaparecer a dimenso ldica e aimprevisibilidade do resultado. Se, num determinado momento do jogo, o jo-gador percebe que, segundo as regras e com as cartas que possui, no tem qual-

    quer possibilidade de vencer, fica desiludido e desiste, entrega o jogo, dando-opor terminado61; d) improdutividade o jogo distingue-se do trabalho preci-samente por no visar a criao de bens ou riquezas. Mesmo nos jogos a di-nheiro, no se trata de produo/criao de riqueza, mas antes de deslocaode riqueza; e) regulao da mesma maneira que no h jogo sem liberdadetambm no h jogo sem regras. A regra imperativa e indiscutvel62; f) fico

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    o jogo desenrola-se num mundo distinto do mundo do real; o mundo do

    jogo tem um espao e um tempo prprios.Se assim no que respeita ao jogo humano, do jogo da criao ns no po-

    demos falar a no ser por analogia precisamente com o jogo humano. Porque ojogo da criao no um fenmeno observvel. Falar do jogo da criao in-troduzir uma frmula especulativa63. Razo pela qual inicimos este estudocom uma abordagem fenomenolgica e hermenutica do jogo humano quenos pudesse conduzir reflexo, e sustentar na reflexo, sobre o jogo da criao.

    De que modo o jogo humano pode ser smbolo do jogo da criao? A tesedo jogo humano como smbolo do jogo da criao assenta numa premissa co-

    mum: a mundaneidade mundaneidade do jogo humano e a mundaneidadedas criaturas. A descrio de mundano relana o que j foi evidenciado sobreo carcter mundano das criaturas e do jogo. Manifestamente, o mundano, dizFink, no engloba somente o que real em cada caso, ou seja, os objectos e osacontecimentos que so actuais; ele comporta tambm o horizonte das possibi-lidades de todas as coisas64 e significa assim todo um horizonte de laos en-globantes e de encadeamentos universais65. O jogo humano manifesta estamundaneidade. Ele possui uma significao mundana, uma transparncia cs-mica66 que recapitula o estar-em-jogo mundano da criao.

    No relato sacerdotal do Gnesis, Deus cria um mundo, antes de criar o hu-

    mano; d corpo a um cosmos destinado a acolher o humano. Um cosmoscomo habitao, que lhe pertence fazer existir; dever cultiv-lo e guard-lo,preceito que, no somente diz algo sobre o ser humano (gestor e produtor/cria-dor), como tambm diz algo do cosmos: a sua plasticidade, como potencial deorganizao e de reorganizao dos seus elementos, combinao, metamorfose,evoluo, no sentido de um devir recriador e recreativo. Na sua plasticidade, ocosmos provocao a que o ser humano no se acomode representao or-denada; no um cosmos visto, antes um cosmos em vista; um cosmos interpe-

    63As reflexes de Eugen Fink sobre a relao entre o jogo humano e o jogo csmico inspiram a reflexo em curso;optamos por falar mais em termos de criao todas as criaturas do que em cosmos, Cf. Eugen FINK, Le jeu commesymbole du monde, op. cit., 16-40.

    64 Ibidem, 205. neste mesmo sentido que o filsofo belga Jean Ladrire fala do mundano que caracteriza o serhumano com capacidade de instaurao de um mundo: o que aparece como caracterstica no o facto do ser hu-mano se encontrar num campo aberto de significaes, mas antes que ele tenha a capacidade de instaurar um tal campo,Jean LADRIRE, Monde, Encyclopaedia Universalis, art. cit., 232.

    65 Cf. Eugen FINK, Le jeu comme symbole du monde, op. cit., 206.66 Ibidem, 22.

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    67 Cf. Franois EUV, op. cit., 196.68 Para pensar o homem, pensamos que ele precisa de um cosmos que seja verdadeiramente o seu lugar, no qual,

    justamente, ele no seja um estrangeiro, Adolphe GESH, Dieu pour penser. IV Cosmos, op. cit., 63.

    lador no seu dinamismo imprevisvel67. Desenha-se aqui o esboo de uma vo-

    cao, o sentido profundo da existncia: a vocao da criao-criatura criao-co-criadora. O ser humano chamado a ajudar a criao (ele inclusive) aavanar no sentido da expresso ltima da realizao das (in)determinaes in-trnsecas de cada ser. Todavia, o ser humano s interioriza esta tarefa/missocomo sua na medida em que assume e compreende a irredutvel mundaneidadedo seu prprio ser.

    A figura mundano-csmica pode ajudar o humano a decifrar e aprofundara sua identidade. Habitualmente, e na perspectiva que o princpio antrpicoinstrui, fala-se do cosmos como um lugar para o ser humano. A verdade da afir-mao assenta na experincia real do nosso lugar no cosmos68. Mas o cosmosno simplesmente um lugar a habitar. O ser humano no est no cosmos; ele cosmos. O ser humano no est na criao, ele criao. E esta condiomundano-csmica de criatura com as outras criaturas aponta-lhe o sentido deuma vocao e destino comuns. Ao mesmo tempo, traz luz a pertinncia so-teriolgica do cosmos. Adolphe Gesch fala mesmo de um segredo de salva-o nele escondido.

    Na inteno teolgica do relato de Gnesis 1 evidencia-se a exaltao dabondade da criao, sublinhada pelo refro Deus viu que era bom. De ne-nhuma criatura dito isto ser til. O tema da funo e da utilidade no est,

    todavia, ausente. Os luzeiros no firmamento do cu so criados para sepa-rar/distinguir o dia da noite e inspirar o calendrio e os dias de festa (cf Gn1,14). Mas o quarto dia no chega sem que o Criador pare para olhar e confir-mar o sol e a lua, na bondade e beleza da sua vinda existncia, na bondade dasua funo e na sua bondade e beleza constitutivas. Bondade como qualidadeexistencial, mas tambm como qualidade de vocao. No relato, o momento decontemplao, do olhar de reconhecimento abre-se, em vrios momentos, so-bre o futuro que advm como um novo dia e uma nova manh; um dia origi-nalmente novo (cf. Gn 1,13.19.23.31); um dia de bondade cuja qualidade lheadvm das criaturas que o habitam e atravessam. Aqui se perfila a vocao dacriao e, de forma exemplar, a vocao daquele outro, criado imagem deDeus, a ratificar por sua vez a bondade original de cada criatura. Vocao a con-

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    templar, a olhar e a confirmar: bom que uma nova manh, uma nova tarde,

    um novo dia advenha.A estratgia intrnseca ao jogo da criao uma estratgia de bondade.

    Mas, como no jogo humano, o jogo da criao pode ser desencantador e desen-cantado.

    Ser necessrio que nos interroguemos em permanncia sobre o sentido doestar-aqui-juntos e sobre o sentido soteriolgico e destinal que isto ainda podesignificar, para l do jogo de estar-aqui-juntos. Esta tarefa pertence de direito auma teologia da criao que se interessa pelas criaturas na sua relao original,histrica e destinal com o Criador. Pelo jogo humano, uma teologia da criaopode facilitar a contemplao dinmica do mistrio da vida e o reconheci-

    mento inalienvel do dom como premissa de vida em abundncia, de celebra-o de paz e justia para toda a criao. As cartas esto dadas. s criaturaspertence jogar no respeito pela legalidade atravs da qual a inveno de uma li-berdade pode ter lugar.

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