O Inventário Do Mundo - Arthur Bispo Do Rosário e Peter Greenaway

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O inventário do mundo: Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway Maria Esther Maciel Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício. Walter Benjamin Aproximar artistas de contextos radicalmente distintos e com histórias de vida não menos dissonantes não deixa de ser um exercício de imaginação. Sobretudo quando não há pontos de interseção entre suas trajetórias criativas, nem evidência de qualquer diálogo explícito entre eles que possa justificar possíveis afinidades. Este é o caso da aproximação que tentarei estabelecer entre o artista brasileiro Arthur Bispo do Rosário e o cineasta britânico Peter Greenaway, à luz de alguns escritos de Jorge Luis Borges. Advindos de culturas inteiramente diversas, criando a partir de condições sociais e de motivações estéticas contrastantes, Bispo e Greenaway encontram-se, entretanto, no mesmo apreço pelas taxonomias e enumerações impossíveis, compartilhando uma certa cumplicidade em relação ao que Borges chamou de "la tarea de dibujar el mundo". Não foi à toa que Greenaway, em seu primeiro contato com a obra de Bispo, em agosto de 1998, quando esteve no Rio de Janeiro para a exibição da ópera "100 Objetos para Representar o Mundo", reconheceu as afinidades de seu próprio trabalho com o do artista brasileiro – este um ex-pugilista, ex- marinheiro e ex-empregado doméstico, negro, psicótico, nascido em 1909. "Ele é mais obsessivo do que eu; a obsessão dele é infinita" – admitiu Greenaway – à medida que percorria o vasto acervo dos trabalhos de Bispo, composto de quase mil peças criadas ao longo de cinqüenta anos de confinamento do artista em uma instituição psiquiátrica. Essas peças, que vão desde objetos avulsos, como navios de madeiras ou uma roda de bicicleta, até assemblages, fardões, fichários, faixas, panôs, coleções de miniaturas, tabuleiros com peças de xadrez e um majestoso manto bordado, dentre vários outros artefatos, compunham o que o próprio

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O inventrio do mundo: Arthur Bispo do Rosrio e PeterGreenawayMaria Esther MacielToda ordem precisamente uma situao oscilante beira do precipcio.Walter Benjamin Aproximar artistas de contextos radicalmente distintos e com histrias de vida no menos dissonantes no deixa de ser um exerccio de imaginao. Sobretudo quando no h pontos de interseo entre suas trajetrias criativas, nem evidncia de qualquer dilogo explcito entre eles que possa justiicar possveis ainidades. !ste " o caso da aproximao que tentarei estabelecer entre o artista brasileiro #rthur $ispo do %osrio e o cineasta brit&nico 'eter (reena)a*, + lu, de alguns escritos de -orge .uis $orges. #dvindos de culturas inteiramente diversas, criando a partir de condi/es sociais e de motiva/es est"ticas contrastantes, $ispo e (reena)a* encontram0se, entretanto, no mesmo apreo pelas taxonomias e enumera/es impossveis, compartilhando uma certa cumplicidade em relao ao que $orges chamou de 1la tarea de dibujar el mundo1. 2o oi + toa que (reena)a*, em seu primeiro contato com a obra de $ispo, em agosto de 3445, quando esteve no %io de -aneiro para a exibio da pera 1366 7bjetos para %epresentar o 8undo1, reconheceu as ainidades de seu prprio trabalho com o do artista brasileiro 9 este um ex0pugilista, ex0marinheiro e ex0empregado dom"stico, negro, psictico, nascido em 3464. 1!le " mais obsessivo do que eu: a obsesso dele " ininita1 9 admitiu (reena)a* 9 + medida que percorria o vasto acervodos trabalhos de $ispo, composto de quase mil peas criadas ao longo de cinq;enta anos de coninamento do artista em uma instituio psiquitrica. !ssas peas, que vo desde objetos avulsos, como navios de madeiras ou uma roda debicicleta, at" assemblages, ard/es, ichrios, aixas, paninal. =e meados dos anos ?6 at" sua morte em 3454, $ispo se dedicou, com grande ainco e extraordinrio senso de rigor, +sua misso, convicto de que tinha sido o escolhido de =eus para reconstruir o mundo aps o im de tudo, repovoando a terra com seus 1objetos mumiicados1 e suas listas ininitas de nomes e imagens bordadas sobre panos ordinrios. $uscava sua mat"ria prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginali,ados da pobre,a, no agora desua prpria experincia@ sapatos, canecas, pentes, garraas, latas, erramentas, talheres, embalagens de produtos descartveis, papelo, cobertores pudos, madeira arrancada das caixas de eira e dos cabos de vassouras, linha desiada dos uniormes dos internos, bot/es, estatuetas de santos, brinquedos, enim, tudo o que a sociedade jogou ora, tudo o que perdeu, esqueceu ou despre,ou. Aomprederico 8orais, um dos maiores divulgadores da obra do artista@1Sem que algum dia tivesse sado de sua cela para visitar exposi/es ou olhear revistas de arte em alguma biblioteca soisticada, $ispo e, nos anos G6 assemblages como as de #rman, Aesar, 8artial %a*sse e =aniel Spoerri, integrantes do 2ovo %ealismo. H...I # lgica ormal com que $ispo envolve seus trabalhos antecipa certos aspectos da nova escultura inglesa, de um Jon* Aragg, por exemplo. H...I 7s textos costurados de $ispo lembram os manuscritos de -oaquim Jorres0(arca, nos quais ele unde palavra e imagem. H...I 7 manto e as demais roupas de $ispo remetem aos parangol"s de F"lio 7iticica, tanto quanto sua cama0nave assemelha0se + casa0ninho de 7iticica em sua residncia nova0iorquina ou ao Kden que ele exp