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IICT | b HL | blogue de História Lusófona | Ano VI | Agosto 2011 199 O inusitado no quotidiano de Goa: O mosteiro de Santa Mónica e o milagre da Cruz em 1636 1 João Teles e Cunha Instituto de Estudos Orientais-UCP/CHAM Introdução O quotidiano pode definir-se pela repetição do mesmo comportamento durante um período de tempo longo de modo a estabelecer um certo padrão num determinado espaço geográfico. Temos assim um fenóme- no que tem tanto de preciso no gesto que se repete como de indistinto na sua reprodução mecânica. Talvez por isso nunca tenha atraído a atenção da historiografia tradicional de cariz positivista, mais marcada pelo acontecimento único e pelo grande protagonista, embora seja de referir a existência de uma conhecida colecção de vulgarização ‘A Vida Quotidiana’ que se debruçava sobre diversos espaços e épocas crono- lógicas em alturas marcantes. Alguns dos títulos da mesma foram edi- tados em Portugal pela conhecida casa editora Livros do Brasil e ainda hoje se podem encontrar em bibliotecas e alfarrabistas. 1 O texto que se segue foi apresentado num colóquio sobre o quotidiano na história portuguesa realizado em homenagem ao Prof. Dr. A. H. de Oliveira Marques na década de noventa do século passado. Como as respectivas actas jamais foram publicadas, a comunicação ficou guardada na gaveta até melhor oportunidade, de onde saiu agora graças ao pedido de colaboração para o blogue ‘História Lusófona’ endereçado pelo meu caro amigo e colega Manuel Lobato. Nada de substancial foi alterado no conteúdo, ainda que a forma foi revista. Pede-se, por isso, compreensão para uma bibliografia desactualizada já que, entretanto, a história religiosa registou neste campo novos e importantes títulos, incluindo os estudos que têm vindo a aparecer em Portugal, com destaque para os referentes ao Estado da Índia.

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O inusitado no quotidiano de Goa:

O mosteiro de Santa Mónica e o milagre da Cruz em 16361

João Teles e Cunha

Instituto de Estudos Orientais-UCP/CHAM

Introdução

O quotidiano pode definir-se pela repetição do mesmo comportamento

durante um período de tempo longo de modo a estabelecer um certo

padrão num determinado espaço geográfico. Temos assim um fenóme-

no que tem tanto de preciso no gesto que se repete como de indistinto

na sua reprodução mecânica. Talvez por isso nunca tenha atraído a

atenção da historiografia tradicional de cariz positivista, mais marcada

pelo acontecimento único e pelo grande protagonista, embora seja de

referir a existência de uma conhecida colecção de vulgarização ‘A Vida

Quotidiana’ que se debruçava sobre diversos espaços e épocas crono-

lógicas em alturas marcantes. Alguns dos títulos da mesma foram edi-

tados em Portugal pela conhecida casa editora Livros do Brasil e ainda

hoje se podem encontrar em bibliotecas e alfarrabistas.

1 O texto que se segue foi apresentado num colóquio sobre o quotidiano na história portuguesa realizado em homenagem ao Prof. Dr. A. H. de Oliveira Marques na década de noventa do século passado. Como as respectivas actas jamais foram publicadas, a comunicação ficou guardada na gaveta até melhor oportunidade, de onde saiu agora graças ao pedido de colaboração para o blogue ‘História Lusófona’ endereçado pelo meu caro amigo e colega Manuel Lobato. Nada de substancial foi alterado no conteúdo, ainda que a forma foi revista. Pede-se, por isso, compreensão para uma bibliografia desactualizada já que, entretanto, a história religiosa registou neste campo novos e importantes títulos, incluindo os estudos que têm vindo a aparecer em Portugal, com destaque para os referentes ao Estado da Índia.

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A história do quotidiano conheceria uma evolução e um aprofun-

damento que a afastou do seu campo tradicional a partir do decénio de

1960, com ligação à história das mentalidades em França, à micro-

história em Itália e à alltagsgechichte (à letra «história de todos os di-

as») alemã, cada qual com um enfoque especial no método e objecto

de estudo. Em todas procurava-se o estudo da sociedade no seu dia-a-

dia, nalguns casos utilizando-se um episódio protagonizado por alguém

saído do “povo” a fim de generalizar posteriormente, com o propósito

de integrá-la num momento especial ou determinar a sua relação com

um fenómeno em particular, como a morte por exemplo. Partindo das

experiências diárias, repetitivas e aparentemente inócuas procurava-se

chegar à definição de padrões comportamentais com o objectivo de

estabelecer ligações entre a sociedade e formas de organização social,

política e económica, bem como com expressões religiosas e culturais

com o propósito de ver em que medida aquela afectava e fazia evoluir

estas e vice-versa.

De recordar que para finais da década de 1970, em 1979 para ser

exacto, Fernand Braudel cunhou a expressão “Civilização Material”, na

falta de melhor termo, como o próprio confessou, para se referir à acti-

vidade elementar básica que decorria por todo o lado a fim de assegu-

rar a vida humana em sociedade dentro dos “limites do possível”2. A

grelha de análise braudeliana é bem mais complexa que o atrás enun-

ciado, mas para o fim em vista não interessa desenvolvê-la aqui. Inte-

ressa sim retomar o fio à meada e mencionar que Braudel se viu obri-

gado, por estranho que hoje nos pareça, a justificar a introdução da

vida quotidiana no domínio histórico. A justificação tinha o seu quê de

retórico e Braudel argumentava que valia a pena estudar as pequenas

coisas em que dificilmente se reparava no tempo e no espaço, ou seja

o campo por excelência da história do quotidiano, já que constituíam

imagens preciosas que ajudavam a caracterizar a sociedade num de-

terminado momento, as quais serviam posteriormente para serem

comparadas com outras retiradas de períodos mais tardios para assina-

lar evoluções, rupturas ou continuidades. A mais valia estaria justa-

2 Fernand BRAUDEL, Civilization and Capitalism 15th-18th Century, vol. I The Structures of Everyday Life. The Limits of Possible, Nova Iorque, Harper & Row, 1985, p. 23.

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mente nesses gestos repetitivos, pois através deles chegar-se-ia ao

retrato da sociedade3.

Para além do retrato social estamos também no campo da recons-

trução, uma vez que o quotidiano também exige ocasionalmente o pe-

noso labor de recriação de um passado com os documentos disponí-

veis, com todas as condicionantes que estes impõem. Existe, assim,

um esforço literário reconstrutivo que foi sem dúvida apelativo aos an-

tigos cultores do género numa época marcada pela história dita évé-

nementielle e que continuou a ter seguidores posteriormente, quando

as exigências historiográficas passaram a ser outras. De recordar que o

historiador objecto de homenagem em 1992, A. H. de Oliveira Marques,

foi um excelente cultor do tema e reincidiu no mesmo ao longo da sua

extensa e prolífica carreira. Bastaria mencionar o já «clássico» A socie-

dade medieval portuguesa: aspectos de vida quotidiana4, com cinco

edições entre 1964 e 1987, ao que se poderia acrescentar, entre outros

exemplos possíveis, as páginas que dedicou à vida quotidiana num dos

volumes que escreveu para a Nova História de Portugal co-dirigida com

Joel Serrão5.

Ora o nosso objecto de estudo está o mais longe possível do pa-

drão repetitivo que enforma o quotidiano, na verdade está nos antípo-

das deste. De um maneira simplista o milagre é o acontecimento irre-

petível por natureza cuja carácter complexo supõe a intervenção divina

para modificar o curso normal das coisas6. Note-se, contudo, que San-

to Agostinho (354-430) tinha uma concepção abrangente e lata do fe-

nómeno, dado que também englobava os prodígios reais ou aparentes

operados por entidades sobrenaturais e humanas. Daí que a teologia

augustiniana considere a existência das miracula quotidiana no decur-

so normal do dia-a-dia, as quais Agostinho designa por uma miríade de

termos (signa, prodigia, virtutes, signorum, monstra, magnalia, mirabi-

3 Id., ibid., p. 29. 4 Lisboa, Sá da Costa, 1964. 5 Joel SERRÃO e A. H. De OLIVEIRA MARQUES, Nova História de Portugal, vol. IV, Portu-gal nas crises dos séculos XIV e XV, Lisboa, Presença, 1987, pp. 464-490. 6 Vide inter alia A. MICHEL, “Miracle”, in Dictionnaire de Théologie Catholique conte-nant l’exposé des doctrines de théologie catholique leurs preuves et leur histoire, diri-gido por A. Vacant, E. Mangenot e É. Amann, tomo X, 2.ª parte, ‘Messe-Mystique’, Pa-ris, Librairie Letouzey et Ané, 1929, cols. 1798-1859.

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lia, ostenta, mira, portenta)7. Os sinais e prodígios quotidianos aludidos

por Agostinho faziam sentido num tempo ainda heróico do cristianismo,

mas a evolução e a fixação teológica foi no sentido contrário. Séculos

mais tarde, com São Tomás de Aquino (1224/25-1274), o milagre ad-

quiriu um carácter extraordinário no curso dos acontecimentos, saindo

fora do que é habitual e normal8. Assim, por definição, o fenómeno tem

um carácter único, longe por isso do padrão repetitivo comum ao quo-

tidiano.

Todavia, deve-se acrescentar que a posteridade do milagre, uma

vez este comprovado e atestado canonicamente enquanto tal, tem um

impacte não despiciendo no quotidiano com peregrinações e todo o

tipo de devoções em torno de miraculados e das provas materiais

transformadas em relíquias. Apesar do seu carácter único, o século XVII

parece propenso à ocorrência de milagres, pelo menos em França, se-

gundo aponta Jean Delumeau, onde se verificam em número conside-

rável nos cinco decénios que vão de 1620 a 16709. Era uma época con-

turbada na história francesa marcada por guerras civis e externas e

regências problemáticas, onde estas miracula quotidiana, para reto-

marmos a terminologia de Santo Agostinho, pareciam ser sinais de ex-

pressão de protecção divina, mas também de aviso de um aconteci-

mento futuro que tanto podia ser redentor como funesto. A França não

foi um caso isolado, basta pensar no Portugal Filipino, onde esses

mesmos sinais e prodígios respigam nas páginas do “Memorial” de Pê-

ro Rodrigues Soares, com maior incidência para o período posterior ao

reinado de Filipe I (r. 1580-98) acrescente-se. Aliás este “diário” manti-

do de forma irregular por Rodrigues Soares mais parece um repositório

de prodígios que outra coisa, interpretados pelo próprio e os seus coe-

vos como prova do declínio português dado o desgoverno do país:

cada dia se hia tudo perdendo e tudo de mal em pior naõ auendo nun-

ca hũa boa noua pera Purtugal e tudo se uoluia en cramores, prantos,

mizerias e trabalhos contados cada hũ os seus e os de todos, porque

7 Id., ibid., col. 1802. 8 Id., ibid., cols. 1805-1806; Benedicta WARD, Miracles and the Medieval Mind. Theory, Record and Event, 1000-1250, Wildwood House, Scholar Press, 1987, pp. 3-19. 9 Vide Jean DELUMEAU, Rassurer et protéger. Le sentiment de securité dans l’Occident d’autrefois, Paris, Fayard, 1989, pp. 199-210.

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todos os sentiaõ altos e baxos e desta maneira estaua a este tempo o

triste de Purtugal esperandosse ainda muitas dezauenturas segundo se

uia tudo armado pera as auer com aparatos grandes de guerra e com

sinais de muitos cometas e sinais de çeo que ameude aparessiam e

tornar a tanger o sino de Velilha esperandosse de seus efeitos serem

muito grandes como sempre forão10.

Não se veja aqui uma mera manifestação popular tolerada ou

combatida pelas estruturas encarregues de vigiar pela aplicação da

ortodoxia católica, já que a Igreja aproveitou alguns dos prodígios e

sinais para lhes dar uma interpretação condizente com a mensagem

que naquele momento queria fazer passar, nomeadamente por via do

púlpito. Uns quantos episódios tirados a esmo e disseminados no tem-

po mostram a tendência, boa parte dos quais sacados nessa compila-

ção de prodígios que é o “Memorial” de Pêro Rodrigues Soares. Em

1598, por exemplo, a ocorrência de três eclipses, dois da lua e um do

sol, despertaram uma ansiedade nas camadas populares e foram apro-

veitados pelos pregadores para denunciar o aumento dos pecados e a

impenitência dos crentes11

. Cinco anos mais tarde, em 1603, o sinal

dado pelo fogo, que consumiu a igreja e capela do Hospital de Todos-

os-Santos em Lisboa, mas poupou dois retábulos religiosos e o retrato

de D. Sebastião (r. 1557-78), foi incluído no sermão proferido pelo jesu-

íta Francisco Cardoso12

. Já no reinado de Filipe III (r. 1621-40), em

1625, o tanger do sino de Velilla levou o povo a orar perante o Santís-

simo exposto em certas igrejas e mosteiros13

. E por fim, em 1632, um

prodígio, sob a forma de globo de fogo que se desfez em clarão frente

à estátua de D. Afonso Henriques no mosteiro de Alcobaça, foi interpre-

tado como sendo mais um sinal do que estava para vir, e a sermonária

coeva continuou a versar sobre a má situação de Portugal e do seu im-

pério14

.

10 Memorial de Pero Roĩz Soares, leitura e revisão de Manuel Lopes de Almeida, Coim-bra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1953, p. 495. O itálico é nosso. 11 João Pedro MARQUES, A paranética portuguesa e a dominação filipina, Porto, Institu-to Nacional de Investigação Científica/Centro de HIstória da Universidade do Porto, 1986, pp. 109-110. 12 Id., ibid., pp. 122-123. 13 Id., ibid., p. 163. 14 Id., ibid., p. 178.

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Temos, assim, milagres e sinais ou prodígios, os quais nada mais

são que ocorrências inusitadas que se tornam recorrentes e adquirem,

em Portugal, de certa forma, um carácter repetitivo durante este perí-

odo. O seu impacte no quotidiano, pelo menos a crer nos registos dei-

xados por Pêro Rodrigues Soares, foi grande, se bem que a leitura dos

contemporâneos foi tudo menos uniforme a seu respeito, tal como o foi

o seu aproveitamento político e religioso. No caso goês falta-nos um

guia como Rodrigues Soares para narrar as miracula quotidiana que

ocorreram na capital do Estado da Índia, pelo que na ausência de me-

lhor utilizaremos o testemunho de fr. Diogo de Santa’Ana OESA, que

presenciou o milagre de Santa Mónica, em 1636, e dele deixou uma

relação manuscrita. Em complemento, estudar-se-á outro milagre, o da

Santa Cruz da Boa Vista, ocorrido em 1619, para se analisar as seme-

lhanças e diferenças na reacção da população que presenciou ambos,

tratando de esboçar um enquadramento da forma como foram assimi-

lados pelos distintos estratos da sociedade goesa, no contexto e vivên-

cia cristã da população local. No caso de Santa Mónica, há ainda outra

dimensão a ter em conta, a de se tratar de um universo privado e en-

clausurado bem distinto do milagre da Boa Vista que se desenrolou à

vista de todos. A noção de público e privado a nível do espaço e da so-

ciedade joga um papel importante no quotidiano, não sendo por mero

acaso que a historiografia francesa ligada às mentalidades tratou jus-

tamente da “História da vida privada”15

como uma forma mais sofisti-

cada da antiga “História do quotidiano” com base em novas categorias

analíticas. E nem Portugal ficou indemne à moda, já que recentemente

foi publicada uma “História da vida privada” dirigida por José Matto-

so16

.

Vamos ver que tipo de retrato social emergirá neste estudo sobre

o inusitado no quotidiano goês, onde o privado e o público se misturam

com fins nem sempre claros à primeira vista.

15 Philippe ARIÈS e George DUBY, Histoire de la vie privée, 5 vols., Paris, Seuil, 1985-1987. Traduzida para português como História da vida privada, 5 vols., Porto, Afronta-mento, 1989-1991. 16 José MATTOSO, História da vida privada em Portugal, 4 vols., Lisboa, Círculo de Leito-res, 2011.

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I. Fontes e autores

Para o milagre de Santa Mónica dependemos do testemunho directo de

fr. Diogo de Sant’Ana OESA, o que se revela problemático dado o ca-

rácter francamente apologético do texto, uma vez que o frade agosti-

nho tinha sido o confessor e administrador do mosteiro durante trinta e

sete anos17. A relação, por seu lado, está inserida numa vasta obra de

teor encomiástico à comunidade, na qual fr. Diogo descreveu a perse-

guição movida pela Câmara de Goa a Santa Mónica, rebatendo de for-

ma escolástica os argumentos que a edilidade goesa apresentou por

duas vezes ao vice-rei conde de Linhares (1629-35) para extinguir o

mosteiro: a primeira em 1632 e a segunda em 1634-163518

. Quanto à

autoria não há dúvidas, já que o nome do frade agostinho aparece por

duas vezes nas folhas de rosto de duas das relações: “feita pollo reue-

rendo padre-mestre frey Diogo de Sancta Ana”19

e “feita pollo reueren-

do padre-mestre frey Diogo de Sancta Ana”20

. Há menos certezas

quanto à mão que o escreveu, tarefa que pode ter sido cometida a ou-

tra pessoa que não o frade agostinho, cabendo ainda a hipótese de se

tratar de uma cópia de quatro manuscritos diferentes e separados que

17 Sobre este personagem veja-se a sucinta biografia apresentada em “Manual eremíti-co da Congregação da Índia Oriental dos Eremeitas de N. P. S. Agostinho”, in Documen-tação para a História das missões do Padroado Português do Oriente - Índia, editado por António da Silva REGO, vol. XI (1569-1572), Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1955, pp. 251-252. 18 Para além da apologia a favor de Santa Mónica, o manuscrito que incluiu a relação do milagre é um compêndio de ataques contra a governação do conde de Linhares e aos seus aliados. O manuscrito divide-se em quatro partes:

1.ª - Onde se relata a “perseguição” feita a Santa Mónica e defesa apresentada a 10 de Fevereiro de 1632 por fr. Diogo de Sant’Ana ao conde de Linhares (fls. 1-90); 2.ª - Narração da segunda “perseguição” e respectiva defesa por fr. Diogo em 1634 e 1635 (fls. 101-251); 3.ª “Resenha das perdas que teve o Estado da Índia Oriental em o tempo em que foi vice-rei dele Dom Miguel de Noronha conde de Linhares, que o governou por mais de seis anos começando em 21 de Ouubro de 1629 e concluindo em 9 de De-zembro de 1635 (fls. 257-263)”; 4.ª “Verdadeira relação do muito grande e protentose milagre, que aconteçeo em o sancto cruçifixo do coro da igreia das freiras do religiozissimo mosteiro de Sancta Monica de Goa, em oito de Feuereiro de mil seisçentos e trinta e seis annos” (fls. 265-277)

As quatro partes constituem o códice 816 dos Manuscritos da Livraria (doravante ML, cód. 816), colecção do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante TT). 19 Cf. TT, ML, cód. 816, fl. 1. 20 Cf. TT, ML, cód. 816, fl. 265.

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foram reunidos com o intuito de publicação. Sendo assim, cabe consi-

derar um outro interventor no processo que funcionou como o patrono

e teria interesse na impressão do milagre e na fronda anti-Linhares,

talvez D. fr. Miguel Rangel, que foi bispo de Cochim e governou a dio-

cese de Goa (1634-1635) na fase final da administração de D. Miguel

de Linhares. Em qualquer caso, o desiderato do prelado ficou por reali-

zar.

Ainda antes da morte de fr. Diogo, ocorrida em Goa a 6 de Outu-

bro de 164421

, o manuscrito foi enviado para a casa-mãe dos Agosti-

nhos, onde teria entrado antes de 1640 e foi visto pelo bibliófilo Diogo

Barbosa Machado em algum momento durante a primeira metade de

Setecentos. Ponto interessante a reter, na descrição que Barbosa Ma-

chado deu do manuscrito da biblioteca do convento da Graça de Lis-

boa, e que corresponde ao que existe actualmente na Torre do Tombo,

a parte tocante explicitamente às perdas registas durante a governa-

ção de Linhares ficou por referir22

. Seja qual fosse o propósito almejado

com o envio do manuscrito, e a acreditarmos em Barbosa Machado,

apenas a parte do milagre encontrou interessados na sua impressão, já

que, em, 1640 o agostinho espanhol fr. Fernando Camargo a teria tra-

duzido para castelhano e publicado na imprensa olissiponense de Ma-

nuel da Silva23

. Ora a notícia coligida pelo bibliófilo setecentista não

corresponde totalmente à realidade, uma vez que o título existente

impresso em 1640 por Manuel da Silva está em português e não em

castelhano24

. O folheto, um in 4.º de uns meros oito fólios, do qual so-

brevivem três exemplares na Biblioteca Nacional, não possui outro no-

me que o do autor da relação original, fr. Diogo de Sant’Ana. A estra-

nheza é tanto maior quanto o bibliófilo espanhol Nicolás Antonio, na

21 Cf. “Manual eremítico da Congregação da Índia Oriental dos Eremeitas de N. P. S. Agostinho” in REGO, Documentação para a História das missões (…), ob. e vol. cits., p. 252. Barbosa Machado deu a data do seu necrológio mais tarde, a 6 de Outubro de 1646; cf. nota 22 infra. 22 Diogo BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, (reimpressão da edição de 1741), vol. I, Coimbra, Atlântida Editora, 1965, p. 630. 23 Id., ibid. 24 O seu título completo é Relaçam verdadeira do milagroso portento, & portentoso milagre, q[ue] aconteceo na India no santo crucifixo, q[ue] està no coro do observan-tissimo mosteiro das freiras de S. Monica da cidade de Goa, em oito de Fevereiro de 636. & continuou por muitos dias, tirada de outra, que fez o reverendo P. M. Fr. Diogo de S. Anna ..., Lisboa, Casa Impressora de Manuel da Silva, 1640, 8 fls. In 4º.

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sua Bibliotheca Hispana Nova, publicada postumamente pela primeira

vez em 1696, na entrada consagrada ao agostinho espanhol fr. Fer-

nando de Camargo y Salgado, o único com possibilidade de correspon-

der ao frade apontado por Barbosa Machado, não mencionar este título

entre a sua produção, nem referir qualquer obra sua que tenha saído

de prelos lisboetas25

. Tratar-se-á de um erro de Barbosa Machado, ou

este apenas reproduziu uma tradição que ainda corria no seu tempo?

Desconhecemos, mas sabe-se que o texto de fr. Diogo conheceu

alguma circulação, cuja amplidão, contudo, apenas se pode esboçar. O

prolixo polígrafo Manuel de Faria e Sousa, por exemplo, deve tê-lo usa-

do na composição da sua “Asia Portuguesa”, terminada por volta de

164126

, embora só tenha sido impressa entre 1666 e 1675. A narração

do milagre aparece no terceiro volume27

, dedicado inteiramente à épo-

ca filipina, que se publicou em língua castelhana na oficina de António

Craesbeeck de Melo em 1675. A fonte de Faria e Sousa parece ser o

frade agostinho, embora se saiba que possuía uma rede de informado-

res na Índia com quem se correspondia para obter notícias para a sua

crónica. A brevidade do tratamento concedido por Faria e Sousa con-

trasta com a utilização que outro agostinho, fr. Agostinho de Santa Ma-

ria, deu a esta fonte na detalhada história que fez do mosteiro de San-

ta Mónica, impressa em 1699 28

, a qual é ainda hoje um filão para

quem queira conhecer os cantos ao cenóbio goês e às suas habitantes.

Fr. Agostinho pertencia à mesma ordem religiosa que fr. Diogo, pelo

que deve ter tido acesso ao manuscrito do seu confrade transmontano

que se guardava à época, como se disse, na biblioteca da Graça. Aliás

fr. Agostinho tinha um interesse por este tipo de miracula quotidiana

ligado a imagens, uma vez que, de 1707 a 1723, compôs dez volumes

dedicados à compilação de milagres relacionados com a estatuária ma-

25 Nicolás ANTONIO, Bibliotheca Hispana Nova sive hispanorum scriptorum qui ab anno MD ad MDCLXXXIV floruere notitia (reimpressão da edição do impressor régio Joaquín de Ibarra em 1783), vol. I, Madrid, Visor Libros, 1996, p. 370. 26 Corresponde 1641 ao ano da carta dedicatória a Filipe III, cf. Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, códice 13062. 27 Utilizou-se a edição da obra de Faria e Sousa traduzida para português, Manuel de FARIA E SOUSA, Ásia Portuguesa, vol. VI, Porto, Livraria Civilização - Editora, 1947, pp. 447-450. 28 Fr. Agostinho de SANTA MARIA, História da fundação do real convento de San-ta Mónica da cidade de Goa, corte do Estado da Índia, e do Império Lusitano do Orien-te, Lisboa, Oficina de António Pedroso Galrão, 1699.

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riana em Portugal e no seu império 29

. Assinale-se a circulação do ma-

nuscrito de fr. Diogo desde a sua elaboração e remessa para o Reino

antes de 1640, mas sublinhe-se a sua utilização por autores eclesiásti-

cos e ligados aos Agostinhos. A maior estranheza do caso, contudo,

reside no facto de outras fontes coevas passarem por cima do que

ocorreu em Goa em 1636. Por exemplo, a correspondência oficial do

vice-rei é omissa quanto às ocorrências, mau grado saber-se que Pedro

da Silva (1635-39) visitou o mosteiro na tarde de 3.ª feira, 12 de Feve-

reiro, após uma nova putativa manifestação no crucifixo30

. Só uma ca-

bal investigação feita noutra documentação contemporânea poderá

revelar novas pistas, nomeadamente nas notícias coligidas pelo chan-

tre eborense Manuel Severim de Faria entre 1631 e 1640 referentes ao

Estado da Índia31

.

Dependemos assim de uma só fonte e além do mais comprometi-

da com o acontecimento, dado que o seu autor tinha particular interes-

se na história e na casa religiosa em questão. A personagem em ques-

tão, fr. Diogo de Sant’Ana, é, pois, fulcral para se entender tanto a nar-

rativa como os acontecimentos em si. Enquanto um códice seiscentista

sobre a missão agostiniana na Índia cala datas e pormenores biográfi-

cos sobre fr. Diogo32

, outro - cuja compilação, num primeiro momento,

cobre até 1752, e, posteriormente modernizada, até 1817 - deu-o como

natural da localidade transmontana de Vila Nova de Lampazes, a qua-

tro léguas de Bragança, e descendente dos condes de Benavente, em

Castela, a crer neste seu biógrafo33

; elementos que, de resto, Barbosa

Machado seguiu na entrada que lhe dedicou na Bibliotheca Lusitana, à

excepção dos seus ilustres avoengos, pelo que se pode supor que uma

29 Fr. Agostinho de SANTA MARIA, Santuário Mariano, e histórias das imagens milagro-sas de Nossa Senhora e das milagrosamente aparecidas, em graça dos pregadores e dos devotos da mesma Senhora …, 10 vols., Lisboa, Oficina de António Pedroso Galrão, 1707-1723. 30 Cf. TT, ML, cód. 816 fls. 271-272. 31 Veja-se Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 7640, Decada quarta do Estado da India desde o anno de 631 ate 1640 colligido de rellações manuscritas da livraria do senhor Manuel Seuerim de Faria, chantre da se de Evora. 32 Veja-se “Missões dos religiosos agostinhos na Índia” in REGO, Documentação para a História das missões …, ob. cit., vol. XII (1572-1582), Lisboa, Agência Geral do Ultra-mar, 1958, p. 134. 33 “Manual eremítico da Congregação da Índia Oriental dos Eremeitas de N. P. S. Agos-tinho”, ibid., vol. XI, p. 250.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 209

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versão inicial do “Manual Eremítico” tenha sido a origem da informa-

ção34

. O próprio, todavia, encarregou-se de enjeitar o lugar de berço

fornecido pelo seu biógrafo, dado afirmar-se simplesmente “natural da

cidade de Bragança”35

. Pouco importa o seu local de nascimento, por-

que de qualquer maneira era transmontano. Antes de ingressar na Or-

dem de Santo Agostinho, tendo professado no convento da Graça de

Lisboa, em 1594, fr. Diogo foi dado como estudante em Salamanca,

provavelmente de direito canónico ou de teologia. Em 1595, zarpou

para a Índia na armada do capitão-mor João de Saldanha e na compa-

nhia de D. fr. Aleixo de Meneses, seu confrade, que ia nomeado como

arcebispo de Goa36

, o qual viria a ser um personagem chave na vida de

fr. Diogo. Em 1596 foi ordenado sacerdote em Goa e partiu para Ba-

çaim, onde esteve ligado à fundação do convento agostinho e por onde

teria ficado até 1605, ano em que foi eleito prior do convento de As-

paão [Eśfahān], tendo ficado na Pérsia Safávida até 1607 ou 1609, ano

em que D. fr. Aleixo de Meneses, então governador do Estado (1607-

09), o chamou de volta a Goa para ficar ligado à obra de Santa Mónica

que o arcebispo criava por aquela altura. Com a partida de D. fr. Aleixo

para o Reino, em 1610, fr. Diogo permaneceu profundamente ligado ao

mosteiro como seu administrador e protector oficioso até à sua morte,

ocorrida em 1644, tendo o seu corpo sido inumado debaixo da tribuna

onde estava a cruz milagrosa37

.

Um dos traços da sua personalidade foi o carácter apaixonado,

desabrido mesmo nalgumas ocasiões, com que defendeu a sua ordem,

os seus confrades e Santa Mónica, não hesitando em entrar em conflito

aberto e virulento com as mais altas instituições do Estado da Índia.

Um exemplo, entre vários possíveis, serve para ilustrar como os extre-

mos da sua defesa apaixonada lhe causaram dissabores ao longo da

sua vida. Em 1628, após a sua destituição como vice-rei e a sua substi-

34 BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, ob. cit., vol. I, p. 630. 35 TT, ML, cód. 816, fl. 1. 36 Veja-se Relação das naos e armadas da India com os successos dellas que se pude-ram saber, para noticia e instrucção dos curiozos, e amantes da Historia da Índia (Bri-tish Library, Codice Add. 20902), edição de Maria Hermínia MALDONADO, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985, pp. 98-99. 37 Para mais detalhes sobre a vida de fr. Diogo veja-se “Manual eremítico da Congrega-ção da Índia Oriental dos Eremitas de N. P. S. Agostinho” in REGO, Documentação para a História das missões …, vol. XI, pp. 250-252.

210 João Te les e Cunha

I ICT | bHL | b logue de H is tór ia Lusó fona | Ano V I | Agosto 2011

tuição no governo da Índia pelo bispo de Meliapor, D. fr. Luís de Brito

(1628-29), o conde da Vidigueira (1622-28) pediu à Câmara goesa que

lhe permitisse regressar ao Reino a bordo da nau que tinha adquirido

durante a sua administração com os proventos do Consulado. O negó-

cio estava a ser debatido na municipalidade, cuja vereação fr. Diogo

acusava de ser parcial a D. Francisco da Gama por este os ter nomea-

do38

, e os vereadores preparavam-se para votar favoravelmente o pe-

dido quando o frade interrompeu a sessão movido pelo desejo de im-

pedir a partida da embarcação a todo custo. Apesar da altercação veri-

ficada, fr. Diogo não conseguiu atingir o objectivo proposto pela facção

política contrária à saída da nau, atrás da qual se encontrava o novo

governador, D. fr. Luís, também ele agostinho, o qual se tinha inimista-

do com o seu antecessor e tudo procurava fazer para humilhar o altivo

conde da Vidigueira antes do seu regresso a Portugal. Outra das perso-

nagens na sombra durante esta transição de governo complicada e

conflituosa era o ouvidor-geral Paulo Rebelo, exactamente a mesma

pessoa acusada, juntamente com os Agostinhos, de terem manipulado

a assinatura do governador durante a fase final da sua doença a fim de

correrem com os negócios do Estado. Mais, os Agostinhos também fo-

ram acusados de terem sonegado alguns papéis oficiais após a morte

de D. fr. Luís, em 162939

. O assunto podia ter custado caro a fr. Diogo,

porque o conde da Vidigueira queixou-se dele no Reino e abriram-lhe

um inquérito em 1630, do qual veio a ser ilibado em 163340

.

Se a fonte e o seu autor para o milagre de Santa Mónica são bem

conhecidos, o mesmo não se pode dizer para o da Cruz da Boa Vista,

ocorrido em 1619. O relato existente, ou sobrevivente melhor dito, da-

ta tão-só do século XVIII e foi redigido pelo deão da sé goesa, Henrique

Bravo de Morais, fazendo parte de uma obra mais vasta consagrada à

história eclesiástica da Índia. O deão Bravo de Morais era um daqueles

eruditos locais que se correspondia com a nascente Academia Real de

História (1720), à qual ofereceu uma cópia do manuscrito que tinha

38 Cf. TT, ML, cód. 816, fls. 160v-162 com a história completa. 39 «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Madrid 27.03.1631, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 28, fl. 52. 40 «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lisboa, 28.02.1632; «Carta do conde de Linhares para Filipe III», Goa, 26.01.1633; «Parecer do chanceler Gonçalo Pinto da Fonseca», Goa, 03.02.1633, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Mon-ções, cód. 30, fls. 118-118v.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 211

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escrito, historiando os arcebispos e prelados goeses, bem como a des-

crição das igrejas da arquidiocese41

. A notícia do milagre da Bela Vista

aparece dada muito sucintamente na vida do arcebispo D. fr. Cristóvão

de Lisboa (1612-22)42

, antes de ter uma breve descrição de três fólios

mais à frente43

. Resulta óbvio que a fonte seguida pelo deão foi coeva

do acontecimento e, possivelmente, teria sido redigida por ordem de

D. fr. Cristóvão com o intuito de a fazer publicar, tanto mais que o seu

título “Relação verdadeira, mas breve do insigne milagre do appareci-

mento, e visão de Cristo Nosso Senhor crucificado na cruz que esta no

monte da Boa Vista desta cidade de Goa no anno de 1619” é muito si-

milar ao do opúsculo publicado em 1640 relativo à ocorrência de San-

ta Mónica. De qualquer forma supomos tratar-se, tanto quanto nos é

possível inferir com os elementos existentes, de uma elaboração feita a

partir do relatório do sucesso da Boa Vista ordenado pelo arcebispo, o

qual coligiu as declarações das testemunhas e a deliberação da junta

de teólogos, juristas, médicos e cirurgiões convocados para o efeito44

.

Seja sob a forma de “Relação verdadeira” ou como relatório, o certo é

que o texto circulou entre a Índia e Portugal uma vez que Manuel de

Faria e Sousa o conheceu e dele fez uso na sua Ásia Portuguesa, ape-

sar de ter considerado o evento inferior ao sucedido anos mais tarde

em Santa Mónica45

.

Há, no caso de Faria e Sousa, um outro ponto interessante e de

relevo, já que o relato da Bela Vista se encontra incluído numa parte da

obra que trata exclusivamente de miracula quotidiana, os sinais a

anunciar situações funestas, que, no momento em que ocorreram, nin-

guém soube muito bem como interpretá-los nem antever o que trari-

am. Os diversos episódios narrados pelo polígrafo desenrolaram-se em

1618 e 1619, e foram desde fenómenos meteorológicos violentos em

Baçaim, Bombaim, Taná, Agaçaim e Salsete (Maio de 1618), precedidos

de figuras prodigiosas no céu e seguido de uma epidemia na Índia cuja

causa ninguém conseguiu acertar. Em Novembro desse ano apareceu

41 BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana, ob. cit., vol. II, p. 443. 42 Cf. Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 54v. 43 Ibid., fls. 301-303. 44 Ibid., cód. 176, fl. 303. 45 FARIA E SOUSA, Ásia Portuguesa, ob. cit., vol. VI, pp. 205-207; a comparação encon-tra-se na p. 447.

212 João Te les e Cunha

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um cometa, interpretado como anunciador da queda de Ormuz, que na

realidade só ocorreria quatro anos mais tarde, em 1622. De tudo deu

conta Faria e Sousa, bem como do pânico social instalado por tais ma-

nifestações e das mostras de piedade e devoção popular, como as pro-

cissões organizadas pelos Franciscanos em Cochim e em Goa, nesta

um espectáculo sangrento pelos penitentes, um dos quais desfilou nu e

cravado de plantas espinhosas. Mas também se registou convulsão re-

ligiosa em Baçaim após o anúncio da bula de Paulo V (1605-21) a res-

peito da imaculada conceição de Maria, que acabou em batalha campal

entre Franciscanos e Dominicanos. Parecia o fim do mundo e da ordem

social estabelecida, a qual no fim poderia ser restabelecida se a comu-

nidade cristã se arrependesse do seu comportamento e, por actos pú-

blicos, mostrasse que queria voltar ao ‘verdadeiro caminho’46

.

II - A devoção pública no quotidiano

A devoção pública é uma das formas mais perceptíveis de religiosidade

porque se revela exteriormente, ao invés da privada, que resulta de

uma introspecção pessoal do indivíduo com Deus e só aparece transmi-

tida, quando muito, em obras de místicos ou em tratados devocionais.

A devoção pública, porque visível, é a que mais facilmente fica regista-

da sob variadas formas de acordo com a ambiência social, religiosa e

mental de uma determinada época, embora esteja enformada num

quadro de culpabilização colectiva por causa da queda do Homem des-

de Adão e Eva. A prática religiosa diária assegurava aos crentes a pos-

sibilidade de salvação num mundo marcado pelo sentimento de culpa

em relação ao pecado original47

.

Este sentimento de culpa e insegurança comum no Ocidente Mo-

derno aumentava em Goa porque a cidade jazia na fronteira física e

espiritual da Cristandade, frente a inimigos políticos e religiosos que a

rodeavam. Para os goeses a separação era precária dado viverem sob

a constante ameaça de adversários corporizada sob a forma de gran-

des ofensivas que chegavam às suas portas, como o cerco colocado

46 Ibid., pp. 193-211. 47 Jean DELUMEAU, Le péché et la peur. La culpabilization en Occident XIIIe-XVIIIe siècles, Paris, Fayard, 1983, pp. 9-10 e 331-338.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 213

I ICT | bHL | b logue de H is tór ia Lusó fona | Ano V I | Agosto 2011

por ‘Ali Ādel Šāh I (r. 1558-80) em 1570 ou o que monarca marata

Śāmbhajī (r. 1680-89) faria em 1683, ou então de constantes escara-

muças nas suas zonas limítrofes, cuja frequência fazia parte do quoti-

diano. Só que este era um inimigo fora de portas, facto de certa forma

tranquilizador, uma vez que o problema mais grave era os goeses con-

viverem intra-muros com correligionários daqueles que os atacavam.

Mais do que política, a questão de convivência tornou-se religiosa e

social, factor se agudizava em Goa, por ser uma sociedade de fronteira

para todos os efeitos. Fronteira terrestre, mas também marítima. As-

sim, a violência e um certo desregramento faziam parte do seu quoti-

diano.

Refira-se, a título ilustrativo do que se acaba de explicitar, a histó-

ria contada por Linschoten acerca seu conterrâneo de Frans Coningh,

assassinado e roubado pelo amante da mulher, o português António

Fragoso, naquilo que tanto tem de picaresco próprio da época como se

tornaria num topos habitual entre os viandantes que visitaram Goa, a

infidelidade feminina48

. Há em todo este episódio um dado a reter, o de

que o motivo fornecido por Linschoten para explicar a acção da esposa

conivente com o assassino adveio da influência que sobre ela exercia a

mãe, uma conversa “que não conseguia dissimular a sua natureza

mourisca, após o falecimento do marido, seja pelo mal que queria ao

genro, seja pela sua própria volúpia” levou a filha a desembaraçar-se

do marido49

. O interessante aqui não é a causa, a volúpia feminina,

nem a indutora do crime, uma mulher de natureza mourisca, mas sim

quem o refere, um holandês reformado, mostrando como certos senti-

mentos são comuns aos europeus independentemente da sua filiação

religiosa. Segundo caso, um entre os muitos narrados por Faria e Sousa

para o espantoso ano de 1618, a batalha campal entre os mercadores

de seda e ourives de prata goeses tudo porque um prateiro se atreveu

a sair à rua com um sombreiro transportado por um peão, algo que lhe

estava vedado e era atributo daqueles comerciantes. Foi preciso as

autoridades municipais intervirem para pôr termo ao desacato público,

48 Jan Huygen van LINSCHOTEN, Itinerário, viagem ou navegação de Jan Huygen van Linschoten para as Índia Orientais ou Portuguesas, editado por Arie POOS e Rui Manuel LOUREIRO, Lisboa, CNCDP, 1997, pp. 301-306. 49 Id., ibid., p. 302. Os itálicos são nossos.

214 João Te les e Cunha

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as quais, no meio da refrega, aproveitaram para fazer mão baixa nas

lojas dos mercadores50

.

A convivência dentro de portas com alguém diferente do ponto de

vista religioso, fosse muçulmano ou hindu, colocava vários desafios à

sociedade goesa, cuja constituição era particularmente heteróclita,

mesmo dentro de cada grupo de crentes já que, por exemplo, havia

cristãos de diversos tipos e dentro dos católicos a distinção era feita de

acordo com a sua procedência geográfica: reinóis, mestiços, castiços e

assimilados ou convertidos. Note-se como o autor desta definição, o

jesuíta Alessandro Valignano, ia mais longe ao destrinçar entre os

reinóis aqueles que eram era de cepa cristã-nova ou não51

. Donde re-

sulta o facto de a linhagem e a data de adesão ao catolicismo constituir

uma preocupação permanente numa sociedade de fronteira, onde a

numerosa categoria dos assimilados constituía um problema constante

em termo da sua fidelidade à nova fé e do medo crónico de que apos-

tasiassem ou contaminassem o catolicismo com elementos da sua an-

tiga crença. E como Goa era uma sociedade de fronteira, o contacto

com o antigo correligionário, a transgressão e o desvio à norma cristã

estava facilitado.

Tais receios eram públicos desde o primeiro concílio provincial de

Goa em 1567, se bem que fossem anteriores, exprimindo a necessida-

de de exorcizar a prática de assédio em que a sociedade goesa vivia

mergulhada ao tempo e o medo de que a comunidade cristã, católica

melhor dito, se dissolvesse e se deixasse corromper pela convivência

com gentios e mouros. Daí a Igreja advogar a separação das comuni-

dades por credo religioso e lutar pelo fim da inter-convivialidade52

. Era

também um sinal de uma era marcada por um catolicismo pós-

tridentino mais aguerrido, vigilante e actuante53

, embora esta preocu-

50 FARIA E SOUSA, Ásia Portuguesa, ob. cit., vol. VI, pp. 201-202. 51 Cf. “Sumario de las cosas que perteneçen a la Provincia de la Yndia Oriental y al govierno della, compuesto por el padre Alexandro Valignano, visitador della, y dirigido a nuestro Padre General Everardo Mercuriano en el año de 1579”, in REGO, Documen-tação para a História das Missões …, ob. cit., vol. XII (1572-1582), pp. 577-581. 52 “Primeiro concílio provincial de Goa celebrado em 1567”, in J. H. da CUNHA RIVARA, Archivo Portuguez Oriental (reimpressão da edição goesa de 1862), fasc. 4, Nova Delhi, Asian Educational Services, 1992, pp. 1-75. 53 António da SILVA REGO, Trent’s impact on the Portuguese Patronage Missions, Lis-boa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 215

I ICT | bHL | b logue de H is tór ia Lusó fona | Ano V I | Agosto 2011

pação também fosse visível e partilhada pela legislação régia que pro-

curava enquadrar e proteger os recém-convertidos, com relevo para a

que foi publicada durante o reinado de D. Sebastião (1557-78)54

. Nem

assim o temor que os cristãos, especialmente os convertidos, cruzas-

sem a fronteira para o lado contrário cessou numa zona de raia como

Goa, conforme demonstrava a repetição das mesmas normas legais

por sucessivos concílios goeses até 1606. A consciência da fragilidade

da sua situação de cidade cristã enquistada em território adverso,

quando não inimigo, sempre estava presente entre os goeses que

exorcizavam o medo sentido e afirmavam a sua fé mediante grandes

demonstrações públicas de devoção, conforme constatou Pietro della

Valle, que visitou Goa no princípio da década de 1620, embora lhe te-

nha escapado a razão pela qual o faziam55

.

De resto, os relatos de viagem constituem bons guias para se es-

boçar um quadro do quotidiano goês no primeiro quartel do século XVII,

ainda que de forma sumária, de maneira a compreender-se o contexto

social e religioso em que ocorreram os milagres. O primeiro texto dis-

ponível para o período, o do francês François Pyrard, abarca o período

que vai de Junho de 1606 a Fevereiro de 161056

. O segundo relato, o do

viajante romano Pietro della Valle, mostra Goa numa época posterior,

de Abril de 1623 a Novembro de 1624, longe por isso da época áurea

em que Pyrard de Laval a visitou57

.

(i) Ritos e organização da religiosidade no quotidiano

O sinal exterior mais evidente de religioso eram os edifícios destinados

ao culto, uma vez que ambos os viajantes notaram o seu elevado nú-

mero, considerado mesmo excessivo para um aglomerado urbano do

tamanho de Goa, segundo della Valle, tal como a quantidade de religi-

osos. Não foram casos únicos. Em 1639, o alemão Johann Albrecht von

54 Veja-se O Livro do ‘Pai dos Cristãos’, editado com notas por José WICKI, Lisboa, Cen-tro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969. 55 Pietro DELLA VALLE, The Travels of Pietro della Valle in India, editado com introdução e notas por Edward GREY (reimpressão da edição da Hakluyt Society de 1892), vol. II, Nova Delhi, Asian Educational Services, 1991, pp. 415-416. 56 François PYRARD DE LAVAL, The Voyage of François Pyrard of Laval to the East Indi-es, the Maldives, the Moluccas and Brazil, editado por Albert GREY e H. C. P. BELL, 3 vols., Londres, Hakluyt Society, 1887-1890. 57 DELLA VALLE, The Travels, ob. cit.

216 João Te les e Cunha

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Mendelslo contou como a cidade devia a sua beleza às grandes e belas

igrejas, aos seus mosteiros e aos palácios rodeados de belos e grandes

jardins58

. Alguns decénios mais tarde, em 1680-81, o médico inglês

John Fryer descrevia como a cidade se estendia por sete colinas, à ma-

neira de Roma, onde se erguiam por todo o lado conventos, igrejas e

edifícios magníficos59

. Mas se Pyrard achara as igrejas soberbas obras

de arte, já Pietro della Valle encontrava-as destituídas de ornamento e

algo chãs do ponto de vista artístico, talvez face ao seu arquétipo ro-

mano, não se impressionando sequer com a catedral, então ainda por

concluir60

.

Outro dos sinais de devoção exterior, notado por Pyrard de Laval,

foi o do terço que todos os goeses cristãos traziam consigo, os cristãos-

novos usavam-no ao pescoço, enquanto os reinóis e os naturais o leva-

vam na mão, desfiando as contas enquanto caminhavam61

. Todos no-

taram uma sociedade marcada pela necessidade de exibir estatuto,

mesmo que socialmente o seu grupo de origem fosse humilde, naquilo

que era outro dos topoi recorrentes da literatura de viagem a respeito

de Goa e do Estado da Índia. Della Valle, por exemplo, assinalou como

qualquer fiel se deslocava para a igreja com a máxima sumptuosidade,

independentemente do seu estatuto social62

. Pyrard, por seu lado, des-

tacou a nobreza e os grandes mercadores dos demais, pela riqueza do

traje, pelo número da equipagem e do pessoal doméstico que traziam

atrás de si em cortejo63

. A igreja era um espaço de valências múltiplas,

servindo tanto para o culto como de local de sociabilidade, neste último

aspecto a par da rua, mas revestida de maior dignidade. O crente par-

ticipava na missa enquanto assistente ao mesmo tempo que procurava

singularizar-se da restante congregação pela sua devoção e aspecto

58 Johann Albrecht MENDELSLO, Voyage en Perse & en Inde (1637-1640), traduzido,

editado e anotado por Françoise de VALENCE, Pris, Chandeigne, 2008, p. 123. 59 Johen FRYER, A New Account of East India and Persia being Nine Years’ Travels 1672-1681, editado com notas e introdução por William CROOKE (reimpressão da edição da Hakluyt Society de 1912), vol. II, Millwood (N. J.), Kraus Reprint, 1967, p. 10. 60 PYRARD, The Voyage…, ob. cit., vol. II-1, p. 99; DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. I, pp. 155-156. 61 PYRARD, The Voyage…, ob. cit., vol. II-1, p. 99. 62 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. I, pp. 157-158. 63 PYRARD, The Voyage…, ob. cit., vol. II-1, pp. 101-103.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 217

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exterior, tanto mais que este era um meio de afirmação social e políti-

ca da sua pessoa num espaço público.

Ao longo do ano litúrgico os goeses encontravam muitas ocasiões

para se mostrarem e afirmarem a constância da sua fé. As festas co-

muns, missas diárias e dominicais sucediam-se num ritmo que vinha

marcado da Europa, mas, dada a especificidade meteorológica de Goa

e da regularidade com que a monção a visitava, o calendário foi altera-

do. Assim, a festa do Corpus Christi passou a realizar-se no primeiro

domingo depois da Páscoa, caso contrário cairia no início da monção,

com o que a chuva e o vento arruinariam a procissão64

. A festa de

S. João Baptista, todavia, não se alterara apesar de ser celebrada a 24

de Junho quando a monção já se fazia sentir, porque não era estrita-

mente religiosa. Pietro della Valle que a ela assistiu de uma janela da

casa do “Rei das Ilhas”, D. Filipe, descreveu a tradicional “corrida de

cavalos” na rua de S. Paulo, uma das vias calcetadas de Goa, que mais

não era que dois pares de cavaleiros a terçarem cimitarras65

.

Mas a maioria das festas litúrgicas corria segundo o calendário

transposto da Europa sem alteração. As festas fixas completavam-se

com as móveis. Mesmo assim, aos olhos dos visitantes europeus, pare-

ciam contaminadas com especificidades locais, fruto da convivência e

da conversão. Para Pyrard de Laval as celebrações do dia de Todos-os-

Santos eram bizarras para a sua sensibilidade francesa. Os cristãos,

conforme narrou, ofereciam vinho e vitualhas aos mortos, com o que o

chão das igrejas ficava coberto de alimentos que só eram recolhidos no

fim do serviço religioso66

. Tratava-se de ritos próprios de cunho ibérico,

desconhecidos fora da sua área de irradiação cultural e, ainda, de ritos

desfasados da prática católica europeia do seu tempo, pelo menos a

urbana. Segundo Pietro della Valle, o cortejo goês do Corpus Christi

seria mais apropriado para o mundo rural do que para as grandes cida-

des na Europa67

. E não se pode deixar de associar a imagem do peni-

64 Por Bula de Paulo III, mas só após o I Concílio de Goa (1567) ficou regulado de ma-neira uniforme a data da sua celebração; “Primeiro concílio provincial de Goa celebrado em 1567”, acção III, decreto 2º, in CUNHA RIVARA, Archivo…, ob. cit., fasc. 4, pp. 33-34. 65 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. I, pp. 177-178. 66 PYRARD, The Voyage…, ob. cit., vol. II-1, p. 97. 67 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. I, p. 167.

218 João Te les e Cunha

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tente nu cravado de espinhos a escorrer sangue que impressionou Fa-

ria e Sousa68

, com os sacrifícios que constam do Códice Casanetense69

.

François Pyrard chegou a Goa no ano em que se realizou o quinto

e último concílio provincial (1606). Instituídos após a reforma católica,

os concílios provinciais procuravam colocar em dia as práticas religio-

sas de acordo com o modelo saído de Trento, vigiar e aplicar a ortodo-

xia e expandir a acção evangelizadora. Não deixa de ser interessante

sublinhar como boa parte da produção legislativa conciliar girava em

torno dos conceitos de “conversão dos infiéis” e “boa administração da

cristandade”. O quinto concílio, por exemplo, dedicou-lhe trinta e três

decretos, enquanto o anterior, reunido em 1592, apenas promulgara

catorze decretos70

. Embora o enquadramento social e religioso da po-

pulação fosse relevante, o grosso das decisões conciliares de 1606 gi-

rou em torno do governo eclesiástico71

. O objectivo era evitar que a

organização do quotidiano religioso escapasse ao controlo eclesiástico.

Deste modo, as decisões conciliares de 1606 forneciam orientações e

normas para o clero, além de enquadrar a participação dos crentes na

vida religiosa, nomeadamente na organização de procissões ou na re-

presentação dos mistérios sagrados. A preocupação com um tal en-

quadramento eclesiástico compreende-se com o número de procissões

realizadas, pois, segundo contou um espantado Pietro della Valle, Goa

era o sítio onde mais préstitos se realizavam no mundo72

.

O controlo eclesiástico das procissões compreende-se pelo papel

que estas desempenhavam na mente dos fíéis, já que eram a materia-

lização organizada de uma necessidade colectiva para obter a salvação

manifestada ao longo do ano em datas consagradas pelo calendário

litúrgico, mas também em alturas especiais ou de emergência73

. No

68 FARIA E SOUSA, Ásia Portuguesa, ob. cit., vol. VI, p. 197. 69 Cf. Luís de MATOS, Imagens do Oriente no século XVI. Reprodução do códice portu-guês da Biblioteca Casanatense, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, es-tampas XLIV, XLVII. 70 Cf. “Decretos e resoluções do quarto concílio provincial de Goa” e “Decretos e reso-luções do quinto concílio provincial de Goa”, CUNHA RIVARA, Archivo…, ob. cit., fasc. 4, respectivamente pp. 185-193 e 204-221. 71 Em comparação houve uma progressão dos 31 decretos do terceiro concílio (1579) e 15 do quarto (1592) para os setenta e seis do quinto (1606). Cf. id., ibid., respectiva-mente pp. 152-177, 194-200 e 21-259. 72 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. II, p. 415. 73 Veja-se DELUMEAU, Rassurer et proteger…, ob. cit., pp. 90-91 e 112.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 219

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caso goês, havia ainda outras preocupações, porque, para além do en-

quadramento, o controlo significa também a tentativa de limpar uma

expressão de fé católica de inevitáveis contaminações por práticas cul-

turais locais. Por isso, o concílio de 1606 procurou libertar as procissões

de cargas profanas, entenda-se indianas, que se tinham acumulado até

aí com a participação de tangedeiras, cantadeiras, bailadeiras, ao pro-

curar restabelecer uma hierarquia processional onde o papel primordial

cabia à cruz, à cabeça do cortejo, seguida dos andores. Os participan-

tes deviam vestir e calçar-se condignamente, com especial relevo para

os acólitos e os que transportavam os andores. As próprias imagens

foram objecto de regulação, tendo em vista a erradicação das que iam

vestidas nas procissões, excepto se os santos representados perten-

cessem a alguma ordem religiosa74

.

Mau grado todas estas proibições, cerca de vinte anos mais tarde,

em 1623, a procissão da irmandade do Rosário, em que participavam

Dominicanos, ainda tinha as suas imagens vestidas75

. A resistência das

práticas e devoções populares sobrepunha-se, no entanto, às decisões

conciliares. Tal não significava que os esforços de enquadramento e

controlo eclesiástico tivessem fracassado, pois nos momentos mais

importantes, particularmente em acontecimentos de carácter excepci-

onal, a hierarquia eclesial conseguia controlar mais facilmente as ex-

pressões de devoção popular. Veja-se como, em 1619, aquando da

trasladação da cruz da Boa Vista da colina onde se encontrava para a

igreja de Nossa Senhora da Luz, a procissão então formada, que inici-

almente tinha um cunho popular, acabou por ser organizada e efectu-

ar-se no respeito pela hierarquia do clero que nela tomou parte, em

obediência às instruções do arcebispo D. fr. Cristóvão de Lisboa76

.

Procurou-se que a mesma ordem e dignidade fosse aplicada aos

mistérios e às representações dos Passos, por se tratar de encenações

muito estimadas e cultivadas no ano litúrgico goês, com o propósito de

servirem exclusivamente para a devoção. Desejava-se fornecer um

modelo comportamental e de reflexão para a população, inclusive a

74 “Decretos e resoluções do quinto concílio provincial de Goa”, CUNHA RIVARA, Ar-chivo…, ob. cit., fasc. 4, pp. 235-237. 75 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. I, pp. 189-190. 76 Cf. “Relação verdadeira…”, Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 302v.

220 João Te les e Cunha

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não-cristã, que poderia ser tocada pela mensagem do que se represen-

tava e converter-se, a fim de evitar que se transformasse em diverti-

mento puro e simples. Com o passar dos anos, o uso de figurantes nas

representações pascais em vez de imagens tinha dado origem à chaco-

ta e aos dichotes dos crentes numa das épocas de maior significado

para o mundo cristão. Visava-se corrigir ou eliminar, por exemplo, a

descida da cruz e a deposição do corpo de Cristo no regaço de Nossa

Senhora, uma estação dos Passos sempre atreita a que algo corresse

mal. Por isso, o quinto concílio procurou limitar ao máximo o recurso a

figurantes e, na sua total impossibilidade, proibiu a representação das

estações dos Passos nos locais onde, no passado, se tinha quebrado a

dignidade, o decoro e se atentara contra o elevado significado religioso

do momento77

. Aparentemente, as decisões conciliares não tiveram

muito êxito neste campo, porque, segundo o testemunho ocular de Pie-

tro della Valle, a procissão do Corpus Christi de 1623 continuava a

comportar a representação dos mistérios que o quinto concílio procura-

ra em vão censurar. Com a agravante de que a tradição de “correr os

Passos”, como então se dizia, se tornara mais num hábito de sociabili-

zação urbana do que numa prática religiosa78

.

Para além das festas consagradas no calendário litúrgico, surgi-

am, ocasionalmente, manifestações marcantes da devoção pública que

não se enquadravam nas expressões religiosas habituais. No período

que nos interessa, houve dois exemplos de manifestações desta natu-

reza, a celebração das canonizações de Santa Teresa de Ávila e de São

Francisco Xavier, ambas presenciadas por Pietro della Valle. Não há,

todavia, comparação possível entre estes dois eventos, por causa das

ordens que estavam por detrás dos festejos. A festa da canonização de

Santa Teresa foi organizada pelos Carmelitas Descalços, uma ordem

recém-chegada ao Estado da Índia, sobre a qual pendia um mandato

de expulsão por serem estrangeiros e terem chegado pela via do Médio

Oriente e não pela política e eclesiasticamente controlada Rota do Ca-

bo. A celebração servia tanto o objectivo de tornar visível uma ordem

religiosa recente como de tentativa de revogar a decisão da sua saída

77 “Decretos e resoluções do quinto concílio provincial de Goa”, in CUNHA RIVARA, Ar-chivo…, ob. cit., fasc. 4, p. 236. 78 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. II, pp. 414-415.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 221

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forçosa de Goa. Isso explica a rapidez e algum deslustre da festa, reali-

zada a 20 e 21 de Maio de 162379

.

Ao contrário da rapidez com que os Carmelitas promoveram as ce-

lebrações, no mesmo mês em que a notícia da canonização foi sabida,

os Jesuítas demoraram meses em preparativos da sua, para causar im-

pressão e com o objectivo de projectar o poder e o prestígio da Com-

panhia de Jesus na capital política do Estado da Índia, onde se aglome-

ravam os conventos de todas as ordens religiosas presentes no Padro-

ado80

. Percebe-se, por isso, a razão pela qual o cortejo comemorativo

da canonização de São Francisco Xavier, celebrado a 25 de Janeiro de

1624, se inscreveu num percurso urbano com um significado político-

religioso preciso. A procissão decorreu dentro de um trilátero, onde um

dos vértices estava na Sé, a cabeça visível da organização eclesial se-

cular de um Estado que ia do cabo da Boa Esperança até Macau, o ou-

tro caía no Bom Jesus e o terceiro em São Paulo, ambas igrejas da

Companhia. Significativamente, o percurso deixava de fora as igrejas e

conventos de Agostinhos e Dominicanos, que os Jesuítas então enfren-

tavam nos debates sobre a questão dos ritos malabares. Apenas os

franciscanos, entre as ordens religiosas presentes no Padroado, partici-

param nas celebrações81

.

Para marcar estes locais com a presença da Companhia, foram

construídas cinco grandes pirâmides ornadas de dísticos e estátuas,

uma das quais foi colocada sob a égide de Santo Inácio de Loyola e de

São Francisco Xavier, as quais, como assentavam sobre rodas, podiam

deslocar-se pelas vias urbanas e parar nos vértices do trilátero proces-

79 Sobre a expulsão dos Carmelitas Descalços veja-se «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lisboa, 28.01.1629, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 26, fl. 107; «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lis-boa,26.01.1630, ibid., cód. 27, fl. 170. As razões da expulsão dos Carmelitas Descalços prendiam-se com a sua tutela depender directamente da Cúria Romana e não do Pa-droado português. Este já não tinha recursos económicos para financiar a actividade missionária de mais esta ordem religiosa. Por outro lado, devido à diminuição de recei-tas, as ordens já estabelecidas no terreno pressionaram a Coroa no sentido de expulsar os Carmelitas para evitarem ter de repartir com eles as ordinárias com que o monarca português financiava a sua acção evangelizadora. 80 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. II, p. 402. 81 Para efeitos de propaganda, campo em que a Companhia de Jesus não conhecia rival, foi impresso um pequeno opúsculo no Colégio de São Paulo, em 1624, com a descrição dos festejos e cortejo; cf. Georg SCHURHAMMER, “Festas em Goa no ano de 1624”, in aut. cit, Varia, vol. I Anhänge, Roma/Lisboa, IHSI/CEHU, 1965, pp. 493-495.

222 João Te les e Cunha

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sional. O cortejo que seguiu ao longo da rota delineada abria com um

carro coroado pela Fama, que proclamava as novas da canonização,

seguiam-se três esquadrões de colegiais Jesuítas alusivos às zonas ge-

ográficas onde a Companhia actuava: Ásia, África e Europa. Havia mais

dois carros alegóricos, um dedicado à Fé e o outro à actividade cultural

da Companhia, os quais encerravam o desfile82

. A canonização de

São Francisco Xavier aumentou o prestígio e a projecção do poder dos

Jesuítas, que o voltaram a demonstrar em Novembro de 1624, aquando

da celebração da festa dos Mártires do Japão. O corpo do recém-

canonizado santo foi o ponto fulcral das cerimónias, ao redor do qual

uma série de actores secundários evoluiu com destaque para o vice-rei

conde da Vidigueira, acompanhado da nobreza e da população goesa

em geral83

. As festas da canonização de São Francisco Xavier e a dos

Mártires do Japão, para além do seu carácter excepcional no calendário

litúrgico anual, adquiriram outros contornos por se tratar de um acto

refundacional do catolicismo na Ásia. Tratava-se da afirmação de Goa

como centro difusor do catolicismo no Oriente, aparecendo como subs-

tituta asiática de Roma e secundarizando Meliapor no processo, para

além de São Francisco Xavier se ter transformado no novo Apóstolo da

Índia, em substituição do antigo São Tomé84

.

(ii) Um quotidiano religioso violento

O dia-a-dia religioso goês não fugia à realidade social circundante, do

qual a violência fazia parte. Esta podia adquirir a feição da pressão so-

cial exercida contra uma comunidade religiosa particular tendo em vis-

ta um desiderato político, económico ou social, como no exemplo con-

creto da coacção exercida sobre o mosteiro de Santa Mónica ao longo

da sua história. Assim, em 1613, no decurso da procissão da Senhora

das Angústias, o provedor e irmãos da Misericórdia goesa dirigiram in-

sultos e tentaram rasgar as vestes das jovens recolhidas em Santa Mó-

nica85

. Os confrades da Santa Casa de Goa pressionavam as recolhidas

82 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. II, pp. 402-403. 83 Id., ibid., pp. 409-414. 84 Veja-se Luís Filipe F. R. THOMAZ, “A lenda de S. Tomé Apóstolo e a expansão portu-guesa” in Lusitania Sacra, 2ª série, 3 (1991), pp. 407-408. 85 SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., pp. 363-364.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 223

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a abandonarem aquela casa de recolhimento, que não controlavam,

para as obrigarem a ingressar na casa que administravam, pois em

causa estava o controlo sobre os dotes e os futuros casamentos das

jovens, e, por arrasto, as alianças político-sociais que daí podiam ad-

vir 86

. As pressões sobre Santa Mónica aumentaram à medida que

crescia a crise económica que abalou Goa de 1620 a 1630. À perda de

acesso aos mercados tradicionais, conquistados por holandeses ou in-

gleses, juntaram-se os maus anos agrícolas e a fome generalizada no

início da década de 1630, com a consequente diminuição do rendimen-

to do Estado da Índia, o que acarretou alguma instabilidade social, pelo

número de dependentes de tenças e de outras ordinárias pagas pelo

Estado.

A conjunção destes factores fez com que a elite goesa, atingida

nos seus rendimentos, tentasse apoderar-se das propriedades perten-

centes a Santa Mónica, a fim de as repartir entre si. O instrumento ins-

titucional escolhido, nas duas vezes que tentaram lançar mão dos bens

do mosteiro, foi a Câmara de Goa. Em ambas as ocasiões, em 1632 e

em 1634-1635, encontraram sempre no vice-rei conde de Linhares um

aliado predisposto a escutar os seus pedidos ou, no mínimo, a manter

uma neutralidade conivente com os seus desígnios políticos. Quanto à

população goesa, esta foi manipulada e usada como arma de arremes-

so contra o mosteiro.

Por altura do segundo ataque, em 1634-1635, a violência aumen-

tou, pois deixou de ser meramente retórica, como fora na primeira vez,

tornando-se em brutalidade física. Ao invés de 1632, em 1634-1635

não houve um elemento moderador na contenda, pois o vice-rei tinha-

se inimistado com o administrador do arcebispado em sede vacante, o

bispo de Cochim D. fr. Miguel Rangel OP 87

. Foi no decurso desta con-

tenda que fr. Diogo de Sant’Ana recebeu ordem de expulsão para Por-

tugal, mas o frade recusou-se a partir. A situação só se alterou subs-

86 Sobre esta acusação veja-se TT, ML, cód. 816, fls. 6-6v. 87 Entre as causas do desentendimento esteve o episódio que opôs o cabido da Sé go-esa ao bispo de Hierapólis, uma criatura de Linhares, a respeito do culto naquele tem-plo, tendo o bispo de Cochim apoiado os primeiros e D. Miguel de Noronha, o segundo; cf. «Carta de Filipe III para Pedro da Silva», Lisboa, 24.02.1635, TT, Documentos Reme-tidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 32, fl. 246; «Carta de Filipe III para Pedro da Silva», Lisboa, 27.03.1635, ibid., fls. 250-250v; «Carta de Pedro da Silva para Filipe III», Goa, 24.12.1635, ibid., cód. 33, fl. 221.

224 João Te les e Cunha

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tancialmente com a chegada do novo vice-rei, Pedro da Silva, em finais

de 1635, uma vez que este conseguiu apaziguar a questão. A mudança

de governo trouxe consigo uma nova orientação política, oposta à an-

terior, como era costume, proporcionando assim um alívio temporário a

Santa Mónica. A questão seria resolvida apenas em 1637, por Filipe III,

depois de as freiras lhe terem endereçado uma representação. No meio

das disputas políticas, a comunidade religiosa viu a sua casa aprovada

e autorizada pelo Papa, reconhecimento que levou o monarca a con-

firmá-la e a conceder-lhe o privilégio de ostentar as armas reais na fa-

chada e de colocar o mosteiro sob a alçada do Padroado e protecção

directa do vice-rei88

.

Mas a violência ainda se fazia sentir no interior das ordens religio-

sas em resultado do choque entre facções rivais por questões ligadas à

sua organização e jurisdição. Um caso entre tantos, ocorreu em finais

da década de 1620, quando o comissário-geral dos Franciscanos no

Estado da Índia, fr. Jerónimo de Abrantes, mandou quebrar as portas

das celas dos Recolectos para em seguida os expulsar alegando que

estes desejavam subtrair-se à sua autoridade e organizar-se autono-

mamente89

. Também a origem geográfica e étnica dos religiosos cons-

tituía motivo de disputas internas entre os Dominicanos, como noutras

ordens e congregações religiosas, que, por volta de 1630, se cindiram

em dois grupos, que se degladiavam entre si: os reinóis e os naturais.

Os últimos, subalternizados em relação aos primeiros, pretenderam

88 Veja-se TT, ML, cód. 816, fls. 5v-16, 90, 115-117v, 132v-133v, 150v, 154v-156, 167v-169, 215v, 228v-229v. «Carta de Pedro da Silva para Filipe III», Goa, 17.02.1636, in TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 33, fls. 259v-260; «Carta de Filipe III para Pedro da Silva», Lisboa, 27.03.1637, ibid., cód. 37, fl. 381; «Parecer do chanceler Gonçalo Pinto da Fonseca», Goa, 07.01.1636, in TT, ibid., cód. 38, fls. 190-190v. Diário do 3º Conde de Linhares, Vice-Rei da Índia, tomo II, Lisboa, Biblioteca Na-cional, 1943, pp. 203-204 e 270-319. Germano CORREIA, Historia da Colonização Por-tuguesa na Índia, vol. III, Lisboa, AGU, 1951, pp. 65-91, e vol. V, Lisboa, AGU, 1954, pp. 648-688. C. R. BOXER, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800, Madison, The University of Wisconsin Press,1965, pp. 36-38. Teotonio R. de SOUZA, Medieval Goa. A Socio-Economic History, Nova Delhi, Concept Publishing Company, 1979, capítulo VI, especialmente pp. 145-146. 89 «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lisboa, 26.03.1630, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 27, fl. 174.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 225

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formar uma província independente da de Portugal, em 163490

. A crise

económica que assolava o Estado desde 1620, senão antes, acarretou

dificuldades acrescidas no pagamento de ordinárias às várias ordens

religiosas, que, por sua vez, pressionaram o poder político para que as

saldasse. As tensões acumuladas desde então agudizaram-se e eclodi-

ram abertamente durante o vice-reinado do conde de Linhares91

, che-

gando ao ponto de o prior do convento de São Domingos de Goa,

fr. Francisco de Sena, utilizar o púlpito para atacar verbalmente o vice-

rei quando este se encontrava presente na assistência92

.

A violência podia adquirir ainda um carácter ritual, como durante

as procissões da Semana Santa, onde grupos de penitentes se flagela-

vam andando de joelhos. Esta remissão pública dos pecados era uma

garantia da sua possível salvação. Este acto público de fé, todavia, não

agradou à sensibilidade católica francesa de Pyrard de Laval, que ad-

jectivou a cerimónia de estranha e supersticiosa93

. A mesma procissão,

contudo, não mereceu os mesmos comentários a uma outra testemu-

nha, Pietro della Valle, denotando quiçá a sua sensibilidade meridional

perante o mesmo fenómeno religioso de auto-flagelação por parte dos

penitentes94

. Tal violência ritual também podia revestir um carácter de

expiação frente a uma situação excepcional, como no caso da procis-

são organizada em Cochim, em 1618, para afastar os maus presságios

registados por toda a Índia nesse ano. Segundo narrou Faria e Sousa, a

procissão organizada pela Santa Casa da Misericórdia local contava

com mil penitentes, um número redondo como outro qualquer, os quais

“disciplinavam-se com cadeias de ferro, outros com cordas e, em vez

de sangrarem fina e sofrivelmente, despedaçavam-se; outros caminha-

vam com dificuldade em curtíssimas prisões de delinquentes encarce-

90 Sem resultado, porque a Coroa contrariou esta pretensão. Cf. «Carta de Filipe III para Pedro da Silva», Lisboa, 17.02.1635, ibid., cód. 32, fl. 226; «Carta de Pedro da Silva para Filipe III», Goa, 22.12.1635, ibid., cód. 33, fl. 205. 91 Para uma visão das relações do conde de Linhares com o clero veja-se A. R. DISNEY, “The Vice-Roy Count of Linhares at Goa, 1629-1635”, in Luís de ALBUQUERQUE e Inácio GUERREIRO (eds.), II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, Lisboa, IICT, 1985, pp. 310-313. 92 «Carta do conde de Linhares para Filipe III», Goa, 16.07,1635, TT, Documentos Re-metidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 34, fl. 33. 93 PYRARD, The Voyage…, ob. cit., vol. II-1, pp. 99. 94 DELLA VALLE, The Travels…, ob. cit., vol. II, p. 414.

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rados; outros, vestidos de espinhos, iam-se rebolando para se martiri-

zarem mais; muitos iam encadeados com o seus próprios filhinhos e

com os seus escravos (…). O maior volume era dos que, envolvidos

fortemente em grossas cordas, cortavam as veias”95

.

(iii) O quotidiano monástico

Quando, em 1606, o arcebispo de Goa, D. fr. Aleixo de Meneses, ben-

zeu e lançou a primeira pedra do que viria a ser o mosteiro de Santa

Mónica, pretendeu atingir com a sua instituição a “moralização” da vi-

da goesa, para proteger mulheres cujos maridos se encontravam lon-

ge, as viúvas e, ainda, as raparigas solteiras da “solicitação do mun-

do”96

. A fundação desta casa também se enquadrava na renovação

geral que a Ordem de Santo Agostinho conhecera desde a centúria

precedente, aumentando o número de novas fundações da ordem em

cujas fileiras militava o arcebispo fundador97

. A nova casa de clausura

não servia exclusivamente para quem desejava tomar ordens, uma vez

que também possuía uma casa de recolhimento para orfãs e filhas de

pessoas que tinham prestado serviço militar no Estado da Índia98

. O

local para o edifício foi escolhido em virtude da proximidade do con-

vento de Nossa Senhora da Graça, pertença de Agostinhos, e por ter

brilhado de forma premonitória durante seis meses uma estrela sobre o

Monte Santo onde o mosteiro veio a ser construído. Tratava-se de mais

uma miracula quotidiana que teólogos e astrólogos interpretaram como

revelador pois “auia de sobreuir alguma nouidade, de muito contenta-

mento e alegria, sem se poder dizignar, qual ella seria”99

.

95 FARIA E SOUSA, Ásia Portuguesa, ob. cit., vol. VI, p. 198. 96 «Carta de Filipe II para D. Jerónimo de Azevedo», Lisboa, 21.03.1615, in Raimundo António de Bulhão PATO (ed.), Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções (doravante DRI), vol. III, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1885, pp. 330-331. 97 Veja-se J. B. DUROSELLE e Eugéne JARRY (eds.), Histoire de l’Église depuis les origi-nes jusquá nos jours, vol. 18; Léopold WILLAERT, Après le Concile de Trent. La restaura-tion Catholique, Paris, Bloud & Gay, 1960, pp. 99-105. O caso das instituições femininas é tratado a pp. 146-147. 98 Um exemplo são as filhas de D. Jorge de Castelo Branco, que, por ordem de Filipe II, foram recolhidas em Santa Mónica. Cf. «Carta de Filipe II para D. Jerónimo de Azeve-do», Lisboa, 28.01.1614, DRI, vol. III, pp. 25-26. 99 TT, ML, cód. 816, fl. 20.

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A 3 de Setembro de 1606, dezasseis freiras fizeram a sua profis-

são de fé segunda as regras dos Eremitas de Santo Agostinho, embora

só a partir de Setembro de 1607 ficassem sujeitas à autoridade do ar-

cebispo de Goa100

. Com a partida de D. fr. Aleixo de Meneses para Por-

tugal, em 1610, a administração da casa foi entregue a fr. Diogo de

Sant’Ana por já se encontrar ligado à mesma desde 1606, como se dis-

se acima101

. Fr. Diogo viria a ser acusado pelos seus oponentes de, na

ânsia de completar rapidamente a edificação do mosteiro, ter usado

meios ilegítimos, incluindo a usura e a captação forçada de mulheres

entre as mais ricas do Estado da Índia102

. Ao longo dos anos que admi-

nistrou o mosteiro, fr. Diogo foi sendo confrontado com os sucessivos

problemas, alguns dos quais foram fruto da visão à luz da qual conce-

bera o projecto para Santa Mónica. O mais controverso desses proble-

mas foi indubitavelmente o número total de professas. Inicialmente

fixado em cinquenta, esse número foi crescendo no decurso de negoci-

ações até se fixar numa centena. Iniciadas durante o segundo governo

do vice-rei conde da Vidigueira (1622-28) e conduzidas pelo arcebispo

de Goa, D. fr. Sebastião de São Pedro (1624-29), as negociações seri-

am concluídas já sob o conde de Linhares como vice-rei103

. Outras

questões difíceis, como o dote a atribuir a cada freira, quantas criadas

e escravas e que bens de raiz o convento poderia manter, foram sendo

sucessivamente ultrapassadas enquanto se arrastava a discussão so-

bre o número definitivo de religiosas. Em 1620, antes de se abordar

esta questão pendente, o governador Fernão de Albuquerque (1619-

22) informava Filipe II de que as professas já chegavam a oitenta, sem

contar com trinta noviças e recolhidas que esperavam tomar votos104

.

Numa parte do império português como o Estado da Índia, onde a

falta de mulheres reinóis ou descendentes era um problema candente,

100 Ibid., fls. 20-20v.

101 Ibid., fls. 87, 101-101v. 102 Ibid., fls. 5v-6v; «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lisboa, 24.12.1633, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 34, fl. 607. 103 «Carta de Filipe III para o conde da Vidigueira», Lisboa, 17.02.1623, in António da Silva REGO (ed.), DRI, vol. IX, Lisboa, Academia das Ciências, 1978, p. 315; «Carta de Filipe III para o conde de Linhares», Lisboa, 25.01.1629, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 26, fl. 204. 104 «Carta de Fernão de Albuquerque para Filipe II», Goa, 10.02.1620, REGO (ed.), DRI, vol. VI, Lisboa, Academia das Ciências, 1974, p. 121.

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que nem o parco envio das “Orfãs del-Rei” resolvia, a construção de

um mosteiro feminino contribuía, aos olhos da sua população, para

aumentar a escassez de boas candidatas para casar. Noutra região do

império onde a presença colonizadora fosse mais territorial, como no

Brasil, a criação de um estabelecimento religioso desta natureza não

seria tão problemática, mas na Índia, que sobrevivia da actividade ma-

rítima e menos da terra, este tipo de opção não era compreendida nem

bem recebida. Assinale-se que as ordens religiosas estabelecidas no

Estado da Índia eram portadoras de uma vocação urbana, tendo-se

formado na Baixa Idade Média ou mesmo posteriormente, caso dos Je-

suítas. Ordens religiosas eminentemente rurais como os Beneditinos

nunca se instalaram na Índia, nem aqui se poderiam acomodar, tendo

em conta as características do Estado. Daí a relutância das autoridades

em aprovar um projecto contestado e perseguido, por vezes de forma

violenta, pela elite local que via assim fugir-lhe a possibilidade de obter

bons partidos para fins matrimoniais.

Apesar de todas as vicissitudes por que as freiras passaram, o seu

dia-a-dia seguia a um ritmo imutável. Levantavam-se às quatro horas

da manhã para, de seguida, todas acudirem ao coro onde a comunida-

de escutava a lição espiritual lida em voz alta por uma religiosa desig-

nada pela mestra, a partir de diferentes obras escolhidas consoante o

calendário religioso. As freiras recolhiam-se em oração mental até às

cinco da manhã, para depois cada uma se ocupar do serviço que lhe

fora distribuído. Havia duas missas cada dia para que todas pudessem

assistir a uma delas sem interromperem as suas ocupações. Às vinte

horas toda a comunidade acorria ao coro baixo, onde se repetia a lição

espiritual, acompanhada de trinta minutos de oração e seguida de um

exame de consciência. Uma vez este terminado, entoavam a antífona

Deus in adjutorium meum intende, ou outra, e começavam a rezar o

terço em voz alta com responsos no Pai Nosso e na Avé Maria. Acabado

o terço ajoelhavam-se repetindo o que rezava a mestra e no fim faziam

a protestação de fé recitando o símbolo em português. O dia acabava

quando se recolhiam às celas. Para além dos exercícios espirituais co-

muns, algumas religiosa faziam outros mais particulares, orando con-

forme a sua devoção105

. Sabemos, por intermédio de fr. Agostinho de

105 SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., pp. 357-358.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 229

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Santa Maria, por exemplo, que uma Soror Maria do Espírito Santo era

muito devota da imagem da Madre de Deus, que mandara pintar em

Goa e colocara numa capela do claustro, onde lhe prestava devoção

diária. Por isso, quando morreu, o seu corpo foi lá colocado em capela

ardente106

.

A oração no coro ocupava duas horas do dia às freiras, onde duas

se revezavam alternadamente na tarefa. A regra obrigava-as a confes-

sarem-se e a comungarem duas vezes por semana, sendo os seus con-

fessores frades Agostinhos do convento de Nossa Senhora da Graça no

cimo do mesmo monte onde se erguia Santa Mónica. Mas a regra era

mais branda para com as criadas e escravas neste campo, já que aque-

las apenas tinham de se confessar e comungar de oito em oito dias e

estas quinzenalmente107

. Os contactos com a família, uma quebra na

monotonia do quotidiano, apenas ocorriam de dois em dois meses para

as professas, decorrendo a reunião no locutório do mosteiro durante

uns breves momentos, mas, em dias assinalados, como domingos, dias

santos ou de comunhão, a visita podia durar mais tempo108

. Depois de

jantar ou da ceia, a comunidade conventual recreava-se, excepto nos

dias da comunhão, quando se recolhiam após a refeição da noite ou

nas Vésperas, logo depois da ceia. Nesses dias as professas recolhiam-

se com a prioresa e as jovens do recolhimento acompanhavam a sua

mestra109

.

Nas épocas altas do calendário litúrgico, caso do Natal e da Pás-

coa, os movimentos do seu quotidiano alteravam-se. Toda a comuni-

dade festejava o Natal defronte do presépio, louvando o Deus-Menino

com danças, cantigas, ditos e colóquios. Já na Páscoa, durante a Sema-

na Santa, se juntavam à sua prelada para celebrar a morte e ressurrei-

ção de Cristo da seguinte maneira:

106 Id., Santuario Mariano, e Historia das imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente aparecidas em a India Oriental, & mais Conquistas de Portugal, Asia Insular, Africa e Ilhas Felipinas, tomo VIII, Lisboa, Oficina de António Pedroso Galrão, 1720, pp. 173-175. 107 TT, ML, cód. 816 fls. 103v-104. 108 Ibid., fl. 104. 109 SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., p. 355.

230 João Te les e Cunha

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tem seus alivios, e consolações, tudo entre virtude, e santidade do espi-

rito, por espaço de oito dias, e no oitavo dia á noite se faz huma procis-

são pelas claustras com representação, e ditos ao divino, e sobre o mis-

terio. O que fazem as meninas em algumas estancias. E no fim destas

procissões he irem a finalizalas com adorar, e abraçar ao Menino Jesus

seu esposo. E ordinariamente se acabão estas suas festas com muitas

lagrimas de devoção, e de alegria espiritual110.

Todavia, na noite de 8 de Fevereiro de 1636, um acontecimento

inusitado alteraria durante algum tempo o quotidiano desta casa mo-

nástica.

III - O quotidiano de um milagre

No relato dos dois milagres existe uma similitude no seu desenvolvi-

mento, mesmo que aparentemente sejam divergentes numa primeira

análise. O que se propõe de seguida é uma entre outras leituras possí-

veis dos acontecimentos, comparando-os de acordo com as semelhan-

ças que julgamos existirem entre eles.

(i) Sinais premonitórios

De acordo com tais relatos, a anteceder ambos os milagres produziu-se

uma sequência de acontecimentos premonitórios do que iria acontecer,

se bem que as testemunhas não tivessem compreendido totalmente o

seu significado no momento e só posteriormente fizessem uma reinter-

pretação do que ocorrera. Voltamos a Santo Agostinho e aos seus

signa, prodigia, virtutes, signorum, monstra, magnalia, mirabilia, osten-

ta, mira, portenta, que de resto os coevos dos goeses que habitavam

no Reino tinham testemunhado inúmeras vezes no decurso desses

anos atravessados por crises, guerras, derrotas e outros sinais de per-

da do favor divino pela sua falta de fé enquanto cristãos. Repare-se

como o local para erguer Santa Mónica foi escolhido em função do apa-

recimento de uma estrela sobre o Monte Santo seis meses a fio, depois

de consultados teólogos e astrólogos, consulta algo estranha para a

edificação de uma casa religiosa, os quais interpretaram o sinal como

110 Id., ibid., p 355.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 231

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sendo uma boa nova, embora, como referiram, não compreendessem

plenamente qual viria a ser, mas que algo de grande aconteceria111

.

Também na cruz da Boa Vista se verificaram sinais anteriores ao mila-

gre, dado terem sido avistadas por várias testemunhas bandeiras car-

mesins uns dias antes, embora ninguém tivesse compreendido então o

seu significado. Na madrugada do dia em que ocorreu o milagre, 23 de

Fevereiro de 1619, os fiéis que se dirigiam à igreja de São Mateus, fron-

teira ao monte da Boa Vista, repararam na claridade que emanava do

local, mas não souberam explicar nem entenderam o fenómeno112

.

No caso de Santa Mónica os sinais premonitórios jamais abranda-

ram, caucionando dessa forma a sua fundação e os propósitos refor-

madores da moral pública que tinham animado o seu fundador,

D. fr. Aleixo de Meneses113

. Os acontecimentos ocorreram sempre den-

tro das paredes da clausura, o que aumentava tendencialmente a aura

de santidade local das professadas. A vigária do coro, Madre Maria do

Espírito Santo, foi protagonista de dois destes episódios. No primeiro

pediu nas suas orações mais entendimento, o que lhe foi concedido por

uma luz que a banhou e entrou em êxtase114

. Quando morreu o seu

corpo foi colocado na capela da Madre de Deus por si edificada no

claustro, como ficou dito, onde a comunidade descobriu que Madre Ma-

ria do Espírito Santo fitava a imagem que mandara pintar e esta lhe

retribuía o olhar. Após este sinal, o arcebispo de Goa D. fr. Cristóvão de

Lisboa, autorizou a entrada de um pintor na clausura para registar o

episódio115

.

Ao longo das décadas de vinte e de trinta do século XVII, sempre

que se registavam dificuldades nas negociações com a Coroa sobre o

número de freiras, o valor do dote, a quantidade de criadas, de escra-

vas e de propriedades que o mosteiro podia possuir, com o que aumen-

111 TT, ML, cód, 816, fl. 20. Há que ter presente que o relato fundacional e o do milagre

foram escritos pela mesma pessoa, fr. Diogo de Sant’Ana, um grande defensor do mos-teiro. No caso do sinal fundacional, a estrela, só muito depois se ligou à escolha do sítio. Por isso foi possível anos mais tarde manipular os testemunhos para fr. Diogo de Sant’Ana atingir os seus fins. 112 Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 301. 113 TT, ML, cód. 816, fls. 185v-186. 114 SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., pp. 352-353. 115 Id., Santuario Mariano…, ob. cit., tomo VIII, pp. 175-176.

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tavam as pressões exercidas sobre a comunidade, as manifestações

não só prosseguiam como cresciam em sinal da protecção divina àque-

le empreendimento. Em 1619, quando um desastre natural assolou Ba-

çaim, conforme foi narrado por Manuel de Faria e Sousa, entre as pou-

cas propriedades que resistiram indemnes encontravam-se as de Santa

Mónica116

. Em 1623, houve novo sinal, aquando do primeiro milagre

envolvendo o crucifixo do coro, que escorreu sangue pela parede. Nes-

sa ocasião, fr. Diogo de Sant’Ana achou prudente silenciá-lo, porque as

negociações decorriam normalmente, pelo que ordenou às monjas que

limpassem a parede117

.

Com o aumento das pressões, entre 1630 e 1635, um quinquénio

que coincidiu com o governo do conde de Linhares, surgiram novas

provas da protecção divina a Santa Mónica. Durante a seca geral que

assolou a Índia em 1630, as propriedades do mosteiro foram novamen-

te poupadas; continuando imunes em 1631, quando uma praga de ga-

fanhotos destruiu as parcas colheitas desse ano118

. No auge da pressão

sobre Santa Mónica, em 1635, que incluiu demonstração pública de

força contra D. fr. Miguel Rangel, fr. Diogo de Santa Ana e as freiras,

novos sinais emergiram. Nos críticos dias 12 e 13 de Fevereiro de

1635, quando uma multidão manobrada por Rui Dias da Cunha exigiu

na câmara municipal a execução das ordens reais contra o mosteiro,

uma “servidora da India” teve uma visão com a imagem de Nossa Se-

nhora da Purificação que lhe pediu para rezar por fr. Diogo. E na noite

de 13 de Fevereiro uma ladainha de origem sobrenatural ecoou por

todo o mosteiro sem que ninguém descobrissem de onde vinha119

. Para

além dos sinais, só compreendidos posteriormente, a sua continuação

apenas podia significar que a Divina Providência velava pela clausura,

sofredora das provações do mundo, apontando de certo modo para um

acontecimento maior que estaria para ocorrer de maneira a recompen-

116 Id., História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., p. 404. 117 Id., ibid., p. 422. 118 Id., ibid., p. 404. 119 TT, ML, cód. 816, fls. 176-178. Houve outros casos de aparições com a santa da invocação do mosteiro, Santa Mónica, a aparecer a uma freira. Cf. SANTA MARIA, San-tuario Mariano…, ob. cit., tomo VIII, pp. 178-179.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 233

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sar a comunidade e os seus protectores pela sua fé e constância peran-

te as perseguições que estavam a sofrer.

(ii) Sinais de milagre

Na noite de sexta-feira, 8 de Fevereiro de 1636, terminada a procissão,

algumas religiosas dirigiram-se ao coro onde, encostado à grade, esta-

va um crucifixo que fr. Diogo mandara esculpir em 1611120

. Durante a

oração repararam que a imagem do crucifixo abria os olhos e as fitava.

As freiras alteraram-se com esta manifestação. Chamado para presen-

ciar o acontecimento, fr. Diogo, depois de acalmar a comunidade, ob-

servou com reservas o que aí se passava, mas progressivamente co-

meçou a acreditar e contou que a imagem abriu os olhos vinte e seis

vezes até à meia-noite, hora em que abandonou o mosteiro. Entre as

freiras havia umas que afirmavam ter visto a imagem arquear o peito,

enquanto outras diziam que parecia que a mesma queria falar121

.

As manifestações intensificavam-se de cada vez que a assistência

aumentava em qualidade. Na terça-feira, 12 de Fevereiro, a imagem

inclinou a cabeça e abriu os olhos para os fiéis reunidos na igreja. Ho-

ras mais tarde e já na presença do bispo de Cochim, D. fr. Miguel Ran-

gel, de inquisidores, do provincial dos Agostinhos, fr. Gaspar de Amo-

rim, e doutros prelados, ocorreram novas manifestações. A imagem

abriu os olhos, a boca, escorreu sangue e o crucifixo tremeu122

. O auge

foi atingido na sexta-feira, 15 de Fevereiro, no momento em que o coro

se encontrava repleto de autoridades eclesiásticas para testemunha-

rem as ocorrências, as quais duraram mais tempo e tiveram maior in-

tensidade do que anteriormente, sem dúvida por causa das personali-

dades aí presentes123

. As manifestações continuaram, sem a especta-

cularidade da primeira semana, até 24 de Agosto de 1636, dia em que

120 O frade Agostinho não gostou do resultado final da encomenda, porque a imagem de tamanho natural ficara imperfeita. Os olhos eram um risco, os joelhos estavam mui-tos subidos chegando ao peito. As freiras, todavia, afeiçoaram-se ao crucifixo, talvez por premonição, opondo-se a que fosse substituído, conforme fr. Diogo queria. Cf. TT, ML, cód. 816, fls. 273v-274. 121 Ibid., fls. 265-268v. 122 Ibid., fls. 270-271v. 123 Ibid., fls. 272v-273v.

234 João Te les e Cunha

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o milagre foi autenticado e, como prova, a imagem conservou para a

posteridade as alterações que sofrera124

.

O milagre da cruz no alto do monte da Boa Vista, verificado a 23

de Fevereiro de 1619, desenrolou-se num só dia, ao invés do de San-

ta Mónica. Depois dos sinais premonitórios ocorridos nessa madrugada,

a primeira manifestação registou-se já de manhã perante o cirurgião,

Pedro da Silva, e António, nativo do Malabar. Estes foram os primeiros

a notar um homem na cruz que se movia sem nunca oferecer as suas

costas a Goa. Querendo certificar-se do que se passava, subiram até

junto da cruz, onde não observaram qualquer mudança, mas quando

regressaram ao sopé, as manifestações recomeçaram segundo o tes-

temunho das pessoas que por lá passaram125

. O auge registou-se por

volta do meio-dia e foi presenciado por uma multidão crescente de

pessoas que se agrupou na base da elevação. Foi então que a cruz se

virou para as pessoas congregadas e sobre si pousou uma nuvem roxa

e dourada de onde emergiu Cristo que baixou sobre a cruz onde se

crucificou126

. A multidão excitada com os acontecimentos alterou-se e

cercou a cruz de onde retirou pequenos fragmentos para guardar como

relíquia. Foi o arcebispo D. fr. Cristóvão de Lisboa quem ordenou a re-

moção, para impedir a sua destruição, e a mandou transferir nessa noi-

te para a igreja de Nossa Senhora da Luz127

. Não acabaram aí as mani-

festações milagrosas no monte da Boa Vista, já que nas fundações da

cruz brotou uma fonte, cuja água adquiriu fama de milagreira mesmo

entre hindus128

.

124 A imagem de Cristo ficou de olhos abertos, os joelhos, antes à altura do peito, des-ceram até à posição normal, o cravo que segurava os pés entortou-se, a cor da ima-gem ficou mais viva e as costas mais afastadas da cruz (ibid., fls. 274v-275v). Sobre a continuação dos milagres veja-se SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit., pp. 444-449. 125 A cruz, sem a imagem de Cristo, fora colocada no local pelo padre Manuel Rodri-gues, membro do cabido da Sé de Goa; veja-se Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fls. 301-301v. 126 Id., ibid., fls. 301v-302. 127 Id., ibid., fls. 302-302v 128 Id., ibid., fl. 303.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 235

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(iii) A audiência do milagre

A audiência de um milagre está relacionada com o espaço onde este

decorre, havendo por isso uma cronologia própria para cada fenómeno.

No caso de Santa Mónica, este desenrolou-se num espaço fechado e

sacralizado: o coro da igreja. Já no da cruz da Boa Vista, a ocorrência

desenvolveu-se num espaço público que nada tinha de especificamen-

te sagrado. O primeiro registou a sua maior expressividade durante

uma semana, a que foi de 8 a 15 de Fevereiro de 1636, embora se ti-

vesse prolongado esporadicamente até 24 de Agosto desse ano. O se-

gundo milagre decorreu ao longo de um só dia.

A audiência de Santa Mónica foi num primeiro tempo exclusiva-

mente a comunidade residente, à excepção de uma freira doente em

crise histérica a quem foi impedido o acesso ao coro onde decorria a

ocorrência milagrosa129

. A única pessoa estranha à clausura presente

na primeira noite foi fr. Diogo de Sant’Ana, já que apenas a 11 de Feve-

reiro chegou o segundo homem de fora, o bispo D. fr. Miguel Rangel130

.

Mas a 12 de Fevereiro já os goeses tinham invadido a igreja para pre-

senciar o milagre em tal número que impediram o fecho das portas131

.

Mesmo durante o segundo pico das manifestações, o palco privilegiado

continuou a ser o coro, onde se encontrava o crucifixo, sendo então a

audiência composta pela clausura, o círculo eclesiástico próximo de

Santa Mónica, o Provincial dos Agostinhos e o Prior do vizinho convento

da Graça. Veja-se, contudo, como se procurou uma testemunha exteri-

or ao círculo dos Agostinhos para autenticar o milagre, chamando-se na

ocasião o vice-rei Pedro da Silva, o qual não chegou a tempo para pre-

senciar quaisquer mudanças na cruz132

. Os acontecimentos de 15 de

Fevereiro tiveram um maior número de participantes directos para ser-

virem de potenciais testemunhas num futuro processo de autenticação

e, repare-se, como, para atingir esse objectivo, o círculo eclesiástico

129 TT, ML, cód. 816 fl. 265v. 130 Id., ibid., fl. 269v, 131 Id., ibid., fl. 270. 132 Id., ibid., fls. 271-271v. Estranhamente não se encontrou entre as cartas do vice-rei qualquer referência ao milagre. Pedro da Silva apenas mencionou, na sua correspon-dência oficial com o monarca, a virtude e o recolhimento das freiras, tendo ainda de-fendido eventuais mercês que Filipe III lhes quisesse conceder. Cf. «Carta de Pedro da Silva para Filipe III», Goa, 12.11.1637, TT, Documentos Remetidos da Índia ou Livros das Monções, cód. 37, fl. 381.

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deixou de ser composto exclusivamente por Agostinhos, para incluir

também Dominicanos e membros do cabido da Sé. Os fiéis, que enchi-

am a igreja, já não eram apenas goeses, pois com a disseminação da

notícia acorreram a Goa habitantes dos arredores, das ilhas de Salsete

e Bardês, para presenciarem o milagre133

.

A audiência do segundo milagre evoluiu conforme a notícia se di-

fundiu entre a população. Começou com duas testemunhas iniciais,

Pedro da Silva e o malabar António, a quem se juntou uma terceira tes-

temunha, Simão Borges, que se encarregou de espalhar a nova em

Goa. Os acontecimentos também foram difundidos por outras testemu-

nhas que passavam casualmente pelo local. Pedro da Silva, por exem-

plo, também propalou o que viu entre um grupo de amigos e de vizi-

nhos, após ter regressado a casa134

. O número das pessoas congrega-

das no sopé do monte aumentou à medida que a nova se espalhava. A

multidão cresceu e diminuiu conforme havia ou não ocorrências na

cruz. No auge das manifestações, o ajuntamento humano não cessou

de engrossar, sendo constituído por gente que ouvira falar do ocorrido

ou que fora atraída pela aglomeração de tantas pessoas, caso do juiz

da Relação de Goa, Gonçalo Pinto da Fonseca135

. Por essa altura, já a

multidão transbordava e a situação escapava ao controlo das autorida-

des civis e religiosas, especialmente depois que as pessoas começaram

a retirar partes da cruz. Foi necessário colocar soldados a guardá-la e

contratar pedreiros para a removerem do monte para a igreja de Nossa

Senhora da Luz, momento em que as autoridades eclesiásticas organi-

zaram e enquadraram uma procissão136

. A autoridade eclesiástica

também se apressou a controlar as sequelas do milagre, o aparecimen-

to da Fonte Santa, proclamando-as como actos divinos e sobrenaturais,

legitimando-os desta forma137

.

133 A presença de Dominicanos e do cabido da Sé prendia-se com o facto de o protector do mosteiro, D. fr. Miguel Rangel, ser dominicano e administrador da arquidiocese de Goa. Cf. TT, ML, cód. 816, fls. 272v e 277. 134 Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fls. 301-301v. 135 O Juiz foi atraído pela multidão quando se dirigia à sua quinta (id., ibid., fl. 302). 136 Id., ibid., fls. 302-302v. 137 Id., ibid., fl. 303.

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(iv) Autenticação de um milagre

O milagre é uma demonstração acrescida da credibilidade da revelação

cristã, mas só pode ser estabelecido enquanto tal pelas autoridades

eclesiásticas legitimadas pelo Direito Canónico para integrarem uma

comissão de peritos com o objectivo de verificar a autenticidade, ou

não, das manifestações138

. No caso da cruz da Boa Vista, a autentica-

ção foi rápida. A pressão popular, os actos de devoção desenquadrados

de qualquer autoridade religiosa, pessoas a arrancarem pedaços da

cruz para guardarem como relíquias, pesou para que o arcebispo

D. fr. Cristóvão de Lisboa reunisse uma junta de peritos na tarde do

próprio dia, a qual reconheceu de imediato as manifestações como

configurando um milagre. O aparecimento posterior de uma fonte nas

fundações da cruz, cuja água operava curas milagrosas tanto em cris-

tãos como em hindus, foi mais uma prova dos sinais de intervenção

divina para caucionar a sua autenticidade139

.

Santa Mónica sofreu um percurso mais atribulado, dado o passado

político recente, uma vez que a última perseguição de que a congrega-

ção fora alvo havia terminado apenas no ano anterior, em 1635. Daí os

cuidados postos em torno de todo o processo. Em primeiro lugar, as

testemunhas provieram dos círculos próximos do Mosteiro, no que

constituiu uma audiência intencionalmente seleccionada, tendo em

vista a creditação do milagre. Assim, no dia 12 de Fevereiro, o bispo de

Cochim surge no local rodeado de Agostinhos para presenciar o acon-

tecimento e recolher apressadamente sangue que escorrera da ima-

gem, no que foi impedido pelos inquisidores presentes. Outros circuns-

tantes ainda requereram apressadamente a presença do vice-rei para

servir de testemunha, mas Pedro da Silva não chegou a tempo. Foi

preciso esperar pelo auge das manifestações, assistido por um grupo

de testemunhas de peso e exteriores à clausura, sempre suspeita, em-

bora próximo do mosteiro, entre as quais se contava um escrivão da

câmara arquiepiscopal para assentar os testemunhos a fim de elaborar

o processo que desembocou na autenticação140

. Uma junta composta

138 Cf. A. MICHEL, “Miracle”, in Dictionnaire de Théologie Catholique, ob. cit., tomo X, 2.ª parte, col. 1846. 139 Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 303. 140 TT, ML, cód. 816, fls. 271-272v. Fr. Diogo de Santa Ana, nas considerações finais sobre o milagre, apontou sete razões subjacentes à sua aprovação: 1.ª o milagre em si;

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por trinta e seis pessoas reuniu-se, a 24 de Agosto de 1636, para apre-

ciar o processo e pronunciar o seu veredicto unânime favorável à au-

tenticação do milagre, com o que cessaram definitivamente as mani-

festações iniciadas em Fevereiro do mesmo ano em Santa Mónica141

.

IV - Que lugar para o milagre no quotidiano e com que retrato

social se fica do inusitado no domínio religioso?

Numa sociedade marcada pela violência, cercada de inimigos políticos

e religiosos, insegura no seu dia-a-dia e com a consciência aguda de

que, apesar da sua devoção, o número dos que se salvariam seria re-

duzido, somada à ideia de um Deus-Pai terrível, embora misericordioso,

eram factores que só acentuavam a insegurança diária142

. O milagre,

visto como sinal de revelação divina, criava esperanças de salvação

num mundo atormentado pela ideia de culpa. A participação dos fiéis

em tais manifestações era vista como uma forma de retomar a aliança

perdida com Deus desde o pecado original, servindo para expiar todas

as culpas acumuladas desde então numa catarse colectiva.

Daí que tanto o milagre de Santa Mónica como o da cruz da Boa

Vista tenham suscitado uma ampla participação popular. No primeiro

caso a afluência de fiéis desbordou a igreja e não permitiu que as suas

portas fossem fechadas. Num caso como no outro, os crentes deseja-

ram purificar-se colectivamente dos seus pecados para obter a absolvi-

ção. Em Santa Mónica, a 12 de Fevereiro, os crentes presentes no tem-

plo pediram o perdão pelos seus pecados, acontecendo o mesmo no

caso da Boa Vista143

. A obtenção da salvação espiritual era o estímulo

2.ª a permanência das manifestações na imagem; 3.ª as autoridades eclesiásticas pre-sentes; 4.ª o testemunho das freiras; 5.ª os moradores de Goa que tinham acorrido a presenciá-lo; 6.ª a população das ilhas e terras circunvizinhas de Goa que também presenciaram o milagre; por fim, 7.ª a aprovação do bispo de Cochim por o número de testemunhas ultrapassar os mil. Cf. TT, ML, cód. 816, fls. 276v-277. 141 SANTA MARIA, História da fundação do real convento de Santa Mónica da cidade de Goa, ob. cit, pp. 444-449. Ironicamente, apesar de tantos sinais de protecção divina, o mosteiro ardeu parcialmente no fim desse ano de 1636. 142 Sobre este aspecto da salvação no quotidiano dos crentes, veja-se DELUMEAU, Le pèchè et la peur…, ob. cit., pp. 331-338. 143 Veja-se respectivamente TT, ML, cód, 816, fl. 270; Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 302.

O moste i ro de Santa Mónica e o mi lagre da Cruz 239

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para os fiéis participarem, mas a recolha de relíquias para a salvação

dos males físicos deste mundo era outro dos aspectos associados, con-

forme se viu na cruz da Boa Vista144

, ou nas sequelas que sobrevieram,

como o aparecimento da fonte miraculosa. O milagre era um sinal evi-

dente de favor divino ou de que Deus continuava a velar pelos cristãos.

Assinale-se como, no decurso do milagre da Boa Vista, a visionária

imagem de Cristo nunca cedeu as costas às testemunhas, antes se

manteve virada de frente para elas145

, ou seja, não as abandonava

num ano como o de 1619, marcado por acontecimentos terríficos que

assinalavam uma eventual quebra da ligação dos cristãos com Deus.

Daí que a audiência na Bela Vista “estando com os olhos fixos nesta

santa visão por espaço de hum credo, e não podendo soportalla, se

prostrarão por terra com muitas lagrimas, batendo os peitos, e pedindo

a Deos perdão de seus pecados”146

. A expiação dos pecados podia ser

a forma de retomar a ligação com Deus e, uma vez esta restabelecida,

seria possível inverter as perdas recebidas, nomeadamente às mãos

dos inimigos da fé, tanto mouros como cristãos heréticos.

Fr. Diogo de Sant’Ana também apontou nessa direcção quando re-

forçou a ideia de que a protecção divina ao mosteiro se mantinha mau

grado as perseguições que lhe eram movidas pelos próprios católicos e

servia para confundir os hereges, isto é, os holandeses, que naquele

momento bloqueavam a barra de Goa147

. O frade Agostinho queria di-

zer que a protecção divina a Santa Mónica servia de exemplo para os

cristãos desgarrados voltarem à verdadeira fé e se arrependerem dos

seus actos. Era justamente para isto que serviam as miracula quotidia-

na, de pequenos sinais que balizassem e mostrassem o verdadeiro ca-

minho para quem o quisesse trilhar. E a estrada estava franqueada a

todos, pois não tinham os hindus acorrido à fonte do Monte Santo a fim

de usarem a sua água para cura das suas maleitas148

? A fonte era a

vida que brotava no sítio onde outrora estivera a cruz da Boa Vista.

Linguagem metafórica e real ao mesmo tempo.

144 Id., ibid., fl. 303. 145 Id., ibid., fl. 301v. 146 Id., ibid. 147 TT, ML, cód. 816, fl. 276v. 148 Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 303.

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O milagre prestava-se também a um aproveitamento político,

sendo Santa Mónica um caso bem concreto. Quem se atreveria a per-

seguir novamente o mosteiro depois de tais manifestações de protec-

ção divina? Provavelmente ninguém, tanto mais que Santa Mónica fica-

ra sob o amparo real, o que ditou o fim das perseguições movidas por

parte da elite goesa. De certa forma, o milagre do crucifixo foi a sanção

definitiva a respeito das intenções fundacionais e moralizantes de

D. fr. Aleixo de Meneses, caucionando assim uma longa e difícil estrada

para obter o reconhecimento papal e régio para o projecto, pese embo-

ra ter sido uma tarefa facilitada pelos contínuos sinais de protecção

divina. Mais uma vez os signa, prodigia, virtutes, signorum, monstra,

magnalia, mirabilia, ostenta, mira, portenta, de que falava San-

to Agostinho, desempenharam o seu papel no processo. Donde o mila-

gre ser ainda uma forma de propaganda religiosa, mas também uma

arma política. Fr. Diogo narrou os acontecimentos porque esperava ob-

ter autorização das autoridades eclesiásticas para imprimir a sua ver-

são do que ocorrera149

, mas a sua narrativa não escamoteou os nomes

dos adversários entre os quais se contava um vice-rei, tanto que uma

parte do manuscrito é uma catilinária contra o conde de Linhares150

.

Tratar-se-ia de uma fabricação? Talvez, dado que a distância do suce-

dido e a falta de outras versões impedem que se descarte uma mani-

pulação das freiras num momento catártico para o mosteiro e a utiliza-

ção, voluntária acrescente-se, de testemunhas comprometidas com

aquela casa religiosa, como D. fr. Miguel Rangel, para autenticar o mi-

lagre, podem apontar nesse sentido. Mas não se espere encontrar aqui

nenhum grande milagre fundacional, como o de Ourique, fabricado

também em meios eclesiásticos uns anos antes. Aqui, em Goa, o pro-

pósito não era “nacionalista”, uma vez que o objectivo era simplesmen-

te proteger Santa Mónica e colocá-la a salvo dos interesses de quem a

queria desmembrar em proveito próprio. O fim foi plenamente alcan-

çado.

149 TT, ML, cód. 816, fl. 276. 150 Cf. “Resenha das perdas que teve o Estado da Índia Oriental em o tempo em que foi vice-rei dele Dom Miguel de Noronha conde de Linhares, que o governou por mais de seis anos começando em 21 de Ouubro de 1629 e concluindo em 9 de Dezembro de 1635”, ibid., fls. 257-263.

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Por último, resta sublinhar a eficiente organização com que as au-

toridades eclesiásticas rodearam os milagres. Não tanto no caso de

Santa Mónica, onde o espaço já era sagrado e havia uma hierarquia

pré-definida, que foi mais ou menos respeitada, apesar de a igreja ter

transbordado de fiéis. No caso da Boa Vista, todavia, foi diferente, pois

tornou-se necessária a intervenção do arcebispo de Goa e de soldados

para expor à devoção pública a cruz miraculosa de forma organizada e

protegida151

. Tais sinais de presença divina mostravam aos fiéis, ator-

mentados pela culpa dos seus pecados, que o testemunho da sua par-

ticipação no milagre aumentava a sua esperança de salvação.

Quanto ao resto, o estudo do milagre permite analisar a forma

como acontecimentos únicos têm impacto no quotidiano, como qual-

quer outra ocorrência irrepetível. É apenas mais um aspecto que con-

vém estudar, com o cuidado que impõem as fontes disponíveis. Julga-

mos, todavia, que a fotografia social daí emergente resultará um pouco

desfocada nalguns aspectos e nítida noutros. Os protagonistas são

apenas alguns dos actores sociais, pelo que não é possível compor o

retrato de conjunto, podendo ser captados apenas alguns grupos con-

tra um pano de fundo que permanece demasiado obscuro. Trata-se de

um processo complexo que se vai completando com as imagens que

são retiradas daqui e dali com vista a detalhar o retrato social almeja-

do. O que fica atrás é meramente uma pequena contribuição.

151 A cruz encontrava-se no interior da capela do Santíssimo Sacramento da igreja de Nossa Senhora da Luz, resguardada sob um forro de veludo carmesim fixado por pre-gos dourados, deixando apenas uma abertura para os fiéis a poderem beijar. Cf. Biblio-teca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cód. 176, fl. 302v.