Cei 100428-ii-cap.5 e 6-espíritos suicidas e criminosos arrependidos
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O INSTITUTO DISCIPLINAR DE MOGI MIRIM OU UMA HISTÓRIA DE
VIOLÊNCIA E ABANDONO DO MENOR1
Izalto Junior Conceição Matos – Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Palavras-chave: Menor – Instituto Disciplinar – Rebelião
OBJETIVOS:
O presente trabalho tem como objetivo analisar com base em fontes
documentais, do Instituto Disciplinar de Mogi Mirim-SP e na produção historiográfica a
institucionalização do “menor”2, trazendo para o discurso a questão dos menores
abandonados ou infratores no estado de São Paulo. Ao contextualizar a
institucionalização do “menor” focamos nosso olhar para o Instituto Disciplinar de
Mogi Mirim, uma instituição pública criada pela lei nº 1.169 de 27 de setembro de
1909, inaugurada em 15 de abril de 1924. Na imprensa local, estampa-se a seguinte
matéria sobre a inauguração:
Decorreram brilhantes as festas aqui relatadas em homenagem ao
Sr.Dr. Washington Luis, D. Presidente do Estado e aos Srs.
Secretários de Governo e comitiva, por ocasião das inaugurações da
estrada de rodagem, fórum e Instituto Disciplinar em 15 do corrente
(A COMARCA, 1924a, p. 3).
O objeto de análise permite apreender, à luz da história cultural, vestígios de
uma construção histórica, sendo possível pensar em determinadas lógicas para o
Instituto Disciplinar, e sua organização. Atendendo, em sua maior parte do tempo: de
1924 a 1976, criação da FEBEM - Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, pelo
Decreto nº 985 de 26/04/1976, menores do sexo masculino, exceto, no período entre
07/07/1947 a 10/08/1950 – período em que atendeu menores do sexo feminino.
Denominado assim como Instituto Feminino de Menores - instituído pelo decreto nº
17.394, de 07/07/1947, tendo como finalidade abrigar 120 internadas e oferecer o
ensino primário, profissional, agrícola e doméstico.
METODOLOGIA:
O trabalho de pesquisa que aqui desenvolvemos, articula-se com objeto de
estudo, a partir do material teórico utilizado e especialmente das contribuições de
historiadores como Roger Chartier e Michel de Certeau, bem como, de Michel Foucault,
este não enquadrado classicamente como historiador. Entendendo que ao problematizar
o Instituto Disciplinar de Menores, em vários aspectos, principalmente com relação ao
aspecto social, é relevante considerar a leitura das práticas do homem de diferentes
espaços, apresentadas pela História Cultural, como nos mostra Chartier:
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler.
(CHARTIER, 1990, p. 16-17).
Através da história cultural busca-se entender a realidade social, respeitando as
variáveis dos fatos históricos que envolvem sua construção. E, ao historiador, cabe a
tarefa de compreender e nos apresentar com clareza a forma como foi construída essa
realidade. Sendo assim, esse estudo pretende investigar como ocorrem as relações
estabelecidas pelo Instituto Disciplinar de Mogi Mirim, inferindo como o poder público
e qual a representação dos homens e mulheres, meninos e meninas abrigados, em seu
tempo, descortinando a realidade social que vivenciavam ou que queriam exaltar.
DESENVOLVIMENTO DA PROBLEMÁTICA:
Observamos que a proposta de recuperação do infrator ou criminoso pela via do
trabalho, associado a um adestramento do corpo, está enraizado desde os primórdios da
sociedade moderna, Foucault (1993) quem nos informa:
A sociedade contemporânea instituiu uma forma geral de aparelhagem
para tornar indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso
sobre seu corpo; criou-se a instituição prisão. Esta sociedade seria
melhor definida como uma sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1993,
p. 187).
Ao interpretar a realidade do instituto notamos que: com a intenção de evitar a
criminalidade, não colocando em risco assim, o bom funcionamento da maquinaria
produtiva capitalista, portanto, buscando agir de forma preventiva, foi fundado o
primeiro Instituto Disciplinar, o da Capital do Estado-São Paulo, criado pela Lei nº 844
de 10/10/1902.
Era crescente o aumento das crianças e adolescentes infratores e abandonados no
Estado de São Paulo. Em 1902 o número de “menores” presos nas cadeias comuns era
de 1.650, numa população carcerária de 12.518 pessoas, e o Instituto Disciplinar da
Capital só dispunha de 50 vagas para o atendimento de crianças e adolescentes3.
É evidente a insuficiência de instituições públicas e a ausência de vagas nas
instituições privadas de caráter filantrópico, para o atendimento às crianças e
adolescentes. Esta situação fez o governo atender às pressões das elites dirigentes e criar
o Instituto Disciplinar de Mogi Mirim, pela Lei nº 1.169 de 27/09/1909.
O Instituto Disciplinar de Mogi Mirim4 apresenta como uma das suas propostas
pedagógicas o controle e a disciplina. A disciplina a partir do poder que exerce sobre os
corpos produz uma individualidade multidimensional: enquadrada, programada,
adestrada e utilmente combinada, através da construção de quadros de prescrição.
Enfim, a instituição de normas, regras, regulamentos, leva a perda de uma dada
identidade e à constituição de outra, culminando com o processo de individuação. Para
Goffman:
Através do internamento o indivíduo é despojado de suas defesas, e ao
ser submetido às experiências de mortificação, separação do mundo
externo, rotina diária da vida institucional, restrição de movimentos,
convívio com grupos de outros indivíduos, obediência a determinadas
normas, restam-lhes possibilidades mínimas de conservar a concepção
de si mesmo e apoio na constituição do eu (GOFFMAN, 1961, p.45).
O poder disciplinar age a partir de uma anatomia política do corpo segundo o
princípio da norma. Manter dezenas de crianças e adolescentes cerceados num espaço
limitado, vigiados 24 horas por dia, com ordem e disciplina, seguindo as normas
estabelecidas, por si só já é uma tarefa bastante complexa. Acrescenta-se o difícil
trabalho de vigiar, evitar fugas, distribuir castigos e privilégios. Nem sempre foi
possível manter a ordem, o controle, a disciplina. Como podemos observar na manchete
estampada do jornal A Comarca:
Graves ocorrências registraram-se, sexta-feira última, no Instituto
Feminino de Menores desta cidade, quando numerosas alunas se
rebelaram, causando algumas depredações e desobedecendo, num
movimento de indisciplina, os seus diretores e funcionários. Durante a
confusão então reinante, muitas fugiram, sendo algumas recapturadas.
Afim de tomar conhecimento do fato, veio de S. Paulo o Dr. James
Ferraz Alvim, ilustre Diretor do Serviço Social de Menores (A
COMARCA, 1948b, p. 2).
Para entendermos melhor os fatos ocorridos no Instituto Disciplinar,
transformado em Instituto Feminino, ocorrido por ocasião da rebelião das meninas, é
importante ressaltar que a instituição sofrera algumas modificações, transformada para
atender mulheres. A partir da Lei nº 17.394 de 1947, observa-se que a instituição não foi
dotada das modificações necessárias, tendo em vista que agora seriam atendidas
meninas, por exemplo, o próprio corpo de funcionários, eram os mesmos do período em
que a demanda era do sexo masculino.
A modificação do público a ser atendido desagradou muitos funcionários do
instituto, que não se conformavam com a decisão do governo estadual. A esse respeito,
é apresentado o Sr Olavo Plessmam5, um dos funcionários descontes com tal
modificação, como a citação abaixo nos mostra:
O Instituto Feminino, do qual o Sr. Olavo Plessmam tem verdadeiro
ódio, tendo por diversas vezes tentado a sua transformação, o que é
público e notório na cidade. (RELATÓRIO, 1948, P. 3).
Visando a recondução do instituto à situação anterior à reforma, representantes
dos funcionários recorreram a várias instâncias do poder legislativo, seja em nível
Municipal – Câmara ou em nível Estadual – Assembleia Legislativa, como podemos
notar abaixo:
Na sessão de 23 da Assembleia Legislativa, o deputado Dr. Décio de
Queiroz Teles leu uma indicação aprovada pela câmara municipal de
Mogi Mirim propondo o restabelecimento do Instituto Masculino de
Menores nesta localidade em lugar do serviço de assistência feminina
que está funcionando (A COMARCA, 1948c, p 2)
Sem êxito em sua proposição, observamos o acirramento da tensão e da
resistência dos funcionários da instituição à sua transformação, episódios que
culminaram com uma série de movimentações políticas e de debates quanto à
organização e funcionamento da instituição, bem como, sua adequação, em meio a todas
essas disputas envolvendo o governo e os funcionários, nos parece que as meninas não
eram bem vindas, como podemos observar:
Repercutiu de maneira sombria em nossa terra o decreto
governamental transformando o Instituto de Menores em Instituto
Feminino de Menores, porque nenhuma vantagem advirá, para a nossa
sociedade, esse ato. Nem mesmo para o Estado parece que trará
vantagem tal permuta; vem ainda criar uma situação embaraçosa para
um grupo de 40 a 50 funcionários aqui residentes, os quais terão que
se mudar para São Paulo ou para outras localidades (A COMARCA,
1947d, p 3).
Decorrente dos fatos, o clima administrativo no interior da Instituição era tenso,
marcado por insegurança, incerteza. E é nesse contexto que é realizado o trabalho
pedagógico de recuperação e de reinserção social das menores internadas. A repressão,
a insatisfação, a resistência era a marca desses tempos sombrios, o que levou a um
descontentamento geral. Acrescente-se a esse cenário de intranquilidade a ausência da
diretora, dona Leonor Monteiro6, então hospitalizada em tratamento médico, é nesse
cenário que ocorrem os atos de indisciplina, descontrole, denominado como a rebelião
das meninas.
A cronologia da rebelião ocorrida nos dias 30, 31 de julho e 01 de agosto de
1948 e a sua repressão, pode ser analisada à luz de uma explicação, fornecida pela
direção do Instituto, baseada na ausência da diretora, sem que as internadas tivessem
sido comunicadas. A direção do Instituto, que assim se manifestou acerca do primeiro
dia de rebelião – sexta-feira dia 30 de julho, produzindo, um discurso científico sobre o
descontentamento das meninas internadas no Instituto:
Ao deixar Mogi Mirim, não comunicou às meninas que iria partir.
Elas quando souberam do fato, foram-se manifestando nervosamente e
essa manifestação subiu gradativamente até que alcançasse a explosão
coletiva. Torna-se necessário frisar que a maioria das internadas são
anômalas psíquicas e uma simples mudança de temperatura pode
influir sobre os seus nervos, sobre suas decisões (A COMARCA,
1948e, p. 3, grifo nosso).
Observamos que a direção do Instituto justifica a rebelião das meninas pela
ausência da diretora, motivada pela não comunicação de sua partida, e justifica que a
maioria das internadas são anômalas psíquicas, alegando assim o seu descontrole, ao
seu nervosismo. Observamos que nesse período o olhar médico e científico, baseava o
trabalho clínico em teorias evolucionistas que vinculavam o crime, a delinquência a
questões sociais e genéticas, corroborando um determinado olhar científico para os
“delinquentes e criminosos”.
O médico Nina Rodrigues7, um dos teóricos e representantes dessa proposta
científica, que adotam um olhar etnocêntrico, um leitor aplicado de Herbert Spencer,
que lançou as bases do Evolucionismo Social, ancorado em teses do darwinismo social
e do evolucionismo, reforçava assim as explicações e justificativas médicas e científicas
para o crime e a delinquência.
O contexto registra o olhar cientificista sobre os excluídos da nação, uma
história descolada da realidade social, sendo reconhecidos como verdade os saberes que
se consagram na ciência e disciplina, forma de dominação e de poder, contidas seja
pelas leis, seja pela polícia. A esse respeito, Foucault (1993) se manifesta:
Trata-se de qualquer maneira de fazer da prisão um local de
constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o
exercício da prática penitenciária. A prisão não tem só que conhecer a
decisão dos juízes e aplicá-la em função dos regulamentos
estabelecidos: ela tem que coletar permanentemente do detento um
saber que permitirá transformar a medida penal em uma operação
penitenciária (FOUCAULT, 1993, p. 223).
É nesse cenário de construção de saberes científicos sobre o menor internado,
construídos pelo Serviço Social de Menores8, Sobre posta a realidade de descontrole,
estando a diretora do Instituto ausente, e diretora substituta: Dona Mercedes Junqueira,
viajado a serviço, os funcionários comunicaram os fatos ocorridos ao Diretor do Serviço
Social de Menores, Dr. James Ferraz Alvim, que deixa o seu gabinete de trabalho em
São Paulo para se dirigir a Mogi Mirim, fatos esses relatados pela imprensa local:
Quando se verificou a explosão coletiva, os demais funcionários
incontinenti comunicaram o fato ao Dr. James Ferraz Alvim que, após
tomar pelo telefone as providências cabíveis, para aqui se dirigiu,
tendo chegado às 23 horas do mesmo dia, 30. A meia-noite foi
possível colocar todas as internadas nos seus respectivos leitos, sendo-
lhes fornecida a assistência médica pelo Dr. James, que é psiquiatra
(A COMARCA, 1948e, p. 3).
Diante dos fatos ocorridos no Instituto Disciplinar, com a Diretora hospitalizada
em São Paulo, a diretora substituta, ao menos o que é informado, estava ausente da
cidade, e as internadas rebeladas, eis que é convocado o diretor geral do Serviço de
Menores, o médico psiquiatra, e as meninas são diagnosticadas como anômalas
psíquicas. Conforme o noticiado acima, o tratamento adotado são as prescrições do Dr.
James, que assim fornece a assistência médica. As menores foram medicadas,
provavelmente foram dopadas, de maneira que pudessem dormir, após esses fatos, o
diretor do Serviço Social de Menores, retorna à capital. Porém, sem antes, deixar em
Mogi Mirim uma equipe de sua confiança.
Os ânimos ainda estavam inflamados no Instituto Disciplinar, a “explosão” do
dia anterior, ainda não estava controlada. No domingo, as meninas continuaram a se
rebelarem contra o controle, a disciplina, a violência, e assim novos desdobramentos
ocorrem neste domingo, 01 de agosto de 1948:
Todavia, domingo, sob o pretexto de que d. Leonor as levava à missa
e ao cinema, as menores continuaram com seus arrufos. Após vozerios
e controvérsias, foram deixando o estabelecimento com destino à
cidade. Foi-lhes aberta a saída com o intuito exclusivo de se apurar
quais as “cabeças” do movimento revoltoso, para que se pudesse agir
contra as mesmas (A COMARCA, 1948e, p. 3).
O relato acima é de tamanha perplexidade, visto que deixa transparecer a postura
da funcionária Benedita Gaby, Assistente do Serviço Social de Menores que veio para
Mogi Mirim com o diretor Dr. James e ali permaneceu. Houve discussão e
desentendimentos, as menores queriam continuar realizando suas práticas sociais, como
ir à missa e ao cinema aos domingos, momento esse que era o único na semana em que
as meninas poderiam sair da instituição, os demais dias eram marcados por uma rotina
muito rigorosa de trabalho e atividades diversas.
Podemos também notar, que provavelmente a não autorização para a saída fosse
uma repressão às atitudes de rebeldia, de descontrole, de indisciplina das internadas.
Provavelmente, como não puderam controlar as internadas, ou por opção e estratégia da
direção do instituto, foi-lhes facilitada a saída, com o claro intuito de se descobrir as
líderes, e é dito pela funcionária, que assim, se poderia agir sobre as mesmas, em um
claro tom de ameaça, é certo que haveria repressão violenta, o que se consubstancia no
trecho coletado na imprensa local:
Com a ajuda da polícia (externamente) tornou-se possível a volta de
todas as meninas ao Instituto. Foram isoladas as “cabeças” e o
ambiente de paz voltou ao estabelecimento, como pudemos observar
em nossa visita (A COMARCA, 1948e, p. 3).
Notamos que, nos dois últimos trechos citados pelo jornal, grafando as palavras
da porta-voz da direção do instituto. A palavra cabeças, escrita entre aspas, demonstra
haver um interesse em apontar e identificar as lideranças dentre essas meninas, o
objetivo era conhecer as líderes da rebelião, para adotar medidas repressivas, o que se
observa com as atitudes de repressão e violência adotadas pela instituição, o isolamento
usado como instrumento de repressão, de controle, de manutenção da disciplina.
O sistema repressivo no Instituto Disciplinar de Mogi Mirim tinha como
modelos de coerção e mecanismos punitivos. Ancorado no exemplo dos
comportamentos que deveriam ser vistos, com atitudes exemplares, para assim serem
seguidas, bem como, as atitudes negativas que deveriam ser coibidas, as punições
sofridas, privações que em sua maioria eram tornadas públicas, como modelos para não
serem seguidos.
O exemplo, dado como positivo, traria benefícios, distinções, prêmios, sendo
reforçado como atitude correta; no entanto, os casos de faltas graves, como acreditamos
tenham sido enquadradas as rebeladas, denominadas “cabeças” pela direção do Instituto,
mereceriam punições exemplares, e dentre as punições autorizadas, temos por exemplo
a mais leve, como o previsto no item a: a advertência ou repressão, em particular ou
em público. Culminando com a punição para casos mais graves: a célula escura,
mantendo-se isolado, tal como propõe o item g do regulamento: “célula escura, mas
somente para as faltas de extrema gravidade”. (REGULAMENTO, 1902, art. 27 item g).
Observamos que as punições eram previstas em regimento, reforçando os
comportamentos positivos. Por outro lado, as punições admitidas incluíam, além da já
citada acima no artigo 27, a advertência ou repressão, em particular ou em público a
privação do recreio; ou seja, um momento de “liberdade com o grupo”, os maus pontos;
que determinam a perda dos bons anteriormente conquistados, a célula escura, solitária,
mas somente para as faltas de extrema gravidade, Tudo isso era o previsto no regimento,
é o que nos parece ser o destino das ditas “cabeças”, as ocorrências são muito mais
graves, como poderemos ver relatado neste texto.
A repressão, a violência, a força utilizada para conter a rebelião das meninas,
ultrapassou as cercanias de Mogi Mirim, repercutindo na imprensa local e regional,
chegando a ser alvo de debate na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo, que
assim estampa no Jornal de Mogi Mirim:
A propósito da manifestação de descontentamento das menores
internadas no Instituto Feminino de Menores desta cidade, nos dias 30
e 31 de julho e 01 de agosto deste ano, que repercutiu na Assembleia
legislativa, destacamos no Diário Oficial do dia 03 do corrente, o
requerimento seguinte, formulado pelos Deputados Romeiro Pereira,
Luis Augusto de Mattos e Castelo Branco (O JORNAL DE MOGI
MIRIM, 1948a, p.2).
O objetivo do requerimento era de que fossem apurados os acontecimentos
registrados no Instituto Disciplinar quando da ocorrência da rebelião das meninas, fatos
esses que destoam da visão apresentada pela direção, de que tudo haveria transcorrido
dentro da normalidade, do respeito aos direitos das menores ali internadas,
escamoteando e dissimulando os reais fatos e acontecimentos. Pois em um espaço
projetado para a guarda e o cuidado, é preconizado o respeito aos direitos humanos, ao
que nos parece, é mera retórica no Instituto Feminino de Menores.
Prosseguirmos em nossa análise, com trechos contidos no Requerimento nº
1.231 de agosto de 1948, apresentado pelos deputados José Romeiro Pereira, Luis
Augusto de Mattos e Castelo Branco, pertencentes ao PSD - Partido Social
Democrático, onde os proponentes apresentam novos fatos, não publicados na imprensa,
que em certa medida contradizem a versão apresentada pela direção da Instituição.
Vejamos um primeiro trecho do requerimento em tela:
Tive conhecimento de que o Instituto de Menores de Mogi Mirim teria
sido nos dias 30 e 31 de julho e 1º de agosto deste ano, palco de
desagradáveis cenas relacionadas com o descontentamento reinante
entre as internadas, por causa do tratamento pouco pedagógico que
lhes vem sendo dispensado (O JORNAL DE MOGI MIRIM, 1948a, p
2).
Quando vemos que o poder legislativo, representado pelos deputados passam a
fiscalizar o poder executivo, questionando a proposta pedagógica do Instituto feminino
de menores, duvidando dos benefícios do seu atendimento, observamos que existia um
desencontro daquilo que fora noticiado poucos meses atrás, quando da visita do
governador.
Em visita do governador Dr. Ademar de Barros ao Instituto Feminino, realizado
em 11 de abril de 1948, o registro e a avaliação que a imprensa local fazia do Instituto
era bem distinta da observada pelos deputados, claro que esses últimos, à luz dos
últimos acontecimentos. Pouco mais de três meses antes da rebelião das meninas, o
colunista do jornal A Comarca assim se referia:
As alunas internas portaram-se com educação e disciplina, revelando
que os ensinamentos ali recebidos de dona Leonor muito tem influído
na sua formação moral e cívica. E isso também ficou demonstrado na
parte litero-musical realizada às 15 horas, com numerosa assistência,
quando as meninas – declamando, cantando, representando –
revelaram que aquele reformatório está cumprindo a sua finalidade,
sob a orientação esclarecida da abnegada mestra diretora (A
COMARCA, 1948f, p.1).
Decorrido o tempo em formação das internas, há que se questionar: será que em
poucos meses a realidade da Instituição modificou-se tanto?, As questões da proposta
pedagógica da instituição tinham sido mascaradas, ou mesmo, produzidas para atender a
interesses políticos, guardando distância da realidade, da situação de descontentamento
e de conflitos?. Aqui podemos pensar de que modo a instituição era avaliada, aquelas
mesmas meninas que há poucos meses atrás declamando, se manifestando cantando,
pudessem rebelar-se de maneira tão contundente, bem como, deixando cair por terra
toda imagem de disciplina, controle, que era produzida, os corpos dóceis, portando-se
com disciplina, educação e agora, são definidos como corpos agressivos,
descontrolados, indisciplinados, sem moral sem civismo.
Esses corpos indóceis agora, rebelados pagaram um preço muito alto, como
podemos observar, mais uma vez, recorremos ao requerimento nº 1.231 em que os
deputados apresentam novas informações do tratamento dispensado às meninas
rebeladas:
Entre as irregularidades está, certamente a de violências cometidas,
incluindo-se a física de raspamento dos cabelos das internadas – o
que, a meu ver, em nada contribui para a sua reeducação, confiada ao
Estado (O JORNAL DE MOGI MIRIM, 1948a, p. 2, grifo nosso).
O corpo das rebeladas é o alvo da violência, cometida no interior de uma
instituição que justamente deveria salvaguardar a segurança, e o tratamento adequado a
essas meninas. Dentre as várias dimensões do processo de confinamento, essa dimensão
de repressão, cometida por funcionários públicos, representantes do estado, garantem a
qualquer preço, a disciplina, o controle, desrespeitando direitos, desconsiderando os
objetivos de reeducação da instituição, ao menos, os proclamados.
Os deputados concluem o seu requerimento, solicitando ao governador a
abertura de inquérito administrativo para apuração dos culpados, este inquérito, é
respondido pelo Diretor do Serviço Social de Menores, Dr. James Ferraz Alvim, o que
nos permite conhecer algumas respostas fornecidas pelo Serviço Social de Menores:
Que quanto às alegações de que as menores tivessem seus cabelos
cortados, como castigo, podemos afirmar que esta Diretoria, em sã
obediência aos princípios consagrados em lei e pela convicção de que
castigo e punição não corrigem, jamais permitiu e não permitirá
castigos e punições de qualquer espécie, pois, sabido é que o amor
constrói e o ódio destrói. Se por qualquer ventura, algum menor existe
com o cabelo cortado, cumpre notar, que tal medida é de praxe em
qualquer estabelecimento desse tipo, como medicina preventiva. Sob o
ponto de vista prático-higiênico, o corte de cabelo em determinadas
pessoas, portadoras de parasitas ou de moléstias de couro cabeludo, de
fácil contaminação, não pode ser encarado, portanto, de maneira
alguma, medida disciplinar generalizada e muito menos penalidade.
(RELATÓRIO)
Conforme ao esperado, a não admissão de qualquer infração, bem como,
tratamento violento ou represálias ao comportamento das meninas, observamos que as
explicações e justificativas prestadas, oscilam entre uma dimensão jurídico-científica,
resgatando aspectos do higienismo. Assim como, de um vínculo em alguma medida,
calcado em um olhar carinhoso, humano, se aproximando de práticas religiosas.
O corte de cabelo é justificado por motivos de doença das próprias meninas, ou
seja, recorrem a conceitos científicos para justificar as ações e que esse corpo deveria
atender aos preceitos higienistas, tornando-se apto para o enfrentamento das condições
que a modernidade exigia.
A organização de um sistema de atendimento ao “menor” abandonado e
“delinquente” no Estado de São Paulo, toma aspectos científicos e de modernidade,
dentro de um paradigma das ciências, da ordem e do progresso, da inferioridade social
dos infratores, da inferioridade da mulher.
Porém, o que se observa no Relatório de investigação levantado pelos Deputados
Romeiro Pereira, Luis Augusto de Mattos e Castelo Branco, nos fazem crer que os fatos
ocorridos no Instituto Feminino de Menores são muito mais graves, como consta na
investigação, constante no Relatório:
Recapturadas as menores, conduziram-nas ao Instituto, onde foram
brutalmente espancadas pelos soldados da polícia, funcionários e
funcionárias do Instituto, por ordem de Olavo. Algumas menores
foram agredidas a socos e outras com cano de borracha. Depois de
submetidas a esse tratamento desumano, foram as menores
trancafiadas numa “cafua” e, mais tarde, transferidas para um
dormitório, onde permaneceram, segundo consta, até quarta-feira. Os
primeiros dias foram elas tratadas a pão e água (RELATÓRIO, p. 3,
grifo nosso).
Parte do Relatório produzido para responder ao requerimento nº 1.231
apresenta as investigações dos deputados acima citados, o que desnuda uma prática, no
mínimo, absurda por parte dos funcionários, polícia, e especificamente um funcionário,
o Sr Olavo Plessmam, já anteriormente citado, e que respondeu também pelo instituto
nesse momento de rebelião, o mesmo é identificado como um dos insufladores da
rebelião. Quanto ao tratamento dispensado às menores, é recorrente a violência, os maus
tratos que os documentos apresentam.
A correlação de forças e relações não permitiu que fossem levantados os
culpados por terem praticado os atos constrangedores, violentos, bem como, não se
permitiu aplicar as punições aos culpados. É possível concluir que as únicas punidas,
foram as próprias meninas ali internadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Não temos dúvida de que a rebelião das meninas despertou um olhar
diferenciado sobre o Instituto Feminino de Menores, sob a qual pudemos avaliar o
desprendimento de algumas práticas pedagógicas equivocadas. No entanto, ao
compreendermos que os esforços da direção da instituição em escamotear os maus
tratos, a violência e a repressão, antes de esconder os castigos físicos, atribui-lhe outro
aspecto, dotou-os de materialidade. Discutimos também como o poder público cuidava
de seus menores, quais eram as práticas de controle e de disciplinarização.
Nos parágrafos anteriores, buscamos chamar a atenção para a repressão, a
violência levada a cabo na instituição. Observamos que não é priorizada a cidadania,
que as meninas foram destituídas de qualquer direito.
Consideramos que a nossa reflexão elaborada dentro dos limites de uma
comunicação, remetem a um leque de possibilidades de pesquisas, de interrogações,
podendo assim, abrir muitos caminhos de investigação. Todavia é preciso delimitar o
problema para aprofundar os estudos relacionados ao tema proposto com novas
reflexões.
REFERÊNCIAS:
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política da infância e da adolescência no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.
REGULAMENTO Interno do Instituto Disciplinar, 1902. Aprovado pelo Decreto nº
1.079 de 03 de dezembro de 1902.
RELATÓRIO da Assembleia Legislativa de São Paulo, 05 de outubro de 1948.
Arquivado sob o nº 3.898 – Fotograma nº 610.
1 Este artigo é parte da pesquisa de Doutorado que desenvolvo no Grupo CIVILIS da Faculdade
de Educação da Universidade estadual de Campinas. 1
2 A criança pobre é tratada de forma preconceituosa como “menor” e classificada em diversas
categorias: menor abandonado, infrator, delinquente, órfão, vicioso; em oposição, a criança
originário das famílias da sociedade, de bem, de posses é tratada como “criança”.
3 Mensagem Enviada ao Congresso Legislativo em 14 de junho de 1907, pelo Presidente do
estado de São Paulo, Dr. Jorge Tibiriça, p. 342-343. 4 O Instituto Disciplinar de Mogi Mirim, bem como os demais institutos de menores do Estado
de São Paulo, sejam públicos ou privados, estavam subordinados ao Serviço Social de
Assistência e Proteção aos Menores – órgão vinculado a Secretaria de estado da Justiça e
Negócios do Interior, criado pela Lei nº 2.497 de 24/12/1935. Este Serviço foi reorganizado
através do Decreto nº 9.744 de19 /11/1938. Passo a usar, para os limites dessa comunicação:
Serviço Social de Menores. 5 Antigo funcionário do Instituto Disciplinar, tendo ocupado a direção da instituição em
substituição por diversas vezes, o Sr. Olavo é citado em Relatório, nos episódios da rebelião das
meninas, como sendo um dos mandantes das agressões e atos violentos contra as meninas. Ele é
filiado ao PSP – Partido Social Progressista de Mogi Mirim, mesmo partido político do
governador do estado Dr. Ademar de Barros. 6 A Sra. Leonor Monteiro foi nomeada como diretora do Instituto Feminino de Menores em 02
de agosto de 1947, era normalista formada pela Escola Normal de São Carlos, tendo sido
educadora psico-pedagoga do Serviço Social de Menores do Instituto de Pesquisas da Seção
Técnico-científica do serviço Social de Menores do estado de São Paulo. 7 Médico e cientista, ocupou um lugar de destaque no desenvolvimento da pesquisa e na
formação de especialistas em Medicina Social. Entre seus discípulos encontrava-se o médico
Artur Ramos (1903-1949). Para um maior aprofundamento na trajetória e discussões acerca das
teorias de Nina Rodrigues, ver As ilusões da Liberdade, de Mariza Corrêa, 1998. 8 Era publicado pelo Serviço Social de Menores o Boletim do Serviço Social de Menores,
documento este que apresentava uma visão, um olhar científico sobre as questões do menor
infrator.