O Horizonte Vermelho o Impacto Da Revolução Russa No Movimento Operário Do Rio Grande Do Sul 1917...

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 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Frederico Duarte Bartz O Horizonte Vermelho: O impacto da revolução russa no movimento operário do Rio Grande do Sul, 1917-1920 PORTO ALEGRE MAIO DE 2008

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Trata-se do impacto da revolução Russa no movimento operário do rio grande do sul.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Frederico Duarte Bartz

    O Horizonte Vermelho: O impacto da revoluo russa no movimento operrio

    do Rio Grande do Sul, 1917-1920

    PORTO ALEGRE MAIO DE 2008

  • Frederico Duarte Bartz

    O Horizonte Vermelho:

    O impacto da revoluo russa no movimento operrio

    do Rio Grande do Sul, 1917-1920

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Orientadora: Prof. Dr. Slvia Regina Ferraz Petersen

    Porto Alegre Maio de 2008

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  • RESUMO

    Esta dissertao tratar do impacto da revoluo russa no movimento operrio do Rio

    Grande do Sul entre 1917 e 1920. A revoluo russa foi um dos processos histricos mais

    importantes do sculo XX, sendo a primeira revoluo operria que sobreviveu por um

    longo tempo e conseguiu criar instituies duradouras.

    Durante os primeiros anos da revoluo russa no Rio Grande do Sul se vivia um

    momento de grande agitao entre os trabalhadores, com a deflagrao de greves, a criao

    de novos sindicatos e o surgimento de muitos jornais de classe. Neste contexto, aparecem

    as primeiras associaes de trabalhadores que se diziam identificados com as idias da

    revoluo russa, tambm surgem declaraes de apoio revoluo e desejo de seguir o

    caminho da Rssia dos Soviets entre os militantes operrios.

    Por esta recepo e o perodo de mobilizao, acredito ser necessrio estudar como a

    revoluo russa influenciou as idias e as formas de ao do movimento operrio do Rio

    Grande do Sul, considerando a ideologia dos militantes, suas origens tnicas e culturais,

    suas formas de associao e de luta contra o estado e a burguesia.

    Palavras-chave: movimento operrio, revoluo russa, primeira repblica.

    3

  • RESUME

    Cette tude traitera de l'impact de la rvolution russe en mouvement ouvrier de Rio

    Grande do Sul. La rvolution russa a t un des plus importants processus historiques du

    sicle XX, en tant la premire rvolution ouvrire qui a survcu pour un long temps et est

    parvenue lever des instituiciones durables.

    Pendant les premires annes de la rvolution russe dans le Rio Grande do Sul on

    vivait un moment de grand agitation entre les travailleurs avec la dflagration de grves, la

    creatin de nouveaux syndicats et le surgissement de periodiques de classe. Dans ce

    contexte apparaissent les premires associations qui sont identifies avec les ides de

    rvolutionne russe, aussi apparaissent dclarations d'appui la revolution et desir de suivre

    le chemin de la Russie des Soviets entre les militants ouvriers .

    Par cette rception et la priode de mobilisation, je cre tre ncessaire d'tudier

    comme la rvolution russe a influenc les ides et les manires d'action du movimento

    ouvrier durant ces annes, considrant l'idologie des militants, ses origines thniques et

    culturelles, leurs formes d'association et de combattre contre l'tat et la bourgeoisie.

    Paroles-cls: mouvement ouvrier, revolution russe, premiere republique en Bresil.

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  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente, como de praxe, agradeo ao Programa de Ps-Graduo em Histria

    da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao CNPq, por me financiarem uma bolsa

    integral, sem a qual no teria conseguido me dedicar a esta dissertao como me dediquei.

    Agradeo ao Professor Marcelo Badar Mattos, ao Professor Benito Schimidt e

    Professora Beatriz Loner, por terem aceitado participar da minha banca. Agradeo de forma

    especial Professora Carla Rodeghero, que participou da minha banca de qualificao e

    com quem tive, no mestrado, uma das melhores cadeiras que j cursei nesta Universidade,

    apesar desta, sobre historiografia da Ditadura Militar, nada ter a ver com meu tema de meu

    trabalho. E sou tambm igualmente grato aos colegas que entraram junto comigo neste

    curso, como o Ricardo Oliveira, o Diego Vivian, o Tiago Leito, a Carla Menegat, o Fbio

    Chang e o Cleber Carls, que fizeram daquelas tardes algo muito mais interessante que

    simples encontros acadmicos.

    Agradeo aos professores que ajudaram em minhas pesquisas e me ajudaram a pensar

    meu tema de trabalho. Novamente ao Professor Benito Schimidt, com quem pude

    estabelecer uma fecunda troca de idias e que, de um outro ponto de vista, pde enriquecer

    meu trabalho com novas referncias. Ao Professor Adhemar Loureno da Silva Junior e

    mais uma vez Professora Beatriz Loner, por terem me dispensado pacincia e terem me

    cedido seus materiais de pesquisa enquanto eu fazia minhas incurses aos arquivos do

    movimento operrio do sul do estado. Tambm agradeo ao Mrio San Segundo, que me

    hospedou na sua casa em Pelotas e conseguiu para mim hospedagem em Rio Grande, sendo

    meu guia naquelas duas cidades. Agradeo ao Artur Peixoto, que me cedeu um

    esclarecedor documento sobre Ablio de Nequete e ao Tiago Bernardon, com quem

    estabeleci no s uma frutfera relao de troca de documentos, mas tambm um vnculo de

    amizade.

    Mas agradeo, sobretudo, a minha orientadora Slvia Petersen. Ela foi sempre

    atenciosa, me tratou com respeito e foi me incentivando a desenvolver um trabalho cada

    5

  • vez melhor. Tambm devo a ela a noo de que meus escritos no deveriam ser somente

    meus, pois quando fazemos uma pesquisa devemos ter em mente que muitos outros alm

    do orientador e do orientando podero l-los, o que d ao estudo um carter muito mais

    pblico e coletivo do que um solitrio exerccio intelectual. Posso dizer, sem sombra de

    dvida, que sem o seu conhecimento do tema e sua experincia no estudo do movimento

    operrio, minha dissertao teria ficado muito aqum do que foi aqui desenvolvido.

    Agradeo aos amigos dos tempos da graduao em histria na UFRGS, com quem

    mantive contato durante o mestrado. Destaco antes de tudo Joana Dvila e o Gabriel

    Aladrn, meus primeiros amigos de verdade no curso, com quem aprendi muitas coisas e

    no somente no campo das idias, mas tambm das aes na realidade. Agradeo ao

    Gabriel Berute e a Fabiane Mancilha, que foram amigos preciosos. Alguns destes amigos

    esto longe agora, mas no os esqueci e espero que em breve possa encontr-los, para

    contar da sensao de acabar este rduo trabalho. Tambm agradeo ao Guinter, ao

    Fernando e ao Nauber, os dois ltimos que, como eu, tambm escolheram ser militantes

    da histria da classe operria. Guardo tambm um agradecimento especial Thais e ao

    Gabriel Focking, este ltimo que me ajudou inmeras vezes durante estes dois anos, sendo

    para mim um exemplo de abnegao e companheirismo.

    Agradeo aos novos amigos que encontrei e cujas marcas tambm podem ser

    encontradas neste trabalho. Agradeo Cssia e ao Marcus, que no s foram grandes

    colegas, como tambm ajudaram a me tornar professor de um curso pr-vestibular popular,

    o Alternativa Cidad, o que tem sido motivo de grande alegria para mim. Mariana,

    Fernanda, ao Tiago e Isabela, colegas de outros cursos, de outras barras, com quem nunca

    tinha convivido antes, mas que hoje parecem ser meus amigos h muito tempo. Tambm

    agradeo Alanna, que conheci no faz muito, mas que j se tornou uma pessoa muito

    importante para mim. A companhia de vocs fez deste perodo final do curso algo muito

    mais alegre do que a rotina mecnica de aprimorar ortografia e observar as normas da

    ABNT. Vou lembrar nossas conversas absurdas nos bares da Cidade Baixa, em que tudo ia

    contra o senso comum, em que no parecamos fazer parte deste lugar, mas parecamos ser

    imigrantes ou refugiados de um pas perfeito que nunca aconteceu.

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  • Os ltimos e principais agradecimentos so dedicados minha famlia. minha irm,

    Dbora Bartz, que tem sido sempre a minha melhor amiga e ao meu pai e minha me. a

    Frederico Bartz Netto e a Din Duarte Bartz a quem realmente dedico este trabalho. Eles

    foram camponeses que vieram para cidade ser engolidos pela sociedade urbano-industrial.

    Talvez fosse demaggico dedicar este estudo classe trabalhadora do Rio Grande do Sul,

    nesta impossibilidade, dedico a meus pais, mas no somente por serem parte dela, mas

    tambm por terem me formado com a carga de suas experincias pessoais; tudo eu devo a

    eles e quando escrevia este trabalho, no pensava apenas naquelas pessoas que encontrava

    em relatos perdidos e velhos papis, eu tambm pensava neles.

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  • SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................10

    1. O CRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE: a revoluo russa e seus

    impactos internacionais.........................................................................................................33

    1.1.A revoluo russa................................................................................................33

    1.2.A revoluo mundial...........................................................................................39

    2. HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIA QUE VENS PARA NS EM NOME DA

    LIBERDADE: a experincia operria no Rio Grande do Sul e as primeiras interpretaes

    da revoluo russa pelos trabalhadores organizados do estado.............................................45

    2.1.A trajetria do movimento operrio no Rio Grande do Sul e suas caractersticas

    nos primeiros anos da revoluo russa..................................................................................45

    2.2. As condies sociais de apropriao dos impactos iniciais da revoluo russa

    entre os operrios gachos....................................................................................................61

    3. A HUMANIDADE UM TURBILHO E O MUNDO UM CREPITAR DE CHAMAS:

    as transformaes nas formas de interpretar a revoluo russa no ano das grandes greves; novas experincias, novas leituras........................................................................................73

    3.1. A revoluo como um processo universal.........................................................75

    3.2. A Rssia como concretizao das esperanas operrias....................................83

    3.3. A luta contra as interpretaes burguesas da revoluo russa; O Syndicalista

    versus Correio do Povo em Porto Alegre e a polmica em torno do militarismo no Rebate,

    de Pelotas..............................................................................................................................90

    3.4.O esforo analtico dos militantes sobre a revoluo russa................................96

    4. PARECER ABSURDO QUE UM LIBERTRIO QUE TEM POR TEMA A PAZ E A

    CONCORDIA EXCLAME: SALVE A REVOLUO! a identificao dos militantes com a

    revoluo e as aproximaes contraditrias com o sonho revolucionrio..........................105

    8

  • 4.1. Anarquismo e sindicalismo revolucionrio: algumas formas possveis de

    identificao com os ideais da revoluo............................................................................106

    4.2. Trajetrias de vida, identidades tnicas e escolhas polticas na aproximao com

    a revoluo russa.................................................................................................................111

    a) Friedrich Kniestedt e Zenon de Almeida: duas formas distintas dos anarquistas se

    relacionarem com a revoluo russa.......................................................................111

    b) Ablio de Nequete: a revoluo russa por uma perspectiva tnica e religiosa........122

    c) Carlos Cavaco: a escolha pela revoluo de fevereiro............................................130

    5. A VOSSA DIVISO A VOSSA FRAQUEZA- UNI-VOS POIS!, E, NO HAVER

    FORA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR: associaes comunistas do Rio

    Grande do Sul e suas relaes com grupos similares do centro do pas.............................134

    5.1. O surgimento das associaes comunistas e maximalistas no Rio Grande do

    Sul.......................................................................................................................................135

    5.2. Relao com os grupos comunistas de So Paulo e Rio de Janeiro.................155

    5.3. Participao do movimento operrio gacho na insurreio maximalista de

    1919.....................................................................................................................................162

    6. NO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE PASSOU NA CABEA DE BOA

    PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR DE OLHOS TORNARAM-SE

    NOSSOS INIMIGOS: balanos e perspectivas do movimento operrio gacho em relao

    ao futuro da revoluo russa............................................................................................170

    6.1. A revoluo russa como motivo de discrdia: novas e velhas atitudes

    anarquistas...........................................................................................................................172

    6.2. O peso da reao: a campanha contra o maximalismo e a perseguio aos

    militantes do movimento operrio.......................................................................................182

    6.3. Rumo dcada de 20: o sonho da revoluo desfeito entre disputas internas e

    ataques da classe dominante................................................................................................197

    CONCLUSES.......................................................................................................210

    FONTES..................................................................................................................220

    BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................223

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  • INTRODUO

    H noventa anos foi iniciado um processo que marcou profundamente a histria do

    sculo XX: a revoluo russa. Pode-se dizer, sem muito exagero, que esta revoluo

    ocorrida em um imprio distante, de misteriosas vastides, e seus desdobramentos

    mudaram o mundo e ainda mais, mudaram a maneira de pensar o futuro da humanidade

    naquele curto sculo XX. Hoje isto tudo parece muito distante, principalmente porque

    depois de 1989 houve no s esforo enorme para apagar o significado deste

    acontecimento, como apagar o prprio significado da palavra revoluo.

    A histria no parou a e muita coisa aconteceu depois da queda do muro de Berlim

    em 1989 e da dissoluo, em 1991, da Unio Sovitica, a herdeira da revoluo russa.

    Hoje alguns dos velhos temas do sculo XX voltam a ser discutidos: a ao imperialista

    americana e a luta contra a ocupao estrangeira, no caso do Iraque ou do Afeganisto; a

    capacidade da mobilizao popular diante da presso dos governos ou dos empresrios para

    destruir conquistas sociais, como nas recentes greves ocorridas nas capitais da Europa ou a

    possibilidade de mudanas sociais radicais, acenadas em pases latino-americanos como

    Venezuela, Bolvia e Equador, em que a palavra revoluo voltou a ter atualidade.

    Talvez esta seja a hora para retomar velhos temas que pareciam estar esquecidos.

    No h mais no ar o peso da guerra fria, que daria a este trabalho o ar polmico e partidrio

    que outrora poderia ter, mas tambm, creio eu, no estamos mais sob o peso do alarmado

    fim das ideologias, que faria deste estudo apenas um ato de visitar relicrios do passado.

    Acredito que esta pesquisa, como disse acima, se insere em um esforo por rever velhos

    temas, refazer velhos caminhos, que podem com este esforo voltar a ser objeto de

    interesse. Talvez esse desejo esteja mesmo no ttulo O Horizonte Vermelho, inspirado no

    livro 1917. O Ano Vermelho, escrito pelo intelectual baiano Luis Alberto Moniz Bandeira,

    que fala das conseqncias da revoluo russa para o movimento operrio brasileiro. Sigo,

    entretanto, um caminho diferente do livro de 1967; para mim a revoluo russa no marcou

    aqueles anos com sua marca rubra, mas abriu largos horizontes que podiam ser, em

    diferentes momentos, auroras ou crepsculos. E afinal de contas, quem sabe tambm no

    10

  • voltamos a acalentar velhas esperanas observando a ao destes trabalhadores que, mesmo

    por algum tempo, acreditaram com todas as suas foras estarem vislumbrando e

    participando do nascimento de um novo mundo?

    Vamos a eles.

    A revoluo russa foi deflagrada em fevereiro de 1917. Desde a primeira hora o

    movimento com forte participao operria impressionou o mundo, em parte pelo atraso e

    represso que sempre caracterizaram o gigante russo, em parte pela radicalidade das

    propostas e aes dos diversos revolucionrios que agiam no pas naquele momento.

    A partir de outubro quando o Partido Bolchevique, grupo poltico operrio por

    excelncia, tomou o poder e transferiu o centro decisrio do Governo Provisrio para um

    Conselho (Soviet) de Operrios, Soldados e Marinheiros, o impacto foi ainda maior. Em

    diversas partes do mundo, revolucionrios que desejavam mudanas profundas na sociedade

    se identificaram com aquele movimento, logo pensando em reproduzir em seus pases o que

    os russos haviam conseguido com sucesso em sua terra. Alguns desses movimentos foram de

    extrema importncia e prenhes de conseqncias para seus respectivos pases, principalmente

    na Europa. Assim, a revoluo alem de 1918, a revoluo hngara de 1919 e a multiplicao

    de Conselhos Operrios na Itlia podem exemplificar quanto foi profundo o impacto da

    revoluo russa no continente europeu.

    Este perodo coincidiu com o fim da Grande Guerra, que havia jogado muitos pases

    em uma crise profunda, com resultados nefastos para os operrios e deslegitimando os

    governos que mais haviam sofrido com o conflito. A revoluo russa foi assim uma das

    conseqncias desse perodo conturbado e umas das causas da ascenso das lutas nos

    diversos pases onde o quadro se repetia.

    A revoluo russa tambm repercutiu no Brasil. Na poca, em nosso pas no havia

    partidos polticos operrios, seno efmeros e sem importncia. Se quisermos analisar a

    importncia da revoluo russa no movimento operrio brasileiro, seu uso, suas

    interpretaes, deve-se procur-la especialmente entre os militantes e associaes ligadas

    luta sindical, onde se destacava a ao dos anarquistas. Devemos ter isso em mente ao

    11

  • analisar as tentativas de explicar os modelos que nasciam da Rssia Sovitica e as aes

    inspiradas nestas interpretaes.

    No Rio Grande do Sul, destacavam-se as aes dos anarquistas e dos socialistas, estes

    em parte ligados tradio da social-democracia alem, em parte ligados a velhos lderes

    sindicais como Francisco Xavier da Costa. Os anos de 1917-1920 so de intensa

    movimentao entre os operrios: greves, violenta represso, jornais que surgiam para logo

    desaparecer, surgimento de novas associaes. neste ambiente que as notcias da revoluo

    russa chegaram at aqui.

    Muito cedo j aparecem referncias revoluo no nosso meio operrio. Em maro, um

    ms apenas depois da revoluo de fevereiro, a Rssia j mencionada em uma importante

    greve de calceteiros. Em julho, no maior comcio da grande greve de 1917, Joo Batista

    Moll, militante anarquista, entusiasma-se com os exemplos da Rssia Revolucionria. Nestes

    primeiros momentos, invariavelmente, as referncias revoluo se ligam aos anarquistas

    que, no perodo de 1917 e 1918, estavam em franca ofensiva dentro do movimento operrio,

    j que resultados da greve de 1917 os fizeram perder espao dentro da Federao Operria do

    Rio Grande do Sul (FORGS). Um dos pontos importantes desta ofensiva , por exemplo, a

    refundao do jornal A Luta, em fevereiro 1918, que tinha como uma de seus objetivos

    principais a defesa da revoluo russa. Joo Batista Maral, em seu artigo 1917 Novembro.

    As conseqncias da revoluo russa no Rio Grande do Sul, reproduz um exemplo desta

    defesa, publicado na edio de 1 de maio do referido jornal:

    Que a revoluo russa um acontecimento grandioso na histria dos povos para ns incontestvel. E se nada soubssemos sobre a mesma, quanto seus fins, uma coisa nos bastaria para que o nosso dever, dever dos trabalhadores, fosse defend-la: o fato e ter contra si toda a burguesia do mundo. Porque a burguesia no faria tanto escarcu se algo de grave a revoluo no anunciasse. 1

    Mas estas no eram as nicas vises que os militantes ligados ao movimento

    operrio tinham. Outras interpretaes tambm circulavam: Carlos Cavaco, lder socialista

    e tribuno popular que tinha grande influncia entre os trabalhadores, foi muito crtico

    revoluo sovitica de outubro. Outro operrio, o barbeiro libans Ablio de Nequete,

    apoiou a revoluo russa, mas teve uma interpretao prpria dela, com referncias tnicas 1 MARAL, Joo Batista. 1917 novembro. As conseqncias da revoluo russa no Rio Grande do Sul. Revista O Sul: Porto Alegre. n. 18, 1987.

    12

  • e religiosas que se afastavam muito da viso dos anarquistas. Isto mostra como, mesmo

    entre os que atuavam no meio operrio, as maneiras de ver a revoluo podiam seguir

    rumos diferentes, at dispares.

    No ano de 1918 surgiram as primeiras associaes comunistas no Rio Grande do Sul.

    Em novembro deste ano apareceu uma das mais destacadas entre elas: a Unio Maximalista2

    fundada em Porto Alegre por Ablio de Nequete, que em 1922 ser o primeiro secretrio-

    geral do Partido Comunista do Brasil. Esta associao atuava na capital e teve participao

    importante nas greves de 1919, especialmente junto Unio Metalrgica, na qual logrou

    conquistar adeptos. No ano de 1918 tambm surgiu a Liga Comunista de Livramento, que

    atuou na greve dos frigorficos Armour em 1919. Centros similares aparecem tambm em

    cidades de Passo Fundo, Rio Grande e em Pelotas.

    Aparentemente, no existiam diferenas marcantes entre anarquistas e maximalistas

    (ou comunistas), que teriam atuado juntos at o ano de 1919, o que parece no ocorrer mais

    em 1920. Esta impresso reforada por Friedrich Kniestedt, imigrante alemo e lder

    anarquista, em suas Memrias de um imigrante anarquista3. Neste ano foi realizado o 2

    Congresso Operrio do Rio Grande do Sul, evento muito importante para o movimento

    operrio do estado. Os Congressos Operrios marcavam o momento em que os

    representantes das diversas associaes se reuniam para discutirem sua atuao e

    deliberarem sobre os projetos futuros. Neste Congresso houve uma disputa acirrada entre

    Friedrich Kniestedt e Ablio de Nequete, lder da Unio Maximalista, pois este tentara filiar

    a FORGS Internacional de Moscou. O Congresso terminou com a vitria da posio

    defendida pelos anarquistas e com a filiao da FORGS Internacional Apoltica de

    Berlim.

    Pela exposio at aqui realizada pode-se observar, mesmo que brevemente, alguns

    dos impactos que a revoluo russa teve sobre o meio operrio nos anos imediatos sua

    ecloso. Isto me permite agora enunciar o objetivo central da minha pesquisa: analisar que

    transformaes ou conseqncias importantes o impacto e as interpretaes sobre a

    revoluo russa teriam trazido para o movimento operrio do Rio Grande do Sul entre 1917

    e 1920.

    2 Seria a traduo portuguesa de Bolchevik 3 KNIESTEDT, Friedrich. Memrias de um Imigrante anarquista. Traduo, introduo, eplogo e notas de rodap: GERTZ, Ren E. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1989.

    13

  • Neste perodo inicial (1917-1920) em que a Rssia dos Soviets estava se construindo

    e sua estrutura de poder no estava cristalizada, a grande novidade da revoluo operria

    mexeu com conceitos, despertou paixes e rancores e acabou se transformando em

    referncia tanto para os seus entusiastas quanto para os seus crticos. Tendo em vista que a

    revoluo mexeu com os referenciais do movimento, estudar seu impacto talvez possa

    ajudar a esclarecer algumas questes atinentes ao desenvolvimento das lutas operrias.

    Quanto ao Rio Grande do Sul, esta questo se reveste de importncia por algumas

    caractersticas peculiares do nosso movimento operrio em relao aos demais estados,

    como a existncia de rivalidades entre anarquistas e socialistas ou o papel dos governantes

    do Partido Republicano Riograndense em relao aos trabalhadores, com o seu discurso

    positivista de incorporao do proletariado sociedade, que ideologicamente diferia da

    poltica das outras unidades da federao.

    Embora se trate de um tema que se situa cronologicamente em um perodo muito

    estudado (talvez o perodo mais estudado da histria operria do Brasil) e seja um tema

    ligado histria das instituies e das idias polticas dentro do movimento operrio,

    campo que foi durante muito tempo privilegiado na investigao histrica, a questo que

    proponho investigar muito pouco trabalhada na historiografia. Portanto creio ser

    importante este estudo porque, alm de pesquisar o impacto que a revoluo russa teve

    entre nossos operrios, ele abre a possibilidade de esclarecer alguns aspectos quanto

    reao dos diversos grupos a fatos e idias novas, capacidade de renovao ou

    conservao das diversas tendncias que lutavam para liderar o movimento e at examinar

    a competncia de seus discursos em promoverem ou no prticas polticas.

    Quanto ao recorte espacial, foi delimitado o estado do Rio Grande do Sul como um

    todo porque, pelas fontes que consultei, a revoluo russa provocou reaes no movimento

    operrio de diversas cidades do estado, foi um fenmeno bastante generalizado, no se

    restringindo somente aos principais centros de militncia como Porto Alegre, Pelotas e Rio

    Grande. Alm disso, em perodos de grande mobilizao ativavam-se redes de

    solidariedade e de troca de informaes que no poderia acompanhar, nos limites de uma

    dissertao, se estendesse meu campo de estudo para alm das fronteiras estaduais e que,

    por outro lado, seriam insuficientes como materiais de anlise caso me restringisse ao que

    aconteceu somente em um municpio. Apesar desta delimitao, meu trabalho no

    14

  • propriamente uma histria regional ou um estudo de caso, j que tem uma abertura para

    processos histricos nacionais e mundiais, o que, alis, tpico da histria operria. Nas

    palavras de Slvia Petersen.[...] em vrios aspectos parece no ser possvel conceber a

    histria operria como uma histria regional, pois h processos e acontecimentos que,

    circunscritos dimenso regional, no conseguem receber significado pelos

    pesquisadores.4

    Mesmo tendo esta perspectiva de uma histria regional que se abre para o mundo,

    por razes materiais e de tempo a maior parte das fontes pesquisadas so oriundas da

    capital, embora tambm tenha consultado fontes de outras cidades como Pelotas, Rio

    Grande e Bag, alm de materiais do Rio de Janeiro e So Paulo. De qualquer modo no

    creio que este predomnio de materiais da capital seja um limitador, porque eles do conta

    no s do que ocorria em Porto Alegre, como informavam o que acontecia em outras

    cidades e davam voz aos militantes do interior, o que se observa mais claramente nos

    jornais e informes da Federao Operria estadual (FORGS). Alm do mais, deve-se levar

    em conta que os operrios circulavam pelo estado e suas associaes tinham a Federao

    estadual como referncia. O 2 Congresso Operrio, por exemplo, embora realizado em

    Porto Alegre, contou com representantes de vrios municpios. Tambm no se deve

    esquecer que, tratando do Rio Grande do Sul, pode-se tocar na questo da sua proximidade

    com o Prata, que sempre foi uma porta de entrada para novas idias e influncias.

    A dissertao que estou apresentando pode no parecer inovadora, pois trabalhos

    similares a este j foram produzidos em outros contextos como: O ocidente diante da

    revoluo russa de Marc Ferro5, La gran revolucin de octubre y Amrica Latina6 de Boris

    Koval e para o Brasil temos o clssico O ano vermelho7 organizado por Moniz Bandeira,

    em que o Rio Grande do Sul aparece de forma espordica e marginal. Alm dos livros que

    tratam do impacto da revoluo como um tema especfico, a euforia pela revoluo russa

    tem lugar de destaque em livros produzidos por militantes que participaram das

    mobilizaes operrias ocorridas no final da dcada de 10. Everardo Dias, na sua Histria 4 PETERSEN, S. R. F. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a histria operria brasileira. In: ARAJO, Angela Maria Carneiro. (Org.). Trabalho, cultura e cidadania. So Paulo: Scritta, 1997. p. 89. 5 FERRO, Marc. O ocidente diante da revoluo sovitica: a histria e seus mitos. So Paulo: Brasiliense, 1984. 6 KOVAL, Boris. La gran revolucion de octubre y Amrica latina. Moscou: Progresso,1978. 7 BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. O ano vermelho: a revoluo russa e seus reflexos no Brasil. So Paulo: Expresso Popular, 2004.

    15

  • das lutas sociais no Brasil8, por exemplo, valoriza as insurreies operrias inspiradas no

    exemplo em russo, tentadas em 1918 e 1919. Astrogildo Pereira, na sua Formao do PCB,

    destaca a importncia da influncia da revoluo russa para uma inflexo ideolgica do

    anarquismo ao comunismo no incio dos anos 20 que daria origem ao PCB, do qual foi um

    dos fundadores, em 19229. J a formao de um primeiro Partido Comunista do Brasil10

    pelos libertrios, em 1919, abordada em um captulo do livro de Edgar Rodrigues,

    Nacionalismo e cultura social11. Para este, a formao de um partido e mesmo o apoio

    dado revoluo no passou de um engano, de uma grande confuso poltica, no

    influenciando o anarquismo, que se manteve posteriormente. Algumas obras de relevncia

    para a histria do movimento operrio brasileiro, como Trabalho urbano e conflito social12,

    de Boris Fausto, do grande importncia ao impacto da revoluo russa no contexto das

    lutas dos trabalhadores. Neste livro especificamente, os acontecimentos na Europa so

    considerados elementos fundamentais para alavancar o mpeto das mobilizaes operrias

    no perodo das grandes greves.

    De qualquer forma estes estudos centram-se excessivamente nos fatos ocorridos no

    Rio de Janeiro e So Paulo, aparecendo o Rio Grande do Sul sempre de forma ocasional.

    Para o caso gacho no h nenhum trabalho aprofundado e sistemtico e, nesse sentido, a

    contribuio da dissertao provavelmente original.

    Para o Rio Grande do Sul um trabalho afim com o tema o de Adriano Belmudez

    Antunes - A repercusso da revoluo russa nos jornais dirios da repblica velha13, em

    que este descreve como o Correio do Sul de Bag, O Dirio Popular e O Rebate de Pelotas

    narraram os acontecimentos relacionados revoluo russa no ano de 1917. Um trabalho

    como este pode ajudar a observar como os jornais, que eram os principais canais de notcias

    do que se passava no exterior, difundiam as informaes sobre a revoluo no nosso estado,

    8 DIAS, Everardo. Histria das lutas sociais no Brasil. So Paulo: Alfa Omega. 1977. 9 PEREIRA, Astrogildo. Ensaios histricos e polticos. Alfa-mega: So Paulo, 1979. 10 O grupo comunista do Rio de Janeiro, capitaneado por Astrojildo Pereira e Jos Oiticica, fundou um Partido Comunista, mas tambm se definia como anarquista. Este um momento de transio no movimento operrio e por enquanto indico-os assim, pois seu jornal era o promotor do partido que esse grupo fundou. No abordo as discusses relacionadas sua definio de imediato porque elas esto na raz de um problema que ser desenvolvido mais adiante. 11 RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemert, 1972. 12 FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. So Paulo: DIFEL, 1977. 13 ANTUNES, Adriano B. A repercusso da revoluo russa nos jornais dirios da repblica velha. Histria em Revista : Pelotas. n.6, dez. 2000.

    16

  • mas dificilmente serviria para ajudar a entrever como os militantes operrios tratavam a

    questo. H tambm um brevssimo artigo, j mencionado, escrito por Joo Batista Maral

    na revista O Sul, com o ttulo de 1917 Novembro. As conseqncias da Revoluo Russa no

    Rio Grande do Sul14, em que o autor relata algumas reaes revoluo de 1917, abrindo

    tambm o campo de anlise para as reaes revoluo de 1905 e avanando pela dcada

    de 1920, com a atuao dos comunistas gachos. O problema aqui que se trata de um

    texto de uma pgina, mais jornalstico que historiogrfico, trazendo poucas questes de

    fundo para a discusso.

    Autores que trabalham o movimento operrio no Rio Grande do Sul tambm as

    vezes tratam do tema, mas de forma breve e tangencial aos temas centrais de suas obras.

    Silvia Petersen e Maria Elizabeth Lucas na sua Antologia do movimento operrio gacho15

    dedicam um subcaptulo ao Impacto da Revoluo Russa no movimento operrio gacho;

    neste as autoras observam que no houve uma mudana de orientao no movimento

    operrio, pois os anarquistas, que eram predominantes na poca, acreditaram em um

    primeiro momento ser a revoluo uma vitria da anarquia. Isto tambm abordado no

    estudo de Adhemar Loureno da Silva Jnior, Povo! Trabalhadores! Nessa dissertao, ao

    analisar pormenorizadamente a greve de 1917, d exemplos da defesa da revoluo por

    anarquistas, mas afirma que a revoluo no deve ser avaliada como um fenmeno que se

    espraia pelo mundo, mas como uma imagem que condiciona a ao dos militantes

    operrios16.

    Para alm da defesa da revoluo pelos anarquistas, Slvia Petersen no livro Que a

    unio operria seja nossa ptria aponta para o papel de Ablio de Nequete como um dos

    primeiros operrios a se interessar pela revoluo comunista como caminho alternativo ao

    anarquismo, sendo um dos pioneiros na propagao dos seus princpios:Assim, enquanto o

    movimento operrio em Porto Alegre enfrentava as tendncias desagregadoras do ps-

    14 MARAL, Joo Batista. Op. Cit. 15 PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. e LUCAS, Maria Elisabeth da Silva. Antologia do movimento operrio gacho (1870-1937). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992. 16 SILVA JR. Adhemar L. Povo!Trabalhadores!: tumultos e movimento operrio (estudo centrado em Porto Alegre, 1917). Porto Alegre: PPG em Histria da UFRGS, 1994. (dissertao de mestrado) p. 381.

    17

  • greves [de 1919], os efeitos da revoluo russa iam chegando ao Rio Grande do Sul, sendo

    Nequete o timoneiro destas idias17

    Sobre Ablio de Nequete, que, pelo papel de fundador da Unio Maximalista de Porto

    Alegre e do Partido Comunista do Brasil em 1922, sempre tem seu nome destacado quando

    se escreve sobre a revoluo russa entre os operrios gachos, o principal trabalho existente

    o texto indito de Irene Haas Rosito O pensamento poltico de Ablio de Nequete18. Neste

    texto a adeso ao bolchevismo vista como parte da evoluo do seu pensamento. O texto

    ajuda a compreender alguns passos iniciais da repercusso da revoluo em Porto Alegre,

    como na fundao da Unio Maximalista e na ao desta nas greves de 1919; alm de relatar

    algumas caractersticas peculiares das noes polticas de Nequete.

    Desta forma, a anlise que me proponho fazer deve se centrar em algo que teve

    grande importncia para o movimento operrio, mas que sempre foi tratado de forma lateral

    nos estudos sobre a histria dos trabalhadores organizados de nosso estado. Muitas vezes

    porque o papel dos comunistas havia sido supervalorizado em um perodo inicial da

    produo historiogrfica sobre o movimento operrio ou porque esta influncia aparecia

    como algo difcil de provar, no suscitando maiores discusses. No entanto, houve nos

    ltimos anos a descoberta de novas fontes que podem contribuir para ratificar ou corrigir

    interpretaes cristalizadas sobre o papel de militantes e associaes naqueles anos

    conturbados.

    Tendo em vista o que foi exposto at agora, meu estudo tem os seguintes objetivos:

    contribuir para o avano da historiografia sobre o movimento operrio no que se refere ao

    impacto da revoluo russa no Rio Grande do Sul; estudar as diversas interpretaes que se

    fizeram da revoluo russa no movimento operrio, especialmente em relao s famlias

    polticas que nele atuavam; observar a atuao das associaes operrias gachas que se

    diziam comunistas ou maximalistas, tentando ligar suas aes s formas de pensar a

    revoluo russa e analisar, por fim, que conseqncias as interpretaes e os usos da

    revoluo russa teriam trazido para o movimento operrio do Rio Grande do Sul entre 1917

    e 1920. 17 PETERSEN, Silvia R. F. Que a unio operria seja nossa ptria. Histrias das lutas dos operrios gachos para construir suas organizaes. Porto Alegre: Editora da UFRGS 2001 p.371. 18 ROSITO, Renata I. H. O pensamento poltico de Ablio de Nequete. Porto Alegre: PUCRS, 1972. (Monografia para a Cadeira de Poltica do Curso de Bacharelado em Cincias Sociais)

    18

  • Quanto ao procedimento da anlise, o tema ser abordado considerando a

    interseco de duas referncias principais, que se articulam de forma muito prxima:

    Uma se refere circulao das idias vinculadas revoluo russa; a outra se

    refere recepo dessas idias e suas relaes com as prticas do movimento operrio.

    Articulando estes dois mbitos, esto as experincias associativas e de luta da classe, suas

    tradies culturais e tnicas e as prprias relaes (ou tenses) que diferentes segmentos da

    classe estabelecem entre si.

    Quanto primeira referncia de anlise, importante examinar como as idias e

    informaes sobre a revoluo russa eram propagadas entre os militantes operrios do Rio

    Grande do Sul. Acredito que a melhor forma de trabalhar com esta questo a partir da

    noo de circulao de idias. Como bem coloca Eduardo Devs Valds:

    Categorias como influncia ou difuso tem operado do interior do centro de difuso periferia, ainda que possam servir tambm para estudar o movimento das idias no mbito perifrico. Entretanto, a noo de influncia induz em grande medida passividade do receptor, ao passo que a noo de circulao tolera melhor questes como os modos de recepo e reelaborao. 19

    Tratando-se, pois, da circulao das idias, necessrio considerar os canais pelos

    quais as informaes sobre a revoluo chegavam at aqui, o que significa, sobretudo, falar

    na imprensa peridica. Tanto os jornais de grande circulao quanto os jornais operrios

    divulgavam notcias sobre a Rssia e na imprensa que se encontra uma das principais

    fontes deste trabalho. Por isso importante levar em conta as diferentes perspectivas que

    orientavam os jornais operrios e os da grande imprensa. A imprensa operria se colocava a

    tarefa de educar e conscientizar o operariado, de combater a burguesia e de propagar as

    doutrinas revolucionrias20. Por parte da grande imprensa h uma atitude crtica aos abalos

    19 Categorias como influencia o difusin han operado al interior del centro hacia la periferia, aunque pueden servir tambin para estudiar el movimiento de las ideas en el ambito perifrico. Sin embargo, la nocin de influncia conlleva en gran medida a la pasividad del receptor en tanto que la nocin de circulacin tolera mejor cuestiones como los modos de recepcin e reelaboracin. VALDES, Eduardo Devs. El transpaso del pensamiento de Amrica latina frica a travs de los intelectuales caribeos. Histria UNISINOS: So Leopoldo. Vol. 4, n. 2, jul./dez. 2000. p. 190-191. 20 Sobre uma boa caracterizao da imprensa operria em relao outras imprensas ver CRUZ, Helosa de Faria. So Paulo em papel e tinta. Periodismo e vida urbana 1890-1915. So Paulo: EDUC/FAPESP, 2000. Cap 6 .

    19

  • sociais, ligando-se aos interesses conservadores, interesses que muitas vezes no so

    explicitados.

    Cludio Pereira Elmir aponta para outras questes que tambm so relevantes no

    trabalho com a fonte jornalstica em seu texto As armadilhas do jornal. Ele mostra como a

    leitura que fazemos do jornal deve levar em conta as condies em que ele foi escrito e que

    muitas vezes a mensagem transmitida no esteve de acordo com o desejo de quem a

    transmitiu (ou produziu), sendo que os jornais podem mudar de opinio conforme as

    circunstncias (e aqui, por exemplo, podemos pensar nas lutas pelo poder dentro do

    movimento operrio). O autor tambm aponta dois perigos pertinentes: atribuir peso

    poltico a opinies por vezes casuais e investigar algum fenmeno j tendo em mente o

    resultado que se busca. O problema maior que eu vejo a atitude de quem se prope a

    pesquisar determinada questo cuja soluo prescinde de investigao. Quer dizer, o

    resultado da pesquisa est definido pelos preconceitos de quem a faz. 21 Particularmente

    para o caso desta pesquisa, tal cuidado significa no ver em tudo a marca da revoluo.

    Com referncia ao processo de recepo de idias, Carlos Fico, em sua obra

    Reinventando o otimismo, ao se referir propaganda com fins polticos e sua recepo,

    aponta que: Pode haver uma distncia considervel entre delineamentos tericos

    aparentemente eficazes e sua realizao nas pesquisas concretas. muito difcil detectar

    as recepes sociais da propaganda. As dificuldades so especialmente de ordem

    heurstica. Que fontes poderiam indicar diferenas de recepo?22

    Quem eram os leitores desses jornais? Onde circulavam? Tendo em conta a

    reconhecida dificuldade para analisar processos de recepo, procurei fazer outras

    aproximaes a esta questo.

    Assim, seguindo a sugesto de Roger Chartier em A beira da falsia, textos e imagens

    no so colocados de forma permanente quando produzidos, pois os leitores tambm criam

    quando lem e reinterpretam a mensagem. A recepo da cultura e das idias no passiva

    como tradicionalmente se pensava, mas uma outra produo, pois [...] ler, olhar , escutar

    so, de fato, atitudes intelectuais que longe de submeter o consumidor onipotncia da 21 ELMIR, Cludio P. As armadilhas do jornal. Cadernos do PPG em Histria da UFRGS: Porto Alegre. n. 13, dez. 1985. 22 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: ed da FGV, 1997. p. 29.

    20

  • mensagem ideolgica e/ ou esttica que supostamente a modela, autorizam, na verdade,

    reapropriao, desvio, desconfiana ou resistncia. 23 Isto faz pensar que as leituras que se

    fizeram da revoluo no eram necessariamente erros, mas foram interpretaes prprias ao

    nosso movimento operrio, merecendo ateno por representarem as possibilidades de um

    determinado momento e de um particular leitor e no um desvio de um modelo original.

    Esta observao de Chartier, como se pode concluir, muito difcil concretizar em

    uma pesquisa com as caractersticas desta, pois uma pergunta que sempre se coloca como

    estabelecer a recepo das idias por parte de leitores dos jornais operrios, no caso uma

    fonte fundamental. Assim, a questo da recepo no-passiva ser tomada mais como uma

    advertncia, um cuidado para a anlise do que como um objeto de pesquisa que,

    antecipadamente, sabe-se da impossibilidade.

    Tratando-se da recepo, tambm importante, para os objetivos desta dissertao,

    recorrer ao conceito associado de representao. De fato, parte considervel deste trabalho

    baseia-se no exame de como os nossos operrios representaram aquela distante revoluo,

    entendendo por representao, tambm com Chartier, as classificaes, divises e

    delimitaes que organizam a apreenso do mundo social como categorias fundamentais de

    percepo e de apreciao do real 24.

    Entretanto, devo deixar claro que no pretendo pesquisar somente as diversas

    representaes que nossos operrios fizeram, como uma espcie de inventrio dos seus

    enunciados sobre a revoluo russa, mas tambm sero referncias indispensveis da

    pesquisa as tradies, experincias e prticas que consistiam diferentes filtros ou lentes para a

    recepo e para as representaes. Assim, identificar as representaes no teria maior

    significado sem que elas fossem colocadas em dilogo com as experincias e aes dos

    militantes, e, no sentido inverso, tambm as representaes incidem no comportamento dos

    indivduos e grupos.

    Cito aqui o feliz entendimento que Rodrigo P. de S Motta tem desta questo em sua

    obra Em guarda contra o perigo vermelho:

    23 CHARTIER, Roger. A beira da falsia: a histria entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. p. 53 24 CHARTIER, Roger. Histria cultural. Entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1990. p. 17.

    21

  • Representaes e aes no podem ser entendidas num vis dicotmico, ao contrrio, so interdependentes: representaes so construdas em um processo ativo que envolve militncia, divulgao e propaganda, e ademais, freqentemente, tem correspondncia com interesses sociais [...]; e as aes e prticas sofrem influncia (no passiva) das representaes, que muitas vezes moldam o comportamento dos grupos sociais.25

    .

    fundamental salientar, entretanto, que as representaes e a circulao das idias

    sobre a revoluo no cairam em um vazio de tradies culturais, tnicas e experincias de

    luta de classes. Pensar a possibilidade de uma nova sociedade estimulada pela revoluo,

    acalentar esperanas, estender horizontes at o infinito, como muitos militantes fizeram,

    no se deveu apenas fora de um exemplo grandioso, mas necessita tambm para ser

    explicado, a dinmica da luta da classe operria contra a classe dominante; ela que d

    sentido s interpretaes e aes dos que se inspiraram na revoluo russa.

    As conhecidas palavras de Edward Palmer Thompson resumem este processo quando

    afirma que as pessoas:

    [...] experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experincia em sua conscincia e sua cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em seguida (muitas vezes, mais nem sempre, atravs das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.26

    Seria insuficiente analisar o impacto da revoluo russa sem levar em conta esta

    experincia de classe. Os discursos embebidos de esperana revolucionria, o surgimento

    de associaes que se identificavam com o maximalismo ou mesmo o sonho acalentado de

    insurgncia no podem ser explicado somente por um desejo de imitao ou por uma

    apropriao mecnica daquilo que circulava no mundo sobre a revoluo russa. Estes

    militantes trataram estas questes a partir de seus referenciais de luta e muito de sua

    identificao com o pas dos Soviets s vai ter sentido a partir de suas experincias nas

    lutas dos trabalhadores.

    25 S MOTTA, Rodrigo P. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). So Paulo: Perspectiva, 2002. Introduo p. XXV. 26 THOMPSON, Edward Palmer. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Uma crtica ao pensamento de Althusser. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 187.

    22

  • Mas ainda com relao experincia, ela refere-se no apenas luta entre classes; ela

    tambm uma experincia interna classe operria. Para o caso especfico que estou

    tratando, que a compreenso das representaes que os operrios do Rio Grande do Sul

    fizeram da revoluo e das aes que levaram a cabo inspirados nela, isto muito

    importante. Os laos intra-classe que ligam (ou tensionam) os operrios so complexos,

    multifacetados, variados j que [...] as ligaes e oposies contidas no processo de

    produo so a base da classe; mas a relao entre pessoas que ocupam posies

    semelhantes nas relaes de produo no dada diretamente pelo processo de produo

    e apropriao27. tambm nestas relaes, muitas vezes de amor, dio, indiferena ou

    perplexidade que as interpretaes sobre a revoluo russa podero ser entendidas. Assim,

    por exemplo, a revoluo podia ser interpretada no apenas como o momento luminoso da

    luta entre as classes, mas tambm como uma via atravs da qual se construam alianas,

    solidariedades, cises ou rivalidades dentro da classe.

    Nesta Introduo, tambm preciso esclarecer preliminarmente o leitor que o perodo

    a que se refere este estudo foi marcado por uma expanso da industrializao e pelo aumento

    da presena operria nas principais cidades do Rio Grande do Sul, acelerando um processo

    que vinha se desenvolvendo desde o segundo quartel do sculo XIX. Ao longo deste perodo,

    a convivncia na fbrica, a necessidade de fortalecimento mtuo e a luta por melhores

    condies de trabalho levaram estes operrios a criar associaes, sindicatos, partidos, que se

    tornaram o ncleo do movimento operrio. No final dos anos 10, especialmente a partir de

    1917, o movimento operrio tornou-se mais ativo, pois ocorre uma ascenso das lutas dos

    trabalhadores organizados, com muitas greves e srios enfrentamentos. Aliado aguda

    carestia de vida e crise econmica, eclodem uma srie de graves conflitos sociais no Brasil

    e no mundo, entre os quais a revoluo russa, como ser visto adiante, acabou se destacando

    e serviu de fermento para as agitaes operrias.

    Esta caracterizao, embora brevssima, necessria para introduzir alguns

    comentrios sobre a produo historiogrfica que em alguma medida serviu de referncia

    para a dissertao.

    27 WOOD, Ellen Meiksin .Democracia contra capitalismo. So Paulo: Boitempo, 2003.

    23

  • Uma importante parcela desta produo associou esta poca especfica com o

    amadurecimento da classe operria brasileira, como se fosse um ltimo suspiro das idias e

    prticas ligadas ao trabalho artesanal e a tomada de uma conscincia realmente de classe; e a

    revoluo russa seria uma das pedras angulares desta mudana. Moniz Bandeira, na obra

    mais extensa que at hoje j estudou os reflexos da revoluo russa no nosso pas, sintetiza

    bem esta posio: O surto industrial do Brasil e a revoluo russa, criando um fato novo,

    superaram o movimento anarquista. O marxismo a expresso consciente de uma vontade

    inconsciente ganhou as massas brasileiras.28

    Muitas vezes o valor atribudo revoluo russa se deu pela perspectiva da

    importncia da fundao do PCB comunista em 1922, o que se torna mais evidente nas

    diversas Histrias do Partido Comunista. Esta perspectiva est presente em trabalhos como

    a j citada A Formao do PCB, de Astrogildo Pereira, uma das obras inaugurais da

    historiografia do movimento operrio brasileiro. Nestas anlises, a verdadeira conscincia de

    classe s seria alcanada com a fundao do partido, o que inauguraria uma nova etapa da

    luta de classes no Brasil29.

    Um grande problema deste tipo de interpretao que, em alguns casos, o impacto da

    revoluo russa no tem importncia pelo que possa ter trazido para lutas dos sujeitos

    histricos, mas tem valor porque mostrou uma ideologia e um mtodo de ao mais

    adequado para o proletariado brasileiro, em um processo que fatalmente resultaria na

    fundao do partido em 1922. Ou seja, serviu para uma grande conscientizao da

    militncia, pois o anarquismo havia fracassado nas lutas que propunha levar adiante.

    Este tipo de interpretao adotada por Astrogildo Pereira acabou se tornando obsoleta,

    entre outros motivos porque a pesquisa acadmica mostrou que no houve uma substituio

    imediata do anarquismo pelo comunismo no incio dos anos 20. Mas exatamente porque no

    houve esta conscientizao, alguns historiadores acabaram por minimizar a importncia da

    revoluo russa para as aes do movimento operrio brasileiro, j que a aparente adeso ao

    bolchevismo por parte dos anarquistas, nos primeiros anos da revoluo russa, seria na

    28 BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. Op. Cit. pp. 274-275. 29 Estas so algumas caractersticas de uma produo que Cludio Batalha chama de militante, ligando-se no mais das vezes s concepes do PCB. Ver BATALHA, Cludio. A historiografia da classe operria no Brasil: trajetrias e tendncias. In: FREITAS, Marcos C. Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998.

    24

  • verdade fruto de um grande engano. o caso do livro de Carlos Augusto Addor, A

    insurreio anarquista no Rio de Janeiro30, em que a influncia da revoluo de outubro

    nesse levante acaba sendo pouco considerada, pois mesmo que o exemplo russo servisse de

    incentivo para os libertrios, estes no tinham bem claro quais eram os reais princpios do

    bolchevismo. Na verdade, a idia do engano anarquista pode ser encontrada tambm nas

    produes de militantes, tanto anarquistas quanto comunistas, como se pode perceber pelo

    tratamento dado por Astrogildo Pereira e por Edgar Rodrigues ao episdio da formao do

    primeiro Partido Comunista em 1919. Os dois historiadores consideram a formao deste

    partido um erro: para o primeiro, por ter sido influenciado por idias anarquistas; para o

    segundo, por ter sido inspirado em um modelo comunista.

    Tanto uma quanto a outra maneira de ver o impacto da revoluo russa apresentam

    problemas, pois sua importncia para o movimento operrio brasileiro se encontra ou em

    outro tempo, ou em outro lugar. No caso da anlise ter em vista a aquisio de uma nova

    conscincia de classe, que necessariamente redundaria na formao do PCB, o valor desta

    influncia estaria em outro tempo, em 1922, ou no perodo subseqente, quando o

    anarquismo seria substitudo pelo comunismo como corrente ideolgica predominante. No

    caso deste impacto ser avaliado pela no-correspondncia das crenas dos militantes

    brasileiros em relao s dos reais protagonistas da revoluo sovitica, as aes inspiradas

    neste exemplo no seriam vlidas porque, ao fim e ao cabo, no corresponderiam ao que

    estava ocorrendo em outro lugar, ou seja, na Rssia dos Soviets, podendo ser tratada como

    uma confuso que no deixaria marcas na trajetria dos militantes.

    Pelos motivos aqui expostos, no pretendo analisar os impactos da revoluo russa

    como se fossem desvios, enganos ou sob a perspectiva de mudanas futuras; mas explic-las

    a partir das tradies que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento.

    Como esclarece E. P. Thompson ao estudar as primeiras formas de resistncia da classe

    operria inglesa:

    [...] seus ofcios e tradies podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrgrada. Seus ideais comunitrios podiam ser fantasiosos. Suas conspiraes insurrecionais podiam ser temerrias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda

    30 ADDOR, Carlos Augusto. A insurreio anarquista no Rio de Janeiro. Achiame: Rio de Janeiro, 2002.

    25

  • perturbao social e ns no. Suas afirmaes eram vlidas nos termos da sua prpria experincia; se foram vtimas acidentais da histria, continuam a ser, condenados em vida, vtimas acidentais. 31

    Desta forma, tentando compreender as interpretaes da revoluo russa e as aes

    inspiradas nela como vlidas nos termos das experincias dos militantes operrios que

    pretendo conduzir este trabalho.

    Referi-me ao longo da Introduo experincia de classe e aes do movimento

    operrio, mas importante ressalvar que aqui no se est assimilando acriticamente classe

    ao movimento operrio. Ressalva sempre importante de fazer, visto que a histria

    operria tendeu [...] a identificar-se com a histria dos movimentos operrios, seno at com

    a histria das ideologias destes movimentos 32. Se escolho as organizaes e instituies

    que so o resultado da ao coletiva dos trabalhadores como objeto de meu estudo, porque

    estas se tornaram o campo privilegiado e mais visvel da ao poltica da classe operria na

    sociedade. Mesmo assim, isto no significa excluir a anlise do que a revoluo significou

    para alguns sujeitos especficos. Embora um material mais difcil de obter, um captulo ser

    dedicado a esta anlise, pois considero que focalizando a trajetria de alguns militantes, ser

    possvel enriquecer o repertrio das vises sobre a revoluo.

    Desta forma, no entendo o movimento operrio como sinnimo de associaes e

    sindicatos, mas pelo tipo de documentao localizada, atravs deles pode-se obter maior

    visibilidade deste movimento e de seus sujeitos.

    Para uma contextualizao da problemtica do impacto da revoluo russa no

    movimento operrio do Rio Grande do Sul e do prprio processo revolucionrio, realizei uma

    ampla pesquisa bibliogrfica cujas fontes vo sendo mencionadas no desenvolvimento dos

    captulos e que de um modo geral, j foi mencionada nas pginas e ps de pgina anteriores.

    Mas alm das fontes bibliogrficas, o trabalho contou com muitas fontes primrias.

    Estas no so fontes fceis de conseguir, pois muitas associaes no legaram material

    nenhum para a posteridade e muitas vezes quando legaram, estes se perderam na euforia

    das mobilizaes ou sob o peso da represso policial. Por este motivo deve-se ter em mente

    31 THOMPSON, Edward Palmer. A formao da classe operria inglesa. A rvore da liberdade. V.1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 13. 32 HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 18.

    26

  • que nunca haver um mapeamento completo das opinies e das prticas das organizaes

    operrias. Outro agravante em relao as fontes que trabalhei so os 90 anos que separam

    de hoje os fatos transcorridos, e quanto mais tempo passa, mais o material se desgasta.

    Decorre disso que alguns anos esto menos representados que outros e algumas

    cidades mais presentes que outras. Sobre 1917 h muito menos material que sobre 1919, e

    em Porto Alegre h impressos em quantidade muito mais abundante que em Bag ou Santa

    Maria. claro que isso acarreta alguns problemas. Por exemplo, a inexistncia de um jornal

    como A poca33 entre o material pesquisado no permitiu fazer um estudo mais detalhado

    da relao da revoluo russa com as prticas da Liga de Defesa Popular (LDP), associao

    surgida para coordenar a greve de 1917, relao sobre a qual s pode-se fazer conjecturas.

    Mesmo assim creio que foi possvel fazer um estudo do impacto da revoluo russa no

    movimento operrio do Rio Grande do Sul; apenas fao estas ressalvas para mostrar que as

    fontes trazem limitaes que se deve tentar contornar e impem a humildade de saber que

    no so todos os recantos das prticas e discursos operrios que esto acessveis pesquisa.

    Como do repertrio de fontes se destacam os jornais operrios, necessrio mais

    alguns comentrios sobre a imprensa como fonte de pesquisa. O jornal, como, alis,

    qualquer outra fonte histrica, emite uma imagem da realidade visvel sob um filtro dado

    pela subjetividade, pelos interesses e pelos objetivos do articulista ou da associao que o

    rgo representa. No caso do jornalismo operrio, esse filtro explicito, j que neste caso a

    imprensa um veculo com o objetivo de esclarecer a classe atravs do conhecimento

    crtico da realidade, abrindo caminho para sua emancipao.

    Quando analisei as notcias, no estive somente preocupado com a informao

    veiculada, mas tambm com o contexto especfico em que ela seria lida. A postura

    agressiva do jornal A Luta, editado em 1918 pelos anarquistas da Unio Operria

    Internacional (UOI), por exemplo, se coaduna muito bem com o objetivo desse grupo:

    reconquistar a influncia dentro da Federao Operria do Rio Grande do Sul (FORGS).

    Claro, no quero reduzir algumas apropriaes criativas apenas aos objetivos polticos

    33 A poca foi um jornal que circulou em Porto Alegre durante trs meses depois da greve de agosto de 1917. Este jornal era o porta-voz oficial da Liga de Defesa Popular e seu redator era Ablio de Nequete, que, como veremos adiante ter detaque nessa dissertao.

    27

  • imediatos. Entretanto necessrio estabelecer uma relao de duas mos entre a notcia ou

    o artigo do jornal e o respectivo momento que vivia a classe operria e suas organizaes.

    Alm destas observaes, h um ponto que se refere tanto ao jornal quanto ao

    panfleto e que de fundamental importncia: estes no so apenas veculos de informao

    ou mesmo de propaganda: so tambm oportunidades abertas aos militantes de tornar

    pblicas suas elaboraes tericas, suas criaes intelectuais diante de um mundo que eles

    desejam transformar, o que, alm de aproximar do momento imediato da vida dos

    militantes, tambm permite vislumbrar seu olhar para o futuro.

    Quanto aos panfletos, propriamente, a maior parte deles do ano de 1919 e foram

    encontrados em um processo crime, movido pela polcia contra alguns operrios por

    ocasio da greve geral daquele ano em Porto Alegre34. Estes panfletos tiveram uma dupla

    utilidade na pesquisa: de um lado, estabelecer os objetivos e as posies das associaes em

    relao revoluo russa e seus desdobramentos e de outro, oferecer uma amostra do tipo

    de material circulava por aqui. Nem todos os materiais apreendidos so oriundos do estado

    do Rio Grande do Sul e apesar de no poder analisar com eles a atuao dos grupos

    maximalistas gachos, pude saber que documentos do recm organizado Partido Comunista

    do Brasil (PCB) do Rio de Janeiro estiveram disposio dos operrios daqui. Desta forma

    possvel observar um campo de circulao de idias sobre a revoluo que no se

    restringe somente nossa regio e perceber que os grupos operrios da regio no estavam

    desinformados sobre o que ocorria no restante do pas.

    Seguindo essa mesma lgica pode-se apontar a utilizao de um material de fora do

    estado para mostrar como um nascente grupo comunista entrava em contato com o

    movimento operrio do Rio Grande do Sul. O jornal Spartacus, do grupo comunista do Rio

    de Janeiro35, menciona militantes e associaes de nosso estado. possvel saber assim

    quem daqui havia encomendado pacotes desta publicao, a propaganda de impressos

    operrios do Rio Grande do Sul na Capital Federal e mesmo assinaturas de lderes operrios

    gachos em apoio a um manifesto lanado pelos cariocas.

    34 Processo Crime n 1016, rolo 66. Encontra-se no Arquivo Pblico Estadual do Rio Grande do Sul. 35 Trata-se do Partido Comunista de 1919.

    28

  • Outro tipo de fonte so os escritos particulares, memorialsticos ou no. Neste rol de

    textos entram autobiografias como as Memrias de um Imigrante Anarquista de Friedrich

    Kniestedt, as passagens dos cadernos de memrias de Ablio de Nequete que se encontram

    dispersas nos trabalhos histricos de quem os consultou (Slvia Petersen e Renata Irene

    Haas Rosito) ou os depoimentos contidos em processos crime em que estivessem

    envolvidos operrios. Estes documentos so teis porque expe opinies ou fatos que no

    momento em que ocorreram no se tornaram conhecidos, que jornais e panfletos no

    tornaram explcitos. Eles expem rupturas, discordncias, disputas que era necessrio

    esconder da arena pblica e so, por isso, um contraponto importante ao escrito jornalstico.

    Mas no porque se trata de um documento em que o operrio escreve de si ou para si,

    algumas vezes sem os objetivos da luta imediata, que ele estar isento de outras influencias.

    Talvez a mesmo exista um outro filtro: o da memria e da reconstruo dos

    acontecimentos aos olhos de quem escreve depois. Mesmo assim o imediatismo no

    garantia de objetividade. Os depoimentos contidos nos processos, apesar de no sofrerem

    defasagem temporal, no escapam de outros filtros. Nesse caso pode-se imaginar o quanto

    no tinham de auto-censura j que foram obtidos perante a polcia.

    Os processos crimes podem ser aproveitados de vrias formas para a pesquisa

    histrica. O processo movido contra os operrios por ocasio da greve de 1919 til, pois a

    polcia borgista, junto com o processo em si, anexou um generoso lote de documentos

    produzidos pela militncia. Mas o inqurito, ou a maneira como ele tratado, uma

    passagem para se chegar lgica da represso, fator muito presente naqueles anos. Isto me

    faz lembrar e mencionar fontes no operrias, como A Federao, jornal do Partido

    Republicano Riograndense ou o Correio do Povo, jornal de maior circulao no estado.

    Estas publicaes expressam, por exemplo, a perplexidade dos dominantes com a difuso

    do maximalismo, o que pode ser considerado um dos desencadeantes dos dispositivos

    repressivos. No se coloca aqui, para o uso das fontes peridicas, o argumento de que a

    grande imprensa no serviria por ser tendenciosa, e sim considera-se que a diversidade da

    origem das informaes nos permite ter uma viso mais ampla da realidade. A imprensa

    um lugar especial para a expresso dos conflitos polticos (o que vale tambm para a

    imprensa operria), ou como, nas palavras de Francisco Alves, Nos jornais [...] estes

    29

  • conflitos encontram seu espao de propagao, chegando o jornalismo a servir como elo

    de ligao ou agente de combate entre diferentes tendncias poltico-ideolgicas.36

    Para concluir esta Introduo, cabe explicar ao leitor como a dissertao est

    estruturada e resumir o contedo dos seus captulos, com o que espero oferecer uma viso

    preliminar do trabalho.

    Esta dissertao est dividida em seis captulos. O primeiro deles O CRCULO

    QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE: a revoluo russa e seus impactos

    internacionais. Como indica o ttulo, neste captulo apresento um histrico do

    desenvolvimento do processo revolucionrio na Rssia e a difuso de sua influncia pela

    Europa, Amrica Latina e Brasil. um captulo propositadamente descritivo e detalhado,

    que pareceu importante para que ficasse caracterizado para o leitor o processo da revoluo

    russa e quando ela fosse tematizada nos seguintes captulos, no se transformasse em uma

    abstrao com a qual o restante da dissertao iria dialogar. Este captulo no tratar dos

    impactos da revoluo, o que ser objeto dos captulos seguintes.

    O segundo captulo, HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIA QUE VENS

    PARA NS EM NOME DA LIBERDADE: a experincia operria no Rio Grande do Sul e

    as primeiras interpretaes da revoluo russa pelos trabalhadores organizados do

    estado, descrevo a trajetria das principais correntes tericas do movimento operrio

    gacho, a formao das associaes dos trabalhadores organizados nos principais centros

    industriais do estado at os momentos iniciais em que as informaes sobre a revoluo

    foram recebidas por estes trabalhadores. Partindo destas tradies e das condies nas quais

    se encontrava a classe operria naquele momento, analisa-se como circularam as primeiras

    idias relacionadas revoluo russa, seus usos e reelaboraes.

    No terceiro captulo, A HUMANIDADE UM TURBILHO E UM MUNDO UM

    CREPITAR DE CHAMAS: as transformaes nas formas de interpretar a revoluo russa

    no ano das grandes greves; novas experincias, novas leituras examino como as idias

    relacionadas revoluo passaram a circular em um ambiente de crescente radicalizao,

    onde os jornais operrios tm um notvel florescer, havendo uma circulao muito mais

    36 ALVES, Francisco N. Imprensa e Poltica: Algumas reflexes acerca da investigao histrica. Histria em Revista: Pelotas. n. 7, dez. 2001.

    30

  • rica de informaes e um comeo de elaborao crtica, pelos militantes, das novas idias

    russas.

    No quarto captulo, com o ttulo PARECER ABSURDO QUE UM LIBERTRIO

    QUE TEM POR TEMA A PAZ EXCLAME: SALVE A REVOLUO!: a identificao dos

    militantes com a revoluo e as aproximaes contraditrias com o sonho revolucionrio

    pretendo, a partir das representaes e interpretaes que foram identificadas nos captulos

    anteriores, analisar as aproximaes e identificaes dos militantes com a revoluo russa,

    expressas tanto em atitudes de adeso apaixonada quanto de repulsa ou estranhamento.

    Procura-se examinar este processo tanto no que respeita s matrizes do pensamento militante,

    como s apropriaes individuais informadas e mediadas por tradies e experincias

    polticas, identidades tnicas ou crenas religiosas. Como observei antes, as representaes e

    interpretaes sobre a revoluo russa tambm esto filtradas pelas tradies, experincias e

    prticas dos militantes. Nunca se trata, portanto, de uma repercusso mecnica ou de uma

    apropriao voluntarista.

    Percebendo que a revoluo russa atraiu ateno dos militantes, fazendo com que

    estes interpretassem os acontecimentos de diversas formas e at se identificassem com ele,

    tento analisar se isto tambm influiu nos processos organizativos e nas aes coletivas dos

    militantes. Por isso, no quinto captulo, A VOSSA DIVISO A VOSSA FRAQUEZA-

    UNI-VOS POIS!, E, NO HAVER FORA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR:

    associaes comunistas do Rio Grande do Sul e suas relaes com grupos similares do

    centro do pas, analiso a atuao dos grupos comunistas e maximalistas que se formaram

    no Rio Grande do Sul, como se inseriram nas lutas operrias e suas relaes com outros

    grupos de trabalhadores organizados. Alm disso, procurei estudar as diversas formas de

    relao do movimento operrio gacho com as associaes comunistas do centro do pas

    como a troca de materiais de informao, a tentativa de formao de um Partido Comunista

    e a participao em uma insurreio nacional.

    No sexto e ltimo captulo, NO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE

    PASSOU NA CABEA DE BOA PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR

    DE OLHOS TORNARAM-SE NOSSOS INIMIGOS: balanos e perspectivas do movimento

    operrio gacho em relao ao futuro da revoluo russa, procuro explicar as precoces

    divises e disputas em torno do maximalismo que surgiram no Rio Grande do Sul no incio

    31

  • dos anos 20, considerando a mudana das condies em atuava o movimento operrio,

    ento sob uma represso cada vez mais aguda e reverses de expectativas que produziram

    um ambiente de ciznia e disputas internas.

    32

  • 1. O CRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE37: a revoluo russa e

    seus impactos internacionais

    Apesar desta dissertao tratar do impacto da revoluo russa no movimento operrio

    do Rio Grande do Sul, neste primeiro captulo deixarei por enquanto o movimento operrio

    de fora, tratando da revoluo na Rssia, na Europa e sua difuso pelas Amricas e pelo

    Brasil.

    A apresentao necessria no apenas para estabelecer um contexto, mas como um

    prlogo onde se expem os fatos que deram origem a um movimento catalisador de desejos

    de libertao e nsia por um novo mundo, cujos impactos no movimento operrio gacho

    sero apresentados nos prximos captulos. Esta rpida exposio de fatos no tem como

    objetivo mostrar a verso do que realmente aconteceu em face das verses ou

    interpretaes criadas pelos militantes no extremo sul do Brasil, mas serve como um guia

    para acompanhar uma srie de acontecimentos que sero constantemente referidos ao longo

    deste trabalho.

    1.1. A revoluo russa

    A expanso imperialista europia promoveu alianas e acirrou conflitos entre os

    pases que a promoveram, fazendo surgir dois grupos antagnicos de naes: de um lado

    um bloco liderado pela Alemanha, ustria-Hungria e Imprio Otomano; do outro lado, um

    bloco em que se destacavam Frana e Inglaterra, no qual a Rssia se inseria. Quando

    irromperam as hostilidades em 1914, o Imprio Russo entrou na luta para retomar o

    impulso expansionista que se esgotara com a guerra russo-japonesa de 1905. Este

    engajamento tambm deveria funcionar como poderoso ingrediente de coeso social,

    fazendo esquecer a vergonhosa derrota na guerra de 1905 e o levantamento revolucionrio

    que esta incentivou.

    O exrcito russo, apesar de seu enorme contingente, era mal preparado, sendo o que

    mais sofreu perdas na Guerra Mundial. Os soldados eram basicamente camponeses

    37 Ttulo de um artigo publicado de Affonso Frederico Schimidt, publicado no A Dor Humana de 11 de outubro de 1919.

    33

  • armados e a mo que empunhava o rifle fazia falta agricultura. A produo de gneros

    diminuiu, provocando a alta dos preos. Este quadro foi piorado pela situao da indstria,

    reconvertida para servir s necessidades do exrcito38. Em meados de 1917, a situao

    poltica do Imprio Russo se degradava rapidamente. A Assemblia, ou a Duma Imperial,

    onde atuavam os polticos ligados burguesia e aos nobres liberais, agrupados no Partido

    Constitucional Democrata (Kadete), pressionava por medidas de liberalizao do regime,

    mas o Czar Nicolau II aferrara-se ao absolutismo, se negando a ceder aos menores pedidos

    dos deputados. Paralelamente a isto, o movimento grevista nas fbricas crescia desde 1915,

    chegando a 575 mil operrios de braos cruzados no comeo de 1917. Os soldados

    desertavam de seus postos, os aquartelados acompanhavam a agitao nas cidades e

    levavam ao campo o germe da revolta. Os camponeses fardados faziam eco s exigncias

    de seu grupo social e comearam a exigir tambm o direito s terras em que trabalhavam,

    formando assim os pilares das reivindicaes que marcariam a revoluo: paz, po e terra.

    A degradao econmica e social chegou a um ponto insuportvel nos primeiros

    meses do ano de 1917. Em 23 de fevereiro, uma manifestao em comemorao ao dia das

    mulheres na capital Petrogrado deu origem a uma conclamao de greve geral na cidade.

    Os agentes da represso ficaram sem ao, j que o movimento se ampliava rapidamente,

    passando de 90 mil grevistas a 240 mil em dois dias. Domingo, dia 26, os operrios foram

    para o centro da capital imperial protestar39; na segunda-feira eles no foram trabalhar. A

    polcia no podia contar com o apoio do exrcito para reprimir os manifestantes, pois uma a

    um os regimentos aderiram rebelio, que se espalhava pelo pas. O czar no soube o que

    fazer, abdicando no dia 1 de maro, exemplo seguido pelo seu irmo e sucessor no dia 340.

    Neste ambiente revolucionrio os operrios retomaram uma experincia tentada na

    revoluo de 1905, formando um Conselho (Soviet) de operrios e soldados, com

    delegados de cada fbrica e de cada regimento41. Imediatamente tratou-se de estender a

    organizao ao restante do exrcito, incitando cada regimento a eleger comits de soldados

    38 REIS FILHO, Daniel Aaro. Rssia (1917-1921): anos vermelhos. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 39. 39 Nesta poca, Moscou ainda no havia se transformado em capital da Rssia, ainda estando esta sediada na cidade de Petrogrado, atual So Peterburgo. 40 TROTSKY, Leon. Histria da revoluo russa. 1 volume-a queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977. pp. 102-129. 41 Sobre a revoluo de 1905 ver: TROTSKY, Leon. Balanos e perspectivas. Lisboa: Antdoto. 1979. Este livro foi originalmente escrito em 1906, tendo reflexes do lder revolucionrio sobre a experincia desta revoluo.

    34

  • e enviar representantes ao conselho, sendo o modelo repetido em outras cidades. O Soviet

    era o local de representao popular, onde os trabalhadores das fbricas e os militares de

    baixa patente teriam um rgo para defender seus interesses perante as classes dominantes.

    O Conselho tambm era o lugar onde todos os partidos de orientao socialista estavam

    representados: o Partido Socialista Revolucionrio, ou simplesmente SR, surgido dos

    populistas russos, que defendiam um caminho prprio para o socialismo baseando-se nas

    foras do campesinato; o Partido Operrio Social Democrata Russo (POSDR), marxista,

    dividido entre os bolchevistas, que defendiam que o operariado deveria ter uma direo

    poltica prpria, havendo a necessidade de esta classe assumir as tarefas da revoluo

    burguesa na Rssia, j que a burguesia seria incompetente para faz-la, e no menchevistas,

    que priorizavam a defesa de uma revoluo burguesa e o apoio burguesia, que chegaria ao

    poder e faria as reformas necessrias para se chegar democracia. Tambm atuavam nos

    Soviets os anarquistas, que no estavam organizados em partido, mas que faziam valer sua

    representao entre os operrios industriais.

    Em meio agitao popular a Duma Imperial elegeu um Governo Provisrio para

    tomar as rdeas da situao, com um ministrio majoritariamente kadete, deixando o

    governo a cargo do prncipe Lvov, um nobre liberal. O Governo Provisrio hesitou em

    proclamar uma nova forma de governo, postergando a deciso pela repblica ou a

    monarquia constitucional para uma assemblia constituinte. A hesitao, a propsito, seria

    a marca deste governo pelos prximos nove meses.

    Neste primeiro momento os principais nomes da revoluo do lado dos grupos

    populares eram menchevistas como Martov, Tseretelli, Dan e Cheidze; ou socialistas

    revolucionrios como Kerensky e Chernov. Os bolchevistas s vo ganhar fora com a

    chegada de seu principal lder do exlio, Lnin, em abril. Com isto o grupo mudou sua

    atitude de colaborao com os outros partidos e passou a lutar pela tomada do poder pelo

    Soviet, o que menchevistas e socialistas revolucionrios eram contra pois temiam a

    desestabilizao do Governo Provisrio.

    Este Governo passou por diversas crises no perodo de sua curta existncia, pois no

    podia responder aos anseios da populao, que exigia da revoluo uma resposta sobre a

    falta de po, a diviso da terra e a assinatura da paz. Os kadetes, representantes da

    burguesia, no podiam sair da guerra, pois esta estava envolvida demais com os interesses

    35

  • do capital internacional. Os socialistas revolucionrios e os menchevistas apegavam-se

    idia de revoluo burguesa, temendo perder o apoio dos kadetes na organizao do novo

    poder. Os bolchevistas, ao contrrio, pregavam a entrega do poder aos Soviets e foram

    contra o apoio burguesia, alm do mais, estes apoiaram a assinatura de um tratado de paz

    com a Alemanha e a distribuio da terra aos camponeses42.

    A primeira destas crises, em abril, fez com que os menchevistas e os socialistas

    revolucionrios entrassem no Governo Provisrio em coligao com os kadetes. Na

    segunda grande crise, em julho, os bolchevistas foram postos na ilegalidade e o principal

    nome dos socialistas revolucionrios, Alexandre Kerensky, assumiu o governo com plenos

    poderes. Em agosto Kerensky quase foi derrubado por um golpe conservador, mas pelo

    boicote das tropas e dos operrios, coordenado em parte pelos bolchevistas, este

    empreendimento fracassou. Com esta crise a situao se torna mais grave; Kerensky se

    proclamou Comandante-Supremo e o Soviet de Petrogrado deu uma guinada para a

    esquerda, elegendo Leon Trotsky, militante do Partido Operrio Social Democrata Russo,

    para sua presidncia, aderindo este logo aps sua eleio ao grupo dos bolchevistas. No

    campo, os socialistas revolucionrios de esquerda se fortaleciam, desbancando seus

    companheiros de partido mais conservadores.

    Em outubro, o Soviet de Petrogrado formou o Comit Militar Revolucionrio para

    coordenar as tropas aquarteladas na capital. Alexandre Kerensky, sentindo que lhe tiravam

    o cho sob os ps, tomou ento medidas contra o poder sovitico, mas foi intil. O Soviet

    ordenou no dia 24 de outubro a dissoluo do Governo Provisrio, que caiu quase sem

    resistncia, deixando apenas quinze mortos nos confrontos que se seguiram. O II Congresso

    dos Soviets, reunindo delegados de toda a Rssia, foi aberto no dia 25. De incio

    menchevistas e socialistas revolucionrios de direita protestaram contra a deciso de acabar

    com o governo provisrio e se retiraram, ficando na reunio os socialistas revolucionrios

    de esquerda que tinham como expoente a militante Spiridonova, alm dos anarquistas. Na

    segunda sesso do Congresso, dia 26, os bolchevistas conseguiram aprovar por

    unanimidade um decreto sobre a paz, aprovando tambm um decreto pela qual a terra era

    42 Para a caracterizao dos grupos polticos da Rssia e sua histria ver: REIS FILHO, Daniel Aaro. Op. Cit. Captulo Revolta contra o czarismo. p. 22-36.

    36

  • socializada sem indenizao, constituindo-se, por fim, como governo at a eleio da

    Constituinte43.

    O novo poder foi organizado no Congresso Pan-Russo dos Soviets, com a fuso dos

    Soviets de Operrios e Soldados com os Soviets de Camponeses. A estrutura sovitica era

    piramidal: na sua base estavam os Soviets distritais, eleitos por representao de atividades

    produtivas, que iam enviando delegados aos Soviets superiores, at o Congresso Pan-

    Russo, ltima instncia de poder. No intervalo dos congressos o poder seria exercido pelo

    Comit Executivo Central (VTsiK) presidido a partir de outubro por Lnin. A forma de

    governo sovitica, por conselhos, provocou grande atrao mesmo entre correntes polticas

    no bolchevistas, como os anarquistas, que de modo geral eram avessos a qualquer coero

    estatal. A maioria deles inclusive apoiou os bolchevistas e alguns at aderiram ao partido44.

    Logo os bolchevistas alados ao poder tiveram problemas a resolver. A guerra civil

    comeou e a assinatura da paz com os alemes tornou-se urgente. A proclamao de Lnin

    aos povos do mundo por uma paz sem compensaes no foi atendida pelos alemes, que

    avanaram fundo no territrio russo. Para responder aos ataques alemes, o governo

    sovitico transformou as guardas vermelhas de operrios armados e as tropas que

    continuavam fiis ao novo governo no exrcito vermelho, que teria Leon Trotsky como seu

    organizador e comandante a partir da. A perda de territrio agravava a situao criada pela

    dissoluo da Assemblia Constituinte, eleita em fins de 1917, que devido sua

    composio, majoritariamente de socialistas revolucionrios de direita, entrou em conflito

    com o poder do Soviet que a extinguiu em janeiro de 1918. Estas atitudes deixaram por um

    fio a aliana com os socialistas revolucionrios de esquerda. Iniciou-se tambm o conflito

    com os anarquistas, devido tentativa de desarmar a sua guarda negra em Petrogrado e pela

    represso ao movimento guerrilheiro de Nestor Makhno na Ucrnia.

    A guerra civil estava j se desenvolvendo em larga escala. Na frente externa os

    alemes, uma vez dentro do territrio russo, apoiaram os generais fiis ao antigo regime,

    incentivando-os a atacar o exrcito vermelho. Ao mesmo tempo Inglaterra e Frana, aliadas

    de guerra, invadiram o territrio russo para apoiar governos constitucionais formados por

    43 TROTSKY, Leon. Histria da revoluo russa. 3 volume-o triunfo dos Soviets. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977. pp. 947-989. 44 BROU, Pierre, Unio Sovitica. Da revoluo ao colapso. Porto Alegre: Sntese Universitria/Editora da UFRGS. 1996. Ver O estado dos Soviets pp. 22-27.

    37

  • menchevistas e socialistas revolucionrios de direita. Japoneses e americanos ocuparam a

    Sibria. Em julho de 1918 a invaso se torna massiva, a ponto de, no incio de 1919, a

    Rssia Sovitica estar reduzida a apenas 10% do territrio da Rssia Imperial. O exrcito

    dos conservadores, o branco, s no obteve maior vantagem sobre o exrcito vermelho por

    que usava de enorme violncia sobre a populao russa e porque os soldados estrangeiros

    comearam a sentir uma perigosa simpatia pelos bolchevistas, tendo que ser rapidamente

    evacuados.

    Para tentar recuperar nveis de consumo anteriores guerra, o governo bolchevista

    adotou uma srie de medidas, como a militarizao do trabalho, a nacionalizao das

    empresas e a modificao do sistema de circulao, com a criao de cooperativas de

    consumo para distribuio de rao alimentar. Neste sentido, um dos pontos vulnerveis da

    revoluo era a produo agrcola. Depois de tentativas frustradas de formar fazendas

    estatais e de recorrer aos camponeses pobres para ajudar nas requisies, o estado formou

    milcias urbanas para trazer os gros que faltavam s cidades. Outro problema,

    especialmente grave pelo carter do partido que controlava o poder sovitico, era a presso

    sobre os operrios para que eles produzissem mais para servir guerra civil. Ocorreram

    discusses acaloradas sobre a liberdade do trabalhador, se os sindicatos deveriam servir

    para os operrios reivindicarem seus direitos ou se deveriam servir produo45.

    Depois de imensos sacrifcios o exrcito vermelho venceu seus inimigos. As ltimas

    tropas brancas foram batidas em 1920, no sul da Ucrnia. Depois disso, os russos ainda

    tiveram que enfrentar os poloneses, que tentavam invadir a Ucrnia e a Bielo-Rssia. As

    tropas vermelhas expulsaram-nos do seu territrio, tentando avanar sobre a Polnia, para

    provocar uma revoluo que se espalharia pela Europa. O plano fracassou e os russos

    tiveram de se voltar para dentro do seu pas. Apesar de frustrada, a esperana em uma

    revoluo na Europa permaneceria viva at 1923.

    O governo bolchevista tentou continuar com o comunismo de guerra, mas a

    populao comeou a se revoltar. Lnin props ento um novo modelo ec