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O HOMEM QUE CORRESPONDE A DEUS Observações sobre o homem à imagem de Deus como figura fundamental da Antropologia teológica E. Jüngel, Tübingen "Nova Antropologia" pode pretender ser uma doutrina teo16gica do homem apenas num sentido bem restrito. Com efeito, conquanto a Antropologia procure responder à pergunta a respeito do que é o homem, a Antropologia teológica se refere a textos bastante antigos, sem os quais é incapaz de formular um conceito teologicamente válido sobre o homem. Afirmações teológicas sobre o homem são, em todo caso, também testemunhos de fé, que, como tais, oferecem uma visão que o homem tem de si mesmo, falando de uma forma original sobre os textos da Bíblia. Uma nova Antropologia, portanto, somente se justifica para a teologia cristã, enquanto cada sentença teológica deve ser, a cada momento, uma nova tentativa de formular a compreensão cristã de Deus e do homem, fixada na Bíblia, adaptada ao tempo em questão e compreensível para ele. Nessa adequação ao tempo é que se deve manifestar então a conformidade objetiva do discurso cristão sobre o homem. Se, nesse sentido, a Antropologia teológica não passa de uma nova doutrina muito limitada sobre o homem, com referência ao seu objeto, porém, ela é uma Antropologia nova num sentido radical. Com efeito, a autocompreensão humana que a fé cristã apresenta e que qualquer Antropologia teológica deve fazer valer, aplica-se de uma maneira toda especial ao homem novo. É por isso mesmo que a fé cristã se comporta criticamente fr,ente a toda realidade da existência humana, pois compreende o homem de maneira escatológica e abre para todo homem a possibilidade de se compreender a si mesmo escatologicamente. Escatológico, em primeiro lugar, quer dizer novo, de um modo que não pode ser efetuado pelo próprio homem. Na autocompreensão escatológica do homem, trata-se, portanto, de um novo ser do homem, que não lhe advém de si mesmo. É um modo de ser que lhe' advém de Deus, afirma a fé cristã. E porque o novo ser do homem lhe advém de Deus, esse se subtrai ao destino daquilo que advém ao homem por parte dele mesmo. O que advém ao novo ser do homem por parte do homem mesmo não pode ser novo sem envelhecer. O novo ser que provém de Deus para o homem escapa à necessidade de precisar envelhecer.

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O HOMEM QUE CORRESPONDE A DEUS Observações sobre o homem à imagem de Deus como figura

fundamental da Antropologia teológica E. Jüngel, Tübingen "Nova Antropologia" pode pretender ser uma doutrina teo16gica do

homem apenas num sentido bem restrito. Com efeito, conquanto a Antropologia procure responder à pergunta a respeito do que é o homem, a Antropologia teológica se refere a textos bastante antigos, sem os quais é incapaz de formular um conceito teologicamente válido sobre o homem. Afirmações teológicas sobre o homem são, em todo caso, também testemunhos de fé, que, como tais, oferecem uma visão que o homem tem de si mesmo, falando de uma forma original sobre os textos da Bíblia. Uma nova Antropologia, portanto, somente se justifica para a teologia cristã, enquanto cada sentença teológica deve ser, a cada momento, uma nova tentativa de formular a compreensão cristã de Deus e do homem, fixada na Bíblia, adaptada ao tempo em questão e compreensível para ele. Nessa adequação ao tempo é que se deve manifestar então a conformidade objetiva do discurso cristão sobre o homem.

Se, nesse sentido, a Antropologia teológica não passa de uma nova

doutrina muito limitada sobre o homem, com referência ao seu objeto, porém, ela é uma Antropologia nova num sentido radical. Com efeito, a autocompreensão humana que a fé cristã apresenta e que qualquer Antropologia teológica deve fazer valer, aplica-se de uma maneira toda especial ao homem novo. É por isso mesmo que a fé cristã se comporta criticamente fr,ente a toda realidade da existência humana, pois compreende o homem de maneira escatológica e abre para todo homem a possibilidade de se compreender a si mesmo escatologicamente.

Escatológico, em primeiro lugar, quer dizer novo, de um modo que

não pode ser efetuado pelo próprio homem. Na autocompreensão escatológica do homem, trata-se, portanto, de um novo ser do homem, que não lhe advém de si mesmo. É um modo de ser que lhe' advém de Deus, afirma a fé cristã. E porque o novo ser do homem lhe advém de Deus, esse se subtrai ao destino daquilo que advém ao homem por parte dele mesmo. O que advém ao novo ser do homem por parte do homem mesmo não pode ser novo sem envelhecer. O novo ser que provém de Deus para o homem escapa à necessidade de precisar envelhecer.

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Em segundo lugar, escatologicamente significa novo de um modo que

torna velho o que é velho, deixando-o passar-se. "Assim, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; passou o que era velho, e eis que é novo. E tudo isso vem de Deus ... " (2 Cor 5, 17 e ss.). É um homem novo, na sua distinção e relação com o homem real, que era crente e, sob um aspecto de totalidade incomensurável, ainda o é, que interessa à Antropologia teológica. Por isso, ela é menos uma nova doutrina do homem que a doutrina ser do homem: o homem à imagem de Deus. Nisto, recorrer-se-á apenas aos aspectos bíblicos que são Importantes: para a fundamentação da Antropologia teológIca, sem querermos esgotar a riqueza da Antropologia bíblica.

FUNDAMENTAÇÃO FORMAL DA ANTROPOLOGIA EVANGÉLICA. O que se diz do homem escatologicamente novo e correspondente a

Deus transcende aquilo que o homem, pela análise de sua existência, consegue trazer para dentro da experiência sobre si mesmo. Depende de uma palavra secundum dicentem Deum, de uma palavra a ser medida por Deus que fala, a qual é chamada pela teologia palavra de Deus. O que se diz do homem correspondente a Deus implica, além disso, hermeneuticamente no seu modo particular de ser, já uma decisão material sobre a essência do homem, o qual constitui, segundo isso, antes de qualquer discurso um ser destinado a ouvir. O homem, por aquilo que tem a dizer e consegue dizer a si mesmo, é ontologicamente destinado a ouvir uma palavra que o constitui na sua essência. Ele precisa tornar-se ôntica e existencialmente "um ouvinte da palavra" (RAHNER). Logo, o discurso teológico do homem escatologicamente novo sobrepuja necessariamente a auto-experiência do homem, enquanto exige que ele, apesar de sua auto-experiência, faça mais uma experiência. Caso contrário, não seria um discurso teológico.

Esse discurso, todavia, requer uma verificação no horizonte de uma

análise da existência do homem. Precisamente, porque a palavra de Deus constitui a essência humana como um ser que ouve e, principalmente, um ser que fala, de modo que "Deus" é o preconceito com que a Antropologia teológica trabalha, cada sentença da Antropologia teológica precisa ter validade geral e, enquanto possível, também ser compreensível por todos. É mister contar, portanto, com a possibilidade de que sentenças válidas para todos somente se to:nem compreensíveis para todos mediante uma intervenção particular (por ouvIr-se a palavra de Deus). O caráter ontológico dos enunciados teológicos só pode ser apreendido pelo mediador ôntico, que é a palavra de Deus, e o homem não pode ser identificado como criatura de um

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Deus criador, a não ser firmado na fé em Deus, o reconciliador que o justifica como sua criatura. Esta afirmação deve, então, em todo caso, formular o ser de todos os homens, e ser aceitável de modo geral - portanto, também quando o preconceito da crença em "Deus" fosse concebido como lugar vazio. A unidade original da mais alta concreção, de um lado, e da mais alta universalidade, de outro, que a teologia cristã reclama para Deus, e somente para ele, obriga a Antropologia teológica a enunciados cuja generalidade deve ser substituída, mesmo quando Deus é, por assim dizer, preso como Ens concretissimum (Ser concretíssimo). Só o conceito de Deus é capaz dessa "despretensiosidade teórica", que permite formular de um modo antropologicamente compreensível, até para o ateu, as sentenças antropológIcas só formuláveIs a partIr de suas pressuposições. É preciso, pois, que se possa reformular qualquer sentença da Antropologia teológica de maneira a se tornar inteligível e óbvIa, sem que se cite Deus. Então, acontece, entretanto, - e deve-se chamar a atenção sobre isso - que cada enunciado desses se transforma de uma sentença do Evangelho em uma proposição legal, de uma agradável sentença unívoca, em uma proposição em si ambivalente. O proveito, que a fé se alegra de haver conseguido com Deus, não se deixa reformular como tal. Fica preso no horizonte da lei. O discurso do homem escatologicamente novo, correspondente a Deus, deve, pois, - por causa de Deus - ter um caráter ontológico. De outra maneira, não seria um discurso antropológico.

Todos os enunciados da Antropologia teológica têm, portanto, a bem

complicada peculiaridade hermenêutica de falar do homem como situado aprioristicamente em um lugar fora dele mesmo, muito embora esse "fora dele" só seja reconhecível posteriormente, devendo ser reconhecido sob as condições da aposterioridade, sempre, porém, dentro do espaço da existência humana, como um lugar que determina o homem. Essa complicada peculiaridade hermenêutica das sentenças da Antropologia teológica, porém, corresponde exatamente à peculiaridade ontológica do ser humano, ao qual se referem. Pertence às concepções antropologicamente incontestáveis da teologia que o homem - tanto no mal como no bem! - está subtraído a si mesmo. O homem todo, como tal, só é experimentável, quando sua totalidade já se acha transcendida. Isso quer dizer que o homem não se torna o homem todo a partir de dentro, por ele próprio, mas apenas a partir de fora de si. A verdade do totus homo, do homem inteiro, pertence a estrutura do nos extra nos esse, do ser fora de nós mesmos. Se o homem se quiser experimentar como totus homo, urge experimentar-se mais do que a si mesmo.

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A Antropologia teológica fala dessa incontestável necessidade como de uma necessidade da lei ou da estrutura, ademais, só com base na possibilidade .dada pelo Evangelho. Se existe uma Antropologia teológica e se há algo parecido com uma definição teológica do homem, é simplesmente porque o homem pode experimentar mais do que a si próprio, e, portanto, experimentar-se como homem todo. A teologia evangélica, como tal, chama definição do homem a justificação deste por Deus. "Paulus... breviter hominis definitionem colligit, dicens Hominem iustificari fide" (Paulo apresenta uma breve definição do homem ao dizer que o homem é justificado pela fé - LUTERO, Disputatio de homine, ed. de Weimar, 39/1, pág. 176, 1536). O discurso do homem escatologicamente novo e correspondente a Deus implica no acontecimento da justificação do homem por Deus, realizada, finalmente, só pela fé, enquanto é somente a fé que permite que isto aconteça de modo real e definitivo e, por isso, capaz de ser defendido.

Na peculiaridade hermenêutica dos enunciados da Antropologia

teológica já se acha presente formalmente o que esta tem a dizer materialmente. Recomenda-se, por isso, já se antecipar, pelo lado formal, a objeção principal ao conteúdo objetivo da Antropologia teológica, ou seja, antecipar a impossibilidade de uma definição do ser do homem.

O homem se deixa definir? Os conhecimentos da Antropologia mais

recente falam contra isso. Quando muito, desde LESSING (A Religião), o homem aparece como uma síntese de acaso e necessidade.

"O homem? Donde provém ele? Mau demais para um Deus; bom demais para o mais-ou-menos." É bastante significativo que essa sentença não diga de onde o homem

é, e sim, de onde não é:. o homem não é criado por Deus, nem simplesmente caído do céu. Com efeito, se Deus, logo, o Ens absolute necessarium (o ser absolutamente necessário, como foi descrito pela metafísica), fosse seu criador, o homem deveria ter saído melhor. Doutra parte, o acaso do simplesmente-ser-produzido e do simplesmente-nascer - um momento repleto de prazer e uma hora repleta de dor - não é a última palavra a dizer acerca do homem. Senão vejamos:

"Um homem como você não permanece plantado Ali onde o acaso do nascimento O atirou; ou, se permanece,

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Será por conhecimento, razões e escolha do melhor." (LESSING, Nathan der Weise, 111, 5). O simples acaso, portanto, entra tão pouco em consideração na

origem da essência do homem, quanto a pura necessidade. Se simples mais-ou-menos fosse a origem do homem, a questão da sua essência seria supérflua; ele seria desprovido de essência e indigno de qualquer questão. Como, porém, é "bom demais para o mais-ou-menos", o homem deve perguntar-se sobre si mesmo. Se, ao contrário, a mera necessidade de um Deus fosse o "de onde" do ser humano, não se faria mister perguntar sempre de novo pelo homem, ele seria translúcido a si mesmo em sua origem. Como, porém, é "mau demais para um Deus", o homem continua problemático. Nenhuma resposta desobriga-o de perguntar sempre de novo e sempre mais extensamente sobre si mesmo. Tendo-se em vista o homem, é mais humano sempre procurar a verdade, do que possuí-Ia. Definitivo, pois, só aparece o sinal de interrogação, que LESSING colocou depois da palavra "homem": "O homem?"

As ciências antropológicas mais recentes parecem confirmar esse fato.

Não é por simples acaso que elas se apresentam no plural. Em sua mais ou menos disparatada pluralidade indicam que uma definição do homem todo parece ter-s,e tornado impossível (HARTMANN). Estudos de anatomia, medidas cranianas, tipificações biológicas, estudos sobre as raças, hereditariedade ou comportamento, ciências humanas psicológicas ou sociológicas, etc. - tudo isso são outras tantas tentativas de ciências particulares do homem, para aprender algo sobre si mesmo. Elas· se desenvolveram com êxito, e hoje se procura, por vezes, integrá-las numa Antropologia filosófica. O aumento do conhecimento especial a respeito do homem é, sem dúvida, enorme. A pergunta sobre o próprio homem, porém, continua sem resposta - a menos que se pretenda fazer com que os múltiplos conhecimentos positivos digam mais do que são capazes de dizer. Para citar alguns exemplos, sabemos que a ontogênese de cada indivíduo é a recapitulação, em breves e rápidos traços, da filogênese (HAECKEL); que o homem, do ponto de vista corporal, inferior a todos os animais, é, por assim dizer, um ser inacabado, fisiologicamente, um parto prematuro; que sua espécie, quanto a seu conceito, pode desenvolver-se ainda mais (crescimento sempre maior, antecipação da puberdade sem que se encurte a idade madura); que o homem é um caldo d·e cultura para bactérias; que, diferentemente dos animais, o homem é aberto para o mundo (SCHELER) e excêntrico (PLESSNER); mas sabemos também que "matar, assar e comer os semelhantes da espécie... não é coisa própria dos macacos, mas do homem" (WEINERT, apud HARTMANN; 1957). O que não sabemos é o que seja o próprio

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homem. Na verdade, "tão pouco se pode duvidar de sua evolução de formas pré-humanas de vida. .. quanto de suas possibilidades abertas para o futuro", e, contudo, ele é para a Antropologia científica "um ser cuja origem e cujo destino permanecem igualmente obscuros" (PLESSNER, 1957). Poder-se-á "determinar conclusivamente... esse ser"? - pergunta PLESSNER, com razão.

Caso não nos queiramos dar por satisfeitos com esta questão, resta a

possibilidade (hoje em dia não raro posta em prática) de fazer da necessidade uma virtude e tomar, por assim dizer, a interminável questão do homem sobre o homem ao pé da letra. Concebe-s·e, então, o próprio homem como uma questão forçosamente transcendente a qualquer resposta, isto é, como a questionabilidade radical. Nesse caso, as duas linhas irônicas de LESSINO, acima citadas, teriam formulado não só a dificuldade metódica de toda Antropologia, mas também a questionabilidade radical como o objetivo específico de qualquer Antropologia.

É interessante que a recente tese da indefinibilidade do homem (que

com sua "definição" é compreendida como a questionabilidade radical) atribui ao homem a incomensurabilidade que a tradição metafísica tinha reservado para Deus. Deus definiri nequit (Deus não pode ser definido) - dizia a metafísica, que, entretanto, sabia bem definir o homem. A recente despedida da metafísica - que perdura até hoje, ou que, talvez, tenha começado justamente agora - caracteriza-se primordialmente por pretender ver em "Deus" uma projeção do homem no infinito, ou seja, não querer considerá-la mais como o ser indefinível. E, na medida em que o homem acaba com o mistério - metafísico - de Deus, ele próprio se torna um enigma. Em lugar da indefinibilidade de Deus, temos a indefinibilidade do homem. Homo definiri nequit (o homem não pode ser definido), diz em sua linguagem a era mais moderna.

A minuciosa pesquisa antropológica fez do "totus homo" um ser

desconhecido. De Deus, dizia outrora TOMÁS DE AQUINO (Summa theologica), não podemos saber o que ele é, quando muito, o que não é. Do homem total, assim parece que devemos dizer hoje, não podemos saber o que ele é, mas, apenas, o que ele não é.

Mas então agora, ao se substituir a impossibilidade de uma

determinação conclusiva do homem pela sua determinação como questionabilidade radical, faz-se dessa necessidade uma virtude problemática. Isto, em verdade, é elegante, enquanto a categoria da questionabilidade leva

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em consideração, por um lado, o fato de que propriamente só sabemos do homem total o que ele não é, e, enquanto, por outro lado, só se pode oferecer, com a abertura (em princípio) da questão (abertura implica da na categoria da questionabilidade radical) alguma coisa como uma definição do totus homo. No mesmo instante em que se afirma a indefinibilidade do homem já está supressa. Contudo, a elegância dessa solução não faz justiça à essência do homem.

Que o homem simplesmente possa fazer perguntas e, mesmo, deva

questionar sobre si mesmo, constitui um fato característico do homem também para a Antropologia bíblica. Mas, no horizonte da Antropologia teológica, a pergunta não é uma coisa primeira, nem última. Na realidade, à pergunta pelo homem precede, no Salmo 8, o fato de Deus pensar no homem: "Que é o homem, para dele te lembrares, o filho do homem, para dele te compadeceres"? (v.5; quanto a essa típica estrutura bíblica da questão sobre o homem, cir., ao lado do SI 85, o SI 144, 3, 16; Jó 7,17; Rom 9,13). E para o· tempo da alegria escatológica, promete a seus discípulos o Cristo do Evangelho de João: "Naquele dia, não me perguntareis mais nada" (J o 16, 23). Antropologicamente, concluir-se-á que a pergunta é um fenômeno de seqüência, e a questionabilidade, um mito.

Mais antigo que a pergunta é o ser. Para poder perguntar o homem

deve ouvir e ter ouvido. Perguntas surgem de respostas. Mais antigo que a pergunta - e também novamente posterior - é, por exemplo, a canção, o canto, a narração. Mais antigo que a pergunta é o aviso (Cfr. Gên, 2, 16 e 17; 3, 9 e 10) e anterior a ela, o acordo. Com razão, FUCHS (1970) enxergou no acordo a essência da linguagem. A pergunta somente é gerada pela perturbação da narrativa, pela interrupção da ação, pelo falso tom, pelo inquietante e surpreendente admirar-se (thaumátsein, PLATÃO, Teeteto, 155 d; ARISTÓTELES, Metafísica, 982 b). Então, naturalmente, é preciso perguntar, para recuperar o que foi perturbado e, dado o caso, ultrapassá-lo.

Se a concepção da Antropologia mais recente pode sintetizar-se na

teoria de que o homem é uma pergunta cuja resposta não conhecemos (ainda não conhecemos - como diz aquela Antropologia "teológica" da qual se distingue fundamentalmente ° esboço de uma Antropologia teológica aqui delineado, porque e enquanto, é Antropologia apenas por causa de sua função teológica), deve-se lhe opor a tese de uma Antropologia teológica que explica escatologicamente o novo homem, tese, segundo a qual, o homem é uma resposta a uma pergunta que ainda não conhecemos suficientemente. A

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Antropologia teológica teria de ser a elaboração e reelaboração da pergunta cuja resposta é o homem.

Se o homem é uma resposta para a qual seja preciso encontrar uma

pergunta, não se poderá, entretanto, contestar, em princípio, a definibilidade do mesmo. Se, no entanto, se deseja afirmar a definibilidade do homem, dever-se-á então encontrar sempre a objeção de que com isso s,e nega a fundamental abertura do homem para o mundo, o que parece constituir um resultado garantido da recente Antropologia. Com efeito, a fundamental abertura para o mundo como conseqüência da questionabilidade radical, parece exigir justamente a indefinibilidade do homem.

A isto se deve- opor teologicamente que, pela encarnação de Deus, o

homem se define como o ser aberto para Deus. Com isso, o homem também já está definido como aberto para o mundo. Efetivamente - isto é uma crítica que se deve fazer à tradição teológica -, a universalidade do Criador há de fazer do homem aberto para Deus um ser que se abre para o mundo e um mundo que também se abre. O homem escatologicamente novo, no qual se instala o que para a Teologia merece chamar-se ser humano, é aquele homem em cuja existência histórica o próprio Deus se definiu e - no ato de sua autodefinição - também definiu o homem: Jesus. Para a compreensão cristã de Deus e do homem é preciso que não se julgue nem a partir de uma preconcebida compreensão do homem por Deus, nem de uma preconcebida compreensão de Deus, - como de sua indefinibilidade, por exemplo - pelo homem, mas, antes, julgue-se por um único acontecimento sobre Deus e sobre o homem. Como se evidenciou na sua ressurreição dentre os mortos, esse acontecimento se identifica, para a fé cristã, com a vida e a morte do homem Jesus. Em inseparável unidade, mas igualmente em inconfundível diferença, ou seja, no acontecimento da identificação de Deus com essa vida humana, fundando escatologicamente a diferença entre Deus e o homem, ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Identificação não significa de modo algum indistinção. Antes, o ato de identificar-se pode salientar fortemente a diferença entre aquele que se identifica e aquele com quem se identifica. O conceito cristão da identidade de Deus com o homem Jesus deve ser compreendido nesse sentido, isto é, no sentido de uma ontologia da historicidade do ser. Afirme-se, pois, que o homem é definido como homem pelo fato de Deus ser definido nele como Deus. Tal é o sentido lógico da doutrina cristã da imagem e semelhança do homem com Deus, onde, naturalmente, importa, antes de tudo, que para a fé cristã, é na pessoa de Jesus Cristo que se decide o que merece ser chamado Deus ou homem. De fato, a categoria de imago Dei (imagem de Deus) é

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idêntica ao nome histórico de Jesus Cristo. A pessoa designada por esse nome é o homem cor· respondente a Deus.

Mas a pessoa de Jesus Cristo significa, então, uma decisão sobre o ser

humano de todos os homens. Nele se processou a decisão sobre o futuro, e, portanto, também sobre toda a história do gênero humano; nele também se decidiu ontologicamente sobre a essência do homem.

Com base na realidade desse homem correspondente a Deus, vale

para todos os homens a afirmação de que sua humanidade consiste em corresponder a Deus. Esse único homem, portanto, é essencial para todos os homens. Mas, se agora a fé cristã relaciona todos os homens com esse único homem, não só ontológica, mas também existencialmente, fá-lo porque, diferentemente desse homem Jesus, todos os demais homens não correspondem bem, de fato, a Deus. Foi preciso um novo homem, para que o homem chegasse a seu , destino. Mas esse homem novo não é o homem correspondente a Deus só para si. Antes, no seu ser decidiu a respeito de todos os homens, na medida em que esse único homem correspondente a Deus traz a esta correspondência os homens que a ela não correspondem.

A esse acontecimento, de serem os homens levados à

correspondência com Deus através do ser de Jesus Cristo, PAULO denomina justificação. LUTERO (Disputatio de homine) viu nessa justificação, com toda propriedade, a definição propriamente dita do homem. A justificação do homem por Deus pode ser considerada como definição do homem, porque subtrai o ser do homem ao domínio do agIr humano, sem contestar que o conceito do homem inclua ação. Formulado de outra forma: no acontecimento da justificação, a natureza humana, ameaçada por si mesma, é afirmada por Deus, contra a perversão de fato e que sempre ocorre de novo, como não-natureza. Assim sendo, a justificação é um acontecimento de relevância ontológica.

A palavra "justificação" diz, em sua mais formal acepção, que é

sobretudo graças ao direito divino que o homem se torna homem: a justificação de Deus, que se apropria do ser de Jesus Cristo, constitui o ser humano do homem. Logo, justificação é um conceito relativo. Deus é justo enquanto, faz o homem justo. Assim, o homem correspondente a Deus se define como um ser relativo, e isso em dois sentidos, ou seja, passiva e ativamente. A possibilidade de o homem se referir a si mesmo articula-se na relação de Deus para com ele. Portanto, ontologicamente anterior à relação do

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homem para consigo mesmo, é a relação de um outro para com ele. O homem não poderia referir-se de modo algum a si pr6prio, se já não existisse sempre pela relação de um outro para com ele. Ontologicamente, o homem é o ser que não se estrutura de forma alguma em si mesmo. Não pode chegar a si mesmo, sem que antes já esteja em outro.

Onticamente, em todo caso, o homem quer fundar-se em si mesmo.

Está dominado pela vontade sobre si mesmo. Isso se evidencia num predomínio antropológico da vontade em relação à faculdade auditiva. A vontade, que não pode ouvir, é a vontade de autofundação. A ela corresponde a redução de todas as relações do homem consigo mesmo, como um inconcussum fundamentum veritatis (fundamento inabalável da verdade). Identidade como autoidentificação é o postulado antropológico do homem dominado pela vontade de si próprio.

A fé cristã concebe como pecado essa tendência ôntica do homem a

fundar-se em si próprio. Identidade como auto-identificação é para a fé o sinal característico de um homem que está se perdendo a si próprio. Com efeito, de acordo com a concepção da fé, o homem nunca se encontra em si próprio. Por isso, não vem a si mesmo por si, mas só por outro que não ele. "Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. E o que perder sua vida... salvá-la-á" (Mc 8, 35).

A justificação do pecador será, portanto, o acontecimento que leva o

homem definitivamente a uma relação com um oposto. O decisivo nisso tudo é que esse oposto se relacione em si mesmo com o homem, como um oposto que se lhe opõe livremente. O homem só pode transcender realmente sua auto=relação, quando se refere a um oposto que já não é também imanente a esta relação. Semelhante oposto é um que se opõe livremente, o que cria relações sobretudo por sua própria relação. Falando paradoxalmente, para o homem é necessário tal oposto que não lhe é necessário. Nesse sentido, Deus lhe é mais do que necessário. Pois, o nome concreto para o oposto, que se opõe livremente, é Deus.

A conseqüência antropológica que daí resulta pode resumir-se na

seguinte frase: pertence constitutivamente ao ser homem do eu humano receber-se a si mesmo pelo encontro com um outro. Frente à costumeira determinação, antes moral, do ser humano como um ser para os outros - "o verdadeiro homem existe para os outros" -, é teologicamente mais antigo afirmar a referência do homem a um oposto que se opõe livremente. A humanidade do eu humano consiste em que eu deixe um outro ser existir para

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mim. Nisto se pensa, quando se apresenta a justificação por Deus como definição do homem. Ela determina o homem, não por um deficit - em si inconteste -, mas por um acontecimento que lhe é favorável, embora não a partir dele mesmo. É porque o ser de um outro lhe traz proveito, que o homem se torna um ente humano. Nesse sentido, a teologia chama o homem um ser histórico. Ela já tem história, antes de fazer História. Com essas obserrvaç6es,entretanto, já passamos para a discussão da fundamentação material da Antropologia teológica.

Fundamentação material da Antropologia Evangélica 1. O homem correspondente a Deus chama-se na Bíblia imagem de

Deus (Imago Dei). Uma fundamentação- material da Antropologia teológica deverá pesquisar os textos bíblicos a respeito da compreensão da semelhança do homem com Deus. Quanto a isso, limitamo-nos a uma exegese conseqüente, resultante das decisivas manifestações bíblicas sobre o assunto. De acordo com a compreensão, acima exposta, da Antropologia teológica, há de levar-se em conta primeiramente o texto do Antigo Testamento, com seus enunciados sobre imago Dei, para expor-se à instância crítica da fundamentação da semelhança com Deus do Novo Testamento e da cristologia. Conforme ficou dito, é hermeneuticamente do mesmo modo claro, que cada determinação do homem aí contida torna mais preciso o conceito de Deus.

A citação clássica da doutrina sobre a semelhança com Deus está em

Gên 1 26 e SS., no chamado escrito sacerdotal, completado por Gên 5, 1 e 3, bem como 9, 6. Acrescentem-se a isso frases dos livros sapienciais, Sab. 2, 23 e Ecl 17, 3. Temos no Antigo Testamento, no SI 8, 6 um importante comentário do primeiro texto do Gênesis. Eis o que se acha em Gên 1,26 e ss.: "Disse por fim Deus: Façamos homens à nossa imagem e semelhança. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre o gado, sobre todos os animais terrestres e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Assim Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou."

A exposição deve partir da constatação de que já a simples existência

do homem precisa ser compreendida como tendo sido criada à imagem de Deus. Logo, sob a expressão "semelhança com Deus" – seja ela interpretada como for - não devemos entender nenhuma qualidade, dignidade ou distinção que se adicionasse ainda ao homem já criado. O "Dasein” do homem, sua existência, é sua semelhança com Deus. A mais alta dignidade do homem é esta: existir.

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O “Dasein" do homem ·correspondente a Deus é, porém, a existência

de homem e homem. O texto não deixa dúvidas quanto à dualidade do ser humano, isto é, à passagem do singular para o plural no objeto: Deus criou o homem ao criar os homens, homem e mulher. Com isso, não se pensa na capacidade humana de procriação, que foi transferida para o versículo 28, numa bênção especial, e que, portanto, se distingue da semelhança com Deus (ZIMMERLI, 19$7, pág. 77). O homem ainda não acaba de produzir a sua multiplicidade, mas já se encontra sempre na comunidade de outros homens.

A semelhança do homem com Deus implica, pois, em sua estrutura

social. O homem entra na existencia como ser social, e nisso corresponde ao Deus Criador. Para o conceito de Deus, torna-se então, decisivo que Deus, a quem o homem corresponde, não seja um ser isolado. Muito ao contrário, ele é imaginado em si mesmo como comunitário, é essencialmente um ser participante. Na relação do homem com Deus resulta também, a partir da semelhança divina do homem criado como ser social, que sempre se pense em Deus como sendo também já o Deus do outro. Como o meu Deus e ao mesmo tempo o teu Deus, e define-se, por isso, como Deus pro te (Deus para ti).

Mas se a imago Dei consiste primeiramente nesse fato elementar de

que o homem existe enquanto é eu de um tu, então algo como o solipsismo deve ser tido como uma teoria blasfema. “Si quis dlxerit hominem esse solitarium, anathema sit" (Se alguém disser que o homem é solitário, seja anátema. BARTH, 1970, pág. 384). O homem não pode relacionar-se consigo mesmo, sem com isso já se relacionar com outro homem. E não menos importante: O homem não pode relacionar-se consigo mesmo, sem que um outro homem já se relacione com ele. O ''cerúleo isolamento" de NIETZSCHE, o seu "antes-de-tudo, não me troquem!", é estranho à doutrina do homem que entra na existência. como imagem e semelhança de Deus. A Antropologia teológica não reconhece como humana essa preocupação: "antes de tudo, não me troquem!". Tal cuidado é antes por demais desumano, um contra-senso ontológico, e, portanto, contrário à criação. Fica excluído pelo destino humano da semelhança com Deus.

Por sobre essa mais elementar determinação, passamos agora a

perguntar o que mais transparece na afirmação da imagem e semelhança do homem com Deus.

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2. KÕHLER fez valer, na minha opinião, um decisivo ponto de vista para a compreensão do homem como imago Dei, conforme Gên 1, 26 e ss., indicando o caminho para toda e qualquer Antropologia, ao apontar a semelhança com Deus no fato de que somente os homens "têm uma posição ereta" (1966, pág. 135). A semelhança do homem com Deus mostrar-se-ia, conforme isso, além do fato mais elementar da sua existência, sempre existindo como homem de outro homem semelhante, também materialmente, numa maneira específica de corporalidade, numa forma corporal. Não se fica impedido de aceitar, com o mais exterior, o que é mais interior no homem, a sua essência. "O que uma coisa é, é-o ... toda em sua exterioridade; sua exterioridade é sua totalidade, é sua unidade refletida em si. Sua aparência. não é só a reflexão no outro, mas também em si, e sua exterioridade é manifestação daquilo que ela é em si" (HEGEL, Wissenschaft der Logik). O homem é semelhante a Deus na posição ereta do ·corpo. E essa semelhança corporal do homem com Deus é a expressão do ser humano do homem. O homem é um ser ereto. Os escritores da antiga Igreja conservam-se, portanto, fiéis à idéia bíblica do homem, ao indicarem, seguindo uma etimologia de PLATÃO (Crátilo, 399 c), como sinal característico do homem um "olhar para cima" e o "andar ereto" (LACTÂNCIO, Da Ira de Deus, 7, 4 e ss.).

Esse escopo da afirmação da imago Dei, tal como se encontra no Gên

1, 26, é lembrado de maneira notável por PAULO, em Rom 1, 23, no contexto de considerações paulinas sobre a imagem de Deus e na queixa sobre o falso serviço de Deus: em vez de honrarem a Deus como Deus e dar-lhe graças (vers. 21), os pretensos sábios substituíram a glória do Deus imperecível por um simulacro, que eles fizeram segundo a imagem - não de Deus, mas - de simples homens corruptíveis, de aves, quadrúpedes e répteis. Nessa queixa paulina, o decisivo é que o homem, não se representando mais à imagem de Deus, entra logo na mesma série que os animais. Na medida em que o homem não se pensa mais em conformidade com a imagem de Deus, dando assim honra a Deus ("honra a Deus" é em PAULO o termo técnico da sua idéia de imagem de Deus), mas em vez disso imagina a si e a Deus conforme a sua própria imagem, esta imagem do homem perecível passa a formar, eo ipso, uma série com as aves, os quadrúpedes e os répteis (como até hoje ainda se pode estudar nos museus: de modo mais impressionante nas formas que, por representarem um ser meio homem meio animal, manifestam a passagem das espécies numa série única!). Assim, o homem aparece agora na mesma série com os animais, dos quais, entretanto, ele justamente se distingue por seu andar ereto. Isso é grotesco. Não se deve, pois, desprezar a nota de Rom 1, 23. O culto errado prestado a Deus é uma paródia do ser humano do homem. O homem,

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caracterizado como um ser ereto, devido à sua posição ereta, e entendido nessa característica como imagem de Deus, realiza, com a honra de Deus, o seu status humano. Quando perde a sua relação com Deus, perde também seu ser ereto. Na mais simples acepção da palavra, ele decai.

Graças à paródia do ponto principal da queixa paulina, fica confirmado

que na atitude ereta do homem, em que vemos uma expressão da imagem de Deus, não devemos distinguir apenas um fenômeno exterior e sem importância. A forma exterior do homem é a forma de sua essência. Isso se torna claro sempre que o homem, por seu comportamento, põe em questão a forma de sua essência. Citando mais uma vez o Antigo Testamento, reproduziremos esta frase do Pregador, referente de um modo especial aos homens: Deus fez o homem reto, mas ele procura muitos caminhos tortuosos (Ecl 7, 29).

O corpo ereto é, em sua exterioridade, a forma essencial do homem.

Isso se torna perfeitamente claro no texto fundamental do Antigo Testamento, sobre a doutrina da imago Dei, se se considera a diferença, que acabamos de citar, entre o homem e o animal: "Façamos homens à nossa imagem, semelhantes a nós; e dominem eles ... ". À atitude ereta corresponde o andar erguido. Enquanto ser ereto, move-se o homem, aliás, como só Deus. Nesse movimento de ser ereto, exprime-se o destino dominador do homem. "Semelhança com Deus é vocação para o domínio da vida" (ZIMMERLI, 1943, pág. 20). Na idéia bíblica, dominar é a função daquele que é senhor. Quem domina, é senhor. O homem - um senhor; isto significa imago Dei.

Se os homens, porém, são imagem de Deus enquanto senhores, então,

por sua vez, Deus é considerado como senhor. Diversamente do homem, Deus, segundo a compreensão bíblica, é senhor dos homens. O homem é um senhor - como Deus é seu senhor. O fato de o homem ter em Deus o seu senhor, não exclui, portanto, antes inclui, que o homem mesmo seja um senhor. O homem, contudo, não é senhor dos homens. Não é o Senhor Deus. Ele corresponde, antes, a esse Senhor, enquanto é destinado como homem com o homem, ao domínio em comum sobre o mundo. Os homens não são destinados a se curvarem diante de um homem, e sim, a permanecerem erguidos um em face do outro e, assim, se moverem unidos para frente. Pelo destino do domínio comum sobre o mundo, na marcha em comum para a frente do ser humano ereto, ele descobre o mundo como espaço, no qual ser-lhe-á dado e ordenado o tempo para progredir. O homem, como senhor, é um ente inteiramente destinado ao progresso, e orientado para progredir.

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Não é por acaso que o homem julga particularmente coitados e dignos

de lástima os semelhantes que não podem andar em pé ou ao menos se manter de pé. Falta-lhes a liberdade para o futuro. Sem dúvida, eram objetos de especial zombaria na Antiguidade, particularmente porque, pela sua mera existência, comentavam como uma perturbadora glosa marginal a natureza de senhor que compete ao homem, e isso novamente levava a imaginar que tais pessoas - justamente porque lhes parecia faltar exteriormente a função de domínio - eram particularmente sedentas de mando, o que, aliás, não era mera imaginação. O fato de hoje não ser mais natural o desprezo pelos que não conseguem andar eretos, o que não ocorria antigamente, deve-se a que Jesus Cristo, anunciado pela fé como senhor, foi crucificado.

3. A concepção de que a semelhança com Deus implica no fato de o

homem ereto ser senhor tem, por certo, a sua mais aguda expressão na explicação neotestamentária de Jesus crucificado e ressuscitado dos mortos como senhor. "Jesus é Senhor", diz o testamento fundamental da fé cristã (l Cor 12, 3; Rom 10, 9; 14, 11; Flp 2, 11). O predicado "Senhor", bem entendido, visa o Cristo crucificado, que, como tal não põe em evidência o poder da morte, mas a sua superação. Nele se patenteia que o homem correspondente a Deus não é limitado pela morte, mas sim por Deus. Por isso, a morte não tem mais domínio sobre ele (Rom 6, 9). Antes, o crucificado e ressuscitado domina sobre os mortos e sobre os vivos (Rom 14, 9). Assim, ele é o homem correspondente a Deus (2 Cor 4, 4).

A interpretação do andar ereto do homem que exprime sua essência

de senhor, pela ressurreição de Cristo dentre os mortos, levou a figura humana a uma dimensão escatológica. O que antes se exprimia espacialmente, torna-se, a partir do Novo Testamento, evidente em sua estrutura temporal. Se Jesus Cristo, que ressurgiu dos mortos, é o homem novo e, portanto, correspondente a Deus, então, o ser humano é com isso entendido como ilimitadamente referente ao futuro. Decisivo nisso tudo é que não se entenda o ressuscitado como um homem que tem sua vida anterior atrás de si como um passado concluído. Justamente o ressuscitado (e não inversamente) será anunciado como crucificado. Portanto, é dado futuro exatamente ao passado. A ilimitada referência do homem ao futuro inclui seu passado. O homem correspondente a Deus é o homem com toda a sua história.

Que o homem Jesus estava entre todos os homens, que estava no

meio da humanidade, é o que acertadamente KARL BARTH (1970, págs. 191,

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158) afirmou como sendo "o fato humano central": "A determinação ontológica do homem baseia-se no fato de que no meio de todos os demais homens se acha um que é o homem Jesus." De acordo com a auto compreensão do, Novo Testamento, ter-se-á que deduzir daí, que todo homem, se é orientado para seu ser humano, deve ser orientado no sentido de que ele é um semelhante de Jesus Cristo. A semelhança do homem com Deus recebe daí a sua mais concreta determinação. Corresponde, pois, à realidade, que o enunciado fundamental do Antigo Testamento sobre o homem como imago Dei se torna mais preciso e, decerto modo, também modificado, no Novo Testamento, pelo que se diz de Jesus Cristo.

4. Temos isso bem precisado - seguimos PAULO - no fato de que,

inicialmente, apenas um único homem é chamado de imagem de Deus. Em 2 Cor 4, 4, lê:se a respeito de Cristo "que é a imagem de Deus" (tradição antepaulina). "Na face de Cristo", efetivamente, aparece a glória (honra) de Deus. Enquanto só a esse Jesus Cristo cabe a glória de Deus, ele é imagem de Deus, corresponde de modo todo especial a Deus, o Senhor. Por isso, então, é também novamente ele que entra em questão quando se fala do protótipo do ser humano. Na realidade - e somente aqui alcançamos a culminância paulina desse, texto -, todos os homens devem receber em sua existência uma participação naquilo que é Jesus Cristo. Não se trata somente da "glória de Deus na face de Cristo", mas sim do "fulgor do conhecimento que se realiza em nosso coração" (vers. 6) e que nos torna participantes dessa glória na face de Cristo. Isso se dá oralmente, pelo discurso. Assim como Jesus Cristo é imagem de Deus enquanto possui a glória de Deus, assim ele dá aos homens (os crentes), pelo anúncio, uma participação na glória de Deus, ao introduzi-los em sua semelhança com Deus pelo evento da palavra da Cruz. A imago Dei, portanto, que é Jesus Cristo, 'é aqui considerada como um evento da palavra no homem.

Considerando a nossa "participação" em sua semelhança com Deus.

surpreende-nos ver que PAULO, nesse contexto, se denomina, expressamente, servo. Convém notar, porém, que aquilo que o preocupa aí é a "participação" dos coríntios na semelhança de Cristo com Deus. Por isso, o apóstolo escreve que é servo dos coríntios "por amor a Cristo", o qual, por sua vez, é senhor, enquanto imagem de Deus. Quem participa de sua semelhança com Deus, participa, portanto, de seu ser senhor. Mas, para chegar a tanto, o apóstolo deve ser servo, embora ele mesmo, exatamente por ter esse senhor, seja um homem livre (l Cor 9, 1). Existe, pois, uma dialética especificamente cristã de

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senhor e servo, a qual, entretanto, se fundamenta no ser do próprio Jesus Cristo.

Manifestamente, não há nenhuma participação na semelhança .com

Deus do Cristo crucificado, sem que o homem seja considerado como senhor e como servo. Aí, sem dúvida, aparece mais uma vez com precisão a teoria da imago Dei do Antigo Testamento. Contudo, só devemos contar com semelhante dialética, do ser senhor e escravo, para o homem que participa da imago Dei de Jesus Cristo, porque essa própria dialética já determina a história de Jesus Cristo. Descobrir-se-á precisamente nessa história que essa dialética não constitui um paradoxo ou até uma contradição, mas que o ser senhor e ser servo do mesmo homem concordam do modo mais exato.

5. A Bíblia chama de pecado a destruição dessa unidade. :É a

expressão de falência do homem, tanto em relação a Deus como em relação a si mesmo, isto é, na sua semelhança com Deus.

Já vimos em Rom 1, 21-24 que o homem se compreende conforme a

sua própria imagem (e por isso mesmo conforme a dos animais), e, assim, "desregula" a glória do Deus imperecível. Os versículos 24 e seguintes interpretam-no assim: quando o homem' não honrou mais a Deus como seu senhor, destruiu em si mesmo sua semelhança com Deus, ou seja, sua natureza de senhor em seu mundo. :É nesse sentido que fala em Rom 3, 23: "Todos pecaram e estão sem glória de Deus." Abusando de sua propriedade de ser senhor, o homem perdeu sua semelhança com Deus.

Isso deve explicar-se dizendo que a determinação antropológica

fundamental - "o homem é um senhor, como Deus é seu Senhor" - falha, se o homem quer ser senhor sem honrar em Deus o seu Senhor. O ponto culminante de ser o homem senhor consiste precisamente nisso, em deixar que Deus seja seu Senhor. Formulada negativamente, essa determinação positiva significa que um homem que se arvora ,em senhor dos homens quer ocupar o lugar de Deus. Inversamente, um homem se conserva como senhor enquanto serve em liberdade a seu semelhante de uma forma tal, que, tanto aquele que serve, como aquele que é servido, tenham só um Deus,' o seu Senhor.

Pode-se mostrar isso mais uma vez por meio da postura ereta que

exprime a semelhança do homem com Deus... Ela inclui a possibilidade de inclinar-se. O homem pode inclinar-se porque é um senhor. Portanto, não é questão de inclinar-se diante de alguém - nenhum senhor faz isso. Mas trata-se

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de inclinar-se para alguém. Só quem anda ereto pode inclinar-se profundamente. Essa capacidade é parte constitutiva do homem ereto. Por ser um senhor, o homem pode servir. Com isso não deixa de ser um senhor; pelo c0ntrário, é assim que confirma ainda mais a sua natureza de senhor.

Inversamente, projeta-se a possibilidade oposta (que só com reserva

se pode chamar assim), de deixar-se o homem tentar, devido à sua postura ereta, a ultrapassar seu ser homem, tendendo, assim, "para cima", onde, com bom fundamento, não está ("ainda não está", como pensa). Quem, nesse sentido, tende "para cima", quem, nesse sentido, quer ultrapassar-se, por princípio, esse não se inclina para outros homens. É o homem senhoril. Quer ser senhor entre os homens, sem servir. Mas querer ser senhor entre os homens, sem servir, equivale a' querer ser senhor sobre os homens. É o que quer o homem senhoril. Deseja ser senhor sem limites. Ele é sem relações. E justamente por isso o homem incorre na perda de sua semelhança com Deus, que formulamos nesta frase: o homem é um senhor - assim como Deus é seu senhor. Na medida em que o homem deixa de estabelecer limites para si, e afirmar as fronteiras oriundas de ,sua estrutura societária ontológica, ele nega, por isso mesmo, sua propriedade de ser senhor (JÜNGEL, 1971, pág. 199 e ss.). Quem quer ser senhor sem limites, não consegue sequer ser senhor de si mesmo. Como senhor de seu semelhante, o homem senhoril coloca-se no papel de Deus: homo homini deus (o homem é deus para o homem). Isso, porém, significa sempre; homo homini lupus (o. homem é lobo para o homem).

Em oposição a isso, Jesus é chamado (Flp 2, 6 e ss.) senhor, porque não

achou vantagem em ser igual a Deus, antes renunciou a si mesmo e se humilhou. Para manifestar à humanidade o que significa ser um senhor, apareceu nele o senhor do homem como homem à maneira de servo, obediente até a morte, para nela ser glorificado, elevado e revelado como senhor por seu Pai. A ressurreição de Jesus dentre os mortos não é outra coisa senão essa glorificação por Deus Pai, que faz na sua morte, e precisamente nisso, a instauração escatológica do homem como imagem de Deus. No Cristo crucificado e ressuscitado, o homem, enquanto ser ereto, é justificado. Não foi criado para jazer na sepultura e tornar-se um passado esquecido. O limite da morte apresenta-se na morte e ressurreição de Jesus Cristo, como um limite, que é relativamente adiável, pelo homem, embora fundamentalmente inevitável, mas que, "do outro lado", no Deus que nos limita na morte, se manifesta, sem dúvida, como um acontecimento integrador e salvador de toda a história de nosso ser humano, um evento que transfere o passado do homem para um eterno futuro.

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Por isso, os homens que participam em Cristo da sua semelhança com

Deus são orientados para a' glorificação que se complementa na sua morte, para a magnificência que se mostra' na sua humilhação. O hino da carta aos filipenses é citado por PAULO justamente porque os cristãos são considerados enquanto se atêm àquilo "que se acha em Jesus Cristo", enquanto, "em humildade, cada qual considera o outro superior a si mesmo, procurando cada um não o interesse próprio, mas, antes, o do outro" (Flp 2, 3b-4). Essas deduções encontram um paralelo em Rom 12, 16, onde PAULO pede a todos os fiéis de Roma, que não se deixem, "levar pelo gosto das grandezas, mas se acomodem as coisas modestas (ou a sociedade com os humildes)". E não há aí um segundo sentido, mas ainda o mesmo, sob o ponto de vista de Deus, como se lê em Rom 15, 5 e 80S.: "O Deus da paciência e da consolação vos conceda mutuamente sentimentos de harmonia, a exemplo de Jesus Cristo, para que, unânimes, e a uma s6 voz, glorifiqueis a Deus, como Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo". Glorificar a Deus conjuntamente como Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, e, em mútua liberdade, considerar o outro superior a si mesmo: eis, na convivência inseparável, a consumação da semelhança com Deus.

6. Essa idéia cristológica do homem correspondente a Deus modifica

novamente ao mesmo tempo, a tradicional concepção de Deus. Se Jesus é reconhecido como Senhor, então a fé vê em Deus aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos. Portanto, só se poderá compreender a elevação de Jesus do abismo da morte, admitindo que Deus se abaixa a si mesmo até aí, para ajustar contas com essa morte e, assim, se mostrar como "Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo".

Só tiramos a conseqüência do que ficou dito, se formularmos a

seguinte tese: o traço da eminência de Deus é uma tendência irreprimível para a profundidade. Nessa tese já está incluído o homem, exatamente sob o aspecto de sua semelhança com Deus. Com efeito, o traço essencial da eminência divina é um impulso irreprimível para baixo, é uma tendência irreprimível em direção ao homem. Podemos também dizer: A irreprimível tendência para baixo é o traço humano da soberania divina.

Convém esclarecer aqui que esse impulso humano da soberania divina

não foi motivado somente pelo pecado do homem, mas também pelo próprio amor de Deus, e, portanto, também não por uma coação imposta a Deus, senão pela liberdade de sua graça. Mas de fato é um traço divino a tendência de Deus para o pecador, em que Deus dirige seu livre amor, de fato, não

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apenas para o homem, senão para o homem miserável, porque sem relações e pecador, não só para a profundidade conveniente ao homem, mas também para 'a profundidade indecorosa da miséria do seu pecado, não só para a comunidade da vida humana, mas para a comunidade da morte que interrompe a comunidade da vida - isto e, por certo, consequencia do pecado. Do pecado, porém, podemos dizer que ele aumentou, para que a graça de Deus aumentasse ainda mais (Rom 5, 20). Isso significa que ,o amor de Deus é mais antigo que o pecado do homem, e que aquela tendêncla para baixo não é originalmente motivada só pelo pecado. Ontologicamente, não vem primeiro a deficiência do ser humano, mas o transbordamento inicial do amor divino.

Praticamente, o 'traço fundamental da eminência divina, como

tendência para a profundidade do ser humano, é uma tendência para o abismo de sua deficiência, para ajudá-lo a subir à altura que lhe fica bem e que o espera "em Cristo" (2 Cor 5, 17). Na realidade, a coincidência da direção divina para o homem e da orientação divina para o pecador, na pessoa de Jesus Cristo, autoriza-nos a reconhecer, entretanto, perfeitamente, alem da tendência essencial da alteza divina à baixeza do ser pecador do homem, a essência humana do homem como alvo daquele movimento. Com efeito, naquele movimento da justiça divina, trata-se da justificação do ateu como da imagem humana da semelhança com Deus. E, neste sentido. a relação de Deus para com o pecador, a qual se efetua no ser de Jesus Cristo, tem uma relevância não somente sotereológica, mas também antropológica. O homem redimido é o que foi originalmente pensado por Deus. Na doação de seu Filho, Deus amou não só os crentes reunidos com igreja; mas neles, o mundo, se bem que só a fé faça valer o amor e o abaixamento de Deus. "Hominem justificari fide" (o homem é justificado pela fé), é, portanto, não apenas a definição teológica do cristão, mas mesmo a do homem. Pois, a palavra justificadora, só perceptível pela fé, do abaixamento de Deus, vale para todos os homens, como palavra do abaixamento de Deus e elevação do homem através do ser de Jesus Cristo.

Portanto, o homem é suscetível à tendência de Deus para abaixar-se.

O homem é um ente suscetível ao abaixamento de Deus e, como tal, à correspondência da excelsitude de Deus, que se manifesta nesse abaixar-se (Rom 6, 5; 8, 29; 1 Cor 15, 49). Essa capacidade de correspondência faz parte.: num sentido fundamental, da semelhança do homem com Deus. O homem e um ser constituído e organizado pela palavra. Ouvindo é que o homem é homem. Só por poder ouvir, consegue falar, pensar, agir, e nisso tudo, ser

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humano. Ouvindo, adapta-se à relação de Deus para com ele, para assim corresponder a seu Deus.

7. A Antropologia teológica tem em comum com a Antropologia

filosófica em todo caso, que também ela considera a linguagem como constitutivo da essência do homem. Concorda-se em que o homem se socializa pela linguagem, e, só então, se torna propriamente homem. Entretanto, a Antropologia teológica, baseada na definição do homem como um ente justificado pela palavra de Deus, alude a uma situação problemática na essência do homem quanto à linguagem. Dois traços fundamentais determinam o homem como ser lingüístico. O homem tanto é um ser a quem se fala, como um ser que fala (BUBER, 1962; ERNER, 1963; BRUNNER, 1965; BARTH, 1970). Ele é as duas coisas ao mesmo tempo. A Antropologia teológica distinguirá, porém, ontologicamente, essa simultaneidade de traços fundamentais na essência lingüística do homem. Antropologicamente, deve ficar claro que, desses dois traços fundamentais, um não é somente a condição da possibilidade do outro, mas, antes de tudo, a própria possibilidade de, apesar do outro traço fundamental, com suas conseqüências não necessárias mas, de fato, ameaçadoras ficar sendo um homem humano ou, respectivamente, novo.

Um dos traços fundamentais do ente dotado de razão, é o do

enunciado representado na sentença apofântica. (Ao considerarmos agora, esse traço fundamental por si só, vamos incorrer numa certa unilateralidade e desfiguração.) No caráter de enunciado da linguagem encontra-se algo da essência da numeração, uma tendência à reelaboração do mundo por meio de uma cópia da realidade em sinais, de maneira que a 1inguagem seria uma soma de sinais para uma soma correspondente de coisas sinalizadas. O homem, como ser dotado de linguagem, seria então diferente de todo outro ser, como o ser designante, como o ser que dá os, nomes às coisas ou, em todo caso, as chama pelo nome. Essa função da linguagem socializa o homem, enquanto, tendo em vista a designação (os nomes) das coisas, é preciso concordar; seja que sempre já se tenha concordado, seja que se deva concordar de novo, seja que se julgue a concordância lingüística ontologicamente anterior à linguagem humana. Portanto, nesse traço fundamental da linguagem, que caracteriza o homem como ser que se exprime pela fala, temos o jogo alternado de informação e elaboração. A quantidade de informação a ser lingüisticamente elaborada pelo homem obriga-o não só à distinção numérica, mas também à decisão condicionalmente eletiva. O mundo não pode ser compreendido senão por distinção numérica e por decisão condicionalmente e1etiva. Quem diz A,

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não deve dizer apenas B, mas sim quem diz A, deve dizer também Não-A. De outro modo não se pode definir; de outro modo não se pode reduzir o mundo a um conceito. Sem isso, não se pode, tampouco, dominar o mundo. Portanto, a função "copiadora" ou, respectivamente, designadora, da língua, não deixa inalterado o mundo "copiado" e a coisa designada. Ao serem transpostas para o conceito, faz-se um trato com as coisas. Se compreendo alguma coisa, posso fazer algo com ela, da mesma forma que, se não compreendo nada, posso dizer com razão: nada posso fazer com isso. Na linguagem, ocorre um uso do mundo que cria as condições para empregá-lo de modo diferente do anterior. O próprio homem, enquanto ele mesmo também e sempre mundo, não fica excetuado. No trato com o mundo, ele pode modificar o trato para consigo mesmo e, de certo modo, ele modifica com isso a si próprio. Logo, transformação do mundo e autotransformação são, lingüisticamente, de todo condicionadas. Condicionam-se pelo ser falante, o homem enunciante, que pensa dentro da correlação de informação e elaboração. Nesse sentido, a linguagem possibilita o pensamento. E o pensamento e a elaboração da distinção enumeradora das coisas e da decisão condicionalmente se1etlva entre o sim e o não, em todo caso, coisa parecida com uma ordem. A linguagem encomenda. O pensamento manda. A linguagem sempre manifesta, ao menos condicionalmente, o que o pensamento decide. Mas, na medida em que, por sua vez, o pensamento que decide e ordena se manifesta lingüisticamente - numa nova concordância a respeito do trato com o mundo e consigo mesmo -, pode-se, ou antes, deve-se designar esse traço fundamental como linguagem da dominação. A coincidência da linguagem e do pensamento no definir e conceber é um ato de domínio por excelencla, o que, desde os antigos, só a filosofia moderna talvez, tenha observado de novo. Nesse ponto, aliás, não faz diferença essencial entre ver-se representado o domínio sobre o mundo como domínio da apreensão, na metáfora moderna do produtor que se quer apossar do mundo ou como domínio da "teoria", na metáfora da visão que perscruta todo o mundo. Querer ver o ser como tal, no seu todo, não é menos uma tendência de domínio do que querer apossar-se do mundo. A consequencia é sempre a mesma: a ação humana. Pois, domínio, como tal, é atividade. Pouco importa que queira mudar ou conservar (de resto, também pode conservar apenas pela mudança). Domínio estabelece atividade. Essas atividades, porém, e aqui está uma diferença com toda as possíveis atividades dos animais - são dirigidas lingüisticamente. A linguagem dá, por assim dizer, o anteprojeto das atividades, e, antes de tudo, da obra. Isso vale também para a - hoje particularmente apreciada - atividade experimentadora, que, sem o intervalo do aberto, que a linguagem recomendante deixa ao pensamento que manda de modo algum seria possível. Na medida, porém, em que a linguagem

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fornece ao homem os anteprojetos para suas racionais e irracionais atividades (ímpetos!), mas sobretudo os anteprojetos para a obra humana, posteriormente distinguível de sua atividade, ela é, em sua estrutura apofântica, a origem do homem enquanto homo faber. Como ser de linguagem enunciante o homem é o dono de suas obras, o "mestre de obras" (HEGEL). E em suas obras bem sucedidas, o homem, que se socializa pela linguagem, ergueu-se um monumento através dessa sua socialização lingüística. (No fundo, toda obra bem sucedida é um monumento desses, pouco Importando se permanece ou perece.)

Reduzimos a estrutura fundamental do homem, como um ser que fala

no sentido de um ser vivo enunciante, à dimensão do domínio que se realiza pelo pensamento, e sem o qual não existiriam obras humanas modificadoras do mundo. Esse traço fundamental do ser que fala - o domínio - não deve ser o oposto da liberdade humana. Pelo contrário! Para a Antropologia teológica, o traço fundamental do domínio, que é característico do homem que fala, apresenta-se justamente como conseqüência daquela liberdade que faz o homem ser homem. Se a linguagem elabora o mundo de tal forma que dê recomendações ao pensamento pela distinção numeradora (e entende-se a sua correspondente ligação) e pela decisão condicionalmente eletiva, sendo que, por sua vez, (j pensamento tenha de reelaborar essas recomendações, transformando-as em ordens, as quais regem o mundo, semelhantes atos de domínio - julgados em princípio - são demonstrações da liberdade do homem, que merece ser chamado um senhor. Não devemos opor aqui "linguagem do domínio" e "linguagem da liberdade". Com efeito, faz parte constitutiva da liberdade do homem, pelo anteprojeto lingüístico, levar o pensamento a dar ordens e, assim, criar obras.

8. Entretanto, há aqui dois perigos que antropologicamente hão de ser

levados em conta, de modo expresso, perigos, de fato, sempre reais para o homem vivente que enuncia e, por isso, reelabora o mundo por suas obras.

Faz parte da facticidade da existência "ter cada coisa dois lados", ou

seja, que, com a possibilidade do justo, também a do injusto já tenha sido dada, que "andar ereto" não exclui, a priori, "pau torto".

Pertence, porém, à fé em Deus que o homem s,e torne sensível aos

conflitos, tensões e perigos que toda boa doação traz consigo. Mas é algo bem estranho ao mundo não se notar que os perigos propriamente ditos deste mundo são, por via de regra, conseqüência do positivo, da riqueza do nosso

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ser. O mesmo se diga da fé e da piedade. Na verdade, é maldição do ato mau produz!r continuamente o mal. Mas, que a. boa ação também se pode tornar maldição em suas conseqüências, que na riqueza da fé se pode, por exemplo, perecer e, com isso, arruinar os outros; que, por causa da liberdade, a gente se possa tornar um tirano, isso são conflitos cujo desconhecimento sena testemunho de, pelo menos, uma ingenuidade teológica sem par. O diabo é "uma parte daquela força que sempre quer o mal e sempre faz o bem" (GOETHE, Fausto, I). O homem, ao contrário, é antes a origem daquela força que quer o bem, mas que com o bem cria o mal.

Eis por que, justamente quando se trata da boa essência do homem,

do homem criado por Deus como "muito bom", têm que ser agudamente encaradas as sempre concriadas possíveis ameaças e perigos do ser humano. A fé justificadora faz-nos para isso especialmente sensíveis.

Uma das ameaças e um dos perigos do homem como ser lingüístico é

a tendência, que está na estrutura enunciativa da língua, para a elaboração total do mundo. Então, o próprio mundo, como um todo (conforme a estrutura já apontada "da distinção numeradora - decisão condicionalmente eletiva - ordem -enunciado - ação - obra"), seria exclusivamente uma obra humana, sob todos os pontos de vista, um mundo artificial. Em grande parte já vivemos um mundo que se encaminha para isso. Não é difícil diagnosticar nessa tendência uma forma moderna da gnóstica evasão do mundo, uma forma de desprezo do mundo que, junto com a naturalidade do mundo, ameaça abandonar também a humanidade do homem, em benefício de um super-homem, que se envergonharia de sua corporalidade e que se ergueria sobre o mundo como sua obra.

O fato de esse super-homem não vingar funda-se no saudável desejo

dado ao homem por um Criador de unir-se, numa união repleta de prazer, com uma outra pessoa humana.·A esse agradável impedimento acrescenta-se, porém, constitutivamente, o outro traço fundamental da linguagem, por força do qual o homem, como objeto da fala, é homem simplesmente. Ao prazer humano da carne pertence a linguagem do amor, na qual os homens se percebem como objetos da fala, e com os quais os outros não somente quer,em falar (logo, não só querer dizer mesmo alguma coisa), mas antes; muito mais, desejam que o outro ouça e, assim, se perceba a si mesmo como objeto da linguagem. Na linguagem do amor, o homem permanece fiel à terra.

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Com a ameaça, porém, da linguagem-mundo-obra-referência, que se funda no enunciante ser humano que fala, liga-se um segundo perigo e ameaça, opostos a ela, e que resultam para o homem operante. O homem que segue o traço fundamental da linguagem precisa tornar-se ativo. Como indivíduo, pode subtrair-se ao império da ação. Mas a humanidade socializada na linguagem não o pode. Precisa produzir, se não quiser perecer. E, por outro lado, justamente por causa' dessa necessidade de produzir, ele está ameaçado de perecer. Esta aporia, que principiou no século XIX e hoje se impõe, poderia ser formulada teologicamente, dizendo-se que o homem não pode mais livrar-se do contexto de suas obras (da produção). A realidade das relações com sua obra mantém-no preso. A obra julga a pessoa. Domina-a.

A Antropologia teológica não pode tornar reversível, simplesmente

por conselhos práticos, essa relação entre pessoa e obra (fazendo uso de uma formulação luterana). Ela tem que lembrar, contudo, que o homem é o ser a quem primeiramente Deus se dirigiu (um ser falado por Deus). Como tal é pessoa. Ser pessoa é possibilidade de ser falado por um oposto, o qual, no meio da incessante relação entre pessoa e obra, ou pessoa e produção, ainda se distingue uma vez mais como um Eu-Mesmo. A palavra da justificação, que constitui de novo o homem, escatologicamente, dá-lhe um oposto que lhe fala, que lhe dá importância como pessoa, apesar de suas obras, reconhecendo-o e deixando-o valer por si. Assim como a necessidade de produzir e a correspondente relação inseparável da pessoa e obra não são próprias do macaco, mas do homem, também é, igualmente, humana a possibilidade de ser interpelado por um oposto pessoal, que distingue novamente de suas produções a pessoa humana obrigada a produzir. Essa possibilidade humana de ser interpelado por outrem constitui a implicação ontológica da justificação pela palavra de Deus. A possibilidade humana de ser interpelado por um oposto que o absolve de suas obras (bem entendido, não suprimindo a conexão entre cR pessoa e a obra, mas sim, o domínio da obra sobre a pessoa) constitui o homem livre parceiro de Deus.

Isso significa que o homem, como interpelado, em face à realidade do

que ele, como enunciante, elabora, recebe possibilidades que não se deixam elaborar, mas, somente, usufruir. Possibilidades que não se deixam elaborar, que, portanto, não se deixam realizar em obras, são aberturas que se preenchem a si mesmas. Possibilidades que, em vez de elaborar, só se pode usufruir, não ficam velhas nem se gastam com o tempo, e são preenchidas, quando se esvaecem. O que distingue essas possibilidades é que - ao contrário da realidade, que pretende persistir - elas podem perecer. Possibilidades que

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não se pode elaborar (uti), mas só usufruir (frui),perecem sem (como conseqüência do uti) gastar-se. Existenciais básicos dessas possibilidades são a alegria e a gratidão. A verdadeira alegria conhece seus limites; ela pode passar. E gratidão 'Concreta refere-se a isto ou aquilo, mas nunca a tudo.

Portanto, como um ser a quem se pode falar, o homem, como um ser

que fala, é um ser da possibilidade, enquanto, em sua enunciação, como ser falante, é um ser da realidade. Por isso, para o ser. humano falante a possibilidade é ontologicamente anterior à realidade (contra a opinião de ARISTÓTELES).

Gostaria de esclarecer isso num fenômeno decisivo para a

humanidade do homem, a saber, na arte do esquecimento, cujo alto valor se consegue compreender. O homem enunciante', que tende à ação e cria, se ergue monumentos comemorativos por meio de suas obras, está empenhado em não esquecer. Por isso alimenta o computador. O que não foi esquecido, fica sabido. E saber é poder. A possível conseqüência, por assim dizer, é que o passado se torne tirano do presente e do futuro. Armazenar saber significa armazenar passado. Se não tivéssemos computadores, o homem se sobrecarregaria de passado por amor ao saber. O fato de termos computadores não é, na verdade, garantia do contrário. O computador não precisa, mas pode contribuir para que futuramente apenas o passado nos governe.

O homem a quem se fala, ao contrário, conhece o jogo alternado do

lembrar e esquecer. O homem interpelado a propósito de sua pessoa pode esquecer suas obras com vistas a sua pessoa. Pode, assim, deixá-las para trás, e, desse modo, tornar-se livre para o futuro. Também com vistas ao saber, pode-se dizer que só a arte de esquecer forma realmente o espírito humano de tal maneira que ele possa compreender o mundo. Quem não esquece nada, é um homem sem formação. Compreenderá pouco. Daí não se há de concluir que, quem esquece tudo, só por isso já seja um homem formado e compreensível. Mas uma coisa é evidente: que um homem que não pode esquecer, também não se pode alegrar. Interpelar alguém sobre si mesmo pode ser, de fato, bem desagradável Mas, interpelar um homem em nome de Deus sobre si mesmo significa absolvê-lo de seu passado, adjudicando-lhe novas possibilidades e, portanto, também nova força de esquecimento. Isso é humano. Pois, enquanto pessoas humanas se falam assim uma à outra, correspondem ao Deus que os justificou como seres humanos e com isso os tirou do nada, que nós nos realizamos a nós mesmos. O homem é devedor de si

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a esta palavra criadora, isto é, que lhe proporciona novas possibilidades. Do agradecimento, em que se exprime o ser humano agradecido a Deus, faz parte também, entre homens, a distinção entre o que é digno de recordação e aquilo que, não levianamente, mas com consolo, pode ser entregue ao esquecimento. De Deus se diz que não guardará nenhuma lembrança dos pecados (ler 31, 34); do homem, igualmente, se diz que deve esquecer a culpa que lhe foi perdoada. Semelhante esquecimento, por certo, não se pode ordenar. Deve-se poder efetuá-lo. O homem pode fazê-lo, se um novo futuro lhe for adjudicado, tornando-se, assim, possível reelaborar o passado e o presente. Poder esquecer é a maior possibilidade criadora do homem como ser que fala. Nela o homem elabora o amor experimentado em liberdade própria.

9. Sintetizo. A verdadeira essência do homem é sua correspondência

(possibilitada. por uma palavra que lhe fala) ao movimento pelo qual Deus, em Jesus Cristo, desceu até o homem. Esse movimento divino para baixo, para o homem, impede a este a subida à divindade. Assim como Deus se manifestou como Senhor no abaixamento, assim também é só na participação desse abaixamento que a imagem de Deus chegará à "glória dos filhos de Deus" (Rom 8, 21).

Nesse sentido, a finalidade de toda e qualquer Antropologia teológica,

cuja fundamentação tentamos estabelecer aqui, deve ser apontada como a contestação da divindade do homem. Com efeito, é da essência do homem que ele possa querer divinizar-se; mas até mesmo qualquer tendência à divinização deve ser combatida pela Antropologia teológica. A necessidade da' negação da divindade do homem decorre da tendência (não desconhecida nem para os incréus) da existência humana a fundamentar-se a si própria e a caricaturar-se justamente assim. - "Non potest homo naturaliter velle deum esse deum, immo vellet se esse deum et deum non esse deum" (O homem pode, portanto, naturalmente, não querer que Deus seja deus, antes quereria ser ele mesmo Deus e que Deus não fosse Deus. LUTERO contra G. BIEL, na "Disputatio contra scholasticam theologiam", ed. de Bonn, vaI. V, pág. 321, e na ed. de Weimar, 1, pág. 225).

Que a contestação da divindade do homem é possível, depreende-se

do fato de Deus se ter tornado homem no ser de Jesus Cristo. Deixar que em Jesus Cristo Deus se torne homem, e, justamente por isso, não deixar que o homem se torne Deus - eis a tarefa antropológica indicada ao pensamento pela fé cristã. Uma contestação da divindade do homem com base na humanidade de Deus seria a mais 'exata exegese da humanidade do homem.

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Cur deus homo? Por que Deus se tornou homem? A resposta

antropológica a esta pergunta é, na sua forma negativa, a contestação da apenas aparente antítese entre as duas sentenças "homo homini deus" e "homo homini lupus". A resposta positiva, porém, não poderia ser, tampouco, "homo homini Christus" (o homem é Cristo para o homem) (com uma invocação não muito acertada de LUTERO, essa frase· aparece, na atual teologia, citada de bom grado como princípio antropológico: "Von der Freiheit eines Christenmennschen", ed. de Bonn, vaI. 11, pág. 25, e na ed. de Weimar, 7, pág. 35). O homem correspondente a Deus é antes aquele que fica entre os homens, por eles e para eles, aquele que, humano entre eles se torna mais homem: homo homini homo - o homem um homem para o homem.

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