O Homem Em Farrapos _ Revista Portfolio EAV

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    O homem em farrapos

    No Brasil, da literatura de Euclides da Cunha e Clarice Lispector ao cinema de

    Glauber Rocha, passando pela arte de Flvio de Carvalho e de Hlio Oiticica, os

    mendigos so personagens fundamentais para se repensar o lugar da

    esttica

    Texto

    Gonzalo Aguilar

    Pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires

    Autor de Poesia brasil eira concreta e Otros mundos, ensayo sobre el nuevo cine argentino

    Imagens

    Arquivo Gonzalo Aguilar

    Traduo

    Marlia Martins

    expediente (http://www.revistaportfolioeav.com.br/?page_id=5) editorial (http://www.revistaportfolioeav.com.br/?cat=9)

    carta aos leitores (http://www.revistaportfolioeav.com.br/?page_id=6) sees

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    Que coisas carregam os mendigos, os homens em farrapos? Tm to

    pouco valor que as consideramos restos e dejetos? To desprezveis que

    as desenhamos e no nos importa o que depois faro com elas? Ou h

    algo ali, apesar das aparncias, que valioso e que vale a pena resgatar

    da lixeira? O escritor Euclides da Cunha compreendeu que havia ali algo

    valioso e escreveu um livro, Os sertes, a partir de um acervo de trapos,

    como chamou os habitantes de Canudos. Ele internou-se nesse acervo e

    investigou no s o espetacular processo mimtico pelo qual os soldados

    republicanos tambm voltavam com fardas em trapos, como tambm se

    interessou por essa comunidade de miserveis que misturavam-se emconjunto estranho. Todas as idades, todos os tipos, todas as cores [...]

    Acervos repugnantes de farrapos e molambos; trapos multicores e

    imundos, de fardamentos velhos. Em Os sertes, o resto, o descartvel,

    o trapo fundamental para pensar o porvir da civilizao: mais, nossas

    repblicas no podem pensar-se sem o homem em farrapos, que pe em

    questo todo o idealismo e traz a potncia do concreto. A lei superior de

    Euclides se transforma, uma vez que se encontra com esse homem em

    farrapos, margem da lei, da nao, da sociedade, da religio oficial, do

    presente e da civilizao.

    Se o homem em farrapos fundamental para pensar a fundao dapoltica, da civilizao e do humanismo, tambm um meio para refletir

    sobre o esttico. Porque esse desvio que impe (da economia, da

    temporalidade, etc.) permite pensar esse lugar (convert-lo em

    antagonismo ou em um tipo particular de antagonismo). J disse Walter

    Benjamin que o catador de papis, como o flneur, um protesto contra o

    processo produtivo e a figura mais provocadora da misria humana. Em

    A bela e a fera, um de seus ltimos escritos, Clarice Lispector confronta

    Carla, a protagonista feminina, com um mendigo sem nome. No por

    acaso, ela vem de uma sesso de cosmtica, uma esttica do aplique e

    do artifcio, e enfrenta um mendigo que traz outra economia, outra esttica,

    outro modo de vida: O mendigo gastava tudo o que tinha, enquanto o

    marido de Carla, banqueiro, colecionava dinheiro. Para Carla, o homem

    em farrapos o escndalo, a ferida aberta, todos os seus medos. Para

    Clarice, a sada da literatura (me apaixonei subitamente por fatos sem

    literatura) e o acesso a um fora, no qual as formas da esttica cedem,

    diante das foras da vida.

    A figura do homem em farrapos pode ser rastreada em incontveis relatos

    e obras, mas no Brasil teve o seu terico: Flvio de Carvalho. Seu livro A

    moda e o novo homem, escrito em 1957, a primeira aplicao

    consequente e sistemtica da Errtica, cincia apregoada por Oswald deAndrade em sua tese de 1954. Flvio observa os objetos da moda como

    sobrevivncias-vestgios que adquirem sentido quando so deslocados

    de sua posio marginal (um colar, umas meias, a moda mesma) para um

    lugar central e transforma o vestgio anacrnico em sintoma, revelando

    uma contradio que torna produtiva a leitura. Algo semelhante fez Oswald

    quando, ao interpretar a tela Navio de migrantes, de Lasar Segall, no

    concentra o seu olhar na pomba (como havia feito Mrio de Andrade para

    ler a obra como uma alegoria do Brasil como terra de hospedagem) e sim

    nos farrapos que fazem do pintor um heimatlos, ou seja, um aptrida

    (termo pelo qual, na Alemanha nazista, designava aquele que perdia sua

    ptria, sua cidadania e seu lugar). Exatamente escreve Oswald em

    Feira das sextas essa palavra brbara, heimatlos, exprime Segall

    como nenhuma outra. O homem em farrapos , nesse texto de Oswald, a

    cifra da histria do sculo 20. E tanto nele quanto em Flvio de Carvalho

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    a permanncia de um ncleo anrquico o que ser reatualizado por

    diversos artistas brasileiros: Hlio Oiticica, os tropicalistas, Glauber

    Rocha.

    No esquema de Flvio, ento, o homem de farrapos o estado anti-

    hierrquico de comeo. No a classe operria, e sim o desclassificado,

    o marginalizado, o homosacer, o contrrio do homem investido de

    autoridade. A oposio autoridade que o define ser a fonte sadia

    (Oswald) do anarquismo. O homem em farrapos a relao entre o

    presente e o primitivo, entre o social e a origem, com sua componenteanarquista que os marxistas, nos anos 60, no puderam entender, no s

    porque a revalorizao dessa figura reativa uma viso populista como

    tambm porque se trata da reivindicao do lumpenproletariat(lumpen

    quer dizer farrapo em alemo). E lumpensempre ser, na tradio

    marxista, um elemento abjeto e inorgnico que no pode ser utilizado

    pelas foras da revoluo. o aventureiro, antes do militante, o real antes

    do ideolgico, o catico antes do programtico. Imprevisvel, como a fera

    de Clarice.

    A do homem em farrapos, segundo Flvio, a moda mais durvel, e vem

    da o seu carter original que atravessa os tempos e se renova a cadapoca. Em uma conferncia de 1967, proferida como marco dos estudos

    de Tropicologia propostos por Gilberto Freyre, Flvio sustentou que a

    presena de farrapos renasce com os hippies californianos. Morto em

    1973, o autor de A moda e o novo homem no pde ver a ltima

    ressurreio anarquista do homem em farrapos: o movimentopunk.

    Tampouco, curiosamente, Flvio de Carvalho viu Hlio Oiticica, artista com

    o qual tem mais de um ponto em comum, apesar da diferena radical entre

    o expressionismo de um e o construtivismo do outro. Flvio e Hlio foram

    contemporneos, mas at onde sei nenhum dos dois faz referncias ao

    trabalho do outro. No entanto, Oiticica foi quem melhor compreendeu que ofarrapo era uma moda no no sentido do desfile numa passarela (ainda

    que isso no estivesse excludo) e sim como vnculo com o presente, o

    atual, o fugidio, o performtico. O instinto de data do atual, segundo

    Adorno ou o sex appealdo inorgnico nas palavras de Walter Benjamin.

    Do homem de farrapos vem a homenagem a Cara de Cavalo e os

    Parangols. O primeiro o homem morto misturado ao negro da terra; os

    outros so a possibilidade de se elevarem pelos ares com a dana, de

    converter um drap tombem asa-delta do xtase, como a chamou

    Haroldo de Campos. Assim, o Parangol que vestiu Nildo da Mangueira

    (Parangol 4, capa 1) utiliza telas de serrapilheira, com uma legendaescrita mo (Da adversidade vivemos), que assinala o modo como a

    vida prolifera.

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    Marginlia, trabalho de Helio Oiticica

    O homem de farrapos no est apenas na literatura e na arte, ele tambm

    se apresenta no cinema. A pelcula mais anarquista de Glauber Rocha,

    refiro-me a Cncer, constitui-se de uma subida ao morro para encontrar o

    lumpeninterpretado por Antnio Pitanga. Cncer tem a peculiaridade de

    mostrar a subida ao morro por pelo menos seis personagens da cultura

    brasileira de ento: os atores Odete Lara, Hugo Carvana e Antnio

    Pitanga; o artista Hlio Oiticica; o agitador cultural Rogrio Duarte e o

    diretor de cinema Glauber Rocha. Essa subida ao morro no se faz sem

    consequncias e, segundo Ivana Bentes, marca uma nova fase na

    representao do povo no cinema brasileiro: Um novo personagem da

    cultura, no mais o Negro Anto de O drago da maldade contra o santo

    guerreiro, ou o povo humilhado e massacrado de Deus e o diabo na terrado sol, Terra em transe, etc. Todos esses filmes j apontavam uma

    sada: a pedagogia da violncia, a volta por cima pelas armas, a soluo

    coletiva. Mas a partir de Cncer a humilhao e a misria tm outra

    contrapartida. A violncia tambm perdeu seu sentido poltico. Como

    pens-la?

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    Rogrio Duarte, em cena do fi lme Cancer, de Glauber Rocha

    As relaes do que Ivana Bentes chama, nesse mesmo artigo, de

    psicodrama interclassista traduzem-se em triangulaes que marcam a

    instabilidade dos antagonismos e da clausura da sada dialtica porque osconflitos nunca se resolvem em uma sntese, e sim no vrtice irredutvel do

    negro, do pobre, do favelado, do homem em farrapos interpretado por

    Antnio Pitanga. ele quem vai articulando as diferentes triangulaes

    nas quais, finalmente, nenhum contato, nenhum intercmbio e nenhuma

    comunicao so possveis. A trade no dialtica, quer dizer,

    despregada no tempo e progressiva, e sim esttica e espacial: a situao

    no se transforma, nem mesmo com os assassinatos.

    Em Cncer, no h camponeses e nem operrios: o personagem mais

    pobre (interpretado por Antnio Pitanga) um desclassificado, um

    mendigo urbano, que percorre as ruas gritando: Fui um operrio. Seudeambular pela rua, numa das cenas do filme, muito significativa, quando

    se compara com a coreografia de Terra em transe. Porque, enquanto

    nesse filme os personagens se dispem como se estivessem num cenrio

    e vo fazendo sua entrada como se se tratasse de uma obra de teatro, em

    Cncer, a equipe de filmagem e o ator so guiados pelo improviso e

    interagem livremente com os transeuntes. O marginal faz sua entrada no

    plano e com ele toda a contingncia do forasteiro: no se relaciona com os

    outros para doutrin-los ou para associar-se em uma luta contra o poder,

    mas aproxima-se para pedir esmola. Assim a sua primeira cena no

    filme, rodada no meio da rua, assediando aqueles que passamcasualmente por ali.

    Mas a situao do ator que se faz passar por mendigo e os que passam

    pela rua espontnea, no o roteiro escolhido para rodar a sequncia.

    Por qu? Em que consiste a rua em que se move Jos Pitanga? O

    personagem se move entre dois marcos muito preciosos: uma sala de

    cinema e um negcio de venda de livros (de fato, pede dinheiro ao

    livreiro). No cinema, projetam The ballad of Josie (A indomvel), com

    Doris Day e Peter Graves, uma comdia inconsequente, que configura a

    sala do cinema como um lugar passadista no qual melhor no entrar (um

    cinema desvinculado da histria). Na livraria, os livros esto menosdesatualizados, ainda pode-se ver O problema chins, de Roger

    Garaudy, que vinha acompanhado de uma antologia de escritos de Mao-

    Ts Tung. De todo modo, importam menos os ttulos que o carter

    antilivresco, brbaro e anti-intelectual que assume o marginal. Ou seja, o

    marginal est ali para explodir a cultura da qual no faz parte. Derrubar as

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    prateleiras, as esttuas, as vidraas, louas, livros, sim!, poderia ter dito o

    personagem de Cncer, citando o discurso de Caetano Veloso em

    Proibido proibir.

    A cena sucede a de uma festa chic (em que tambm se testemunha a

    presena do cinema, neste caso atravs de uma cmara que est

    registrando o evento) e a do assassinato de Hugo Carvana pelas mos de

    Jos, para juntar-se com Odete Lara. A cena que segue o deambular nas

    ruas no mais esperanosa: Jos mata Rogrio Duarte e, depois de

    brigar pelo colar de presas do morto, faz o mesmo com Hlio Oiticica (ospersonagens so chamados aqui pelos nomes dos atores).

    A ltima frase do marginal, nesse sentido, contradiz todo o cinema que

    Glauber havia feito at aquele momento. Porque se, em sua obra anterior,

    a violncia, por mais arcaica e informe, sempre podia ser recapturada e

    orientada para novos fins (com uma ambiguidade que, de todo modo,

    salva essas histrias do dogmatismo e do mero doutrinamento), em

    Cncer, a violncia permanece anrquica e destrutiva. Quero matar o

    mundo, o mundo no presta!, grita Jos. O niilismo que, segundo

    Nietzsche, surge da concluso de que no h sentido algum pode admitir

    formas passivas (como no Nirvana) ou destrutivas, como o caso dopersonagem de Jos. Mas como entender essa destruio e esse niilismo

    no contexto em que transcorre o filme?

    A ltima cena tem lugar no morro e repete o mesmo encontro da primeira

    cena entre Rogrio Duarte, Hlio Oiticica e Antnio Pitanga (Jos).

    Rodeados por passistas que cantam um samba durante toda a cena, as

    atuaes oscilam entre o improviso e o riso involuntrio, que no condiz

    com o drama que se desenrola: quando Rogrio Duarte diz a Jos que se

    conhecem, que ele lhe havia pedido dinheiro e que os dois so amigos,

    este reage dizendo: O senhor est me confundindo com outro. Duarte,

    que carrega um chamativo colar de dentes de javali, pergunta ento:Como seu nome? e Jos se enoja, violentamente. A tal ponto que toma

    o revlver de Oiticica e, enquanto grita Eu preciso te matar!, assassina

    Duarte, que por sua vez profere um ltimo discurso sobre a solido

    tropical. Jos revista os bolsos do cadver e no encontra nada e decide

    ficar com o colar. Oiticica trata de impedi-lo ( meu, diz) e tambm

    assassinado por Jos, antes de proferir o grito final: Eu quero matar o

    mundo, o mundo no presta! Se se compara essa cena com a que se

    produz no princpio do filme, a mudana de Jos radical: se a primeira

    pedia trabalho e Duarte ao que chama Doutor o tratava de

    vagabundo; na ltima se sai de qualquer interpelao e recorre violncia fsica. O discurso de Duarte sobre a democracia grega (10% de

    gente livre e o resto escravos) e sobre a discriminao (no Brasil se

    discrimina o crioulo, e no o vagabundo) marcava claramente os papis

    que o burgus bomio, interpretado por Rogrio Duarte, pretendia nessa

    triangulao. O imperativo categrico da poca (seja marginal) tinha se

    tornado confuso, idealista, impossvel: Duarte e Oiticica podiam subir ao

    morro, mas ali no os esperava o dilogo e a compreenso, e sim a

    destruio e a morte. Pitanga, que encarna o personagem que no

    marginal por preceito algum, mas apenas por ter nascido num bairro

    pobre, no est disposto a assumir a segunda parte do imperativo

    categrico (seja heri). Sua heroicidade, em todo caso, a que assume aautodestruio como sada.

    O conflito surge ento do desencontro de dois tipos de marginalidade: a

    artstica e a social. O bandido que Duarte e Oiticica consideravam um

    amigo os desconhece e se mantm ntegro em seu niilismo. O

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    desencontro ficcional no deixa de ser perturbador: acontece pouco

    antes da Passeata dos Cem Mil, em que as ruas da cidade reuniram

    estudantes, artistas e outros setores sociais (a filmagem foi em maio e a

    passeata foi em junho). A violncia j no se origina no poder ou no

    governo ditatorial, mas vem de um marginal: j no h esttica da fome e

    sim violncia da fome. A violncia no est confinada esfera do

    esttico, como disse Ismail Xavier (no livro Serto mar: Glauber Rocha e

    a esttica da fome), mas irrompe sem mediao alguma: esse o

    sentido do plano-sequncia aberto ao exterior, que a base de Cncer.

    E da Jos atirar-se sobre esse colar de dentes que, para ele, poderiasaciar sua fome (necessito comer o seu argumento para ficar com ele)

    e que, no colo de seu antagonista uma referncia antropofagia que o

    tropicalismo havia voltado a pr em circulao. No colo de Duarte um

    objeto cultural de distino; nas mos de Jos um objeto para ser

    vendido e transformado em comida.

    luz da teoria de Flvio de Carvalho sobre a vestimenta, o colar admite

    outra interpretao. O colar , segundo Flvio, um vestgio da origem sob

    as joias e de sua posterior sequncia hierrquica. Usados primeiramente

    para impedir a fuga de prisioneiros, os colares foram depois usados como

    ornamento luxuoso por todos os reis e rainhas europeus. O pescoorecebeu um tratamento todo especial na evoluo das joias e so as suas

    origens de dor e de sofrimento que levam ao brilho do colar, escreve

    Flvio. Sobrevivncia das amarras, o colar feito joia se converte em

    expresso da fora vital mais importante, a vaidade. Mas trata-se de uma

    vaidade que se inscreve sobre um processo de transformao da

    submisso em exibio, em gasto, em luxo.

    Tambm Caetano Veloso o utilizou em diversas oportunidades: quando

    cantou Proibido proibi r, no III Festival Internacional da Cano, e em sua

    participao em Os herdeiros, de Cac Diegues. Assim descreve Zuza

    Homem de Melo a vestimenta de Caetano: Com sua cabeleira Jimi

    Hendrix, vestia um traje tipo cheguei, proveniente da butique Ao

    Dromedrio Elegante, de Regina Boni: uma camisa de plstico verde, um

    colete prateado, colares de fios eltricos e correntes metlicas com dentes

    de animais pendurados: a prpria antibeleza.

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    Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentando Proibido proibir

    Em uma entrevista para Pedro Alexandre Sanche da Revista Vice

    (online), Regina Boni recorda: E fiz tambm a roupa do Caetano em

    Proibido proibir, que era de vinil verde-limo. Ele era magrrimo, tinha

    uma tarja preta aqui do lado, ficava mais magro ainda. Uma blusa de vinil

    preta, de manga comprida, fechada at aqui. Um cinturo de cobra

    marrom escuro, com uma fivela de prata partida. Na hora a Ded enfiou

    nele uns colares de dente de javali, ficou um extraterrestre, um canibal.

    Caetano Veloso, na poca da Tropiclia

    Extraterrestre e canibal: o colar pode ser lido como um dos emblemas do

    tropicalismo. A evocao antropofgica evidente assim como a violncia

    que supe essa vestimenta sobre a forma do corpo: os dentes no colo

    elevam o estmago e o sexo e descem a boca (a dentadura). No centro

    do corpo, est o componente selvagem do dente e da boca, rgo

    liberador segundo Georges Bataille. Entre os homens civilizados

    escreve no livro A conjurao sagrada (Ensaios entre 1929 e 1939) a

    boca perdeu inclusive o aspecto proeminente que tinha entre os

    selvagens. Essa potncia bestial e selvagem da boca expressa no

    grotesco, ao qual se encontra ligada aos baixos corporais topogrficos: a

    boca a porta aberta que conduz aos infernos corporais (ver Mikhail

    Bakhtin, A cultura popular na Idade Mdia: o contexto de Franois

    Rabelais; no mesmo livro, Bakhtin afirma: A imagem da bocarraescancarada associa-se organicamente s da deglutio e da absoro,

    por um lado, e s do ventre, das entranhas, do parto, do outro). Glauber

    soube ver a dupla violncia desse colar e o deixou nas mos do homem

    em farrapos: o colar no vale mais nem menos; ele tem outro valor.

    Compreender em que consiste uma das maneiras de se abrir ao mundo.

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