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Universidade Federal do Rio de Janeiro O HOMEM DA PÓS-MODERNIDADE: A LITERATURA EM REUNIÃO Madalena Aparecida Machado 2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O HOMEM DA PÓS-MODERNIDADE: A LITERATURA EM REUNIÃO

Madalena Aparecida Machado

2008

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O HOMEM DA PÓS-MODERNIDADE: A LITERATURA EM REUNIÃO

Madalena Aparecida Machado

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins.

Rio de Janeiro

março de 2008

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O homem da Pós-modernidade: a literatura em reunião Madalena Aparecida Machado

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Aprovada por:

__________________________________________

Presidente, Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

__________________________________________

Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ

__________________________________________

Profª Drª Marta Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ

__________________________________________

Prof. Dr. Dante Gatto – UNEMAT

__________________________________________ Profª Drª Rita de Cássia Miranda Elias (Centro Universitário da Cidade)

__________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Pinheiro Prioste – UERJ (suplente)

__________________________________________ Profª Drª Vera Lúcia de Oliveira Lins – UFRJ (suplente)

Rio de Janeiro

março de 2008

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Machado, Madalena Aparecida S243ma O homem da pós-modernidade: a literatura em reunião / Madalena Aparecida Machado. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. 500 f. ; 30 cm. Orientador: Ronaldo Lima Lins. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura. Bibliografia: f. 491-500. 1. Saramago, José,1922- . O homem duplicado – Crítica e interpretação. 2. Saramago, José, 1922- . O homem duplicado – Filosofia. 3.Romance português – Séc.XXI – História e crítica. 4.Teoria literária. 5. Literatura – Filosofia. I. Lins, Ronaldo Lima. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III.Título. CDD 869.37

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IN MEMORIAM

Tallys Rodrigo de Souza Freitas e Tadeu Ronan Machado, por um sorriso só esboçado, o

gesto não concluído e a conversa que ficou para depois.

AGRADECIMENTOS:

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À UNEMAT pela liberação remunerada que muito contribuiu para o bom andamento deste

trabalho;

À FAPEMAT pela concessão da bolsa de Doutorado, valioso auxílio na consecução da tese;

À UFRJ pela acolhida respeitosa com minha proposta de estudo;

Ao corpo docente da UFRJ, especialmente:

Prof. Ronaldo: por ser no Rio de Janeiro de muitos portos, meu porto seguro;

Prof. Ronaldes: há pessoas que nos ensinam por um dia e outras para a vida inteira.

À minha família, pelo apoio e compreensão sempre.

TRADUZIRTRADUZIRTRADUZIRTRADUZIR----SESESESE

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Ferreira Gullar

Uma parte de mim é todo mundo:

outra parte é ninguém: fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão: outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.

Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta.

Uma parte de mim

é permanente: outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem: outra parte, linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte _ que é uma questão de vida ou morte –

será arte?

RESUMO

O HOMEM DA PÓS-MODERNIDADE: A LITERATURA EM REUNIÃO

Madalena Aparecida Machado

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Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação da

Faculdade de Letras, Ciência da Literatura, Teoria Literária, da Universidade Federal do Rio

de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em

Ciência da Literatura, Teoria Literária.

O estudo do homem na Pós-modernidade tomando por base o romance O homem

duplicado, suscita abordagens variadas dada a complexidade temática. A pesquisa dialoga

com as várias vertentes teóricas que se ocupam em compreender o humano e na dialética

priorizamos o encontro e não a síntese. Vemos o personagem destituído de qualquer suporte

referencial numa jornada de entendimento pessoal; no erro, a errância despista caminhos,

oferece outros e nas múltiplas escolhas a maior delas é saber de si. Com sensibilidade

diferenciada, o conhecimento por se fazer engloba ignorância, inexatidão e o imprevisível que

o habitante da narrativa negava antes de ser abalado nas suas certezas. Olha no espelho e não

se vê; se depara com o abismo sem vislumbre do outro lado, então mostra a humanidade

característica do tempo em processo, dimensionada pelo vazio. O corpus literário de José

Saramago bem como o duplo em vários outros escritores de diferentes épocas e estilos

referendam nossas hipóteses de ver na ambigüidade do ser fictício, um retrato da figura

humana na contemporaneidade.

Palavras-chave: Pós-modernidade; Homem; Literatura; Filosofia; Teoria

Rio de Janeiro março, 2008

RESUME

L’HOMME DE LA POST-MODERNITÉ: LA LITTÉRATURE EN RÉUNION

Madalena Aparecida Machado

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Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

Resume da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação da Faculdade

de Letras, Ciência da Literatura, Teoria Literária, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da

Literatura, Teoria Literária.

L’étude de l’homme dans la Post-modernité qui prend pour base le roman O homem

duplicado, suscite les approches les plus variées étant donnée la complexité thématique. La

recherche dialogue avec plusieurs inclinaisons théoriques qui essaient de comprendre l'être

humain et dans la dialectique nous avons mis en relief la rencontre au détriment de la

synthèse. Nous voyons le personnage privé de toutes sortes de support referentiel dans une

journée de compréhension personnelle; dans l’erreur, l’errance se trompe de route, en offre

d’autres et parmi les choix multiples le plus grand c’est connaître soi-même. Avec la

sensibilité différenciée, la connaissance à se faire inclut l’ignorance, l’inexactitude et

l’inattendu que l’habitant du récit a nié avant d’être affecté dans leurs certitudes. Il regarde

dans le miroir et ne se voit pas; il trouve l’abîme sans la vision momentanée de l’autre côté,

alors il montre l’humanité caractéristique du temps en processus, dimensionnée par le vide.

Le corpus littéraire de José Saramago aussi bien que le double dans plusieurs autres écrivains

de temps différents et styles contresignent nos hypothèses de voir dans l’ambiguïté de

l'existence fictive, une image de l'illustration humaine dans la contemporaneité.

Mots clés: Post-modernité; Homme; Littérature; Philosophie; Théorie

Rio de Janeiro março, 2008 SUMÁRIO

01 – INTRODUÇÃO................................................................................................................11

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02 – CAPÍTULO 01: O HOMEM DUPLICADO, HOMEM PÓS-MODERNO?...................16

03– CAPÍTULO 02: EM QUE SE DISCUTE ELEMENTOS DE SENSIBILIDADE N’O

HOMEM DUPLICADO..............................................................................................72

04 – CAPÍTULO 03: DIALÉTICA DE SI: A CONSCIÊNCIA EXACERBADA................126

05 – CAPÍTULO 04: HUMANO, SIMPLESMENTE HUMANO.........................................227

06 – CAPÍTULO 05: SER E AGIR EM PROCESSO............................................................279

07 – CAPÍTULO 06: HOMEM ESCARMENTO..................................................................380

08 – CAPÍTULO 07: O HOMEM LITERÁRIO E O SENSO COMUM...............................433

09 – CONCLUSÃO................................................................................................................487

10 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................491

01 – INTRODUÇÃO:

A tese faz a junção entre Ficção e Teoria, tem por objetivo buscar saber modos e

configurações do homem presente na atual Literatura. Ao optarmos pelo texto de José

Saramago, o fazemos por acreditar que sua escrita ficcional nos remete às interpelações

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bastante intensificadas na atualidade, resumidas em uma só: Quem sou eu? Ao centrar nossas

inquietações no romance O homem duplicado, procuramos entabular um diálogo com a

Filosofia em contraposição aos poucos trabalhos sobre o livro que apontam exclusivamente a

questão identitária em seu bojo; nosso nível de leitura procura extrapolar tal limite. O que

parece à primeira vista uma espécie de ecumenismo teórico de nossa parte interpõe-se na

escrita a favor de uma visão literária afinada com o tempo presente e seu plano irresoluto.

Entendemos como Pós-modernidade um aspecto da cultura caracterizado pela

incredulidade em relação ao metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões

atemporais e universalizantes. A deslegitimação da noção de ordem é outro ponto a se

destacar ao sublinharmos uma definição teórica para o que adotamos enquanto Pós-

modernidade. Se há o risco de nomeação para a rubrica do Pós-modernismo enquanto

sistema, também se faz necessário vê-lo como algo que organiza nossas vidas, nossas

manifestações culturais e esforços somados no intuito de compreendê-lo. Quanto à seleção de

autores tão díspares situados na esfera filosófica, a duplicidade do Pós-modernismo tem a nos

ensinar que é o desafio da interrogação o motivo condutor. Conscientes de que estamos

envolvidos como a própria idéia do pós-moderno no que se constitui o objeto da investigação,

a liberdade proclamada de Kiekegaard, Kant a Sartre é estudada junto ao poder de questionar

o presente conforme disponibiliza Adorno, Schopenhauer e Nietzsche. A procura por ser, ao

constituir a indeterminação do homem segundo Heidegger, pressagia o conhecimento da

subjetividade partindo-se do vazio, na visão de Foucault. A descontinuidade anotada por

Baudrillard ganha contornos de abertura observados na escrita de Derrida os quais,

considerado o lado problemático da vida, teoricamente é enfrentado por Deleuze. Enquanto

avançamos na pesquisa do homem localizado no encontro com dilemas predisposto em

Giddens, encontramos no questionamento do duplicado, um corpo imerso no arbitrário de um

sentido. Finalizando com Barthes ao assentir com a não escolha ou ver o sentido igualado à

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ausência, tecemos uma rede interpretativa com a escrita do romancista português entendendo-

a como uma procura que o homem se lança. Nesta, depara-se primeiro com o silêncio, depois

o vazio, sendo que não há um sentido específico que podemos determinar quando a intenção é

conhecer o homem estampado na Literatura.

Colocado o problema do valor humano face às diversas transformações em vias de se

efetivar, tomamos o personagem Tertuliano Máximo Afonso que na ausência de motivos para

viver, abre-se à problematização do estar no mundo. Mediante a ausência de referência na

qual situamos o romance, o homem da Pós-modernidade envereda por onde não há

convergência. Isso não significa que ele deixa de postular a necessidade de se conhecer ao se

deparar com a indiferença tanto nos relacionamentos quanto no fato de angariar um

significado no mundo. Algo gerador da crise da condição humana em meio ao mundo

caotizado feito de sombras e simulacros a compor a distância abissal entre original e cópia.

Sem chegar a ser uma possível homologia estrutural, o romance prima em transitar nessa

questão a qual vem a ser o escopo de nossa pesquisa: como dimensionar o humano sabendo-o

inapreensível às próprias representações, daí a duplicação permeada com a idéia de

univocidade?

O corpus literário de Saramago corrobora na compreensão do humano na medida em

que se situa na instância controversa da questão. Não podemos deixar de mencionar o fato de

O homem duplicado render tributo às diversas obras que trabalharam a temática do duplo.

Com isso expõe sem rodeios o quanto emergem as dificuldades acerca da maneira de

disponibilizar tal complexidade a se apresentar ao homem e a este se representar tendo por

álibi o humano. No dissenso, o personagem realiza o deslocamento que tomamos pela reunião

que a ficção faz com a teoria consumando o pensar dialógico, nossa tenção maior de estudo.

A conjunção entre as duas esferas postula uma leitura da figura humana cujo teor literário se

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sobressaia. Então, nossa proposição de entendimento grassa entre a oposição da claridade nos

nomes dos protagonistas com a exata contrariedade na grandeza desmentida por suas vidas.

Dentre os aspectos fundamentais em nossa pesquisa salientamos a não polarização das

questões referentes às hipóteses de trabalho; em contraposição a uma visão setorizada e

restrita, preferimos um arcabouço teórico sem marcas contingenciais. Daí as vozes plurais

existentes na nossa escrita que, longe de constarem simplesmente com intuito de atender ao

discurso acadêmico citacional, procura demonstrar nossa suspeição sobre as máscaras

estimuladas pelo senso comum. Consoante o propósito filosófico subjacente, mas não

imperante, a partição do sujeito na nossa pesquisa delega ao indeterminável devir, o atributo

mais condizente para tratar a crise da condição humana pela qual passa os personagens de O

homem duplicado. Para além do discutível conhecimento trocado pela informação numa

cultura predominantemente consumista ou de um saber especializado a gerar a fragmentação

do sujeito, essa narrativa testemunha o homem da Pós-modernidade. Isto porque tanto nas

ações quanto no ensimesmamento do protagonista, existe o intermédio que referenda nossa

argumentação concernente ao lado labiríntico do questionar. Em face de tal diligenciar, esta

tese tem por peculiaridade sustentar o impasse, o não-fechamento, a não-resolução como meta

referencial na composição de uma imagem do homem literário.

Não é propósito desta tese abarcar um conhecimento humano que se queira limítrofe

ou mesmo decisório, mas, sob o ponto de vista da experiência humana apresentar uma idéia

de homem cuja elaboração é feita a cada perspectiva. Os elos expressivos entre a plêiade de

filósofos e teóricos com a Literatura se faz por meio de outro olhar descomprometido com

noções logocêntricas, procurando na imisção com a não-identidade, o esforço de configurar

um novo sujeito superior a qualquer pertencimento discutível. A retomada de diferenciadas

apreciações, portanto longe da pretensão de estabelecer um patamar mediante o caráter

humano intrincado, almeja isso sim, procurar associação visto tratar-se de um personagem em

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elaboração perene. De certa forma confrangido por esta tarefa, se vê em plena disseminação.

Então, se há unidade entre os personagens da narrativa no que se refere à apresentação

humana na obra, advém da percepção da imanência do que não retorna. Algo a nos fazer

apropriar de algumas idéias teóricas, como as mencionadas, no sentido de dialogar e com isso

fazê-las render, articulá-las a alguns pensadores que de certa maneira, podemos dizer são

partícipes da condição pós-moderna. O propósito do estudo também não se restringe a

polarizar questões relativas ao tema, como se os personagens tomados pela presença humana

na Literatura pós-moderna pertencessem, sem restrições, a um mesmo paradigma de

observação eleito. Ao contrário, o homem do romance capaz de se ver um erro e com base

nisso desperta para reflexões sobre si, contraria normas, está no caos performativo. Como

parte de sua singularidade a vácuo, tal relação consigo produz o traço característico da

alteridade. Com o nome e a vida expropriados esse homem se torna idêntico ao espelho e,

dividido, expõe a necessidade de responder ao outro considerado não-sujeito.

As injunções do pensamento na nossa interpretação visam gerar um conhecimento

partindo da identificação com o outro no intuito de assimilá-lo, interiorizá-lo, compreendê-lo

mesmo idealmente. O refinamento desse proceder pode entoar a pergunta, um marco por onde

temos que avançar. Passado o utilitarismo moderno, a dialética instalada no decorrer da

experiência humana, a qual nos imbuímos de investigar se dá em termos da não-conformidade

a princípios universais. Nesse vão, o homem deixou de ser o sábio que vive de acordo com a

razão. É por outro lado, alguém na expectativa de encontrar sabedoria nas emoções pouco

apreensíveis na contemporaneidade. Em conseqüência, não há identificação com a atmosfera

de perfectibilidade que num primeiro momento poderia sugerir a presença de dois homens

aparentemente iguais na narrativa. A incompatibilidade surge na proporção direta de

imperfeição tanto em ser e viver quanto de se posicionar no devir. Na duplicação, a

completude suspeita por via do pragmatismo se estilhaça uma vez que a moral no romance é

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cambiante e a falta de talento seja no trabalho ou na vida se apresenta a modo de faceta

humana num tempo por se fazer.

O percurso de interpretação adotado objetiva contemplar sob diversos ângulos o

homem comum, sozinho, morador numa grande cidade compelido por força de argumentos

externos a princípio e internos em definitivo, a desmerecer um conhecimento que do seu

ponto de vista era irretocável. Com o nível de consciência mais apurado, da apatia, passamos

ao deparar com vários caminhos a serem seguidos, dentre eles, o não achar caminho algum

resultante da humanidade em realce. Em decorrência, a não-compreensão aceite como forma

de abordagem por onde transitam o provisório e o processo. Após a miragem do espelho, o

escutar e se pôr à procura do crescimento humano, exige o cuidado imprescindível quando a

capacidade de observação se pauta no abismo, nos fossos profundos encontrados ao desfazer

modos de subjetivação.

Num ritmo bastante particularizado, o homem situado na Pós-modernidade exige um

modo específico de pensamento e encontrá-lo é nossa tarefa desde as páginas iniciais da tese

até seu fecho. Desfeito o mundo da representação, a ruptura literária que enxergamos na

performance do homem duplicado germina a potência de uma apresentação desvinculada. Na

zona de indeterminação encontramos o Homo literatus com a interioridade desorganizada,

através da rachadura em seu mundo o pensar experimenta a busca da unidade. Improvável?

Sofrer a duplicação em si convoca a inconseqüência (o caráter ambíguo) da Literatura em se

tratando de uma forma de conhecimento diametralmente oposta ao solo filosófico a exigir a

conseqüência sob pena de invalidez. Preferimos antes, o encontro entre dois mundos.

2. CAPÍTULO 01:

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Enquanto, soterrados sob a umidade da razão, os homens passam como espectros, debaixo do céu das constelações.

Ricardo Guilherme Dicke

O HOMEM DUPLICADO: HOMEM PÓS-MODERNO?

Em O homem duplicado (2002) José Saramago narra a vida de Tertuliano Máximo

Afonso, um professor de História. Sujeito comum, sem grandes expectativas, vive sozinho em

seu apartamento; é pacífico, dócil e submisso. Entediado, um dia recebe do colega professor

de Matemática, a sugestão de assistir a fita do filme Quem Porfia Mata a Caça. Neste,

Tertuliano repara num personagem secundário que mais tarde descobre ser Daniel Santa-

Clara, nome artístico do ator António Claro, uma cópia idêntica sua. O professor arma toda

uma situação para encontrar o ator e comparar-se a este, conduzido pelo senso comum que no

romance atua como personagem; Tertuliano se vê num impasse e se mostra o homem portador

da dificuldade de se apropriar de si.

Na presente interpretação, não tencionamos entrar na discussão de gênero e sim tratar

da presença do ser humano na Literatura de nossa época que, embora de difícil definição,

adotamos como pós-moderna por se tratar de uma determinada maneira de compreender o

mundo e a realidade propícios de atenção analítico-filosófica. A produção literária de José

Saramago problematiza a subjetividade ou a subsistência dela, por isso ao pensar Tertuliano

Máximo Afonso, o homem com nome e sobrenome, temos inicialmente a aparência de

contornos nítidos. Fato logo superado porque o vemos imerso em uma angústia. Ele é voltado

ao trabalho intelectual, tem vontade de mudar suas perspectivas, mas é barrado pela

burocracia. Com a descoberta do filme se coloca em busca de algo que é maior do que o

simples encontro com o ator Daniel Santa-Clara. O personagem principal do romance traz no

nome a insígnia de um escritor eclesiástico, bem como a grandeza de quem paralisou as

vitórias de Annibal encarnando o ideal do título do filme: Quem Porfia Mata a Caça.

Assimilamos que aquele homem é quem porfia, mesmo interiormente, e porfiar segundo o

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dicionário Aurélio é discutir com calor, altercar, insistir, disputar. Embora notando a

abrangência destes verbos, no sentido do significado convocar um interlocutor, a seu modo, o

duplicado deseja demarcar território. O ator, objeto de sua busca frenética, sucumbe ao final

da história antes, porém, se torna motivo desencadeador de reflexões acerca da vida, do papel

desempenhado por cada um. O objetar de ambos, frente à primazia do outro, já que são iguais

na aparência, leva-os a entrar no mundo das dúvidas, das imensas interrogações. Ao indagar

sobre o maior enigma de suas vidas, os personagens compactuam com a porção ainda não

desvendada da existência humana.

No início do romance parece-nos corriqueira e banal a vida do professor secundarista.

Encontramos nessa primeira impressão elementos capazes de inúmeras assertivas, afinal,

quem é Tertuliano, Daniel, António? Por que Tertuliano se transforma em Daniel e António

em Tertuliano? O empenho em descobrir quem nasceu primeiro supera a busca de uma

explicação científica para a situação. No intuito de se conhecer por meio daquele “eu”

misterioso, o Daniel também sem identidade real, juntamente com Tertuliano e António

despertam a fim de um entendimento mais amplo de si mesmos. Iguais até nas marcas de

nascença, os duplos e não gêmeos revelam-se unos quando querem conhecer um ao outro sem

se denunciarem, motivo dos disfarces. Ao se esmerarem nessa intenção, deixam suas

ocupações anteriores.

Há algo em comum entre eles? Quem é o homem duplicado? Em qual dos dois pode-

se dizer que haja uma subjetividade singularizante? No decorrer deste texto, encaminhamos

uma abordagem da Literatura de José Saramago com vistas à dimensão possível do sujeito

individual que perdeu terreno num tempo marcado pela ausência do sentimento e dominado

por uma espécie de euforia por saber de si, uma vez desintegrada a subjetividade.

Saramago coloca o homem em sua ficção a se perguntar quem é; embora isto não seja

pioneirismo deste escritor, o topos do duplo seja recorrente em vários autores da Literatura

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Ocidental dentre eles Shakespeare, Machado, Wilde e Poe que trabalharam com esta espécie

de tradição literária; o que nos motiva na pesquisa é por entendermos que sua narrativa

literária é eminentemente de caráter filosófico (com certo timbre ensaísta) atuando como uma

espécie de provocação à racionalidade contemporânea. Portanto, fornece elementos para

enriquecer nosso estudo acerca do tema. Importa considerar que, embora concentremos nossa

leitura do romance por um prisma filosófico vimos preponderar como meta a textualidade da

ficção no que tange à emoção/sabedoria pulsante na Literatura. Se traçarmos um paralelo

entre O homem duplicado e obras que giram em torno do assunto veremos pontos de contato e

afastamento sendo que o romance supracitado se destaca por situar o homem num mundo sem

paisagem, história e objetivo, com um vazio em si muito mais que a suposta obrigatoriedade

de encontrar alternativas para a desumanização segundo pensa Sandra Ferreira em seu estudo

sobre o livro. Podemos além do mais, perceber a invocação do duplo na apresentação

comparativa de seu mais recente protagonista através do intradialogismo com outros

personagens do próprio Saramago:

(...) em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de

quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele

médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria

amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar

no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que

fazia desaparecer as certidões de óbito, (...) (SARAMAGO, 2002, p. 10).

Além daquelas influências diretas citadas pelo escritor na ocasião do lançamento do livro em

Portugal (07/11/2002): Camões com A comédia dos anfitriões, Plauto, Antônio José da Silva

e Molière, observamos junto aO homem duplicado certa relação ante à multivalência de

imagens com o livro O duplo (2003). Publicado em [1846], Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

acima da inovação literária estabelecida, põe na temática a discussão sobre a liberdade de ser.

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Apesar de ser um livro de juventude do autor, a narrativa com recursos estilísticos inovadores

apresenta a trajetória existencial de Iákov Petróvitch Goliádkin ou simplesmente Goliádkin

que no seu emprego de conselheiro titular se vê preterido por um funcionário homônimo e

idêntico fisicamente. Vive sozinho com um criado, Petruchka, quando se vê obrigado a se

relacionar com outras pessoas é tímido, se mostra embaraçado. Na distinção que o narrador

faz entre o senhor Goliádkin sênior e júnior, destacamos que o primeiro demonstra todo o

desagrado de ser duplo, ser usurpado de sua identidade. O fator que mais o intriga é porque as

pessoas ao seu redor não observam, não fazem distinção entre ele, um cumpridor de seus

deveres, um homem acima de qualquer suspeita e esse novo Goliádkin, de trejeitos vulgares

que ao atrair a atenção sobre si, tira a seriedade do ambiente.

Goliádkin, com ar de alguém que queria esconder-se de si, portador de angústia e

medo tem o mesmo espanto e terror que Tertuliano. Perante o duplo, o incompreensível; o

desconcerto da imaginação acompanha o resignar momentâneo, o calar-se mediante a força do

desconhecido sendo igual a si. Original e cópia transitam entre um e outro sem que o leitor

possa abrir um precedente diante da igualdade de imagens personificadas. Tal qual o duplo de

Dostoiévski, o duplicado traz para além da angústia de em tudo ser igual como num espelho

ou duas gotas de água, a sensação de não ter culpa nenhuma do que vem a ser um fenômeno

passageiro. Dessa circunstância estranha, surge a proposta de viverem juntos como irmãos,

algo impensável ao duplicado de Saramago. Como isso também não se efetiva na história do

duplo, procurar o outro, saber do outro se faz tão necessário e mesmo imperioso por se tratar

da identidade em questão. O disfarce para o duplicado e a máscara para o duplo perfazem o

sentido procurado quando o assunto em pauta é ser. A necessidade de seu uso, questão

suscitada pelos dois escritores liga os personagens por um fio condutor. Além da tentação de

deixar tudo como está e da urgência em ter de se decidir, somam-se a inutilidade das palavras

diante da necessidade de agir. Além destes pontos específicos, observamos que Saramago é

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tributário de Dostoiévski quanto ao papel do senso comum na história de homens

impulsionados a ser por conta própria. A carta investigativa segue o mesmo rumo, ousar

saber.

Enquanto o duplo se desespera por ver seu emprego, o lugar na vida sendo surrupiado

por um eu atravessado, perde aos poucos a consciência do que ele mesmo é. Em

contrapartida, a simpatia do narrador pela condição de humilhado do senhor Goliádkin é

perceptível através da caracterização daquele outro eu. Ora é o homem ignóbil, o falso senhor

Goliádkin, o falsamente nobre adversário, depravado e encarniçado inimigo, ao passo que o

duplo ora é o sisudo senhor Goliádkin ora o verdadeiro. Assim como é colocado pelo narrador

que cada um tem o seu caminho e não se sabe qual nos será reservado é o mesmo beco sem

saída a que se vê exposto tanto o duplo quanto o duplicado. Embora a demência final do

duplo marque a vida desse homem tão comum e tão especial, o que registramos de influência

fica a cargo dos personagens se sentirem outros, um ser à parte, ambos são retratados à

maneira de alguém que se coloca à espera. A autoconsciência exprime dos vários eus criados

pela imaginação dos escritores, essa humanidade apesar de pequena consegue ser o ponto de

reunião para os conflitos acontecerem.

Tal atitude define a ansiedade existencial presente em Tertuliano, à beira da depressão

porque lhe falta coragem para encarar a realidade. De início, a expressão de dúvida que o

move vem da decisão entre gastar tempo em preparar algo comestível ou sair para jantar;

continuar o trabalho em casa ou ler um estudo das antigas civilizações mesopotâmicas.

Entretanto, não está contente, tem a sensação de incompletude. Conforme o narrador faz

questão de enfatizar, ele é “gente comum”, tanto é corajoso quanto covarde. Ao assistir Quem

Porfia Mata a Caça, o herói duplicado se impressiona com a visão semelhante do ator, isto o

assombra porque na verdade existe um prenúncio de diversidade da vida, da qual ele fugira.

Preso entre maneiras distintas de ser humano e viver a vida, o protagonista se debate com

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questões tais como: Quem é esse homem do filme? Qual o seu nome? Como ninguém reparou

em tal semelhança? O professor então decide sobre a necessidade de encontrá-lo apesar do

perigo que isso representa. Ele está localizado num mundo fragmentado, episódico e hostil,

por isso tenta escolher embora saiba dos limites, dos recursos escassos à mão. Na empreitada,

vem uma sensação de vazio crescente até sacudi-lo com a revelação da existência de um

homem visto como seu vivo retrato, a perturbação é inevitável. Fisicamente vê a possibilidade

do ser humano repetir-se. Mas, a idéia de duplicação faz Tertuliano se espantar, logo ele que

se enxerga como um erro. O quebra-cabeça emoldurado pelo curso da vida que se tem – eu

mesmo – perfaz a insegurança existencial, nisso há um desmoronamento físico e moral, os

problemas se aglomeram e o mais contundente é se responder: que é ser um erro? Aos poucos

compreende que as escolhas à vista também significam a probabilidade de uma permanente

ansiedade de estar errando. O homem duplicado ao apresentar algumas das perplexidades do

mundo contemporâneo, prioriza a aflição do homem atual não somente quanto às questões

materiais, acima disso o se sentir vazio e aborrecido com tudo.

A Literatura marcada pela presença do homem cujas vozes variadas aí se instalam, fala

de um indivíduo que perdeu o sustentáculo, adequado à angústia da incerteza. Esse dado

extrapola a compreensão do romance um tanto reduzida de Sandra Ferreira (2007, p. 03) para

quem o livro ecoa as antigas oposições binárias: original e cópia; amor e ódio; eu e outro;

vida e morte. É importante ressaltar que nosso objetivo é estudar o personagem principal do

romance enquanto representante de certo modelo de mentalidade, base de auto-compreensão

da contemporaneidade que é o Pós-modernismo e como tal, não é uma tarefa que possa se

estabelecer de imediato ou de forma conclusiva. O escritor no conjunto de sua obra vê no

homem, a possibilidade de se encontrar, provocar mudanças. A narrativa ao fazer referência a

questões como à individualidade, acirrada na Pós-modernidade (período histórico específico)

já se caracteriza como uma questão por si só filosófica. No livro Viagem a Portugal (1997), o

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viajante que perambula num país a se conhecer, prioriza visitas a museus, castelos e igrejas. O

impressionante para ele é a ação do homem, não o célebre, o reconhecido oficialmente, porém

é o sujeito comum responsável por levantar paredes; aquele desconhecido da rua com sua

história; o informante solícito; o guia despreocupado, mais ainda, o usuário imaginado de uma

coleira se identificando como escravo de alguém. Este interesse do artista da palavra escrita

repassado aos seus personagens perdura nas demais obras até chegar à duplicidade de

Tertuliano Máximo Afonso. A problemática de se situar na vida é algo passível de extremos,

inclusive de fazê-lo disfarçar-se no ator em quem se vê reproduzido. Por isso, perfaz uma

ameaça por ser um “eu” bem definido na tela. Diferença explícita embora escamoteada. O

comportamento e a solução são outros, o indivíduo atuando no mundo em mutação é um outro

que não assimilou o mesmo enquanto sujeito. Dentro de si há ebulição porque sentido e

significado passam a ser referências absurdas e por vezes inexpressivas.

O senso comum é uma presença constante na vida do professor, suscetível às verdades

sem pensar muito nelas; o colega dos números também o acompanha na vida diária; a

namorada Maria da Paz é quase uma figuração; Carolina Máximo – a mãe – mesmo morando

em lugar distante, é alguém que o chama a assentar os pensamentos e António Claro com sua

esposa Helena, formam o núcleo no qual se desenvolverá as questões urgentes tecidas na

legitimidade do “eu” que impulsionam o homem, móbil de duplicação. Se em casa o

problema o martiriza, não há como dividi-lo com ninguém, em público, a máscara parece uma

saída viável diante da supressão da profundidade que experimenta em si. Portanto, se a busca

do significado é inócua, o fato de ir ao seu encalço coloca em exibição a faceta humana do

personagem situado entre os mecanismos de verdade e falsidade, bem ao estilo Pós-moderno.

O professor de História antes submisso e amigável passa a ser outra pessoa. Quer se

conhecer. Esta é uma mudança observada pelo narrador quando defende: o homem “não havia

mudado” (SARAMAGO, 2002, p. 43), é o mesmo de todos os tempos no sentido de se lançar

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ao desconhecido. O diferencial na narrativa contemporânea, esse algo que não muda está na

vida pessoal do protagonista de O homem duplicado, feito uma interrogação. Instaurada a

crise da representação, o agravante é o desnorteio que o atinge na disjunção entre o seu corpo

e o do outro num ambiente que já não é tão particular quanto imaginava. Na concepção da

gente de seu convívio, o professor transmite uma imagem de serenidade, longe, portanto

daquele turbilhão que o atormenta. Pois bem, sabemos de sua intimidade, a esta altura

estraçalhada pela aparência dividida com outro. Entretanto, não é possível dizer que podemos

dotar o sujeito individual de um sentido assegurado de seu lugar no mundo, uma vez que a

distância existencial entre eles é quase imperceptível, tal a semelhança.

Comportamento este observado na individualidade em teste do personagem duplicado,

por isso atormentado pela incompreensão. O dissenso que o protagonista representa dimana a

afirmação da subjetividade descentrada a que o Pós-modernismo problematiza. Tertuliano

quer se sustentar enquanto não equivalência, ao mesmo tempo tenta recuperar a capacidade de

agir e lutar em prol de seu objetivo. Embora isto fique mais no nível da discussão entre ele e a

voz desconhecida, a estranha presença que o acompanha em momentos críticos, assim como a

conversação com o senso comum. O que acaba num arremedo porque em cada máscara se

descobre o sujeito provisório e plural.

Diante dessa vida que não se explica, o homem está sempre imbuído mais de

perguntas do que respostas. Característica intensificada no tempo repleto de contradições no

qual se insere a escrita de Saramago. Ao tratar a pessoa, homem ou mulher em sua obra,

muitas vezes o vê despedaçado no interior, cheio de solidão, desamparo e timidez. Como na

constatação do narrador: “Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras”

(SARAMAGO, 2002, p. 60) sendo assim, resta viver aquilo que elas não abarcam, como o faz

o protagonista do romance ao lidar com a euforia e as intensidades de uma experiência sem

par. Há na consciência arguta deste ser fictício, o valor e significado a serem respeitados no

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que concerne à diferença e alteridade característicos do Pós-modernismo. De certa forma, o

comportamento pacato e submisso do protagonista é interpelado como sujeição à condição de

trabalhador ordeiro, dócil e cidadão obediente, atingido pela duplicação.

O personagem principal em dobro se move entre a pouca confiança em si mesmo e a

volubilidade dos sentimentos. Se não temos heroísmo a discutir, tampouco podemos cogitar

de seus aparecimentos públicos como desvendamento da representação pessoal. Divorciado

por causa de um contínuo definhamento do casamento, vive num retraimento suscetível de se

envolver nas questões do “eu”. Mas porque não o faz, ou faz de forma inconseqüente? Ou

ainda, porque adia tanto? A fachada de civilidade que o afasta dos outros e ainda mais de si

mesmo, gera uma opressão crescente à medida que parece inadiável voltar-se aos interesses

da personalidade. No ensimesmamento em que está mergulhado, o ato de assistir o filme

Quem Porfia Mata a Caça, ao invés de retirá-lo deste estado, provocará a sensação de divisão,

perda de algo que nunca foi seu. A instabilidade, o paradoxo nos gestos empreendidos na

procura do ator, faz o professor um homem do mundo pós-moderno dado à ruptura,

deslocamento e descontinuidade – ao movimento mais da mente que do corpo – portador de

subjetividade delirante, ele é o sujeito desunificado no que há de horror nisso, também

descentra o que vive, ama ou vilipendia.

Descobrir a intimidade incrustada em outro homem, pode representar uma auto-

libertação? As indagações suscitadas pelo desempenho do personagem principal de O homem

duplicado nos conduzem a ver esta criatura como viva e expressiva, inclusive pelo fato de que

a cultura pós-moderna atesta um esmaecimento do afeto. Ansiar pela individualidade fora

dele, uma vez que experimenta o desaparecimento de si enquanto sujeito individual; propor-se

o enigma e estendê-lo ao outro e com isso iniciar uma reviravolta no “eu”, são incumbências

auto-impostas pelos seres ambientados nesse romance.

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Quando nos propomos a pensar o homem na obra do romancista português é devido

nosso interesse pelo ser humano, o qual nos faz enxergar nos seres ficcionais criaturas que

guardam muitas imagens de si sem, no entanto, se identificar a qualquer delas. Apesar ou

mesmo por causa, como assinalamos anteriormente, de Tertuliano mostrar-se enfraquecido da

vontade humana, experimenta ativamente a história que não teve oportunidade de ensinar: a

sua. Afirma não saber o que é, somente quem é, assim mesmo de forma pouco apreensível.

Como o encontramos no ir e vir à locadora de filmes e o contato inevitável com o atendente,

irônico com o nome pouco comum do cliente. Cabe neste momento perguntar com Tertuliano:

que fará “depois de saber que esse homem entrou em quinze ou vinte filmes, (...)” “Conhecê-

lo” (SARAMAGO, 2002, p. 75) é a resposta que vemos enquanto atitude. Conhecimento

sinônimo de trabalho, cogitações a respeito de um “eu” estranho ou de indícios de alguém que

se vê, mas se retira de cena. Ao tratarmos do desnudamento interior de Daniel Santa-Clara,

inferimos daí a ação direcionada ao mesmo Tertuliano. Este assume pela primeira vez correr

riscos, por isso o tratamos enquanto ser humano apto a sentir com a percepção da

personalidade. Ora, muitas vezes nos deparamos com esse personagem se vendo incapaz de

produzir representações de sua própria experiência: como corpo pós-moderno duplicado no

labirinto da cidade onde vive, interminável nas imagens repetidas.

É de consenso nos textos teóricos apontar o sujeito pós-moderno eivado pelo

provisório, variável e problemático não possuindo uma configuração fixa, essencial ou

permanente. Entretanto, isto não é suficiente para a compreensão do homo fictus. Nosso

esforço inquiridor ao estudarmos as vicissitudes do protagonista da narrativa cujo homem

encontra-se duplicado, é apreender que isso ocorre em relação direta com o senso comum. O

mundo mais humano em que a cultura assume a forma de uma segunda natureza faz do Pós-

moderno a busca por rupturas, eventos ao invés de novos mundos. Por esta consideração,

vemos que o protagonista pode ser visto na disjunção entre o corpo e o ambiente de tal forma

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que a distância, abolida, provoca o inebriamento na jornada existencial desse sujeito. O tempo

vivido pelo homem na literatura do século XXI enquanto lhe proporciona liberdade, traz a

impotência para usufruí-la, tamanha sua falta de localização, não em termos geográficos, mas

de se situar numa escala social e espacial passíveis da individuação que o sujeito pós-moderno

se ressente, conforme defende Fredric Jameson (2004, p. 79).

Entre os diversos sentimentos experimentados pelos personagens, há mais que

desencantamento, é a questão irresoluta, a presença de uma verdade que tenta de início

suplantar outra. Máximo possui a falsa consciência de si, preocupação intermitente sobre

aquilo que lhe ocorrerá na vida, fato essencial para nos inteirarmos do contorno humano no

livro. Como entender seus passos, a vacilação diante de decisões inadiáveis? A humanidade

requerida ao longo da narrativa, o ir além da objetividade vai ao encontro de uma descrença

normativa ou qualquer espécie de ordenamento, bem como da minorada extensão do

pensamento entre os personagens. Visto por este ângulo chegamos à crítica ao homem

duplicado, perdido por não entender seu lugar na vida, no caos, ainda assim está investido da

necessidade de investigar a ordem que possa se encontrar aí. Das contradições que isto pode

oferecer, surge o homem cônscio de que “uma parte de si está ausente” (SARAMAGO, 2002,

p. 157). Seriam as emoções, por vezes perturbadas? Esquecidas? Desnecessárias?

O conhecimento haurido deste terreno escorregadio que é o “eu” desestabilizado já se

anuncia por alguns títulos dos filmes – objeto da pesquisa do professor – tais como: Um

Homem Como Qualquer Outro, Diz-me Quem és. A igualdade da espécie vista não com o

olhar científico, caso contrário seria um tratado comprometido com alguma verdade; mas a

narrativa literária ao expor a vontade do homem em se conhecer, abre-se inclusive ao

acolhimento da ignorância de seu destino, (em várias passagens do texto, os personagens

perguntam-se o que irá acontecer depois) da inconclusividade de opiniões, temperamentos,

etc. Ressaltando que tanto recolhimento/transformação, ciúme, ódio ou vingança em

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determinadas ocasiões, reforçam o elemento humano apreciado pela literatura, elemento este

que se destaca porque deslegitima a noção de ordem.

Na discussão sobre quem seria o primeiro ou o segundo homem, quando há o encontro

entre Tertuliano e António Claro, no instante em que se olharam desviaram a vista como se

temessem encarar a realidade. Por causa disto nem o professor nem o ator serão os mesmos.

Eles querem a diferença, até o minuto que os separam no nascimento. Podemos afirmar que

esta atitude ou posição a demarcar, vem questionar aqueles postulados éticos pretensamente

universais de fazer do homem um conjunto de reações previsíveis. Ao contrário, depois do

encontro dos protagonistas, o que emerge na narrativa é a luta pela particularidade sem

grandeza a atingir, aguçados em sensibilidade para a diferença, ao mesmo tempo os

personagens suportam o incomensurável.

Entender e exprimir o mundo literário habitado pelo ente fictício é, além disso, vê-lo

procurar se ver enquanto uno num mundo contrário a esta idéia. Como se fosse duas faces da

mesma moeda, os personagens apresentam emoções plurais como a covardia de Tertuliano ou

a vingança de António em tudo reveladoras da humanidade presente na Literatura de José

Saramago. Não nos cabe aquilatar quanto há de emancipação na experiência ou na falta dela

referente aos protagonistas de O homem duplicado, porém, aprender quanto às imagens

podem ser reveladoras. Entregues a si mesmos, os homens literários adquirem a consciência

de que isto não é o bastante.

A vida de Tertuliano Máximo Afonso é um convite às dúvidas. Independente das

virtudes nele encontráveis, o que coloca em questão é o princípio indispensável para

distingui-lo da cópia. As circunstâncias de tempo e lugar corroboram a fim de pensarmos o

delineamento do Homo literatus. Contudo, quais são os pressupostos capazes de

individualizá-lo? É possível fazer julgamentos de valores extraídos de sua vivência? A

incompreensibilidade apresentada no ato de o tomarmos como essencial para o discurso

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narrativo nos instiga a continuar na trilha deste herói que navega rumo ao canto das sereias,

consciente do perigo que isso representa. Diríamos tratar-se de um entendimento

argumentativo uma vez que a exterioridade do personagem é ponto de controvérsia na sua

ambiência social, fato preocupante para ele. Do mesmo modo, considerar a igualdade como

telos significativo, é abordá-lo sob a idéia matriz de um pensamento ultrapassado, qual seja, o

de fazer valer o universal em detrimento do particular, tão combatido no texto de José

Saramago. A plenitude humana do homem descrito como “máximo” pelo escritor não

significa, entretanto o sistema representacional de alguma ideologia a ser implantada. Porém

entendemos como um a priori dentro da narrativa cuja pretensão evidente é fazer o homem se

pensar em tempos dominados pela objetividade. A conjugação do saber narrativo expõe

desenvolvimento junto a não-desenvolvimento com igual desenvoltura no que tange ao

personagem em seu autoconhecimento.

O professor que ensina História e se encontra enfadado por repetir os mesmos

conteúdos do passado, deixa entrever que a História humana é por demais conhecida e a

repetição do homem sendo previsível exige, contudo, interferência no presente. Quer ensinar

invertendo os tempos dando ênfase na atualidade, mas é ridicularizado nas reuniões em que

sua opinião é descartada. Quando finalmente o diretor solicita-lhe a confecção de um estudo

defendendo seus pontos de vista, o trabalho é feito, apenas não vemos a execução devido o

envolvimento com o caso do duplicado. O mestre da sala de aula investiga, por fim encontra e

conhece o ator Daniel Santa-Clara, o outro de António Claro, por sua vez é o mesmo

Tertuliano. Todavia, o reconhecimento em pauta não visa num primeiro momento transformar

e sim suplantar o igual a fim de garantir a sobrevivência unívoca. Afinal, haveria

possibilidade de escolha se fosse o contrário? Podemos falar em sobrevivência?

As imagens do homem em frente a uma porta fechada bem como daquele que se olha

no espelho e não mais se envaidece a ponto de se inebriar com a própria visão, pelo contrário,

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desvia o olhar por ser insuportável, são ingredientes da Literatura envolta nos domínios da

criatura ficcional. Fato motivador de interesse por causa do silêncio sobre a vastidão aberta ao

imaginário. Seria a dissolução do “eu” um aforisma a combater? Ele é a causa da duplicação

do homem? A expressão artística típica da Literatura observa os personagens na peculiaridade

de inserção no mundo. Na ocorrência narrativa vem o sentir mais aguçado como em: “(...) isto

que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo

histericamente activada.” (SARAMAGO, 2002, p. 82), efetivamente não é? Se resgatarmos as

palavras do narrador acerca do homem não ter mudado, veremos tratar-se de uma vivência

repetida enquanto busca, contudo, se diferencia pela recusa das afinidades entre os

personagens. Neste caso, os iguais se expelem.

O que seria manifestação natural passa ser uma repetição indesejável, porque é “como

se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do

outro.” (2002, p. 217) É exatamente este alguma coisa, o objeto de nosso escrutínio

interpretativo. A duplicação que se discute no livro ultrapassa dados meramente físicos.

Tertuliano e António não admitem assumir uma função imitativa e assim proclamam suas

defesas com uma tese que não se articula. Justamente porque no fundo, acreditam que o

importante é a diferença deles. Vale salientar que após se conhecerem, não há abertura a uma

relação harmoniosa, nem se vêem como se fossem acessório um do outro. O saber narrativo

se dá de maneira a que a argumentação suscitada pelos personagens não se baseia na

administração de provas e sim de vivências separadas. Especulemos.

Verdade, mentira, preciso ou relativo são pontos indicadores do “apodrecimento” das

pessoas, segundo o professor de História – para quem o convívio é um empecilho para o

homem se inteirar de si – passamos então a questionar o que seria essencial ou provisório ad

hominem nas concepções mutáveis do sujeito, encontradas na figura de Tertuliano. Como lhe

atribuir um sentido? Se não há mais ordem a estabelecer qual lugar podemos lhe assegurar?

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Pelo fato de se colocar em questionamento e de um possível sentido de si, faz do homem

duplicado o sujeito humano cuja identificação se desloca à medida que se vê desvinculado da

idéia de um modelo a seguir. Sozinho, vigilante, ele é alguém impactado pela necessidade de

reinvenção das diferenças.

O sujeito atravessado por muitos saberes, de quem a natureza universal vai além da

identificação dos processos psíquicos, está ciente de falar muito quando se cala. Embora não

haja a compreensão extensiva sobre. Para quem interpreta, o silêncio dos personagens torna-

se um elemento a mais de inquirimento; dentro do abismo, entrar reticências afora é um

recurso do qual não podemos nos abster. Entendendo estar bem próxima a meta a atingir pelos

seres de papel, eles sentem sobre si um gesto indagador, são vítimas de isolamento. É preciso

ressaltar o distanciamento da interpretação em relação à experiência dos personagens, restrita

ao silêncio deles. Enquanto os homens na narrativa se debatem por entender-se nas lacunas da

fala, também sofrem uma sensação de vigilância como aquela presença misteriosa

perturbando Tertuliano em várias passagens do romance.

Caso tenhamos em mente apenas a assertiva de que na pós-modernidade o homem é

apresentado de forma inacabada não teríamos resvalado nos sentidos presentes desta época

tão polêmica. Com isso, queremos ressaltar a preponderância em O homem duplicado do

fator contrastante com o passado: a ausência de certeza sobre si mesmo. O desconhecido

acena com as possibilidades do mínimo de vida a solicitar a invenção imaginativa de si,

intransferível. Há nesta narrativa a internalização da idéia de que a completude se existe é

algo distante, isso se adotarmos tanto um ângulo de abordagem panorâmico quanto um mais

aproximado. Certo é encontrar o topos do homem que evita o conflito, adia o contato, briga

com o senso comum e troca de lugar para ser conhecido. Nisso, o intérprete fica em situação

pouco confortável porque o homem do livro de Saramago em nada é previsível para se tomar

como paradigma, até mesmo em sua reação díspare à identificação. A inferioridade sentida

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por Tertuliano quando se compara a António é este algo escondido pelo professor, age da

mesma forma ao tirar a foto disfarçado de Daniel Santa-Clara, queima-a em seguida porque

teme a padronização.

É indiscutível tratar-se de um conflito interior extravasado na semelhança externa de

dois seres na extensão do problema existencial. A audácia desse romance reside não só no

testemunho da experiência, mas age por si só, com leis próprias abertas às verdades;

aparências desmentidas são em princípio o leitmotiv do livro em que o homem à sua revelia

foi duplicado. Portanto, na complexidade se instala o reconhecimento dos personagens cujo

consenso de vida não ocorre. Como ser, fazer diferença se impõe como tarefa inadiável. Da

duplicação até os momentos finais do romance, o personagem no ineditismo de si se pergunta:

o que fazer de mim?

Encontramos no romance em estudo, Tertuliano Máximo Afonso na posição de

pensador em sua nova fase de vida: “de dorso curvado, cotovelos assentes nos joelhos e

cabeça entre as mãos, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 116), o motivo da alta concentração é a

existência em borbulhas fazendo-o pesar “alternativas, medindo opções, estimando variantes,

antecipando lances, como um mestre de xadrez” (idem). Entretanto, o que importa não é a

solução possivelmente resultante de tal atitude e sim o ato de meditar nelas, imiscuir-se no

problema. Entendemos que ao comportar-se dessa maneira, o personagem implica uma forma

cadenciada de lidar com a desumanidade crescente, multíplice, ele perde a coerência fazendo-

se a ressonância dupla.

Percebemos em Tertuliano o desconcerto da situação, a confusão de sentimentos que o

coloca errante ao encalço de António como uma sombra fugidia. A amargura recorrente em

sua boca comumente associada ao sabor da derrota é semelhante ao impasse de Antoine

Roquentin: “No fundo, o que procuro? Não sei (...) Mas agora o homem... o homem começa a

me entediar.” (SARTRE, 1989, p. 29) Isso ocorre porque a resposta é difícil, por vezes

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inapreensível. O espelho refletindo Roquentin mostra um rosto do qual afirma não entender

nada, originando assim o sentimento de sujeira, a náusea específica de quem como o

duplicado procura-se.

O “eu” cujas dimensões secretas ignora e quer se encontrar no outro, deseja construir a

subjetividade nas lembranças do presente. O professor ao altercar razões com o ator não

ocasiona uma fuga de si mesmo, mas a tentativa de viver pela primeira vez a verdade que

nunca teve oportunidade de ensinar; o ator de representar. A oposição neste contexto refere-se

à subjetividade pautada pelo continuísmo.

Não se trata de um dado ordinário, nem de algo a mensurar em meio a uma

organização futura. Ser primeiro ou segundo na hierarquia existencial dos personagens está

além da ordem, refere-se à condição humana colocada sob suspeita. O homem duplicado que

estudamos não é um objeto cuja mudança de lugar adota nome diferente, mas é o indivíduo à

cata do “privilégio” de se situar. Contudo, a constatação da existência de similaridade na

aparência entre os seres da duplicação, não explica nem resolve o caso de ambos.

Assim, temos novamente Tertuliano no dilema de ligar ao ator Daniel, reconhece o

absurdo disso que ele mesmo criou, para o quê nem ao menos fora desafiado se encontra

“posto entre a espada e a parede, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 133) bem como entre o

elementar e a confecção da vida entendida sob a perspectiva por se fazer. Enquanto tratada

como o silêncio a ser assimilado, resta-nos lê-lo ultrapassando qualquer espécie de escolha,

tal o impasse do personagem sem destino. A existência dos duplicados ao experimentar a

fragmentação do sentido não quer dizer opção ou o desenhar de si num futuro imediato, mas

fugir da determinação. A grandeza anunciada pelo nome de Máximo, também a nitidez de

Santa-Clara e Claro destoam da significação em nada imediata. Embora a vida dos dois tenha

relação direta com o oposto de seus nomes, a clareza total não se apresenta nem a tomamos

como causa final de nossa interpretação. O eu se destaca no romance por se mostrar incapaz

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de re-adaptar tensões antes neutralizadas; é preciso ainda ressaltar o abrasivo da irresolução

quanto à individualidade.

Prosseguir nos meandros da identidade do homem partido exige que esqueçamos a

estrutura binária de pensar o sujeito. Mesmo se de início trabalharmos com esse referencial,

prepondera a ameaça à ordem, a probabilidade de se atingir a distância que separa o

hermetismo do homem por trás da aparente igualdade. A incongruência observada no caso do

duplicado é um índice de entendimento. A resultante é o dissenso que se nota inclusive pela

liberação do pensamento concentrado numa determinada conclusão. Nisso, o provisório e o

plural do sujeito pós-moderno põe em xeque princípios de como representar ou se fazer

representar perante o universo da diferença e a alteridade das quais é parte.

O que abala Tertuliano é a inexistência de um passado particular, já em António há o

receio de um futuro assombrado pela presença do duplicado. Menos provável é a convivência

entre eles, tendo em vista o caso sui generis de se verem reproduzidos. A duplicidade envolve

individualidade preocupante, estranheza que se tenta evitar até mesmo o que o narrador

chama de destino em várias passagens do romance: “todas as razões do destino são humanas,

unicamente humanas,” (SARAMAGO, 2002, p. 247) com medos, dúvidas que surgem e se

ampliam com o passar do tempo. E, se objetarmos que não há destino na vida desses homens

especiais, há por outro lado, uma decisão a ser tomada. Outra coisa não vemos na atitude

tanto de Tertuliano quanto de António ao se inteirarem da condição de duplicados. Pois é da

imagem de si desmontada que constroem um a priori agora sem raízes. Não é a visão de

mundo de cada um o que nos cabe questionar é, sim, a ilusão de si colocada em primeiro

plano. Para se chegar a essa imagem múltipla de si, há de se levar em conta o anulamento da

interioridade sentida por cada um dos personagens, fato este propulsor do desentendimento

entre eles. O que à primeira vista parece uma condição em transe é explorado pelo narrador

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como perfeição duvidosa capaz de causar abalos na vida daqueles homens tão iguais e tão

diferentes ao mesmo tempo.

Em O homem duplicado, o professor e o ator se recusam, eles são a mesma face do

homem sabedor de portar uma vida substituta, dissimulada, por isso evitam o quanto podem a

aproximação porque ela acarreta a antítese que preferiam evitar. Isto está dentro dos

pressupostos da Pós-modernidade quando, imaginar um “eu” desreferenciado é situá-lo num

mundo onde a integridade ficou restrita ao passado. E, se o passado é desconhecido pelos

homens em construção na narrativa, a forma de humanidade reivindicada por eles, passa pelo

aumento das tendências aflitivas encontradas ao começarem a atentar para o que realmente

interessa em relação à vida. Passam a se conscientizarem que não são nem podem ser mais

sujeitos autônomos cujo ego se volatiliza.

A pluralidade temida pelo homem no romance pode ser aclarada junto à Pós-

modernidade que a admite e encoraja. Arquitetar um plano para conhecer o outro, se ver igual

a ele no aspecto exterior depois não tolerá-lo; aparenta ser o oposto do que vínhamos

defendendo. No entanto, isto se explica se no conjunto do romance percebermos que no

acidente fatal do ator não houve interferência do professor. Sabemos que isto ainda não

convence a favor da pluralidade. Mas, quando Tertuliano assume a vida de António – embora

não o faça de forma definitiva – traz em si um vácuo. Para Carolina e Helena ele continua

sendo quem é, para si continua um desconhecido. Em conseqüência disto, se vê obrigado a

descobrir outra vida para si, também confusa? Inadequada? Diante do telefonema com a voz

misteriosa se dizendo muito parecido com ele, volta ao final da narrativa ao primeiro passo a

dar: decidir-se. Nesse ponto assinalamos a pluralidade, o diverso que se anuncia sempre que o

homem quer solapá-lo. Ele entrou num “caminho que deixara de ter princípio,”

(SARAMAGO, 2002, p. 290). Assim tematizado, o homem do meio se dá à interpretação

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problematizando-se. Ato contínuo, o duplicado estraçalha a distinção entre exterior e interior,

não planifica fazendo-se invólucro e envolvido enquanto sugestão.

A manifestação do que não se conhece passa a ser a abertura para a ampla

possibilidade do humano presente no homem duplo em desordem existencial. De nome e

comportamento exóticos, a abordagem não fica na origem e sim na incompletude do sujeito

que se vê em multidão. Não por encanto, nem como um portento da natureza, porém alguém

que não se enquadra no coletivo. Homem plural, caminha sem saber o que fazer de seu corpo,

se acha sem qualidades. Considera-se meramente um acidente do qual não sabe a causa, teria

uma chance de reinvenção? Deseja isso? Quem é Tertuliano Máximo Afonso que entrou sub-

repticiamente na vida de António Claro, o ator que sempre foi coadjuvante e às vésperas de

se tornar protagonista é ameaçado de perder o papel? Em questão, este homem sem nos dar

nenhum modelo ou explicação de si, prossegue em desnorteio. Entre os dois mundos não

vemos possibilidade de fundi-los em uma síntese orgânica, justamente por se tratar do lado

humano dos personagens. Então o problema – a duplicação – pode ser visto em dois níveis: o

personagem coloca o próprio conteúdo interno como dilema ao passo que se representa como

um problema.

Não poderíamos afirmar de forma desavisada que seja uma história repetida ad

nauseam, porque impressiona, prende o leitor chegando a atrapalhar. É ainda mais difícil

deslindar um raciocínio que leve a unificar a personalidade do professor e o ator. Também

não é nosso objetivo, já que de certa maneira trata-se da história do homem de todos os

tempos em busca de si. A exemplo temos o escritor Robert Louis Stevenson (1850-1894) que

ao publicar em [1886] O médico e o monstro (2002) debate a identidade trocada de acordo

com a convenção. Embora o Dr. Henry Jekyll e Mr. Hyde sejam a mesma pessoa, a

personalidade em causa divide-o entre o homem bem sucedido, rico, virtuoso e elegante e o

seu exato oposto: fisicamente mal proporcionado, ríspido, deselegante, de ocupação obscura e

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origem duvidosa. Hyde apesar de ser a faceta do monstro, deriva do médico. Extravasa os

desejos inconfessáveis deste. Stevenson também consegue com sua história, criticar a

sociedade de seu tempo e sua excessiva valorização à aparência. Com O homem duplicado,

embora o título sugira tratar-se de mais uma história na qual se discuta a bipartição do sujeito

ou de uma provável discussão científica, a alteridade emergente desqualifica tais hipóteses.

Aqui, não é descobrir quem é o outro o mais importante como o faz Stevenson, Saramago

toma a alteridade como ponto de partida para em seguida priorizar a assimetria entre a

vontade de conhecer que o homem tem e até onde ele é levado pelas possibilidades que o

intimidam.

O prisioneiro do castelo de Zenda de Saramago não tem um reino a recuperar, a rainha

disputada é conseqüência da vingança por causa da semelhança que o forasteiro lhe atira na

vida. A prisão do duplicado é a identidade inexistente; para Tertuliano o sósia não é apenas

uma forma particular de vida distinta da sua capaz de salvaguardar um rei, mas é a existência

que tenta situá-lo enquanto portador de sabedoria. Pautada na emoção como a Literatura faz

saber, o mais concreto do homem, a justeza no que fazia e era acaba por se transformar na

pluralidade do mais geral. Note-se que as questões pós-modernas se dão de forma a enveredar

pelo vazio que o homem traz em si, pisando em espaços inabitados. A imprevisibilidade

consoante nesta colocação auxilia-nos a trabalhar o homem duplicado feito de fissura porque

a estabilidade não é mais possível. A intencionalidade na fala; agir por conta própria; prever

os passos do outro, são atividades dificultadas devido à assimilação do heterogêneo. Ao

inverso do que acontece em Zenda, aquele que reina não tem a coroa temporária, a igualdade

neste caso é índice de perda a ambos os lados.

Assegurar um espaço ideal constituído da presença íntegra de si é uma expectativa que

desestrutura o homem que encontrou alguém idêntico. A questão é: o “eu” pode se ajustar a

fim de dar um sentido à vida? Ao quê? A quem? Assim entendido, o pertencimento a algo

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pré-existente abrange o universalmente humano conduzindo à ambigüidade de uma porta

identificada apenas com a palavra entrada. Então, aquela espécie de siamês, causa interesse

modificado, pois se encontra em meio flutuante, é impertinente por se fazer a diferença que

exista e se imponha.

Por muito tempo Tertuliano esconde o segredo, aos poucos abre para António, este

para Helena; conta depois à Maria da Paz e por fim a sua mãe, Carolina Máximo.

Depreendemos disso, aquele medo de expor os contornos subjetivos antes tão definidos, agora

desalojados. Ele era o centro das atenções de seus alunos, verdade incontestável na

interlocução com os fatos do passado; enquanto o ator, embora em menor proporção

incorporava vidas subalternas preparativas do cenário ao próximo estrelato. Suas vidas traçam

novas maneiras de entender as condições de possibilidade em que se converteram.

O futuro que se anuncia no acontecimento dos duplicados é marcado por uma

vacuidade, sucessão de dias atropelados pela falta de vínculo entre eles. Notemos neste

momento que não está em jogo o fato de um sobressair ao outro, porém é a vida em si

carregada de dissensões que se impõe. Ser ou não ser sósia em O homem duplicado, quer

dizer atribuir à existência a impossibilidade da boa disposição, de acordo com os olhos da

objetividade, sobretudo o acúmulo de hesitação. Integrar o outro no romance significa perder

a ilusão de igualdade; é comum no percurso do homem perdido, simular, dissimular

sentimentos que julga inadequados, isso se explica por ser alvo da caçada que outra coisa não

é, senão o esforço de negar a unificação.

Tertuliano pensa mil formas de achegar ao assunto do qual não vislumbra solução, a

fim de burlar a conversa franca com a mãe. Também observamos nele a ansiedade por algo

precioso e existencial sobre sua singularidade se perder quando se descobre como o outro. Ao

ser transferida e incorporada pelo dois homens iguais, a ansiedade acaba por levá-los a um

beco sem saída tout court propensos ao desânimo. Quando nos primeiros filmes assistidos

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pelo professor, o ator aparece de barba e/ou bigode, aquele que assiste toma isto como sinal

capaz de lhe atribuir o poder de manipulação sobre o outro. Disfarce que Daniel também usa

em situação real com o mesmo propósito. Nisso, fica difícil indicar na divisão de papéis quem

é o observador e quem o observado. Em toda ação que se empreende com esse objetivo é

necessário aceitarmos que ambos se completam por meio do recolhimento ao silêncio.

Portanto, vasculhar o humano por trás do repetido é abrir-se a uma experiência furtiva à

comunicação. Se não há um fundamento, porque prosseguir num encontro sem resultados? O

homem surpreso pela duplicação passa a se divisar enquanto ausência/presença sem

tonalidade especial que o distinga; por essa razão tem um problema, é parte dele sendo o

sujeito não-centrado.

O ator Santa-Clara cujo nome identifica António Claro em quem o filho de Carolina se

enxerga reproduzido é a um só tempo o catalisador das experiências pessoais de Tertuliano.

Vai direto às emoções mais íntimas, no amor que ele descobriu sentir por Maria da Paz,

aquela por quem Máximo havia decidido unir-se, é agora objeto da ambição de Claro. Recuo

por um lado avanço por outro, congrega, entretanto, os aspectos de natureza proteiforme da

qual a duplicação provoca os efeitos imediatamente disjuntivos.

Máximo Afonso admite para a mãe “que estar na frente de um estranho nunca visto

antes e por um instante sentir-se a duvidar de quem era um e de quem era o outro, (...)”

(SARAMAGO, 2002, p. 257) causa espanto, principalmente desorientação. A confusão desse

encontro serviu a ele como ponto de partida para insurgir no papel de desconhecido. A

António serviu na mesma medida com a conseqüência de que usa da semelhança de seu outro

“eu” a fim de se vingar daquela presença na imaginação da esposa, Helena. Como Tertuliano

protesta, ele conclui: “tarde demais, você destapou a caixa de Pandora” (2002, p. 275)

contendo toda a probabilidade dessa presença ser o mal em si a ser combatido, deste modo

resulta num conhecimento irrefreável. Seria também intocável? O que nos permite dizer sem

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margem de dúvida se tratar da reinvenção da individualidade a que se lançam os personagens.

Como o Pós-modernismo, os homens da ficção não são a explicação visada e sim o que tem

que ser explicado.

O homem que é matéria do livro de Saramago alterna a imagem íntegra com a

exposição de sua natureza diversificada. Em razão disto, o narrador passa a enfocar um rosto

reconhecível que acumula dúvidas, começa a avaliar e colocar questões. A sensibilidade

esquecida ganha espaço na vida do sujeito anteriormente esquivo a identificar sabedoria nas

emoções, é suscetível em acreditar que ela não está em si, mas além, reconhece ser preciso ir

ao seu encalço. Processo indiscutivelmente sofrido porque exige renúncia, sobretudo admitir a

ignorância a combater: “o que mais se teme é ser homem.” (SARAMAGO, 1996, p. 255),

fazer-se sujeito individual num mundo multidimensional da realidade radicalmente

descontínua.

A vida dos duplicados aos trinta e oito anos, como diria Jean-Paul Sartre, no auge da

razão, é toda direcionada ao presente imerso na obscuridade. Do passado sabemos o

necessário para a situação de impasse pelo qual passam. O recorte de Máximo Afonso sem

memória a ressaltar; sem percepção do valor pessoal; ser propenso a adaptação ou

possivelmente descartado é a representação da irresolução, a inquietude como versão

inegável. Importuna porque cresceu se distanciou de uma visão única e o mundo

anteriormente ínfimo da experiência cotidiana está no ponto de incompreensão de António e

Helena. Conclusão afinada com os ganhos da Pós-modernidade uma vez que esta não se lança

aos juízos de valor porque não reconhece autoridade na exclusão. Se observamos um

esmaecimento nas formas de sentir, por outro lado cresce no duplicado a estranheza por se

saber excluído e quais as conseqüências disto.

O universo em penumbra do homem vítima da duplicação se intensifica na

interioridade e o faz calar a respeito da instância que mais confunde e pouco ou quase nada

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explica. Depois de saber do caso inédito, os personagens confusos acerca não só do mundo

também de si e de saber como agir, vão se colocar à espera: de uma carta, telefonema,

encontro, saída, enfim, de alguma coisa capaz de auxiliá-los. Lembramos que o homem no

romance deseja se libertar da idéia de ser visto como matéria em composição com outra.

Enquanto isto não acontece, os filmes nos quais o artista figura e Tertuliano assiste, apresenta

em seus títulos um pouco daquilo que o pacato professor perdeu e/ou acreditava: De Braço

Dado Com a Sorte e A vida Alegre, o mais apropriado ao que vive no momento chama-se O

Paralelo do Terror. Ele que se vê espedaçado, na indeterminação intensifica a desconfiança

sobre todos, principalmente sobre si.

O contexto nos leva a acreditar não haver exagero, nem algo de inumano no

acontecimento do duplicado no livro, primordial mesmo é a vivência de um “eu” de duas

caras, ocupando-se de si. Quando António reconhece que ele e Tertuliano são “iguaizinhos em

tudo” (SARAMAGO, 2002, p. 276) toma a iniciativa de vingar aquela humanidade indiscreta.

Comunica-lhe a intenção de passar a noite com Maria da Paz; motivo de um protesto inicial

logo abafado pelo artista impondo sua força: “você não é homem para mim.” (2002, p. 277).

Resta a Máximo um olhar de ressentimento, argumento inexpressivo abrindo diatribes mudas

concernentes a uma resignação de quem não pode escolher entre o ardil e a coragem. Ele é a

imagem da Pós-modernidade enquanto lugar onde encontra-se a oportunidade e o perigo.

Apelar para o silêncio seria a resposta? Simular concordância? Até que ponto podemos

entender os habitantes do mundo narrativo pintados à luz de um escorço do homem atual?

Sem medida, vistos em estado nascente, é como se o narrador colocasse os personagens à

margem de uma vida nova ou mesmo correspondesse a uma tentativa diferenciada de viver

que implique o abandono da idéia de obrigatoriedade em se fazer uma escolha, independente

de qual seja.

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De todo modo, saber a respeito da autenticidade (no caso, pseudônimo?) em que se

instaura a inumanidade no caso inaudito da pessoa ver-se repetida é aceitar as armadilhas que

isto possa oferecer. Frente ao nivelamento, surge o paradoxo; o mesmo espaço coaduna

valores. Tertuliano não tem coragem de avisar à Maria da Paz sobre com quem ela dormirá a

última noite, nem de continuar a vida de António Claro, a pedido de Helena. Fica às vésperas

de um gesto: “quase abraçados, quase juntos, à beira do tempo.” (SARAMAGO, 2002, p.

314). Nossa interpretação não se limita a entender o aprimoramento de uma virtude ou

questionar os defeitos da existência dupla do homem na obra de Saramago. Quer antes

destacá-lo em relação direta com a transformação do sentimento que experimenta; incitado

pela preocupação de si; intrigado com sua procedência, cópia à procura de imitar o original ou

vice-versa, propomos por isto enfatizar o lugar ocupado pelo homem da Pós-modernidade

num mundo cerceado por objetos, ao que a literatura subverte.

O homem duplicado na diversidade do modo de estar no mundo não se vê pelo

acúmulo em relação ao seu possível substituto na vida. Sem referências, o mascaramento que

esconde o que vai por dentro do personagem, antecipa o que a fachada externa apenas

encaminha. O duplicado de Saramago está distante da sobriedade, não apela para o absoluto

quando encurralado pelo dilema. É vítima e algoz. Desconfia não do que sabe, mas do que

não sabe e a simplicidade de antes é substituída por uma preocupação em dobro acerca de um

“eu” sem perspectiva, enredado pelas circunstâncias. Admite o jogo da existência, mostra-se

confuso ao fazer opções, quando ocorrem. O existente nesse personagem se dá de outra

maneira: na curva, na esquina; enche-se de angústia, alimentado pela intranqüilidade.

Assoberbado não com os deveres escolares por corrigir, porém com a vida instando-o a passá-

la a limpo transforma-se na justificativa última de seu figurar no mundo.

Assim como as emoções mais violentas pareciam amortecidas no personagem, elas

acumularam-se e à semelhança de um dique sem resistência, estouraram algo retido por não

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ter condições de permanência, o que fez o homem duplicar-se. Com reservas, medo do

ignorado, sobretudo levado pela curiosidade se envolve na vida que não mais lhe pertence,

pelo menos tão exclusivamente. Num crescendo, da sensibilidade comum o protagonista vai

até o romper com a mimese por meio da intervenção vista como a diferença a se instalar entre

os homens da duplicação.

No afã de se movimentar continuadamente no intuito de se melhorar, o homem se acha

imperfeito, inacabado, o que ele chama na ocasião da descoberta inusitada: ser um erro.

Concluímos disto um “eu” instruído por outros passos mesmo que isso resulte em mudanças

na concepção de verdade. O homem que se dividiu em Saramago adota uma representação

para si mesmo ao buscar algo distinto da convenção. A segurança e confiança em si caem por

terra quando o outro passa a integrar a vida de riscos. Como conseqüência, o mundo de

Tertuliano Máximo Afonso, abalado pelo dado concreto, documentável: a existência de

António Claro, seu igual; sai da opinião favorável de si e entra no labirinto de dificuldades.

Conseqüência previsível é desconfiar do “eu” persuadido de ingênua inteireza. O sentimento

que aflora no episódio da existência ultrajante porque parecida e, no entanto, tão diferente, é a

impotência em adaptar-se ao limite ou à extensão do problema. O que não deixa de ser uma

ampliação do arcabouço interpretativo sobre o mundo que o personagem apresenta.

Como o narrador faz questão de reforçar, o professor Tertuliano não pode ser visto

enquanto representação da espécie humana, mas uma parte dela no que tem de despreparo,

falta de talento. Desnorteado pelo absurdo em que está atolado fica inerte na hora que deveria

se posicionar. Os erros lhe atormentam e ao invés de sugerirem o interesse ao desenlace,

colocam-no: “olhando sem ver, corrigiu o que estava certo e pôs uma mentira no lugar de uma

verdade inesperada.” (SARAMAGO, 2002, p. 38) Ou coloca como verdade a mentira, por

exemplo, a vida regrada de todo dia alterada pela notícia da duplicação. Em outros termos, é

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“obrigado” a aceitar a inconstância das pessoas. Agora mais atento às sutilezas e

complexidades no seu entorno.

Ambos os personagens de O homem duplicado postulam entre a resignação e a ação,

condenável ou não é imagem de um pensamento ansioso por fugir do rótulo, embora pareça

não se mostrar como é. Os acontecimentos humanos provocadores da dureza do olhar, mais

ainda, a mudança em outra pessoa, fez de Tertuliano a reprodução da necessidade humana de

liberdade e diferenciação. Preso pelo nexo de contradições em que se vê enredado, ele emana

a crise do homem não mais depositário de um poder social por exemplo. Tal crise

disseminada nos espaços trilhados faz o duplicado ter uma experiência que não podemos

tachar de individual.

O enredo do livro de José Saramago é eivado pela intensidade sem precedentes dos

protagonistas que recai na busca por uma “(...) procedência, o original que procura imitar.”

(SARLO, 2002, p. 25). Cambaleantes, em ritmos dissolutos, Tertuliano e António entram

numa disputa cujo vencedor pode ser o derrotado, o que faz o narrador pensar acerca do que

valem as vitórias. Isto equivale a assegurar terreno onde os fragmentos da subjetividade

possam ser a base do indivíduo. Relações difusas marcam a vida dos dois, postados no limiar

da instabilidade forjam comportamento insuspeito ao bom senso. A existência dos gêmeos

enviesados no romance faz vir à tona o mundo da Pós-modernidade com seus estilos e

padrões de vida que se aglutinam nas diferenças. A região fronteiriça (o desejo à

particularidade) desse homem preocupado provoca-lhe a atitude de querer saber o sentido

ignorado de si, do mundo.

Num tempo em que o homem não suporta a própria dimensão e se enxerga produção

em série com relação à incompreensão; a réplica da imagem se torna uma questão de tamanha

importância que o personagem enquanto simulacro de si irradia a perfeição discutível. Com o

problema posto, a narrativa contemporânea discute as coisas humanas em primeira ordem,

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pois já não são possíveis de se ignorar. Temos o narrador detido na ocupação dos

protagonistas: um a ensinar a História dos homens e outro a viver a vida de outros homens na

arte da representação, com tudo de contentamento ou não nas respectivas atividades. Em

contrapartida, tais afazeres não nos relatam quem é o homem que pesquisamos. Ainda outra

vez a temporariedade denuncia a marca da vida desses personagens.

Tertuliano Máximo Afonso encontra-se na intersecção entre a vida costumeira e o que

o narrador chama de “eterno retorno” (SARAMAGO, 2002, p. 79) da tensão provocada pela

verdade almejada. Esta, lançada no desenrolar de um presente sempre conturbado, propenso a

discussões continuadas é sinônimo da criatura humana se desvencilhando de um passado por

demais conhecido, outrora nivelado em função da superficialidade. Isto gera um sentido de

“eu” para além do sensível em se tratando do quê apenas as palavras sugerem.

Grandeza, inconveniência de ações são passos amiudados dos personagens

contemplando a vida recomeçar pelo viés da duplicidade, prestes a atingir a rebeldia quando

se pensa nos antigos gestos de moderação e constância da vida singela que pensavam

dominar. António/Tertuliano – original/cópia aviltados em suas inteirezas após a surpresa

inicial entram em desarmonia no fazer e dizer, pois começam a se preocupar completamente

com o que ocorre dentro deles e seja passível de se notar um no outro. É compreensível a

reação do professor em querer abandonar tudo, se refugiar no anonimato e o erro no qual se

vê convertido servirá de traço de união à vida do ator – aquele elo indesejável. “O seu outro

eu” (2002, p. 89) exibe superioridade ao lidar com o conhecimento de si mesmo evitado por

Tertuliano, dele questionamos: como assegurar a pessoalidade? Neste ponto, porque criticar o

outro se o erro também é dele, se considerarmos sua relação tão próxima do senso comum?

Homem de Letras – homem capaz de ação, o duplicado é alguém que junta em si o

silêncio e a eloqüência; a força da razão e a impotência do vazio, resultado do momento atual.

Como então, interpretá-lo? Dissecar seus posicionamentos? É viável impor regras de

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observação quando o que temos são condições de existência díspares, num mundo avesso à

ordem? A débil coesão entre eles pode, contudo, enfatizar os aspectos contingentes e

acidentais sem os quais não poderíamos falar do homem na Pós-modernidade. Personagens

confusos e distraídos sem uma localização fixa almejam a subjetividade escamoteada na

alteridade sofrível.

A certa altura do texto o narrador exprime: “o balanço das vidas humanas joga

constantemente sobre o ganho e o perdido,” (SARAMAGO, 2002, p. 108) isto referindo-se ao

duplo feito do duplicado se ver rascunho e versão que se quer definitiva; em luta a fim de se

conceber além da conformidade. Ficamos na ponderação dos atos, a indicar a discrepância na

vida de ambos, colher os detalhes hábeis à fuga da correlação porque já não importa como a

princípio, ter o privilégio de se saber nascido primeiro. Para além, há o direito de diferimento,

seja na perspectiva de Tertuliano ou na de António. O que se propõe sobrepujar é a

determinação anunciada pelo futuro. Nisso, junta-se o medo da morte ao lado das várias

opiniões, enquanto qualidade mais universal e comum dos homens. A face hedionda de um, a

vontade de suprimir a essência humana do outro, confluem a desmantelar o processo da

verdade de ambos; pode ser simplificada como tortuosa, desigual e acidentada porque

multiplicada.

A vida do homem, gênero universal, do povo, comum ou mesmo brilhante em seus

achados, mesmo ainda pela total ignorância da íntima relação entre a consciência manifesta

ou não, como notamos em O homem duplicado é a matéria-prima trabalhada pelo narrador.

Há o risco assumido pelo leitor sem pré-requisito de interpretação estabelecido, a não ser

entender que a vida dos personagens vem de um movimento irregular, de formas múltiplas,

porque os homens embora de aspecto igual, não são a mesma pessoa. Em si, as questões da

vida cotidiana ficam sujeitas à acomodação desconfortável, o homem tampouco está

satisfeito. Transforma-se numa natureza introspecta, num eu de dois corpos, dois problemas e

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um silêncio agora estarrecedor. A sabedoria pulula desse contexto e não dos livros de História

que o professor ensina, sequer está presente nos roteiros de filmes feitos pelo ator, espalha-se

no perambular em dissimetria de ambos. Então, ficamos a nos questionar como algum sentido

de identidade pode ser moldado e sustentado num mundo assim especificado?

Se por um lado, a narrativa volta-se ao aparecimento de uma existência por demais

conhecida para se ver repetida, por outro discute a humanidade sem retoques cuja

performance nunca é igual. Sem trabalhar conceitos ou mesmo expô-los, o romance da

história de homens à beira do tédio, arvora-se na combinação de velocidade e desvanecimento

típicos de um mundo saturado pela repetição. Da efemeridade com que tudo acontece em suas

vidas, retiramos a nova maneira de sentir e pensar que a Pós-modernidade faz ver. Se os

homens sentem o peso da duplicação, o espaço em que ocupam cria a oportunidade deles

provarem nova imagem antes despercebida.

O Daniel Santa-Clara que não consta na lista telefônica, retrato vivo de Tertuliano

Máximo Afonso, também é alguém que anuncia fase inédita de vida deste; qual seja, agir de

modo a assentar no lugar devido, a prudência antes valorizada em excesso. Admite com isso o

despropósito, a perturbação oriundos da situação inesperada: “(...) tinha feito tudo quanto

estava ao seu alcance, de irresolução ou timidez ninguém o poderia acusar.” (SARAMAGO,

2002, p. 119). O que indicia a exploração da diferença e da alteridade que o romance lapida

em clima de Pós-modernismo.

Os sujeitos fractais e descentrados da Pós-modernidade formam o encontro de

imagens reveladoras de uma série ininterrupta. Contudo, o dado humano presente em O

homem duplicado faz com que haja uma espécie de rebelião contra o anunciado ao exigir

resposta. Esta pode aparecer na complicação da vida ou na cerzidura frágil da realidade

destinada aos personagens. Embora, não haja espaço para escolha muito menos

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aperfeiçoamento a discutir quando é o homem sem referencial, feito de sentimentos e idéias

em permanente contradição que encontramos na obra de José Saramago.

Como assegurar sentido no homem atravessado pelas dúvidas? É cabível propor

alternativas no instante em que a duplicidade amarfanha os espíritos? Lançar um olhar cuja

consciência é de uma experiência confusa, faz surgir muitas interrogações numa humanidade

situada onde a margem é difícil precisar. A indefinição e imanência típicos do homem que

transita no universo pós-moderno visto como uma espécie de mudança literária sugere um

tipo diferente de acomodação; porque conhecer sua vida, receios, sensações é assunto

misterioso, por vezes complexo e é justamente isto a grandeza da narrativa: a imprecisão no

que tange ao entendimento mútuo dos personagens. Há satisfação fugidia (retorno da

vontade?) por se alcançar determinado objetivo traçado em curto prazo, como o diálogo com

o outro “eu” de Tertuliano. Conversa a qual ele “sabia que ganhara, mas também se apercebia

de que havia na vitória uma parte de ilusão, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 126) antevendo

adversário mais forte, à semelhança da tática exclusiva de quem perde estrategicamente. O

que não deixa de ser uma mudança no modo de olhar/interpretar o humano cogitada pela Pós-

modernidade.

A imagem exata do protagonista do romance que não se mostra tal qual é, tem a

conseqüência da desintegração da forma impassível dele se relacionar num ambiente à

primeira vista circunscrito ao mundo familiar ou do trabalho. Mas, se ampliarmos o horizonte

e o colocarmos em contato direto com sua outra versão projetada na tela, veremos o quanto se

instala o mal-estar nesse personagem. A melancolia subjacente ao dualismo exclui qualquer

forma de supremacia vista em cada passo dos personagens, verificamos por seu turno, o

anúncio de algo capaz de nos fornecer elementos de compreensão no trato com o homem

deste livro. Entretanto, é o impalpável que nos chega cada vez com mais intensidade: seja a

ilusão da vitória, seja o reconhecimento daquele que melhor empreende a busca; ele aparece

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de forma ainda mais reiterada para traçar os contornos humanos (delineáveis?) desses

habitantes da narrativa portuguesa.

Vida, idéias a despertar, consenso pouco provável colidem no homem duplicado,

aborrecido pela imersão na impessoalidade, repleta de sobressaltos. Tudo o que começasse a

partir da descoberta da duplicação, seria pautado pela desconfiança de não se tratar de ação

individual e sim da multiplicação de sucedâneos não nascidos de uma única vontade. É o que

o narrador chama ironicamente de “uma nova e revolucionária concepção do espetáculo e da

vida.” (SARAMAGO, 2002, p. 130) o que vem a ser o desnudamento das ações egoístas do

homem. Tertuliano Máximo Afonso que teme a opinião alheia deseja aprovação sem merecê-

la; considera a mãe uma pesada carga, no fundo, receia as verdades embutidas no fato de

ensinar algo que não mais acredita. Atos mínimos, mas reveladores de um caráter duvidoso a

exemplo da carta escrita a Daniel cuja resposta seria endereçada à Maria da Paz; a mãe é

alguém a quem ele não consegue esconder os sentimentos e é capaz de lhe atirar sem rodeios

as incertezas e falhas ao seu redor. Diante disto, o comportamento dele passa ser de um

homem cabisbaixo, fronteiriço da angústia tecida na complexidade redutora. Homem da Pós-

modernidade recusa o novo; inventaria desculpas, fazendo-se vítima da intensidade nos

sentimentos sem tréguas; porque um desejo no presente é sempre apenas o outro lado de uma

ambição sem controle. Vale lembrar que a existência do personagem assim arregimentada,

insurge em espanto visto a distinção entre aparência e realidade se desfazer na medida em que

temos “o homem repensado pelo homem” (SARTRE, 1989, p. 139).

O temor de Carolina Máximo sobre o despertar do filho às questões da existência,

funciona como alerta a que Tertuliano pressente. Entretanto, a uniformidade interposta – é

preciso ressaltar que a identidade não sendo mais possível delimitar entra no processo de

mistura, hibridismo sem o qual não podemos falar desse homem duplicado – da figura de

Daniel oblitera as intenções de mãe e filho. O lar materno, o refúgio daquilo que o deixa

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abatido é uma parada com tempo determinado, alheamento contrário à ação humana

visualizada em sua conduta. Como a questão dual é fundamental para situarmos o homem

nesse tempo em andamento, a volta do protagonista à metrópole, culmina com a idéia

segundo a qual, a possibilidade de haver algo em comum na história de vida dos homens em

dispersão é apenas um capítulo num roteiro sem final escrito. Atrai o movimento previsto,

quase o controle do vídeo, também a quebra das regras do jogo (entenda-se, identidade) se

jogo houver, que o estimula ou o incapacita enquanto pessoa.

Muitas são as imagens encontradas pelo professor a título de comparação para a

história que vive e sem querer protagoniza. Uma delas chama atenção pela riqueza de

significados: retirada da história natural, nas palavras do narrador: “o fez olhar-se a si mesmo

como uma crisálida em estado de recolhimento profundo e em secreto processo de

transformação.” (SARAMAGO, 2002, p. 142). O insólito em que o personagem havia se

convertido já era a metamorfose com ou sem sua permissão. O fechamento, como o da flor,

indica o nascimento que pode não acontecer e se o for, não de maneira previsível, esperada,

com formas diferenciadas. Por isso incomoda, trata-se de pessoas, ou melhor, personas

narrativas prestes a se descobrirem com tudo de inapreensível que isto possa trazer. Nesta

perspectiva, não há como alegar despreparo; falta de intimidade com as palavras; gestos

mínimos são lições retiradas de um hermetismo potencializado, porque a vida está ampliada

no romance O homem duplicado.

Igualdade simbólica? Exterior que não denuncia mais o interior? Fato é o romance

dispor de consciências intranqüilas, não sendo uma narrativa psicológica. Tertuliano que é

António por sua vez é Daniel e de novo António confuso com Tertuliano, que se torna por

pouco tempo António e logo em seguida não sabe quem será, formam um conjunto com

capacidade de um ou ambos se perguntarem o que fazer da vida. Há alguma medida sobre

suas verdades? Em que ponto enunciar uma diferenciação cada vez mais distante? E a

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igualdade onde? Estamos diante da exposição, da ridicularização, crítica a supervalorização

que a aparência tem nos tempos pós-modernos. Semelhanças de superfície caso retiremos as

camadas protetoras (leia-se a barba e o bigode trocados pelos personagens quando querem

parecer-se), teremos aquilo em que se disfarçam. Num olhar mais atento: seria o imensurável

nada que os afugenta? Da mesma forma em que não podemos restringir a presença de

Tertuliano à totalidade da imagem veiculada por António, a inovação do que eles representam

é outra face da parcialidade com que querem ser conhecidos; longe da idéia de cópia, cada um

à sua maneira pretende o domínio que sua imagem deflagra.

Ser repetido com pequenas variações é motivo para Tertuliano Máximo Afonso

duvidar de quem era quem num espelho em prospecção. O trabalho fica desinteressante, o

convívio com as pessoas enfadonho quando o inimigo, se assim for, tem seu rosto. O bem

estar anterior, multiplicado ao contrário resulta numa vida cujo descortinar figura o

indefinível do romance, a cota de reserva na qual transita Daniel Santa-Clara. Este, o tipo

original de Máximo que ele não deseja ver e, no entanto, o procura, precisa daquela ilusão,

como se a presença do outro fornecesse a matéria de complacência existencial do professor. É

inevitável atribuir ao ator dos filmes a liberdade não desfrutada pelo duplicado, desde a

carreira promissora até o casamento estável daquele, enquanto Tertuliano é fraco e só.

Assenhorear-se do trajeto de personagens cujas vidas foram embaralhadas, pode

conduzir à idéia de que constituirão uma vida em comum, porém isto não se dá, na medida em

que ela passa ser lenta para ambos e isenta de um sentido despercebido por eles. Predomina o

absurdo, o sem razão de existir causando estremecimento nos interesses tão bem localizados

antes.

Vida pós-moderna, homem pós-moderno sem eixo, de movimentos desencontrados,

ofuscante para si mesmo e ao outro, é surpresa por trás de outra envernizada de

previsibilidade. Não é possível por isso manter a distância e a diferença tão requisitada “é

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meramente inevitável, porém boa, preciosa, e precisando de proteção, de cultivo.”

(BAUMAN, 1998, p. 44). Quem sabe se é esta a razão para que José Saramago tenha

construído seus personagens? A diversidade na individualidade? Em qual se ela está em

disputa? Se colocarmos em discussão a indiferença que ronda os personagens, teremos como

pré-requisito a mudança no modo deles se colocarem na existência a fim de garantir aquela

diferença que possa identificá-los.

Homens elevados à potência de ruína iminente, António e Tertuliano não habitam no

mundo das explicações, ao contrário, estão na ausência delas. A distância a ser vencida não é

a de um futuro bem elaborado, porém o de intermináveis escaramuças móveis. Ser duplicado

é ser vazio; é estar de prontidão para o que há em si de amorfo; abrir-se ao vácuo invasivo,

destruidor. É nesta perspectiva que os homens do romance se localizam, visando não ser

cópia, nem espelho ambulante. Os trinta e um minutos que separam pelo nascimento o

professor de História e o ator de cinema apresentam o pensamento vago e indelével de que

haja um tempo de “identidade pessoal, absoluta e exclusiva” (SARAMAGO, 2002, p. 221).

Em última instância, eles compreendem que isso é possível, mas não é certo. A morte em

pauta poderia atender aquele desejo em comum de um não ser o duplicado e o outro não

precisar repartir a própria imagem.

Zygmunt Bauman em O mal-estar da pós-modernidade (1998) nos amplia a

compreensão dessa época ou estilo que encontramos no texto de José Saramago, embora

saibamos das repetidas recusas do romancista em identificar a sua narrativa de pós-moderna.

O homem duplicado atinge aquele estágio no qual a liberdade do indivíduo em ser aquilo que

pensava é questionada. O universo humano deste romance, sendo riquíssimo de questões, é

também o espaço para os personagens repensarem

sobre seus fundamentos e razões, ressaltar[em] as discrepâncias, expor[em] a sua arbitrariedade. É por isso que a chegada de um estranho tem o impacto

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de um terremoto(...) o estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. (BAUMAN, 1998, p. 19).

Acontece que o estranho neste caso é reconhecível, tem o mesmo aspecto, corpo, trejeitos,

sinais. Contudo, é distante estando junto daquele que se julgava ímpar. O intrigante na

proposição do teórico correlacionada ao romance cuja interpretação nos empenhamos, é saber

ou mesmo arriscar sentidos do que venha a ser os alicerces e razões do homem duplicado.

Quais as implicações disto nas suas tomadas de decisão? Quem é estranho para quem na

ambiência narrativa? Porque a semelhança arranha a transparência?

O professor Tertuliano independente de ser o duplicado e o ator, António, são homens

cujo projeto de vida não conhecemos após saberem de sua nova condição existencial. A

identidade individual é objeto de intensa incerteza. Não digo aquela expressa no documento

que Daniel obriga Tertuliano a lhe ceder junto aos demais objetos pessoais, a fim de dar cabo

de seus propósitos escusos, mas o resultado do aparecimento de um na vida do outro. Isto

resulta no abalo da interioridade satisfeita do passado. Neste sentido, é bastante salutar o

episódio no qual o duplicado se envolve logo após certificar-se de que o ator barbudo era ele

com outra natureza. Travestido em Daniel, não foi suficiente olhar-se ao espelho, era preciso

uma prova contemplativa que ao mesmo tempo pudesse lhe dizer: “este sou eu”

(SARAMAGO, 2002, p. 165), com a porção de peculiaridade, a consciência plenamente

distinta de si. Entretanto, o impacto do instantâneo, da meia dúzia de retratos confirmando ali

outra pessoa, provocou a firme decisão de queimá-los. Há nisso clara ressonância de que o ser

humano estampado no papel e o da vida nas telas, ocupar-se-ão do tempo íntimo feito com os

mistérios da existência.

O caráter inconclusivo do homem no livro em que se duplicou, resvala na falta de

contentamento, nesse algo a mais que não se alcança. A responsabilidade por uma identidade,

nas palavras de Bauman (1998, p. 114) é o eixo da estratégia de vida pós-moderna na qual

não se pode detê-la – mas evitar que se fixe. Daí a sensação em foco ao longo do romance de

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que a imagem específica do homem se parece a um jogo de pingue-pongue. Obsessões à

parte, assim como essa responsabilidade muda de acordo com as angústias da hora, as

fronteiras rígidas que os personagens adotavam em se tratando de saberem de si, arruinaram-

se porque as verdades são outras e eles, cheios de hesitações, avançam ao encontro do

princípio de humanidade.

Não sabemos exatamente onde as ações se passam, o tempo é estratégico e há um

esforço concentrado do narrador em incorporar o não-representável, no caso a duplicação. Ela

é causa de sofrimento por se tratar de um mundo humano cujas proporções significam

elaborações perenes. Tomando-se como erro já apontado páginas atrás, o homem duplicado

mais cônscio da variação de vida a que está sujeito, entende o erro como laço capaz de

prendê-lo ao original. Apesar de estar contrariado, é inevitável ao seu contexto atrelar-se ao

querer de outra pessoa cujo cuidado com a vida ele ignorava. Não há projeto de vida

individual já que a identidade está à deriva.

Seguindo a linha de raciocínio que adotamos, apostar na desigualdade daqueles

homens é ir além do previsto; estão vivos em busca de uma sabedoria anterior a eles; homens

amiudados numa precisão milimétrica em homens destituídos de sentido, a exatidão é,

sobretudo invasiva. O homem duplicado mostra um procedimento, quer expor a indiferença

pela vida de nada e em nada resultante. Uma vez surpreendido, o homem tem nos

instantâneos a negação da identidade, além do mais eles evocam, solicitam significado. Entre

perdas e sofrimentos podemos falar de recomeço? Do quê? De quem? Mergulhados na

escuridão, os personagens dessa ficção fazem ver o avesso da individualidade que no estágio

alcançado pode responder o que é o Homem.

A estátua em movimento, a transformação em vista embaralha o que parecia

compreensível: “agora que se via convertido à situação de outro de Tertuliano Máximo

Afonso, mais não lhe restava que tornar-se António Claro que o mesmo António Claro

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abandonara.” (SARAMAGO, 2002, p. 283). Neste trecho observamos o contágio da

necessidade da busca de si ecoando a harmonia perdida que o duplicado difunde. Sairia

incólume do disfarce? Ver o mundo novo com os olhos do outro, encontrar tonalidades

impensáveis acabaria com uma provável admiração. Os trinta e oito anos que os dividiram,

formaram por outro lado o espelho, próximo ao insipiente em mostrar aquilo que

intencionavam. Desferido o golpe da divisão, António-Tertuliano ou vice-versa, expressam

uma verdade sem objetivo; perfeição em debate porque nunca testemunharam alguma coisa

desse teor. O único não pode ser apontado: é de incompletude que falamos; do tempo

congelado, do homem fracionado. O futuro eles não discutem tal a urgência do presente sem

respostas, apenas com a certeza da dor e do medo. Porta entreaberta para que possamos

prosseguir nossa interpretação, impõe-se a imagem do homem que se arrasta curvo e

encarquilhado pela novidade por demais conhecida, ao resumir-se numa sentença a ser

montada.

Tertuliano regressa ao trabalho certo de que deveria ensinar História de forma

invertida. Esta ação marca de forma incisiva a interferência do personagem no lado concreto

da vida. Também não deixa de ser a recusa em compartilhar no engajamento absoluto que

seus colegas de magistério representam. Tal inversão o mestre de História visualiza em

relação à vida das pessoas numa clara alusão ao desconhecimento de si e do outro que ele só

viu “como aquilo que não é” (SARAMAGO, 2002, p. 196). Se, à primeira vista, António

encara a situação de modo a tirar algum proveito (fazer de Tertuliano dublê nos filmes) ele

igualmente recai no silêncio exigido pelo problema, cunhado pelo narrador de “fenômeno da

natureza” (2002, p. 191). Não podemos insistir na acentuação de particularismos

subordinados ao diferente porque é o igual que toma conta da narrativa, sendo, entretanto,

uma igualdade esquisita, de pontas irregulares. O que entendemos como o diferente que a

Pós-modernidade apanha enquanto atributo necessitando de proteção e cultivo. Podemos sim,

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afirmar com convicção que os episódios separam os protagonistas. Tertuliano ao contrário de

António, em princípio não quis se aproveitar do fato de se parecerem teve apenas receio por si

e da perda de privacidade, caso o assunto vazasse para terceiros.

A literatura abre-se para universos distintos que se juntam, se cruzam na

excepcionalidade da duplicação do homem. As fotografias dão testemunho da “variedade”

onde antes havia experiências não compartilhadas, com o encontro os personagens vistos

como configuração do humano: “são o que somos, mas de maneira mais tensa, mais precisa,

mais nítida e também mais ambígua.” (SARLO, 2004, p. 126). A experiência humana exibida

dessa forma faz a narrativa percorrer caminhos impensáveis para quem não internalizou os

procedimentos pós-modernos, ou seja, que a escrita da prosa pode tratar de uma sabedoria

perceptível assim como daquilo que talvez nunca saberemos. Tudo em nome de uma

humanidade cada vez mais atenta e presente no mundo literário. Não se justifica tratar de

vínculos entre os personagens neste texto porque eles estão rarefeitos, tampouco aventar

modos de comportamento capazes de identificar um padrão humano universal. O cenário pós-

moderno se nos afigura sob o preço da renúncia a “indicar as novas trilhas para o mundo”

como postula Zygmunt Bauman (1998, p. 129).

A produção literária de José Saramago fala de um homem que faz o percurso inverso

da caverna. Cá fora, na claridade, as coisas e as pessoas não são tão nítidas quanto levava crer.

Em conseqüência, o homem do presente duplicado investe na escuridão da interioridade

escancarada na sombra permanente à sua frente. Não basta ao professor rever-se no ato de

transmitir conhecimento aos alunos, experimenta ao invés disso uma forma tergiversada de

verdade que lhe extingue o senso de propriedade. António e Tertuliano ao descortinarem-se,

perdem a espontaneidade por meio da pergunta comum a ambos: como prosseguir? O

presente deles está a reivindicar lugar no mundo que é incerto e difuso. Querer sôfrego

resultante dessa situação provoca “a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência

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de pontos de referência duradouros, fidedignos e sólidos que contribuiriam para tornar a

identidade mais estável e segura.” (BAUMAN, 1998, p. 155). No duplicado existe uma

insatisfação no ar comumente associada à frustração: ser obrigado a ceder terreno. Ele e o

outro, cada um a seu modo empenham-se na localização de um “eu” diluído. Borboleta no

casulo, professor e ator querem as intermitências de dentro, não são mais os mesmos.

Os efeitos de Quem Porfia Mata a Caça foram além da mera assistência, provocaram

as sutilezas e matizes de quem porfia por si mesmo, inutilizado para as ilusões. Chamariz, o

filme trouxe consigo as luzes do holofote de quem era o coadjuvante; nisto, realça a procura

feita de espera no compasso da existência interferida. A pausa prepara o “ser como uma pedra

que onde a largam fica, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 151) para em seguida ser sacudido com

a virulência da duplicação. Este “algo não realmente vivido” (SARAMAGO, 2002, p. 157),

faz aquela parte de si ausente, faz o homem pensar em alívio enquanto teme a decepção,

pesados e medidos conforme os embates.

José Saramago como profissional literário toca fundo nas questões típicas do mundo

pós-moderno. São os mal-estares e aflições humanas sem explicação nem significados

correntes. A ficção, base de nosso estudo ao projetar a nova desordem do mundo não vai ao

encontro de uma configuração inédita, quer isso sim, postar-se nos meandros da frágil

austeridade humana. Perpassa em O homem duplicado a consciência de que a existência é

demais; é excessiva porque pouco compreensível. Todavia, há liberdade de ir e vir, motivos e

carências atestados às custas da falta de segurança em se expor. Habitantes na incongruência

das seqüências, os entes de ficção transitam durante as arbitrariedades de suas vidas. A

literatura por eles formada, conjugada, dispensa os prazeres arranjados; as rimas fáceis e

prioriza por sua vez, o desconhecido duplicado. Este, pode não chegar ao encontro da verdade

sobre si, entretanto, o fato de se lançar ao seu encalço dá legitimidade à faceta humana que os

personagens têm.

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Distante dos outros e atarantado consigo, Tertuliano Máximo Afonso sob pressão,

corrige os erros dos alunos encontrando nisso uma provável emenda na mentira que vive.

Trocá-la por verdade ou vice-versa no convívio com as pessoas pressupõe assumir a culpa, a

direção e isto, já vimos, não é característica deste personagem. Estranhezas à parte, a

manifestação do mundo normal do professor está em polvorosa. A intervenção nas reuniões

com a iterativa proposta de alterar o modo das aulas de História; o ato de esquivar ao contato

com Maria da Paz e mais especificamente daquele olhar esgazeado num momento chave do

romance para o colega dos números, contam de um homem em plena vivência de “um outro

primeiro dia, um outro começo,” (SARAMAGO, 2002, p. 32-33) com tudo que há de

intransponível no transcurso. Aquilatar essa experiência inspira desconfiança; não é o caso de

perseguir o silêncio com as palavras, mas da perseguição do mesmo, por conseguinte temos a

impressão de já antevermos o resultado dessa história em reprise. Por outro lado, a

importância do pluralismo focado em O homem duplicado avança na reflexão a respeito da

autoconsciência enquanto insegurança. Como não podia deixar de ser, a narrativa apresenta

por meio desse dilaceramento, o eu cortado em dois na imersão de um pensamento.

Conforme mencionado O médico e o monstro aponta questões que servirão a

Saramago como forma de expansão do tom ensaísta em sua obra acerca de como a

individualidade nos nossos tempos é algo que se coloca como prioridade em se conhecer.

Ponderemos que o Dr. Jekyll socialmente é irretorquível. Entretanto isto não o satisfazia, seu

querer estava imerso numa vontade maior em não atender requisitos impostos, o que o levou a

ser com maior liberdade, Edward Hyde. O efeito fortemente negativo que este causava em seu

observador também deleitava o médico. A deformidade que as outras pessoas pressentiam em

Hyde equivale ao lapso de caráter demonstrado pelo seu criador na medida em que não se

assumia pleno dos desejos que, ao contrário, Hyde concretizava. Ao bater numa criança ou

espancar até à morte um velho, esse homem não parece ser humano para um espectador da

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cena. Contudo, a humanidade se mostra sem paralelo ao passo que a troca de identidades

alivia a consciência do Dr. Jekyll. A aversão a Hyde não é somente por temor, é, sobretudo

por ver nesse personagem o lado obscuro do ser humano predisposto a ser visto com a crueza

de quem confessa ter perdido a confiança em si mesmo.

O terror profundo que se apodera do espírito do médico testifica que esse lado

medonho aos poucos se amplia a ponto de modificar sua existência. Recluso, o caminho dele

é repleto de escuridão. Assume ter trazido por conta própria o castigo e o perigo capazes de

lhe tirar a paz de espírito. A “situação inominável” que perturba o Dr. Jekyll o faz se assumir

em carta como um duplo do qual não consegue se desfazer. A torpeza moral não de Hyde,

mas de Jekyll em sua “duplicidade de vida”, revela o quanto este esconde da própria

identidade nos atos furtivos, porém mais verdadeiros daquele quase anão. O ápice do romance

O médico e o monstro sublinha a ligação mais forte com O homem duplicado. É o momento

em que Henry Jekyll revela em carta razões e motivos da existência de dois homens no corpo

de um só. Assume-se como paradoxal, com duas naturezas reais dentro de si; o lado moral e

intelectual se debatem a fim de talvez justificar a ambição humana de se conhecer num futuro

próximo “um mero estado multifacetado, incongruente e independente de vários alienígenas

que nele fixam residência.” (STEVENSON, 2002, p. 86); o reconhecimento da primitiva

dualidade do homem faz o médico prever que o lado humano injusto ainda teria seu próprio

lugar longe de aspirações e remorsos. A transitoriedade a que se vê exposto o faz declarar ter

sido forçado a aprender pela maldição e o peso da vida que estes estão perpetuamente

amarrados aos ombros do homem. Podemos ampliar e dizer que são os mesmos ombros

tocados pelo professor de Matemática cuja incompreensão ao dado humano provoca o

afastamento do professor de História. O corpo natural que trazia os elementos mais baixos da

alma do médico também causava a diluição da responsabilidade, da liberdade desconhecida,

fazendo-o escravo da “maldade original”. Na noite decisiva de sua vida ao atingir a

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“encruzilhada fatal” (STEVENSON, 2002, p. 91), vale lembrar que o duplo de Dostoiévski e

o duplicado de Saramago também estão num beco sem saída, o que está dentro não é possível

mais aprisionar. O caráter dividido em dois marca uma mudança em direção ao pior, ao

reconhecimento de sequer existir. Não se discute quem é pior, mas mostrá-lo em ambos os

personagens; a fraqueza moral de quem prepara a transformação, desatento à insensata

presteza para o mal, sucumbe ao demônio encarcerado. O eu aqui se manifesta em pujança, se

segundo caráter ou caráter original não importa, importa isto sim que o horror do Dr. Jekyll ao

seu outro eu implica que ele pode pensar seus próprios pensamentos. Não sabe se o que está

por vir diz respeito a um outro eu ao pôr fim à vida do eminente médico. A mesma ignorância

circunscreve Tertuliano que sozinho no mundo, morto na pele de António, não sabe viver de

acordo com o modelo nem ser original.

Podemos afirmar que a história do professor de forma bastante enfática se desdobra

sobre a noção de como reagem pessoas tão especiais (duplicadas), como enfrentam o desafio.

Há uma separação requerida, entorpecimento por isso, sobretudo há a prática de vida que se

quer peculiar tendo em vista personagens se movimentando em torno de práticas humanas. A

ação fica em segundo plano, o caos de angústia vai para a linha de frente e os homens e

mulheres deste livro ensinam, concomitantemente aprendem a lição preparada por eles

mesmos. A hierarquia do modelo ao mesmo tempo em que causa repulsa, provoca

controvérsias justamente porque está impresso nos personagens o esforço em se estabelecer.

Encarar o mundo com os olhos da exceção tem sido um motivo recorrente na Literatura de

José Saramago; seja com a cegueira branca; os segredos de uma conservatória; com o mistério

preso à caverna ou a duplicação do homem fadado ao habitual, ao familiar. Os

acontecimentos humanos do romance O homem duplicado fogem ao paradigma ou pelo

menos pretendem. Primeiro por ser essa a sua natureza, segundo porque a falta de adaptação,

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a imprevisibilidade dos modos de ser de cada personagem é o impedimento ao desejo de

proeminência de um deles ou ambos a um só tempo.

A narrativa aplica-se na luta do sujeito em subsistir enquanto aprende continuamente a

se posicionar diante da vida, aqui podemos falar de igualdade em termos positivos. Porém, o

que importa em se tratando do duplicado é qual posição tomar? Assumir qual horizonte? Ser

reconhecido sob qual prerrogativa? Quem é dono da própria imagem? Horizontalidade

dispersa, Tertuliano – acreditamos, numa parcela maior que António – tem à sua frente um

chão de versatilidade (no sentido primeiro de inconstância) pelo que demonstrou até se ver

duplicado. Não havia prodigalizado a personalidade; não argumentava com o fito de

arrebanhar autoridade. Identificado como duplo, fica ainda mais sem iniciativa: externar os

sentimentos, agir em qualquer circunstância, poderia demonstrar o fato de estar, ser similar a

António. Seria o caso dele nunca ter tido iniciativa? Foi do outro, ele apenas repetiu?

Tertuliano se acha então no dilema de ter uma outra vida e também não conhecê-la. Posto

como o eu diante do eu, esse homem sutiliza, irrompendo da igualdade a diferença por se

individualizar.

Por tratarmos em nosso texto de um homem que ensina e ao mesmo tempo é História

com as inúmeras implicações daí resultantes, é necessário discorrermos a respeito de um dos

processos típicos pelos quais o caráter humano é interposto na Pós-modernidade. As

contradições internas dos personagens, formam o complexo de uma situação em que eles dão

a impressão de serem cada vez mais incapazes de produzir representações da própria

experiência. Nesse propósito, servimo-nos do livro do teólogo dinamarquês Sören Aabye

Kierkegaard (1813-1855) cuja obra principal redigida em 1849 indica o que estudaremos: O

desespero humano (2002) junto à narrativa de José Saramago. É um pensamento que convoca

o homem a ousar ser ele mesmo, ousar ser um indivíduo preparado, contudo, a conviver com

a inquietação. O desespero anunciado pelo escritor vem a ser a doença e não o remédio,

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perfazendo assim uma dialética. A miséria é a doença mortal ensinada pelo Cristianismo, mas

ignorada pelo homem, como homem, antes de ser cristão. O aprendizado refere-se à doença

não ao remédio, a cura.

O “eu” do homem abstraído da síntese finito-infinito encontra a vontade desesperada

de ser fixada na incapacidade por meio das próprias forças, de conseguir equilíbrio e repouso.

O desespero por ser é um mal que não acaba com a morte. É mortal porque “quando o perigo

cresce a ponto de a morte se tornar esperança, o desespero é o desesperar de nem sequer poder

morrer.” (KIERKEGAARD, 2002, p. 23). Desesperar por si mesmo, querer sofregamente

libertar-se de um “eu” de convenções para se tornar em “eu” de sua invenção, essa é a

fórmula do homem atingido pela enfermidade a que está destinado não à morte, mas a um fim

interminável.

A opinião comum não entende dessa forma o desespero, ela não se vê assim e muitas

vezes não tem consciência de o ser; isto equivale a uma forma de desassossego. O “eu” é

identificado na liberdade, porém enquanto dialética do possível e do necessário. Em princípio,

como mencionamos o sujeito que qualificamos de desesperado pode não ter consciência de o

ser, é a interioridade que dá a medida exata. O desespero que se ignora entra na fase do não

ser e desejar sê-lo, adquirindo conhecimento e vontade, pressupostos da dialética.

O homem cuja vida tranqüila não o leva à reflexão, quando é tocado por uma

infelicidade, uma causa externa seja qual for, leva-o a se desesperar ou pelo menos o diz. Não

se conhece plenamente, apenas através da imagem exterior. Entretanto, o desespero humano

é/ou exige outra natureza. Ele age por trás da perda temporal, está além do imediato. O refletir

característico faz o “eu” assumir-se inteiramente, responder pelas dificuldades de sua pobreza.

Outrossim, compreende a ruptura entre o “eu” e o imediato. “Aí desespera. Seu desespero é o

desespero-fraqueza, sofrimento passivo do eu, o oposto do desespero em que o eu se afirma.”

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(KIERKEGAARD, 2002, p. 54). O homem trava uma luta com o imediato, todavia não tem

respaldo da reflexão ética fundamental para a consciência da perda de si mesmo.

Há no indivíduo ocupado com a subjetividade, o quinhão de fraqueza por ser ele

mesmo feito de um “eu” infinito, quer chegar a essa condição para dispor de si. Diríamos que

é uma relação consigo de cunho experimental e resvala na arbitrariedade do “eu” passivo,

quando o desespero continua na pretensão de ser de modo pessoal.

Sören Kierkegaard que escreveu em plena efervescência do século XIX foi

ridicularizado em sua época. Atacou instituições, lutou sistematicamente contra o

intelectualismo ao defender seu pensamento em favor do homem compreender por si só a

existência. O existencialismo desse pensador não abre mão da transcendência e imanência de

Deus para lidar com a subjetividade. Esta postura faz com que limitemos sua contribuição a

fim de pensarmos a narrativa de Saramago. O homem duplicado participa desse desespero

assimilado por Kierkegaard, contudo se restringe ao teor humano. Os protagonistas estão em

desespero primeiro pela causa aparente – a semelhança – depois, por ser, ter um rosto próprio,

existência indissociada. Lembremos que a inquietação se instalou na vida de António e

Tertuliano. Estão conscientes, à beira do tédio e o duplicado mais ainda a ponto de desejar o

instante especial da morte do original, a morte libertadora da cópia. Nisso, temos uma

afinidade com o pensamento de Kierkegaard por causa do desespero de não se poder morrer.

Expliquemos. António, colocando em prática a arte de Daniel Santa-Clara, disfarçado em

Tertuliano morre de acidente com Maria da Paz; aos olhos do mundo, foi o professor quem

faleceu. António vive em Tertuliano que disfarçado no ator permanece vivo ao lado de

Helena. Nesse momento Tertuliano não sabe ser ele mesmo nem o outro. Está reluzente a

necessidade de inventar jeito próprio de viver. Mas, para esta finalidade não encontra os

procedimentos ideais, está longe da performance exigida. Qual seria a deixa? Quando, como

agir? Agir mecanicamente seria enterrar um passado no qual a mãe estava presente; era a

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única a saber do segredo: da duplicação como resultado dele ser um homem incompleto,

prestes a deixar de o ser, conforme o trecho: “Há uma parte de ti que dorme desde que

nasceste, e o meu medo é que um dia destes sejas obrigado a acordar violentamente,”

(SARAMAGO, 2002, p. 260). O filho ironicamente chama a mãe de Cassandra, entretanto, o

medo que ela sente prevê a ruína do ser conhecido; o destempero; o descontrole deste

processo é colocado no isolamento em que qualquer ajuda é imprópria. A afirmação surgindo

de dentro é de outra monta, talvez por isso a mãe teme por não estar no cume de uma colina,

nem anunciar o que vê do alto de sua sabedoria.

Se há um ponto extremo de contato entre o romance que estudamos e a obra O

desespero humano, é a acentuação da fraqueza no homem cuja intenção é conhecer-se. A

passividade originada pelo desespero de ser, corresponde ao drama em ter de se colocar entre

o “eu” e o outro. Paralelo a isto é anuir na farsa quando Tertuliano se vê imerso na proporção

de um pesadelo agônico. Viver na pele de uma outra pessoa, não seria ético mais ainda indica

um “eu” que não é, por dedução também não era. Aí, nesse intervalo, aloja-se “a secreta

angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura.” (SARAMAGO, 2002, p. 269).

Sensação bastante apropriada para o compasso de vida pós-moderna conforme Zygmunt

Bauman alerta, fazendo referência ao pesadelo de não estar à altura das novas fórmulas de

vida que o futuro reserva. Na incumbência de ser de Tertuliano, no desespero de causa

aparente por parte de António, há dor, luto, estranhas sensações. Força inútil a da ansiedade

humana, redobra no homem a luta insana por ter significado. Sentimento ardente porque a

custo de bastante renúncia; impulsionado pela curiosidade, passa da fase de nivelamento para

a de inspirar a soltura do “eu”, embora cambiante.

Na fratura do homem cujos fundamentos de valor estão comprometidos, há o que

podemos chamar o fim da utopia de um absoluto. Duplicado, o homem tem como tarefa por si

designada, encontrar, definir quais são esses valores de agora por diante. Esconder quando?

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Onde se mostrar? Com qual rosto? Pode-se ser alguém que nunca foi ao passo que sempre

existiu? Tarefa não significa o homem tomar sobre si uma obrigação, é uma necessidade

sentida, urgente, imprescindível para se sentir vivo além do rosto, corpo, palavras, gestos do

outro. Da estupefação inicial à luta contra a indiferença, o personagem transita no espaço da

interioridade entrelaçada ao ponto de expectativa.

Tertuliano Máximo Afonso, “o inimaginável convertido em realidade” (SARAMAGO,

2002, p. 167) desde o início agiu contrariamente a António Claro, este é influenciado pela

vaidade, tem o ego avantajado. Não é o caso de assegurarmos que aquele admitiu o fato como

situação comum. Omitir a descoberta; levá-la ao conhecimento do único interessado; avisá-lo

de que era impossível se sentir o mesmo após isso; não suportar olhar ao espelho e desconfiar

se se trata de uma imagem real ou virtual, são etapas da disputa (exterioridade x interioridade)

travada pelo homem, o que resultou na duplicação, antepasso da capacidade dialética que os

aproximam. Também encontramos em Desespero (1966) de Vladimir Nabokov (1899-1977)

publicado em [1932] aquela ressonância discutida com o livro de José Saramago.

Hermann Karlovich um homem de negócios falidos e vida aborrecida durante uma

viagem à Praga encontra o mendigo, Felix Wohlfahrt, idêntico a si. Além de péssimo

comerciante e candidato a escritor, Hermann se julga superior às pessoas ao seu redor;

imagina poder manipular situações e principalmente os outros. Não poderia deixar de ser

assim com o homem cuja fisionomia e biotipo são os seus. A atmosfera do romance transcorre

dentro do previsível em se tratando de um homem que conta sua vida em clima abúlico: a

esposa pouco inteligente, o primo dela, um artista sem talento sempre por perto e o sósia sem

história formam o universo controlado por Karlovich. Mesmo com a descoberta de Felix não

podemos visualizar ainda o desespero do narrador. A trama se complica e este sentimento se

instala, cresce, à medida que o vazio do mundo passa para dentro do personagem depois dele

matar o mendigo num plano canhestro de receber um seguro a fim de ir morar no estrangeiro.

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O desespero acontece porque ele não é afinal de contas tão inteligente quanto pensava; a

similitude entre ele e o mendigo não causou tamanha impressão nas outras pessoas; seu plano

logo foi desbaratado, traído pela memória ao não atentar para o bastão do andarilho esquecido

no carro com o nome gravado; a muita confiança depositada na esposa que não conseguiu

constância no acordo de ambos. Desespera-se, sobretudo porque está com a vida de Felix mas

ainda age como Hermann; perdeu os vínculos afetivos e vaga de um lugar para outro se

escondendo mais de si do que do mundo. A dúvida a consumi-lo, o erro a martirizá-lo é o elo

com o outro personagem duplicado; também sozinho, análogo quanto à percepção do erro e

na impossibilidade do disfarce, pois estão convictos de que não pode haver dois homens

iguais. A insegurança e o medo falam mais desses personagens tocados pela “maravilha” da

similaridade. Enquanto o duplicado é indiretamente responsável pela morte de António e

Maria, Hermann Karlovich é o assassino de Félix; após o desaparecimento do outro com o

rosto idêntico, os homens da originalidade a ser encontrada têm medo do espelho. A razão

para permanecer no mundo ainda não foi encontrada visto o “murmúrio oco da eternidade

vazia” (NABOKOV, 1966, p. 181) ser mais forte que sua decisão. A vontade de tudo ser uma

falsa existência transformada num filme cujo desfecho pode ser outro, deixa em suspense o

cerco ao homem do desespero. Símile ao duplicado que sai sem saber do outro já antevendo

sua imagem. Assim o drama da existência! Porque tanto Hermann quanto Tertuliano na

polêmica consigo, se desconhecem. Há desespero por isso, o enigmático deles está na

equivocada aparência capturada pelo mundo, onde não se encaixam. Registremos ainda a

título de diferenciação entre as duas obras que Hermann além de ser o narrador de sua

história, do início ao fim se comporta como o original a ser copiado pelo mendigo. Enquanto

Tertuliano mesmo sendo o personagem descobridor da duplicação, age consciente de ser o

duplicado.

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Dentre as associações até agora aventadas não poderia ficar de fora o fator desespero.

Kierkegaard expõe este sentimento ao plenificar o homem na intenção de ousar ser por conta

própria; ante à necessidade de estar preparado para conviver com a inquietação, a doença por

ser, causa a dialética na qual a vontade desesperada de ser o incapacita perante as forças

supostas. Ter de encarar um fim interminável, faz o desesperado se encontrar na fraqueza. É

quando a falta de reflexão ética provoca a consciência da perda de si no exato momento do

desespero mediante a pretensão em ser individualizado. De modo romanceado, Nabokov ao

criar seus personagens, põe em Hermann o acento de desespero. Não sendo mais nada para o

mundo, sozinho e distante, a humanidade desse personagem não pode ser encontrada nas

opiniões fincadas sobre a exterioridade. Assassinado o duplo, o desespero se instala por não

poder ser desse modo aludido, logo seu fim é interminável assim como o é Tertuliano de

Saramago. Na incapacidade de ser sem pilares, o desespero é o nome mais apropriado para se

entender esse homem cuja fraqueza o acompanha.

A contemporaneidade do assunto de O homem duplicado no que se refere à discussão

ao invés de instituir novos valores diferentes dos demonstrados pelos personagens, convoca o

uso da linguagem literária a fim de retratar a miséria humana no tocante à perda de

sensibilidade, das emoções que não se encontram em série, em escala, na réplica. Como

mostra o escritor, não se localiza ou se isso acontece, está no terreno do conflito da moral

onde qualquer tomada de partido recai na impropriedade. A atmosfera de Pós-modernidade do

romance conduz à problemática de ser autêntico num mundo desprovido dessa idéia. Muito se

fala em dispersão e fragmentação da humanidade, a narrativa que ora estudamos, faz isso

acontecer num homem sob dois ângulos distintos. É o presente com sua incompletude; a

experiência de um limite iminente o compasso da narrativa aberta à fruição da liberdade

sofrida.

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Percebemos em Máximo Afonso – o homem duplicado – inicialmente comodismo,

depois irritabilidade beirando à consciência de que as alternativas (se existirem) devem ser

encontradas por ele no caminho aonde se chega à realidade que tanto o atormenta. Já em

António, é sintomático a perda de sono, as voltas ao assunto sobre quais seriam as intenções

do estranho, adormece de madrugada, mas acorda em sobressalto, quando: “abriu os olhos e

aguardou, surpreendido por perceber-se a si mesmo à espreita de algo que devia estar a ponto

de eclodir, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 231) depois ele entendeu tratar-se de algo mais forte

que o relâmpago daquele curto instante. Alguma coisa se alojou nele; aderiu à pele; à alma,

levando para longe a tranqüilidade de outrora. Em comum entre eles há a certeza da vida feita

de rapidez e complexidade. Com a duplicação, ambos se inteiram da vontade humana no

mundo em duas dimensões, a terceira é o ceticismo de si instalado no ser sem um “eu” e do

qual não se pode tomar distanciamento. Quem seria “eu” primeiro? Logo, ninguém havia sido

“eu” antes, pelo menos com discernimento? Nesse estágio, original e cópia continuam

vivendo no mundo, mas o mundo não tem mais lugar para os dois, ou assim pensam. Eles

possuem o interior inexpressivo e compreendê-lo é mais que uma ilusão reinventada todos os

dias. Se as perguntas fossem as mesmas, as respostas teriam de ser criadas no objetivo de

permanecerem acordados naquela que parecia uma noite sem propósito – no viés das coisas

práticas que ocupavam suas existências. – Assim o desencanto, assim a desventura como

conhecimento de si que o duplicado projeta enquanto imagem inegável.

Ao complicado caso dos dois homens iguais ou “a igualdade absoluta que os

aproxima” (SARAMAGO, 2002, p. 242), serve a um deles como chamado a sair do

fingimento real em que vive. Qual dos dois vivia em plenitude? Eis a pergunta recorrente

daqueles homens em estado de conflito. Isto os leva por vezes a desejarem livrar-se de si no

outro, a fim de não se esquecerem de quem eram justamente porque já não tencionam ser esse

“eu” misturado. Ser igual, nesta situação é ser ninguém. A experiência vivida pelos

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personagens provoca olhares diferenciados, primeiro por meio da exterioridade evidente,

depois por esquadrinhar a profundidade, o impasse em que vivem.

A forma de tratamento dispensada tanto pelo professor quanto pelo ator requeria a

contestação da subjetividade muda, indecisa parecendo flutuar num consumir de dias inúteis.

Não podiam se ver como um retrato da própria vida como a percebiam, prevalece então a

inconclusividade. Até a duplicação eram seguros de si, o presente, entretanto, não os deixa

ilesos. Assim estão eles, convictos de que a fácil afirmação “este sou eu” deveria ser

substituída por “este quem é” (SARAMAGO, 2002, p. 246) num derramamento de

considerações e análises propícios a quem quer saber de si. A conseqüência desse processo é

fazer o homem levantar-se para pelo menos tentar entender o abatimento no qual caíra.

O achado do professor de História acerca de viver com tempo emprestado o fez

mergulhar no horror daquilo que sabia; ver-se espalhado naqueles inúmeros personagens de

Daniel Santa-Clara – tão obscuros quanto ele em seu anonimato – depois concentrado na

imagem conhecida/desconhecida de António Claro. Triunfar sobre o outro significava anular

uma parte de si; por ímpeto, curiosidade, era necessário especular a respeito de alguém tão

distante e ao mesmo tempo tão perto. Forçosamente também era preciso reconhecer o “eu”

multiforme e não querer sobressair numa aritmética na qual o homem é o fator decisivo;

apesar da mesma quota de humanidade ser propensa a agir contrariamente.

Desse modo, resta ao homem duplicado suspeitar até das palavras que passam ao ato:

por exemplo, no episódio quando finalmente decide dividir sua vida com Maria da Paz,

saudoso “de alguma maneira é como se estivesse a despedir-se da sua vida anterior, da

solidão, do sossego, do recolhimento da casa (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 273)

interpretamos esta despedida com uma conotação ampla a qual atinge aquele passado em que

havia algo seguro em relação a si, ao menos era assim a crença de Máximo.

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A morte de Maria da Paz e António Claro lançou Tertuliano em um fosso de decisões

inadiáveis: aceitar sua mediocridade perante a mãe; morar com Helena que vivia à base de

comprimidos para escapar de si, atormentada por causa dele enquanto o desconhecido na pele

do marido e a mais inadiável delas: resolver dar prosseguimento à vida de António e ser

Tertuliano apenas para Carolina e a esposa do ator; tudo isto equivale a inventar um novo

modo de ser. Conseqüentemente, estaria sujeito à terceira via, qual seja, o retorno do “eu” que

nunca foi, o nada que se revolta com a igualdade. A voz do outro lado da linha, anunciando-se

igual, quer um encontro longe da civilização. Isso contribui para pensarmos no homem

repetido em sua ânsia de conhecer sua história, presente cuja Pós-modernidade expressa a

ausência de um original. Acometido por essa urgência, o homem duplicado é alguém que está

na discrepância de servir aos planos e desejos humanos de individualidade inconteste,

querendo-a apesar disso, intensamente. Toda sua experiência mostrou que o conteúdo

ensinado, por sua vez aprendido, se tornou subitamente defasado.

As certezas tão ansiadas pelos homens envolvidos no caso de duplicação se revelam

difusas em concepções de vida que se querem unitárias. A visão de mundo encontrada na

narrativa volta-se para o homem em busca perene de si. As voltas do texto literário apontam

na direção de um começar de novo no qual é o homem o objeto da procura, ele é o ser

circunscrito cuja legitimidade está em debate. O fundamental para os problemas da vida faz

do duplicado um sujeito em extensão que se desvela e vela ao mesmo tempo. Isto acontece

por não encontrar respostas na teia de existência onde o conhecimento claro e seguro já não é

mais possível. Ficamos no entorno, na dependência diante do vasto campo de atuação do “eu”

duvidoso. Algo diametralmente oposto à conclusão de que Tertuliano se torna herói de sua

própria vida, assume a relação com a mulher e a vida do outro (FERREIRA, 2004, p. 52).

Além do realce de covardia sobre o personagem ao final da trama romanesca, ele apenas se

deixa levar por Helena no caso da aliança colocada em seu dedo. Isso, no entanto, não

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significa aceitação tácita em detrimento da nova situação de entremeio, tão ressaltada a ponto

da iminência se sobressair: o quase juntos, quase (grifo meu) abraçados dos personagens

citados nas últimas páginas do livro comprovam nossa tese.

Quando conhecemos a pessoa de Tertuliano Máximo Afonso, sabemos da condição de

assujeitamento; da predisposição ao rebaixamento por se achar reduzido, indisposto para ser.

Com António Claro, o ego composto de vaidade se balança no ritmo em que ele se transforma

(tem consciência disso) num ponto dialético, no qual o seu posicionamento podia não

prevalecer. Assim caracterizado, o homem duplicado se revolve em culpa e correção. Seria

ingênuo classificar o romance como uma espécie de progressão da subjetividade, porque ela

tanto avança quanto recua na diagramação de ambições descabidas; covardias inaceitáveis;

sobretudo na angústia de viver de quem inquieta-se por ser pleno, necessário, insubstituível.

Ampliado, o homem não ganha em estatura, mas se vê perdido, indiferente às coisas

circundantes. A coexistência no corpo de outro, desestrutura um interior cada vez mais

suspenso. Essa trama urdida na ambigüidade aventa para o sentido de ser homem, o

sentimento do duplo e, dividido, a tipificação do ser humano incorre em vê-lo rigorosamente

pelo interior sempre renovado, questionado.

A época pós-moderna na qual situamos o livro de José Saramago, testemunha um

homem salpicado pelas marcas e traços conquistados num mundo sem paisagem; sem uma

história pessoal e objetivos claros. Por isso incomoda, faz sofrer em dose dupla; a situação

existencial neste contexto exige dos personagens pensamentos e atos extraídos do resíduo de

fundo comum da vida; fato desencadeador da agonia além do visível. O afastamento do

desconhecido é tão improvável que faz o homem duplicado querer saber do original, quem é,

qual vida lhe pertence; onde se encaixar; saber da história provavelmente sua e compartilhada

com outrem. Essas são algumas das provocações do romance cujos protagonistas são um

professor e um ator; profissões em que é obrigatório um aprendizado constante até mesmo

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enxergá-lo como inútil e sem valor. Colocar outro no lugar de quem? Se tudo conta na

trajetória do duplicado, como estabelecer encaminhamentos corretos? Como corrigir, atuar,

passar a limpo? Homens em dobro, confusos na/pela aparência, são capazes tanto de comoção

quanto da falta dela; entrar na vida alheia; impor pontos de vista; também ficar variado,

perdido, por aceitar a necessidade de produzir-se nos interstícios de verdade e falsidade, eis

um sentido de ser na Pós-modernidade.

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3. CAPÍTULO 02:

Só sei o nada aumentado. / Eu sou culpado de mim. Manoel de Barros

EM QUE SE DISCUTE ELEMENTOS DE SENSIBILIDADE N’O HOMEM DUPLICADO

Na leitura de O homem duplicado (2002) salta aos olhos a semelhança física entre

Tertuliano e António, os protagonistas. Entretanto, não é o comum dos homens, a roupagem

externa a tipificação enquanto momento de verdade que buscamos dos/nos personagens, mas

sim o interior a ser devastado, o movimento atípico deles no que tem de inconsistência para o

ser homem. Nisto podemos dizer que ambos se harmonizam porque não se justificam para si.

Professor e ator, as profissões dos protagonistas estão ligadas ao ensino, à cultura e à

arte. Isto poderia livrá-los de um juízo de valor no qual se encontram noções de quantificação,

lucratividade ou otimização de resultados; todavia, não os liberta da falta de substância. Nas

conversas do professor de História com os colegas de Matemática, Literatura, Ciências

Naturais e Inglês, antevemos uma atitude que marca posicionamentos diante da vida. Numa

interpretação desta por meio da sensibilidade aguçada ou de mera constatação de fatos:

Tertuliano conquista uma aliada (a professora de Inglês) para o ensino de forma invertida, sua

grande aspiração, assim como a aquiescência da professora de Literatura. É da Literatura

também a origem das sutilezas e matizes que o narrador sublinha em Carolina Máximo –

assídua leitora de romances – a responsável por Tertuliano abrir-se àquela “parte de si

ausente” (SARAMAGO, 2002, p. 157) comprovada pelo sorriso meio contrariado, a cara

atormentada dele. Juntamente com António e sua conduta humana volátil advinda de

representações pouco expressivas, tais como os papéis de profissionais subalternos

desempenhados, é simultaneamente objeto de questionamento já que os dois demonstram não

estarem integrados entre o trabalho e o ajustamento interior.

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Como a essência deles não vem pela comparação e é bem possível que não possamos

atingí-la, procuramos nos aproximar da integridade interior e assim obter os vestígios

humanos, uma vez que o retrato e o espelho não nos contam quem é o homem que neste livro

está duplicado. O que podemos eleger como essencial e acidental em se tratando de

parcialidades que se juntam por meio da duplicação? Onde exatamente há ruptura? O certo é

que neste romance há a colisão de sensibilidade sem a qual o humano não acontece. Os

personagens, ao inaugurarem diferenciadas afetividades, delimitam o espaço a elas reservado.

O professor dos números é quem inicia toda a perturbação de Tertuliano com a

sugestão de assistir o filme Quem Porfia Mata a Caça, visto por ele como uma simples

comédia, na esperança de tirar o colega da depressão. O professor de Ciências Naturais (que

não era íntimo do mestre de História) quando questionado sobre as novidades, fala das

guerras do presente e de outras porvir. Estes fatos mostram como os personagens apenas

passam os olhos naquilo que está a sua frente sem se deter na observação necessária. Eles não

estão, nem mesmo se sentem desnecessários como é o caso do homem duplicado. Presentes

na reunião, os professores de diversas áreas sugerem o entendimento da racionalidade como

propulsora da localização do homem no mundo. Esta, no entanto, fica defasada em relação ao

tumulto da vida interior que não se mostra por essa via. Não é o caso de diferenciar Tertuliano

e António enquanto verdadeiro ou falso, mas de averiguar o quanto eles se fazem seres

pensantes. António que repassa a dúvida à Helena está completamente imbuído do esforço

inquiridor, ao passo que Tertuliano transforma-se no ser depositário da falta de certeza.

Precisa de um ambiente estranho para se sentir gente; da barba e do bigode do ator para ser

ele mesmo; do endereço da casa de Daniel a fim de se certificar do quanto ele não era nem

participava do mundo.

Esse homem que pensa e tem oportunidade de divisar as coisas de forma inteligível,

causa polêmica desde as reflexões acerca da razão anunciadas por Heráclito e seu pensamento

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originário. Nele temos um raciocínio cujo alcance foi esquecido ou relegado a segundo plano,

tal a profundidade que passou para a História como “o obscuro”. Isto porque adotava o termo

Logos muito além do sinônimo razão, palavra, discurso, linguagem. O principal é deixar e

fazer ver as coisas e o homem a partir deles mesmos e por si mesmos. No que propiciará ligar

inteligível e sensível como maneira mais adequada para se tratar do homem, ponto de

convergência entre tensões contrárias. Sócrates foi quem primeiro tratou da subjetividade do

sujeito quando questionava as certezas cristalizadas levando seu interlocutor a duvidar do que

sabia, por isso era fundamental o homem colocar em prática seu poder de escolha consciente

em relação a todos os setores da vida. Mesmo vítima da liberdade que pregava, ele foi o

primeiro a fazer o sujeito a pensar por si. Platão ao conceber homem e estado como

inseparáveis, atribuía à razão objetiva a condição fundamental para se falar de uma filosofia

da individualidade de acordo com os princípios da polis. Dessa maneira, a natureza humana

ficava subordinada aos interesses de uma coletividade que ditava as regras do certo e do

errado. Entre Descartes e sua rejeição à imaginação como forma de conhecimento e Kant que,

mesmo partindo de um monocentrismo do sujeito valoriza a sensibilidade deste como

condição de possibilidade do conhecimento objetivo, temos sem dúvida uma concepção da

existência que a Literatura não renuncia ao se deparar com os abismos do sofrimento ou à

humana exigência de encontrar um sentido para o caos do existir. Propõe por sua vez, visão

de maior alcance.

Dessa forma, verificamos o tom de O homem duplicado que se abre às coisas

particulares ininterruptamente na narrativa de José Saramago, procurando o dado sensível do

homem às voltas não no que vem a ser as necessidades ora do corpo, ora da alma como queria

Descartes, mas de um corpo igual ao outro, cheio de incertezas, inclusive a do pensamento

próprio. A Literatura que nos ocupa informa, ensina/aprende com o que é tangível, a

suavidade do que poderíamos chamar de uma consciência sem corpo, porque fala de homens

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afins na luta por conquistar e até reconquistar o mundo ou torná-lo seu. Se, desde os tempos

dos filósofos originários, a filosofia se apoderou dos ideais da poesia no que corresponde à

ação humana, na vida sentimental e intelectual, na sua reivindicação em exercer o domínio

espiritual, a Literatura do século XXI põe em relevo as condições de sensibilidade aduzidas

naqueles ideais.

Ao longo de nosso estudo vimos desenlaçando na narrativa do escritor português, o

trajeto do ser humano com a densidade que lhe é peculiar, ou seja, a capacidade de intervir,

interferir de modo mais ou menos marcado pela ambigüidade. Nos personagens do livro em

destaque, inicialmente nos deparamos com certo domínio de suas tarefas, o saber ajuizado em

termos de cumprir deveres. Duplicados, tocados pela sensibilidade daquilo que não são os

heróis realizam o mergulho na interioridade, sozinhos, sentem mais do que fazem; a dor

rebenta-lhes a vontade de abandonar o mundo. Quando sacudidos pela virulência da novidade,

da vida fora do ambiente de estudo e trabalho, vem a impotência, o choro por causa de um

novo mundo a desabrochar.

Se a imaginação outrora foi vista como fonte de erro, expressa por sua vez na narrativa

um sentimento que atormenta Tertuliano Máximo Afonso. Agita-lhe o que ignora: o saber do

qual o estudo das antigas civilizações mesopotâmicas não resolve. Ser duplicado é trazer em

si o dilema de uma escolha que não lhe cabe fazer. Nesse ponto o que prepondera para além

do racionalismo cartesiano é a evidência do sensível; a impossibilidade da síntese para

podermos abordar esse homem tão especial. A certeza iminente não se concretiza, cai sob a

natureza nada simples do homem tomado pelo desajuste da ação: a procura, o encontro com

as pessoas, entretanto, não oferece o conhecimento mais oportuno, qual seja, o da

sensibilidade desconcertante às vezes, essencial em outras.

A falta de ambientação no mundo do homem da duplicação o faz se sentir pequeno,

confuso. Este personagem marcado pela similitude, diz ter visto o outro e em conseqüência

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não saber mais quem ele mesmo é. Em termos kantianos poderíamos afirmar que o professor

tem plena capacidade de produzir imagens na ausência do objeto visado, pois ele mesmo é

parte dessa imagem. No entanto, a imaginação não responde apenas à lembrança de algo ou

alguém distante, antes desajusta o presente contaminado. A imperfeição, o aniquilamento que

o homem teme, mesmo assim o faz movimentar-se rumo à conquistas. Fica patente no início

da história dos homens duplos a idéia de unificar o múltiplo. Entretanto, o que poderia ser a

apreensão do pensamento de Kant esboroa-se porque o dado sensível desse conhecimento

humano (no romance), não prevê que a diversidade reúna a consciência humana. Pelo

contrário, o personagem quer mesmo de forma tímida fugir da unificação, demonstrar

pensamento único, enfim, tornar aguda sua sensibilidade nesse sentido. Pois, é o mundo

exterior com a presença misteriosa, o responsável por ele se sentir pobre ao não conseguir

reunir o diverso na unidade. Se o duplicado apresenta um transbordar em abundância da vida

interior, isso se dá em decorrência da perda da unidade com a qual se sentia seguro. Os

problemas de Tertuliano passam a ser de António; há a falta de profundidade, instalou-se

neles a angústia interior cuja conseqüência é forçosamente se colocarem de prontidão a “uma

dimensão perdida do seu próprio ser, (...)” (BERMAN, 1986, p. 51). Para isso assumem como

propósito participar do mundo; ligar a pessoas desconhecidas; ir a uma produtora de filmes;

percorrer ruas; sondar a casa, a vida de um estranho que de repente pode fornecer as respostas

à variedade humana da qual se sentem vítimas. Isto nos facilita perguntar, onde vida e

pensamento se baseiam?

Como essas imagens não podem ser traduzidas em conceitos, com o homem duplicado

ocorre que é o poder sobre si a questão instalada. Há escaramuça na faculdade ativa de síntese

desse personagem. O processo da fuga ao invés de causar alívio, traz uma natureza que ele

não conhecia e o mais grave, se insurge contra si. Em sua companhia não temos a encarnação

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do Mal, nem ele oscila rumo ao Bem, o companheiro dos momentos irresolutos é o senso

comum ao qual passa a ridicularizar.

O romance que faz da imaginação o passaporte para pensarmos na duplicação como

tema da irracionalidade do nosso tempo, o faz como um aprendizado da vontade que duvida

de si mesma. Na agudeza do sensível, como Kant, não temos um conhecimento da

consciência de nós mesmos, contra ele, não temos favorecido no romance o pressuposto de

que haja unidade daquela consciência quando o que almejamos não é a condição para um

conhecimento objetivo. Gente simples, Tertuliano Máximo Afonso tem a oferecer divagações

provocadas pelo intruso, o silêncio de quem aguarda, se põe à escuta e tenta manter o

equilíbrio quando o ambiente aponta para a diversidade da vida. Aí temos um olhar que se

abaixa; a incompreensão de um toque inusitado; um beijo que se nega de quem pouco a pouco

perde a simplicidade e se nota uma figura deslocada. Compreensível que ele tenha “a cabeça

apertada entre as mãos, os nervos exaustos, o estômago em ânsias,” (SARAMAGO, 2002, p.

27) afinal não era apenas os pensamentos que estavam em desalinho, era o que fazer da vida

depois de uma revelação em tudo inesperada. Onde mudei? A mudança foi simultânea? As

perguntas que o homem faz para o vídeo, também se voltam a ele vendo-se sem começo, nem

Alfa nem Ômega, no intervalo, querendo alcançar a porta, mas não localizando a maçaneta. É

normal que o espelho nesta circunstância dê testemunho do assombro e o temor, a ausência de

um sentido ao qual se apegar. Resta o desnorteio de alguém que precisa demonstrar não estar

afetado por nenhum desacerto e por isso mesmo já apresenta inconsistência, seja na falta de

interesse pelo mundo ou na conotação hostil das poucas palavras usadas.

Temos também assinalado nos personagens protagonistas de O homem duplicado, seu

fechamento com as coisas que lhes vão por dentro ansiando por liberdade, como aquela

dúvida incomodando Tertuliano: “(...) isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que

uma memória de mim mesmo histericamente activada.” (SARAMAGO, 2002, p. 82) poderia

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ser também razões e motivos para existir, ou melhor, para deixar existir já que está duplicado.

Usada freqüentemente pelo personagem, a atividade da imaginação num primeiro momento

bastante afinada com o legado inicial de Kant, pode ser compreendida como extra conceitual,

algo inefável e obscuro. Perde a segurança da unidade do múltiplo na consciência e aponta

para o desconhecido. Pelos juízos reflexivos que o personagem pode emitir, vemos que a

imaginação se transforma num fosso insondável para a razão. Assim, a relação com a

sensibilidade no campo teórico, assim, o ser fictício vive na perpendicular do tempo sem

exclusividade.

Segue-se do exposto, tendo por equiparação o romance de José Saramago, que a ação

empreendida pelo homem não está vinculada à idéia de conservação do ser, pois ele nem

sequer reconhece ser, se foi não é mais, para ele que está duplicado, sente a necessidade da

conquista de si. Longe do sentimento de felicidade devido à anormalidade, o que se instalou

nele foi a desconfiança. Antes do filme, chega a confirmar ao professor de Matemática: “Não

gosto de mim mesmo” (SARAMAGO, 2002, p. 14). Isto vai se refletir no ator quando

Tertuliano se vê repetido nele, porém com o agravante do desconhecimento. Ele luta à sua

maneira para não se colocar na pluralidade, no entanto, não se impõe pela particularidade, é

mais um no jogo de dúvidas: sou eu? Quem é ele? Ao despir a roupa não pôde conhecer a

natureza do outro: “Estava nu da cabeça aos pés e era, da cabeça aos pés, Tertuliano Máximo

Afonso, professor de História. (...) [este] começou também a despir-se (...) mas quando

terminou, (...) tinha se tornado em Daniel Santa-Clara, actor de cinema(...)”(SARAMAGO,

2002, p. 217). Podemos dizer que esse conhecimento trouxe constrangimento porque a

revelação mais profunda não ocorreu, não é o saber da causa o que os move. Querem ter o

privilégio de se saber nascido primeiro, com isso não se preocupar com o retoque, nem olhar

para as falhas. Tertuliano, o duplicado, é quem sofre mais por saber-se reproduzido, perde

ainda mais em personalidade e fica sem noção do que fazer de si. António pode ser a causa da

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existência de Tertuliano, mas a essência deste é algo que se perdeu na equivalência. Daí vem

o desapontamento porque não consegue se explicar, sequer obter as ferramentas ou uma

opinião abalizada para que isso ocorra. A mãe apenas ventila a possibilidade, os passos serão

dele, isto não o anima muito.

Ser o número dois, ter o duplo como estigma intransferível, é algo que o coloca de

certa forma numa totalidade que passou por um processo de secessão. Alheio a

perfectibilidade, o homem duplicado também provoca indefinições: “(...) esse homem nunca

me fez mal, existe, existe para mim da mesma maneira que eu existo para ele,”

(SARAMAGO, 2002, p. 228) isto é, sem conseqüência se observado na falta de noção de si,

relevo dado pelo escritor nessa obra em especial.

Em Levantado do chão (1996) José Saramago coloca os personagens vivendo no

latifúndio, explorados, humilhados, sem se entenderem no ideal de humanidade. A condição

de vida, repassada de geração a geração conclama aqueles homens e mulheres a se erguerem

contra a igualdade da oligarquia com sede de poder representada nos nomes idênticos dos

proprietários – Sigisberto; Norberto; Gilberto; Lamberto, tudo berto – importante mesmo é a

vida dos camponeses em primeiro plano no romance, encoberta pela opressão como atesta o

narrador: “Um homem pode andar por cá uma vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido.”

(SARAMAGO, 1996, p. 12). Em face disto, o que ganha proeminência é a sensibilidade para

as agruras dos personagens.

Sara da Conceição; Domingos Mau-Tempo; João Mau-Tempo; Faustina; Manuel e

Gracinda Espada; Sigismundo Canastro, António Mau-Tempo; Maria Adelaide Espada, os

trabalhadores que se revoltam contra as horas excessivas de trabalho, reivindicam acima de

tudo ser reconhecidos como homens e mulheres com vontade e expressão livres. Levantar-se

do chão é erguer a voz e dizer não ao trabalho de sol a sol; comemorar o primeiro de maio;

interferir no valor do salário; ter o direito de se reunir a fim de lutar por justiça. Esses homens

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que mal sabem ler, quando acusados de comunistas, presos, torturados, abandonados pelo

poder oficial aliado dos patrões, não têm como se defender. O mesmo homem cai, pelo

suicídio, morte forjada e como querem os latifundiários, pela ignorância, “a grande e decisiva

arma.” (SARAMAGO, 1996, p. 72).

O latifúndio é feito de muito labor e vários olhares, entre eles o brilho azul sem

comparação dos olhos de João Mau-Tempo, herdados pela neta Maria Adelaide Espada.

Olhos de sensibilidade para o sofrimento alheio e o infortúnio familiares, também capazes de

trazer em si a esperança daquele azul profundo “é então que João Mau-Tempo vê que os seus

olhos são imortais,” (SARAMAGO, 1996, p. 297). É inegável que os “caminhos são

custosos” (SARAMAGO, 1996, p. 299), mas revigorados pela jovem Maria Adelaide,

igualmente camponesa, explorada nas searas que se repetem. De Vendas Novas a Monte

Lavre a jovem teve certeza da situação insustentável que vivia, “é como se tivesse vivido

sempre com os olhos fechados e agora, enfim, os tivesse abrido, primeiro tem de saber o que é

a luz, são coisas que sempre levam mais tempo a explicar do que a sentir,” (...)

(SARAMAGO, 1996, p. 353); há assim, a construção de si desdobrada em tantos personagens

quanto a falta de consciência concernente à necessidade de uma vida nova. Na voz baixa, no

quase sussurro de inconformismo, os homens de Levantado do chão iniciam a interrogação

que continua concentrada em dois homens entretidos a desmontar as verdades esgarçadas.

No quadro mais complexo da duplicação, temos o horizonte de sentido marcado por

situações vividas em que entendimento e sensibilidade se aguçam. Acostumado à prudência,

precavido às eventualidades, Tertuliano não foi forte o suficiente para suportar o choque.

Evita o beijo em Maria da Paz; a conversa com o colega dos números, chegando a detestá-lo,

dominado pela impaciência. A namorada vê a admiração que sentia se transmudar numa

expressão dolorida, espécie de lástima, tão forte o efeito que a contaminou. Pode ser que sinta

o mesmo por si ou pelo homem amado, cujo discurso se tornou incompreensível. Máximo

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Afonso está de olhos baixos, pois sabe que “a verdade é outra e bem diferente.”

(SARAMAGO, 2002, p. 101). Tomado pela pressão homogeneizante, ele tem o status do

indivíduo posto entre as diversas maneiras de ser e viver a vida, mas qual lhe pertencia?

Estaria condenado a permanecer no que era, fundido a outro? O sentimento pernicioso de ser

evasivo, o desnorteio por causa da ausência de um ponto de orientação, trouxe como

conseqüência a privação de si. Fica difícil encontrarmos no professor a liberdade do ser

humano acreditar em muitas coisas, uma vez que ele sequer põe atenção nas convicções

pessoais, está errante. É facilmente persuadido a aceitar pontos de vista alheios e com isso não

se emancipa da ansiedade, é propenso à escolha, mas uma escolha previamente determinada.

Lembremos que ele é duplicado.

Afetado pela diligência do outro, António Claro por sua vez percebe-se como parte de

uma dicotomia. O medo inicial é de ser peça sobressalente, pensa, repensa e resolve por um

atalho chegar até o sujeito que lhe tirou o sono. Refaz os passos do desconhecido, fica

sabendo daquela rotina e mesmo convencido da pouca capacidade dialética do outro, impõem-

se. Contudo, ao lutar por isso, acabou por perder o sossego, a condição de ser homem, de ser

gente, estava ameaçada. Habilidoso com as palavras, ofende, maltrata Tertuliano quando

descobre ser mais velho de vida, de experiência? Apesar da diferença ser irrisória. Para ele, o

professor era o equívoco, o que o fez vangloriar-se. Tertuliano duplamente humilhado pelo

homem que ele não era e pela falta de consciência de si, este que não repara no mundo, é

acordado pela essência que lhe escorre entre os dedos. Como os humilhados prestes a

soerguer do chão ele “tem apenas a sua própria dor para cuidar,” (SARAMAGO, 1996, p.

343). Passa a sentir com intensidade, deseja compreender e experimentar a liberdade de estar

no mundo como Daniel/António. Nesse propósito, dormir com Helena responde ao anseio

inicial, mas não resolve porque a aprendizagem de ser pede espontaneidade e isso ele não

sabe ensinar. Vulnerável, o segundo homem está a se perguntar: viver, que será? Viver de

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forma irretorquível, numa enunciação constante, de fato estava fora de seu alcance. Foi

brutalmente retirado da linearidade do tempo que julgava dominar, não por Quem Porfia Mata

a Caça, mas por outra subjetividade, responsável por ele dizer tão pouco, quem sabe por não

saber expressar o que sente?

O impalpável é a centelha de emoção que Tertuliano Máximo Afonso passa a

monumentar como a verdade que lhe falta e o fez fútil, continuação indesejada. Ele é o

injustiçado, o meio-termo do qual as palavras de todos os dias não dão conta, precisa de

outras, “as próximas, as íntimas, as do espírito e as da carne,” (SARAMAGO, 2002, p. 183)

também vitais a António Claro com a ressalva de que este não tolera a semelhança suposta

além dos olhos.

A aproximação é calculada porque o instrutor de História conhecia-se apenas por uma

vertente, remexida, tem pela frente a figura de alguém que ele conhece como aquilo que não é

e o instiga a ser menos ainda. A força descoberta vem de viver pelo medo. Homem ao natural,

despido dos disfarces, usualmente calado intensifica a vida do pensamento, esmorece. Às

vezes os olhos se enchem de lágrimas, outras vezes reúne argumentos a favor da ilusão

enquanto impossibilidade a ambos, caso de teratologia. Como o sol que se esconde atrás das

montanhas e sempre surge novamente é aturdido pela idéia de ser o duplicado. Sem atinar no

sentido, imagina-se e não persiste; almeja um sorriso que vem de dentro como de quem

encontra a ilha desconhecida, entretanto, ao invés do acúmulo de vida, aumenta a miséria das

questões indecifráveis, aquelas emoções em conta-gotas.

António Claro entretido com a arte de Daniel Santa-Clara a procurar vestígios da vida

do professor, inicia ações discutíveis, usa sua imagem conhecida e na incerteza de obter êxito,

leva o narrador a ponderar: “(...) há ocasiões na vida em que uma urgente necessidade de

arrancar-se ao marasmo da indecisão, de fazer algo, seja o que for, mesmo que inútil, mesmo

que supérfluo, é o derradeiro sinal de capacidade volitiva que nos restou, (...)”

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(SARAMAGO, 2002, p. 233). Esse fazer que possibilite alcançar o inalcançável descarta

qualquer espécie de cumplicidade a não ser aquela de estar atraído, curioso pelo outro fazendo

sair de si.

Experimentar a sensação de ser banido de si levou Tertuliano a aumentar a incógnita

em que se tornou. Não há suavidade nas palavras, são insuficientes como ele, ser provisório.

Homem de dores intensas tem consciência de portar emoções vicárias, para sua contrariedade.

Com um nome que não diz muito sobre si, lentamente procura adaptar-se, o quanto isso é

possível à troca do autêntico pelo falso? Do duradouro pelo escasso? Se instala aí, no devagar

das horas, na falta de precipitação, daí o sofrimento. Formas, movimentos, tudo seria abalado

como de fato foi por causa de algo que não ocupa o geral das gentes, dos temas, dos assuntos

e questões: o homem confrangido pela conformidade. Quando suspenso das vontades,

aturdido com a violência da emoção, vê que a História deve ser reinventada por ele que

acreditava dominá-la. Onde colocar o presente? Posicionar o passado, se ele não existe? Um

passo à frente poderia significar dois a recuo. Com qual vida se identificar? Esmiuçar

detalhes, manobrar o desejo alheio em se conhecer, foi a vingança do homem identificado

pela regularidade do que fazia ou dizia. Nisso temos a vitalidade emergindo da duplicidade,

embora à primeira vista esta pareça dissuadir aquela.

Como vimos, o Professor sente-se despedaçado além dos efeitos da solidão,

desamparo ou timidez por algo que demanda uma entrega sem precedentes. Vê-se obrigado a

renunciar àquilo que acreditava, contorcido pelos caprichos do ator. Isto acontece porque

António ambiciona um caráter exclusivista que Tertuliano internamente encara como sendo

seu, está persuadido em fazer parte quando seu íntimo quer mais, quer cessar a expansão;

porém não sabe como, movido pelo pavor do aniquilamento. Aquieta-se para o mundo. Fora

dele, mostra uma agitação sem fronteiras: “Não sei com precisão, nem mesmo vagamente, o

que penso ou o que quero, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 83). Esta imprecisão recai num

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desencantamento do mundo feito atrofia da experiência. Paralisado, sem saber como se portar,

o homem duplicado experimenta a falta de sentido que tanto o atormenta.

O tempo é o presente, embora a fugacidade ajuste o sensível para uma ordem que não

é linear. Com isso, o tempo se anexa à capacidade do entendimento favorecendo a Tertuliano

que, sem nome é jogado de um lado a outro, preso a um mundo de impessoalidade. Enquanto

personagem principal tem ciência de estar amarrado a uma condição de perene adaptação.

Procura, entretanto, a imagem de si partida, mas propensa a evocar e exprimir o próprio

significado. Pensar e querer podem estar dissociados para o professor em determinados

momentos de aguçamento da situação existencial instável, mas se estabiliza quando, por

exemplo, decide romper com o senso comum ou por livre iniciativa ir ao encontro do duplo.

Com isso suscita a direção aberta ao devir.

Na procura cognoscível, o professor de História põe em ação o resgate da

sensibilidade. Antes esquivo em assumir o compromisso com Maria da Paz, resolve fazê-lo

mesmo antevendo a perda de liberdade. António e Helena por sua vez, entram num processo

de descaminhos. Ele, atroz por se encontrar com o desconhecido, ela, tentando não deturpar

os pensamentos, fazendo distinção entre o marido presente e o ausente. Atenta à presença

misteriosa ou ao sonho indecifrável, Helena se coloca a meio do caminho sem direção segura.

Depois da aparição duplicada, os personagens envolvidos permitem-se à dúvida do devir, do

que será deles, se está neles o obstáculo. Se removido, a troca seria automática? Nisso

avaliamos como os seres de ficção fazem uso das potencialidades inerentes aos seres humanos

de se interrogarem, se colocar na recusa, da tentativa de sair do vazio da vida pré-

estabelecida.

O romance em que o homem vivencia uma experiência única abriga a transformação

da qual o sujeito pode tomar posse. É esta probabilidade, o ir além de si que se anuncia no

gestual, imagem idêntica, mas não a mesma dos homens na literatura de Saramago. Não é o

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caso de vê-los multiplicados devido à aparência, mas acertar o matiz da mudança que são

capazes de internalizar ou por outras palavras, do rompimento com a explicação lógica da

existência. Para isso acontecer, António e Tertuliano pressentem mundo novo de sentidos a

descerrar. Teriam que criar outra realidade (uma nova consciência), pormenor cuja grandeza

os assusta.

O esvaziamento da subjetividade que sofrem aqueles homens da narrativa fazem-nos

atentar às minúcias da feição alheia como se ela pudesse fornecer os pormenores de uma vida.

Mas como o espelho oculta mais do que mostra, o escrutínio deve ser de outra natureza. E

eles têm consciência disso, tal é a reação na passagem do romance em que a título de

comparação eles se despem. O silêncio que perpassa naquele momento de revelação mistura a

inutilidade da palavra com a inércia de qualquer gesto. Tertuliano pensa em se retirar,

António insiste numa prova documental a fim de arredar a conformidade entre ambos. No

entanto, eles sabem que essa intimidade forçada não é sinal de acesso à interioridade, pois esta

será buscada por meio da entrada na sensibilidade do modo de ser, reconhecível na sutileza e

ambientado nela.

Diferente daquele espelho estrategicamente retirado do quarto, do íntimo e levado para

o espaço social da sala no conto de Machado de Assis, o alferes Jacobina sente-se bem ao

olhá-lo. Fora da contemplação da farda, sozinho na casa, ficava perdido em pensamentos

porque a condição de alferes então não era a garantia dele se sentir homem. Já em “O

espelho”, conto de Guimarães Rosa, o narrador conta a um ouvinte como a vida adquiriu

outra dimensão após olhar o espelho sem ver nada, com vagarosidade, para dentro daquilo

que ele não ligava importância: a consciência de existir. Assim percebe-se em dois: o homem

do passado cabível num “modelo subjetivo” e este, descoberto pelo espelho – ainda sem rosto

– tocado pela vida latejante de conhecimento ignorado. Voltando ao Homem duplicado,

quando os personagens, despidos de prevenções ousam olhar-se nos olhos, desviam a vista

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porque o ignorado se impõe e eles vêem invertidos os papéis de caça e caçador de um perfil

humano que lhes caibam. Por isso suas rotinas são alteradas e eles passam a se ocupar do que

não se pode adiar: viver de modo pleno, cônscios da limitação, mas propensos a demarcar um

modus vivendi. A insegurança concentra-se em Tertuliano, ele é o duplicado, é quem toma

para si a obrigação de procurar um resquício, fagulha, o ínfimo capaz de garantir um aspecto

só seu. O desatino perpetrado no filme Quem Porfia Mata a Caça passou para a vida do

professor, fazendo-o viver com uma interrogação, entrar num labirinto sem garantia de

encontrar a saída, também viu acirrada a sensação dele ser provisório. Apesar da fealdade que

isso lhe parece, traz consigo a idéia da punição. É como se ele fosse culpado porque a vida

inteira agiu como quem escolhe a diversão em detrimento da obrigação; o falso ao invés do

verdadeiro e o precário pelo duradouro. Em conseqüência, se encontra às vésperas da decisão,

à margem do caminho e principalmente sabe da cautela de cada passo, da importância do

discernimento sem precipitação que terá de empreender.

Em compensação, António Claro atordoado com a existência de Tertuliano Máximo

Afonso, já não tão certo de tirar proveito da história bem como pelo silêncio atravessador da

esposa Helena, divisa o tempo a escorrer e a solução não se apresentar. Ocasião para o

narrador comentar: “o que tiver de ser, já foi, e não falta mais que escrevê-lo.”

(SARAMAGO, 2002, p. 192). Isto equivale à demonstração da força dos personagens em

relação ao que fazer de si, faltando apenas a iniciativa que não pode ser dada, como também

não pode a vida distinta que ambos pretendem. São homens feito imagem e semelhança um

do outro.

Em conversa com o empregado da loja onde alugava filmes, Tertuliano fala sobre o

saber, para ele não é apenas uma coisa muito bonita, depende de quem sabe. Justamente este

saber sobrevém do que fará ao tomar conhecimento da atuação daquele homem em quinze ou

vinte filmes. Conclui então de forma personificada: conhecer (grifo meu). Há urgência em

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conhecer, mas o quê? Quem? Se Tertuliano é António, quem é António? Que experiência é

essa a da duplicação? Como compreendê-la? Qual saber é necessário para apreendê-la?

Certamente não só o nome do outro. Daniel Santa-Clara convém a ambos como máscara, ele é

o terceiro homem na hierarquia do saber no qual estão imersos. Disfarçados em Daniel, tanto

António quanto Tertuliano se lançam na procura e procurar é encontrar-se. Isto implica na

dissolução do que é aparente coisa da qual não estão preparados. O conhecimento em questão

ou a necessidade dele apresentada pelos homens iguais, exige aquela sensibilidade esquecida.

De modo infracionário à capacidade de obter representações mediante o modo como são

afetados pelos objetos, os homens da duplicação estão na ignorância do que pode ser

acrescentado ao saber que buscam.

O personagem Tertuliano Máximo Afonso que trabalhava diariamente com o

conhecimento humano, não sabia quem ele mesmo era. Foi preciso haver a duplicação para se

dar conta da ignorância vital e com esta tentar entender o outro, seria o primeiro passo para

saber de si. Neste sentido, o professor ao inventar novas acepções de existir, começa a fazer

coisas como se quisesse garantir a vida intransferível, impulsionado pela sensibilidade o

vemos: alugar vários filmes nos quais o ator aparece caricaturizado, podendo lhe fornecer

pistas; insistir e finalmente conseguir fazer um estudo defendendo a tese do ensino invertido

de História; assumir o compromisso com Maria da Paz. Isso tudo, no entanto, é algo que não

se sustenta porque o conhecimento almejado se avizinha daquilo que o narrador

zombeteiramente chama de irracionalidade dos nossos tempos. A experiência que ele julgava

ter se esboroou com a presença de António Claro. A sensação atual de Tertuliano é o

desconforto, é estar na hora errada, no local inadequado. Conhecer-se é para ele desmontar

um mundo até então seguro. Importa observar que a recepção ao sensível que anima António

e Tertuliano fazem-nos abertos à reflexão, no entanto, não é a garantia a que os sentidos por si

só expliquem o que eles trazem como um fardo muito pesado sem oportunidade de dividi-lo.

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São, sem dúvida, homens que passam a se voltar para a ação do entendimento não com base

em idéias, sejam elas simples ou complexas, mas pela presença perturbadora de algo que não

se converte, de alguém que não se molda e é impossível ignorar. Desta forma, chegamos à

incompreensão obtida pelo toque no ombro do professor de Matemática o qual, pela falta de

habilidade com o humano, foi incapaz de observar a metamorfose interior de Tertuliano, feito

corpo que pede vida. Por outro lado, Daniel/António quer demonstrar o quanto é superior em

relação a esse novo personagem de vida própria. Se arroga o direito de ser original que a

cópia deve imitar, porém, não origina nada de novo uma vez que vive da imitação. A

expressão de dúvida que esses homens trazem no rosto e a angústia a lhes acompanhar,

indicam a defasagem entre a realidade interior com o aspecto exterior. Não havendo harmonia

entre eles, o de dentro não se mostra com toda sua pujança e com isso a razão não convence, é

insuficiente. Fato que contraria o telos condutor da idéia kantiana a qual tem na razão o

caráter absoluto ao tratar do saber fenomênico; assim como o sujeito é visto enquanto

totalidade e infinitude.

Abstrair motivos passou a ser o passatempo de António e Tertuliano, depois da visão

insidiosa capaz de dissolução entre ambos, ao invés de provocar o tão esperado

conhecimento. Diante de imagens tão parecidas, o narrador brinca com o destino afirmando

que foi o acaso quem os tornou iguais. Já para o Senso Comum, fazer a distinção é algo

desnecessário, algo que não acrescenta, pois o resultado será a conformidade inevitável.

Comentário este que faz Tertuliano sentir o terror de seu mundo abalado. Porque as idéias

antes tão claras passam a não se ajustarem às coisas que lhe cercam e de certa forma deixam

de explicá-lo. A intuição de existir já não tranqüiliza o duplicado, também o fato de usar a

razão para procurar aquele espelho desencadeador desse processo de inconstância é aprovar a

estreiteza quando se quer ampliar os horizontes sobre si. Se a certeza habitar em um e a

probabilidade em outro, porque o narrador encontra a dúvida a girar de Tertuliano a Daniel

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depois a António? Vemos isso como se fosse impraticável apontar qual deles apresenta tal

perspectiva. O desconsolo é tanto que nenhum deles ousa afirmar possuir idéias particulares.

A nova forma de sensibilidade apresentada requer novo olhar para o espaço que ocupam:

deixaram de ser o conhecido Professor de História e o anônimo ator de cinema. O poder que

ambos têm em representar esse papel na sociedade de repente acaba e as condições

necessárias e universais da percepção que os personagens têm sobre si se mostra em

desalinho. Os personagens dessa narrativa de Saramago se descobrem possuidores de dois

começos de existência e identidades abertas. Porque organização interna é algo que lhes falta,

estão em desarranjo e não é por um tempo pré-fixado. Também não se pode afirmar a união

dos homens em se tratando de um querer diferenciado, oposto, pelo simples apagamento de

suas nuances. O humano se insurge deste conflito e é isso que buscamos em nosso estudo. Ao

assinalarmos o processo de conhecer no protagonista do romance e o tomarmos como marca

distintiva em O homem duplicado, nossa intenção é descerrar tal característica não como a

obsessão dos personagens de Saramago conforme encontramos em teses sobre o livro. Nossa

visão baseia-se no fato de que sendo o humano o resultado desse conhecimento almejado, não

há como apontar para uma nova descoberta ou simplesmente afirmar que o romance trata da

fixação de uma identidade. É, por outro lado, o conhecimento nutrido com a falta, o vazio, o

insidioso de dentro do personagem a repercutir em seus pensamentos e atos. Portanto,

também não se trata apenas de uma narrativa contendo questões filosóficas primordiais ao ser

humano. O diálogo com a tradição é muito mais forte e a irresolução de tal forma contundente

que nossa leitura adota esse princípio ao invés da superfluidade entre identidade e diferença

com a qual o livro é rapidamente interpretado.

A ação que identifica o sujeito moderno está sustentada no princípio da razão. Se tal

princípio resulta insuficiente para pensarmos o sujeito da contemporaneidade destituído de

qualquer resquício de âmbito universal, então a maneira como ele vê o mundo através de

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lentes cognitivas encontra barreiras no que se convenciona conhecimento. Seja este

dependente da criatividade, da imaginação ou o poder de abstração do intelecto, o que fica em

relevo prescinde de alguma espécie de lei universal.

Os personagens de O homem duplicado ao perceberem que não estão sozinhos no

mundo, pretendem colocar em prática meios de anular uma não-existência e o que conseguem

é a visualização de que não são sujeitos de suas ações. Há um caminho a percorrer, antes,

porém, terão que construí-lo e isso implica descobertas. Das primeiras impressões sensíveis

ao modo como estas serão organizadas pelo homem duplicado, chegamos ao impasse por não

ter a potência de determinar quem é, foi ou será seu outro igual. Portanto, desfaz-se a noção

de que haja conformidade com o objeto da duplicação análogo ao entendimento preterido.

Nem a racionalidade aplicada ao caso, com ajuda dos sentidos pode dar uma idéia razoável do

que é se sentir duplicado. A desestabilização de Tertuliano e António em se tratando de se

colocar no centro do universo, gera uma realidade na qual se misturam contingência e

dinâmica às quais sentem necessidade de atribuir per si uma definição, porquanto estão

esvaziados. No desenvolvimento da sensibilidade proposto por Kant, vemos que sentido e

imaginação formam as condições de experiência que o homem é capaz de ter. Como isso

repercute no romance diz respeito aos modos de tornar sensíveis as idéias racionais dos

personagens, embora não pela ligação ao conceito como na Filosofia, mas pela pretensão do

personagem almejar ser livre enquanto detentor de uma vontade autônoma.

Podemos dizer que uma das coisas a incomodar mais os protagonistas desse livro é a

idéia de continuidade e a chance que têm em poderem discernir-se. O dinamismo de antes da

duplicação reforça o desamparo do movimento que conduz à inércia, especificada na situação

da qual não enxergam solução. Como uma conversa “ficando a meio do caminho”

(SARAMAGO, 2002, p. 187) surge Tertuliano na vida de António e vice-versa; num misto de

habilidade e astúcia a fim de retirar da parecença ou semelhança e mesmo na concepção dos

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dois, a igualdade absoluta, a quota de valor pessoal. De modo que a sensibilidade e a

imaginação possam fazer frente ao entendimento quando este é visto sem aquelas qualidades

que fazem do personagem o homem preeminente da história ensinada, mas não vivida.

É constante no texto de Saramago o uso de ditados populares para cercar seus

personagens de uma sabedoria que passa despercebida aos olhos de quem ensina ou interpreta

pautado apenas na própria autoridade, como acontece nesse romance em especial. A exemplo

lemos: “encontrarás o que precisas se guardaste o que não prestava.” (2002 p. 189). Num

diálogo cheio de silêncios, de um eu paralisado pela presença do outro, não sabemos

exatamente o que procuram, dado a paridade da busca. Tudo aquilo pensado como uno e

indivisível em referência a si revelou-se inútil. Então, ambos têm por prioridade extrair dessa

inutilidade a serventia, o percurso a construir a fim de se chegar à conotação que englobe o

mesmo e o paradoxo. Como atesta Tereza Cristina Cerdeira (2003, p. 326) nesse ponto, o

discurso ficcional de Saramago se abre às insondáveis hesitações humanas bem como ao

drama da vacuidade da existência. Não estando sozinhos na vida, os homens desta narrativa

em estado de duplicação, tencionam chegar às verdades particulares por via do

reconhecimento da urgência em haver mais que o pensamento para se estabelecer. Se apenas o

corpo, a matéria não podem explicar o homem, não é acrescentando a verdade interna que

poderemos propor um conhecimento deste ser que sente e pensa. Assim é o ator, assim o

professor. Sem dúvida eles se dispõem à reflexão com o processo instalado da similitude

observada como provocação. Mas, as imagens nascidas nesse ínterim contam a discrepância,

o absurdo em não se poder diferenciar-se. A razão revela-se inapropriada para tratar de um

homem cujo equilíbrio se perdeu. Em si mesmos, os corpos dos personagens não podem

sugerir o específico da diversidade. A auto-significação fica dispersa no enredo, sendo mais

inatingível nos próprios seres da duplicação. Cumpre assinalar o antagonismo deles desde o

princípio. Pois, ao encontrar Daniel Santa-Clara, o professor de História tinha para si que era

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o ator, a sua metade indesejada. Isso causou confusão porque ele como original não se

encontrava como tal. Ao saber-se duplicado, perde não somente o chão das explicações

racionalizadas, mas os argumentos com que se debatia carregados de uma verdade auto-

estipulada.

As resoluções lógicas não se coadunam no decorrer do romance porque nenhum dos

dois homens pode dizer quem é o outro. Não há associação de idéias, sejam simples ou

complexas. Quando se encontram ou se falam ao telefone, os discursos não se entrelaçam, a

conversa se torna difícil, os encontros ocorrem em meio a um clima tenso. Há uma decisão a

ser tomada, no entanto, ela não acontece. Algo foge ao controle e deixa por esclarecer; o

homem fica aquém, por isso há lamúria, desalento. Mais que a curiosidade, a duplicação

trouxe esferas impensáveis de um “cenário emocional e situacional” (SARAMAGO, 2002, p.

64): a vida de Tertuliano; colocada sob nova angulação, nervos aflorados, desconfiado e

imaginativo, ele é a um só tempo aquele que sabe da premência em reagir, mas não o faz.

Neste plano, o saber narrativo se expande não em direção ao mínimo de ação que o romance

expõe, mas ao máximo daquilo que se pode sentir com os personagens. Especialmente na

participação das personagens femininas cuja sensibilidade amplia a extensão do conhecimento

que podemos obter do homem na literatura contemporânea. O reconhecimento a que elas

põem em prática ocasiona por um lado a morte (Maria da Paz) por outro, a opção pela vida

(Helena).

Quando a trama começa, Tertuliano está sozinho no apartamento e relembra da ex-

mulher bem como dos motivos que levaram à separação. O narrador não lhe atribui um nome

porque acredita que sua participação na vida do protagonista seja irrisória. Do definhamento

contínuo no relacionamento amoroso, a mulher achava insuportável e inadmissível. Resolve

pôr fim a uma situação da qual se continuasse se sentiria covarde; dando a entender que era o

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marido quem ela considerava como tal. De fato, podemos comprovar esta tese ao longo da

narrativa na qual a mulher desaparece.

Enquanto vacila sobre ligar ou não à Maria da Paz, Tertuliano quer encontrar a palavra

certa para encerrar o envolvimento com ela. Apesar de não defini-la como amiga de cama,

amante ou noiva, vemos que Maria tem importância estratégica não só no desenrolar da

história do duplicado, mas de sua significação existencial. No desenvolvimento deste homem,

Maria da Paz que traz no nome a representação da calmaria, bem estar, comodidade; pelos

gestos e palavras, enxerga mais além, é promessa de tranqüilidade. Por isso Tertuliano protela

a decisão em relação a ela. De início, Maria da Paz aparece através de uma voz queixosa na

secretária eletrônica do namorado por causa de sua ausência. Ela é empregada de um banco e

vive na companhia da mãe. Com a chamada, o professor ensaia as palavras, hesita nas

expressões a fim de tentar com cautela encerrar a relação. Sem resposta, a namorada vai até a

casa dele que a recebe com perturbação e desconcerto. Ele está completamente imerso na

história do retrato que fala, com ar desleixado entre os vídeos alugados. Sem coragem de

dizer o que realmente sentia, o professor se retrai ante a curiosidade de Maria da Paz sobre os

vídeos espalhados pela sala. Num discurso cuja voz ressoa a desarmonia, tenta explicar a ela o

motivo da presença das fitas ali. O resultado é a troca da admiração por uma expressão

dolorida, porque ela reconhecia como tênue a probabilidade de reaver a pequena felicidade de

seis meses antes. Naquele instante de “silêncio difícil” (SARAMAGO, 2002, p. 101), ambos

certificam-se de que “a verdade é outra e bem diferente.” (Idem), mas por razões opostas

desconhecem a causa. Na expectativa dela e na ânsia dele, praticamente a empurra para a

cozinha pedindo um café enquanto propõe-se arrumar o caos. Ao que ela murmura para seu

espanto: “O caos é uma ordem por decifrar.” (SARAMAGO, 2002, p.103). Esta frase dita

num tom indiferente funciona como um chamado de alerta para o duplicado desvendar o

mundo novo aberto à sensibilidade das emoções. Sem ter a pretensão, Maria da Paz toca na

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circunstância vivencial pela qual ele atravessa, mostrando a simetria entre ter o controle da

situação nas mãos e não resistir à sua força; não saber o que fazer. Contraria com isso a visão

de verdade de Max Horkheimer em Eclipse da razão (2002) ou a “faculdade do sujeito

individual de perceber a ordem eterna das coisas e, conseqüentemente, a linha de ação a ser

seguida na ordem temporal.” (HORKHEIMER, 2002, p. 20). Nas palavras irônicas de Maria

sugerindo que arrumasse o caos, Tertuliano se perde cada vez mais quando encara a guerra

perdida antes de começar ou encerrar algo que ele sequer acreditava realmente com futuro;

transcendendo: inicia a viver por conta própria. O duplicado via essa mulher como mais

segura, sabendo o que queria, resolvida a sempre tomar a iniciativa. É como se ele

reconhecesse em Maria da Paz tudo que não era. Para fugir de si, também não deixá-la

compreender de fato os “sinais ideológicos” (SARAMAGO, 2002, p. 108) têm uma relação

amorosa cuja finalidade foi Tertuliano pensar nas “contradições da vida” (Idem).

Descoberto o nome do ator Daniel Santa-Clara, depois de incessante busca, o

professor tem a idéia de usar o nome e o endereço de Maria da Paz a fim de chegar até o ator,

às espensas do Senso Comum. Como o professor deixou de ver a vida à maneira de portas

hermeticamente fechadas e trancadas, discute e passa por cima dos pudores do Senso Comum

em “usar” a namorada naquele propósito. Quanto à procura, explica de forma enviesada os

motivos da carta, outra vez é surpreendido pela sagacidade dela ao encaminhá-lo à

compreensão de si: “A vida, querido Máximo, tem-me ensinado que nenhuma coisa é simples,

que só às vezes o parece, e que é justamente quando mais o parecer que mais nos convirá

duvidar.” (SARAMAGO, 2002, p. 125) ao que o deixa numa “sobreposição e confusão de

sentimento” (Idem). Essa namorada que participa na criação de um homem novo cujos

melindres possam ser desvanecidos, também o faz colocar-se no centro do problema,

considerar-se um. Ela sabe que não tem a importância pretendida e reclama ao professor de

ser para ele, apenas uma máscara usada para as finalidades de conhecimento do seu outro eu.

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Razões e verdades questionadas, aquela que seria uma simples bancária percebe nas palavras,

nos pensamentos do homem escolhido, o mistério impregnado: “o que te cerra a boca é outra

coisa, Quê, uma dúvida, uma angústia, um temor,” (SARAMAGO, 2002, p. 169). Há algo que

está por vir perfazendo situação de “por enquanto”. A instabilidade que os cerca, as sensações

daí decorrentes produzem em ambos a espera. À ela suportável, porque aguarda obter o amor

suspeito, a ele, pela absoluta falta de iniciativa.

Ao saber de parte do problema que atormenta o namorado, Maria da Paz mais uma vez

é sóbria o bastante para refletir: “fora como uma porta que se abrira por um instante para logo

tornar a fechar-se, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 200) de permeio para si ao inconcluso, o

indeciso. Já para Tertuliano, o alcance é outro, a interpretação é difusa: “(...) o pior de todos

os muros é uma porta de que nunca se teve a chave, (...)” (Idem), porque não existe resposta a

se espelhar, a estrada está por construir e não há ninguém para ensinar o mestre na

mundivivência que é só sua. Depois que António descobre como Tertuliano chegou até ele,

usa as artimanhas de Daniel Santa-Clara para encontrar Maria da Paz. Nesse momento,

Máximo Afonso sai de cena, retira-se ao encontro de Carolina Máximo. No novo ambiente o

filho se abre para a mãe que o faz “entender” o amor por Maria. Porém, já é tarde, ela é alvo

da vingança de António. Ele a terá por despique aos desajustes de Helena, provocados pela

importunação do duplicado na vida do casal. Ao que este se vê incapaz de impedir; Maria

passa a noite com o namorado imaginado, quando na verdade é peça no jogo da duplicação.

Na volta para casa têm um acidente e ambos morrem.

Helena, símbolo de beleza, mas também de discórdia, surge no romance como a

esposa do ator Daniel, nome artístico de António. Trabalha numa empresa de turismo e é

dedicada ao marido. Ela é objeto da sondagem do duplicado na investigação pelo paradeiro de

Daniel Santa-Clara. É também quem primeiro pergunta ao marido sobre este homem

considerado por António Claro, seu igual e quais as conseqüências de um possível encontro.

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Helena é estremecida pela presença do estranho entre eles, pondera: “É só um pressentimento,

como uma porta fechada atrás de outra porta fechada, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 182).

Mais uma vez é a atmosfera do desconhecido que move os personagens a uma libertação da

opressão de não se conhecerem. Do necessário estremecimento interior, surge o rompante

pela abertura, sem precaução a tomar (daí as imagens da porta fechada). A esposa de António,

atormentada pela presença de outro homem cujo aspecto é idêntico ao marido, imaginativa, é

desperta pelo horário a cumprir na empresa, mas sucumbe à razão do sonho que a toma nos

braços e a embala. Pressiona António a uma decisão: “Ou lhe abrimos a porta, ou lha

fechamos, não vejo outra solução, de uma maneira ou outra a nossa vida mudou”

(SARAMAGO, 2002, p. 186). Na rotina, na cabeça do casal, Tertuliano está como algo

impossível de ser arredado e Helena sabe disso, tem a consciência voltada a alguma resolução

que, no entanto, não se propõe, ao contrário, se arrasta. Essa mulher atingida seriamente no

que acredita, é parte importante na cosmogonia do duplicado. Se, sabe usar as palavras certas

nas horas adequadas, também se cala quando necessário. Com o assunto da duplicação

adiantado, liga para Tertuliano numa dessas ações inexplicáveis. Embora sem resposta, a

atitude marca um diferencial da mulher que espera por resgate, pela salvação alheia à sua

vontade. Aqui é conveniente notar que Helena passa a tomar antidepressivos a fim de fugir da

realidade, mas isso não lhe tira o mérito de atiçar compreensões possíveis. Essa mulher que

tem o desassossego no corpo e o espírito abalado por causa de outra pessoa igual a seu marido

tem dois homens no pensamento. Nessa agitação, Tertuliano assume o primeiro lugar na

cabeça de Helena. Vimos contrariamente a Rita Ferreira (2004, p. 85) o fato de após a morte

de Maria da Paz e António, Tertuliano “raptar” o amor de Helena para juntos ganharem uma

nova chance de redescobri-lo. Primeiro porque fica ambíguo o verbo redescobrir. A

Tertuliano? Ao amor? De qual dos dois? A cena da relação de ambos foi algo mais corporal

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que sentimental; eles não ganham nova chance, Helena simplesmente propõe uma vida a

Tertuliano a qual este não externa consentimento.

Nas idas e vindas do narrador sobre quem é o duplicado de quem, a referência a

Narciso e sua frase característica: “este sou eu”, é inevitável. As metamorfoses apresentam-se

ininterruptamente e a urgência agora é responder: este, quem é? Porque conforme o narrador

“os medos mudaram muito e as dúvidas ainda mais,” (SARAMAGO, 2002, p. 246). Por isso

Helena se encontra cada vez mais silenciosa, cheia de uma insuficiência em tudo e por tudo

encontrável também em Tertuliano Máximo Afonso. A essa altura, António Claro está à

procura de Maria da Paz na intenção de dormir com ela para se vingar do professor. Há a

troca de lugares existenciais. António encarna Tertuliano e este vira aquele. O duplicado vai

ao encontro de Helena que o recebe sem nenhum sobressalto. Ele se vê à beira de um abismo.

Ela é nesse instante a calmaria da qual não consegue reunir forças para se afastar, motivo do

narrador ver este “homem confuso, enredador de labirintos e perdido neles,” (SARAMAGO,

2002, p. 290). Helena representa a possibilidade, conquanto ambos sentem-se como ilhas no

arquipélago humano separados pelo abismo da incompreensão.

O falso António quer se retirar, mas não tem ânimo diante de uma Helena cada vez

mais silenciosa e pensativa. Ela então não desconfia que aquele não fosse seu marido. O

duplicado não se apresenta como a imagem do herói, cuja bravura seria celebrada em

decorrência da ação meritória do salvamento da mulher desamparada. Tertuliano disfarçado,

está com ela por um revide, para tentar salvar-se como pessoa, retomar a dignidade talvez

nunca possuída de fato. No precipício em que se vê o homem duplo tem Helena como ponte

para o mundo. Quando ela o acalma após um pesadelo, vemos o indício de que a solução para

o caso de duplicação partirá dela. Entretanto, a heroína imaginada ainda ignora a fatalidade

que a cerca; antes de saber do acidente de António e Maria da Paz, o professor tenta sem

muita veemência sair da presença da esposa de seu rival, quer balbuciar uma desculpa, porém

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as palavras lhe saem à maneira de seu sentimento: retumbam em duplo, em eco indesejável.

São dedicadas várias páginas ao desenlace que não ocorre, a insegurança e o desconhecimento

dos personagens têm a força dos motivos condutores para o narrador deixar o protagonista

extravasar a “energia paradoxal da alma humana” (SARAMAGO, 2002, p. 292). Se por um

lado é covarde por deixar a namorada partir com o ator, assevera-se da obrigação de

esclarecer Helena que ao mesmo tempo tem e não tem o marido nos braços.

O ódio entranhado no duplicado junto à consciência da culpa, transportados para a dor

da perda, seguirão à Helena que a este ponto servirá a ele como o contato de equilíbrio “entre

ter sido e continuar a ser” (SARAMAGO, 2002, p. 299) exatamente o quê, Máximo ainda não

sabe. No momento em que aquela esposa emprestada lhe pede para ser o marido que já não

existe, amplia-se ao duplicado o labirinto das dúvidas e os impasses das decisões inadiáveis

nos quais está enredado. A mulher do silêncio, da espera o aceita como o outro, implora-lhe

que aprenda a ser o outro, numa espécie de compensação. O que para ele era a morte

continuada dentro de uma vida irreal.

Fundamental à sensibilidade de Tertuliano Máximo Afonso é a presença da mãe,

embora esteja ausente fisicamente, ela é a influência decisiva no que chamamos de ethos do

protagonista, não somente porque foi quem escolheu o nome do filho e ao fazê-lo esperava

que ele correspondesse àquela grandiosidade nele circunscrita. O duplo trabalhado por

Saramago retumba no tema do conhecimento presente na Ilíada. Filha do rei de Tróia,

Cassandra tentou avisar sobre o perigo da ação grega suspeita. Em razão da incredulidade por

estigma, os troianos não deram ouvidos aos seus vaticínios; o eco com a epopéia acontece

porque o protagonista, avisado do perigo, dessa vez divisa a própria destruição. De tanto ler o

livro das antigas civilizações mesopotâmicas (especialmente o Código de Hamurabi

antecessor da lei de Talião e se deixar conduzir por ele em certos momentos) amplia a face do

duplo permitindo ao narrador a digressão etimológica perante o comportamento sob suspeita

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dos dois personagens: na raiz latina de talis = a “idêntico” (SARAMAGO, 2002, p. 299) se

uniformizam os delitos cometidos e seus contraventores. Também importa considerar que a

mãe naquela história só reconhece um filho. Carolina Máximo, cujo olhar arguto sente e

conhece de forma não dissociada, declara seu medo do filho acordar de uma realidade da qual

ela entende que ele não está preparado. Salientemos a condição de caos na qual o personagem

está mergulhado. Esse caos interior que denuncia a humanidade do ser fictício é reforçado ao

longo do dilema vivenciado. Pelo comportamento dele que vimos palmilhando, a mãe tem

razão ou culpa por ter ditado a vida toda o que o filho tinha a fazer e agora já não pode

interferir; nem precavê-lo, muito menos apontar o certo e o errado de qualquer situação.

Momento concentrado no qual se manifesta a parte inconclusa do homem, reconhecida pela

personagem “assídua e fervorosa leitora de romances.” (SARAMAGO, 2002, p. 135). Isto

favorece o pressuposto de que a Literatura forma o gosto pela vida e sua quantia de

indiscernibilidade. Carolina é consciente que Tertuliano deve tomar suas próprias decisões,

ela sofre porque o vê se enganando. Tal é a explicação para este comentário: “Ao fim poderia

sair bem, não sabemos tudo do que nos espera para além de cada ação nossa,” (...)

(SARAMAGO, 2002, p. 208). Essa mãe que deseja saber do filho, fazê-lo medir-se na

envergadura existencial, está a empurrá-lo a agir neste sentido quando pergunta por Maria da

Paz, pergunta o porquê dele não assumi-la. Ela rechaça a idéia de um preparo prévio, visto

Tertuliano enfrentar algo que ela desconfia cujo ataque teme que o filho não execute. Não

podemos deixar de lembrar o apagamento de António em relação a este tema. O pretenso

original não tem além da esposa nenhum laço de afetividade capaz de reconhecê-lo ou

auxiliá-lo. Os vínculos históricos quase ausentes, entretanto, não são suficientes para haver

equilíbrio no desenhar interior do duplo; frisemos mais uma vez, não há desfecho nem no

plano da narração nem no da narrativa.

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As amarras estão postas, Tertuliano as vê como impostas. Carolina, na maior parte do

romance não figura; Maria da Paz é o intermédio e Helena oferece uma alternativa. Elas

simbolizam para o duplicado, há seu tempo e modo, o abrigo de si. Entretanto, os novos

espaços existenciais a alargar o mundo se impõem. O personagem da ambigüidade cujo

pensar e sentir se fazem tumultuosos, coteja motivos, razões, idéias a serem acrescidas, não

consegue ver o longe como sua mãe. Carolina é aos olhos do ser confuso a Cassandra, espécie

de Sibila que sempre pontuou suas ações. No entanto, diante do mundo que se potencializa a

sua frente, da efemeridade ou não da duplicação, qualquer sortilégio/opinião se torna inútil.

Do disfarce que conta mais que esconde Tertuliano retira o “algo não realmente

vivido” (SARAMAGO, 2002, p. 157) como a “parte de si agora ausente” (Idem) aludida pela

mãe conforme indicamos páginas atrás. Assim, é um retrato da vida por se fazer, moto-

contínuo desde as conversas telefônicas com Carolina Máximo, até a postura diligente do

protagonista ao final do romance, reclamando o arranjo de extensão existencial.

Retornando ao interesse pela mãe do personagem principal de O homem duplicado, ela

usa de sua autoridade a fim de saber dos problemas do filho, porém, vemos uma maior

sinuosidade nisso. Carolina anela, sobretudo, pôr o filho a se problematizar, mas não anseia

fazê-lo diretamente, é insinuante. Para o professor, aquela Cassandra de sua vida tem a

capacidade de extrair as palavras dele e quando estas não são necessárias, mesmo assim ficam

as nuanças, os sobejos, como podemos verificar neste trecho: “A mãe não lhe fez perguntas,

limita-se de vez em quando a olhá-lo com uma expressão expectante para logo desviar

lentamente os olhos,” (SARAMAGO, 2002, p. 229). Intensifica-se o turbilhão interior do

homem numa espécie de estrada sem volta, pois diferente da ansiedade compreensível de

Maria da Paz, a mãe tem postura diversa. Sabe lidar com o tempo, usar o tom da voz mais

propício, mas acima de tudo o coloca em desconcerto porque aguarda uma verdade. O

narrador nesse momento faz coro com a mãe do protagonista quando pondera: “esta verdade

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de todos e igual para todos pode, em algumas situações, afligir e assustar tanto como a pior

das ameaças.” (SARAMAGO, 2002, p. 210). Dessa forma está o ser fictício, o homem

ambientado na duplicidade, ansioso por respostas. Precisa de auxílio, mas não sabe expressar

um pedido, porque esta verdade tem relação direta com a vida, portanto, não há preceitos a

seguir. Tudo lhe soa conturbado e a inércia parece ter afinidade com o bom senso ao que a

mãe repele: “Há situações em que o pior que se pode fazer é deixar as coisas como estão,”

(SARAMAGO, 2002, p. 259). Se o bom senso pareceu-lhe ditar as formas, a solução esboroa-

se com as palavras de Carolina cuja perspicácia ajudou a aclarar as idéias do professor. Ele se

vê outro homem pela possibilidade da vida mudar, isto, no entanto, não o exime de parecer o

mesmo às pessoas implicadas do seu meio. Os procedimentos não convergem e sobra

consternação.

Quando finalmente empurrado pelas reflexões de Carolina Máximo, Tertuliano

descobre que amava Maria da Paz, o sentimento também é impregnado da duplicidade. Anuir

ao amor daquela mulher significava para ele a saída do mundo dicotômico a que se via

sujeitado. Todavia, a situação se complica não só pela morte física e/ou figurada, mas pelo

adentramento num outro universo sem possibilidade de aferição encontrada nas mulheres que

o cercam. Nessa outra vida, inestimável, a aversão pelo meio-termo do qual é parte

interessada após a morte do original, é encontrada naquela voz do outro lado do telefone.

Também assustadora como ouvir-se na secretária eletrônica, sabendo-se morto aos olhos do

mundo. É, sobretudo, aterrador atender um chamado com uma voz igual a sua e exigir a vida

do ator Daniel Santa-Clara que ele não era; sendo António que está morto, mas vivo em seu

corpo e voz, sem, no entanto, ser Tertuliano que ele queria ser e não pode mais. Nisto resulta

a igualdade da qual se quer fugir.

A sutileza presente nas emoções experimentadas pelo homem em busca de

compreensão no romance O homem duplicado é a outra face do conhecimento. Em busca do

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sensível e de sua evidência escamoteada como parte importante do saber de si, o protagonista

tenta se valer do caos como forma de decifração já que os acontecimentos primeiro e ele

muito mais estão fora de ordem. Aqui, os elementos ficcionais contrariam o preconizado por

Kant para quem a forma de lidar com a sensibilidade exige arrumação.

A ação é reclamada pelas três personagens femininas da narrativa, de acordo com o

que definimos páginas atrás. Até porque elas enquanto outrem na vida de Tertuliano já

fizeram sua parte concernente à diferenciação. Carolina por todas as razões elencadas

anteriormente; Helena por ter ofertado a vida conjugal e Maria da Paz por ter desconhecido

aquele noivo com o sinal de aliança no dedo onde se reconhece a pessoa casada. Elas são a

parte da sociedade que espera do sujeito um gesto concreto que leve à compreensão. Ao

descobrir-se no fato indiscutível de ser parte dos duplos absolutos, Tertuliano vê seu prestígio,

autoridade e suficiência ruírem. O gesto fica inacabado. Se o professor de Matemática assistiu

Quem Porfia Mata a Caça e o considerou uma comédia desprovida de lógica e senso comum,

isto demonstra que ele não tem a enormidade de entender a estranheza do colega de História

após ver o filme. A impressão daquele era o de um reencontro depois de uma ausência

prolongada através do olhar duro de Tertuliano. Naquela reação inesperada, espécie de

rejeição, o colega dos números via diante de si outra pessoa, porém sem o alcance daquele

que estava prestes a “acordar como quem não quer a coisa” (SARAMAGO, 2002, p. 36), ou

possivelmente se deixar conduzir pela ilogicidade da emoção.

O homem acostumado a lidar com os fatos, repercussões, que não se interessa por

ficção convencido por verdades já prontas, tem a vida revirada por um filme despretensioso.

Então, são os sentimentos, a expressão humana acentuada que o conduz. São as possibilidades

que o ocupam daqui para frente. Disto decorre que o personagem principal do romance em

estudo, atua na vida por meio da percepção da simplicidade quando há “indecisão, incerteza e

irresolução” (SARAMAGO, 2002, p. 32) que lhe explica, é responsável por aquela primeira

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visagem no espelho cuja profundidade leva ao encontro inesperado com o ator Daniel Santa-

Clara. Na ausência de uma explicação de quem seja, o que faz e seu significado no mundo,

apontamos isso como o traço salutar do personagem. Por ser este o ponto central de nossa

pesquisa enquanto dimensão literária, vem confirmar a superioridade da Literatura ao

priorizar a faceta humana como ideário principal. Sem dúvida, Tertuliano tem inúmeras idéias

depois de ver-se como adiantou o colega professor de Matemática: “duas gotas de água”

(SARAMAGO, 2002, p. 41), entretanto, essas idéias longe de corroborar ao entendimento que

ele tanto anseia, embaralham-se ao invés de se reformarem. A vontade do duplicado é algo

que duvida de si mesmo e fica na espreita por outro início, talvez um recomeço. O

protagonista também se move em função de um objeto; no caso, alguém tão concreto quanto

ele. As imagens que lhe vêm à cabeça, a imaginação em ritmo dissoluto, formam a idéia em

relação ao fato da duplicação, qual seja, a do problema que permanece. O caos aqui também

se manifesta por causa das emoções desencontradas, da possibilidade do ser humano repetir-

se. Neste contexto, entendemos a repetição não pela uniformidade pura, mas da elevação da

diferença; é não poder chegar a um denominador comum porque o resultado é sempre

irregular. Mais uma vez a Literatura contraria os pressupostos filosóficos quando o

personagem é influenciado pelo poder da imaginação. Esta ao partir das palavras de todos os

dias, provoca o homem a sentir-se como elas, provisório, desprovido de certezas. Em

contrapartida, os matizes e sutilezas descartados pela História que o professor ensina,

acrescem no conhecimento que este almeja em si, para si.

O que pode parecer estranho à primeira leitura de O homem duplicado é a ausência da

procura por uma explicação científica por parte dos personagens envolvidos. É como se causa

e efeito tivessem uma importância secundária. O conhecimento humano nesta perspectiva

vem da experiência fundamentada não no costume, mas no vazio que se tenta apreender. Ora,

se há igualdade ela não está nas ações ou na compreensão de vida dos personagens, é restrita à

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aparência, a um exterior que não fornece elementos de discussão com o que vai dentro dos

seres de papel. Em Saramago isto assume a dimensão de ver a igualdade positiva somente em

termos de direitos e deveres para todos os homens, com todos os nomes cuja lucidez leve à

diferença.

A Literatura atenta ao começo sempre vertiginoso de vida, se nega a determinar uma

estrutura e constituição dos sentimentos humanos. É por isso que os protagonistas da narrativa

de José Saramago se colocam à escuta, se vêem à beira do abismo fundador, estão na

encruzilhada sem ter alguém que lhes direcione. A felicidade ou exorbitância do nada de suas

opções ou mesmo a carência delas, não dão conta da diferença dos homens iguais no romance.

O problema é comum, a imitação é sinal de controvérsia, um dilema a se resolver; ao invés de

contribuir ao aperfeiçoamento da razão. Dessa forma, as emoções em ebulição ganham

primazia na investigação acerca do conhecimento humano dispostas nesse romance.

Como já tivemos ocasião de observar, uma das questões que movem o homem

duplicado é o desejo de conhecer. Conhecimento e moral são as linhas mestras do trabalho de

investigação empreendido por Immanuel Kant (1724-1808). A obra deste alemão gira em

torno da razão, como podemos conhecer e como aplicar isto na vida. Entre os dois livros

principais deste filósofo, tomemos inicialmente, a Crítica da razão pura (1996) para nos

auxiliar na prática interpretativa do romance de José Saramago. A Crítica estabelece a

conexão entre a intuição sensível e os pressupostos intelectuais do conhecimento humano.

Algo em princípio de acordo com a narrativa, porque o personagem embora não sendo um

exemplar do que se convenciona moralidade, se mostra tocado não só nos projetos

profissionais, mas, sobretudo no específico da formação de sua sensibilidade, apurada pela

duplicação.

Em Kant, o conhecimento começa com a experiência, mas nem tudo se origina dela.

Tempo e espaço são imprescindíveis para que ela ocorra; pois são tidos como formas de

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sensibilidade, também fontes do conhecimento. Há conhecimentos a priori e a posteriori, os

primeiros são denominados puros porque independem do empírico, condição dos segundos.

Nessa linha, faz-se indispensável a distinção entre juízo analítico e sintético; este é mais

enriquecedor (universal e necessário) ao homem porque traz em si o conceito de predicado e

de sujeito, característica que o analítico não tem. À razão cabe “a faculdade que fornece os

princípios do conhecimento a priori. Por isso razão pura é aquela que contém os princípios

para conhecer algo absolutamente a priori.” (KANT, 1996, p. 65). Fator recorrente no texto

de Kant é a especificação do conhecimento transcendental, aquele que se ocupa do modo de

conhecimento dos objetos, quando possível a priori. Sensibilidade mais entendimento

formam a matriz do conhecimento humano (mediante conceitos) segundo aquele pensador. A

sensibilidade tem relação direta com as representações diante de objetos que podem nos

afetar; outro nome dado a este aspecto é o de fenômenos, diferente da definição proposta por

Leibniz para quem os fenômenos são coisas em si mesmas. A denominação de categorias aos

conceitos do entendimento sempre se referem a objetos, vale reiterar, são aqueles dignos de

proporcionar esclarecimento ao homem. Conhecer algo é ter em vista dois elementos:

conceito/categoria e intuição (representação que pode vir antes do pensamento). Diante disto,

surge logo a pergunta: como é possível conhecer os objetos, sendo eles representações de

fenômenos? Em como conhecer está a problemática de Kant, com uma assertiva bem à mão: é

necessária a modificação de nossa sensibilidade para que ocorra a possibilidade da

experiência. Pela lógica transcendental de Kant, ficamos sabendo do entendimento como

faculdade de regras, a razão é distinta deste por ser agora a faculdade de princípios.

No capítulo sobre a Dialética Transcendental, o filósofo da razão pura, vê o homem

enquanto ente pensante, um objeto dos sentidos externos. O sujeito se dá ou subsiste através

das categorias. Somente pelo pensamento o homem pode se conceber como um objeto

qualquer. A existência pautada pela necessidade é uma das premissas de Kant para quem os

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conceitos são a medida. A capacidade do sujeito se ver como objeto determina a composição

do fenômeno; por conseguinte, é essencial que haja liberdade nesse processo, bem como

atenção à natureza. “Liberdade transcendental, portanto, opõe-se à lei causal e uma tal ligação

dos estados sucessivos de causas eficientes (...)” (KANT, 1996, p. 295). Tendo como

horizonte a experiência possível proporcionada pelos objetos, os quais não passam de

fenômenos, meras representações, Kant fala de entes extensos ou série de mudanças aliadas

aos nossos pensamentos; idéia que ele denominou de “idealismo transcendental”. Ponderemos

que a sensibilidade enquanto receptividade é a causa inteligível dos fenômenos, também

chamado de objeto transcendental, dado antes de toda a experiência. Tratando das antinomias

da razão, o filósofo propõe como postulado desta, a perseguição do entendimento visando

ligar um conceito daí decorrente com suas condições.

Destacar o objeto nas instâncias de tempo e espaço é dar ensejo à sensibilidade, uma

vez que estas instâncias só são no mundo dos sentidos. O pressuposto usual do entendimento

humano comum prevê as condições de representação do objeto segundo relações de tempo e

espaço. Contudo, há de se considerar os conceitos dinâmicos do entendimento, diretamente

relacionados à razão, tanto mais visíveis quanto forem as condições sensíveis. Para dispor do

conceito de razão, o filósofo adota vários sentidos do termo que vão se moldando à sua teoria,

sua visão de mundo. Entre outros, ela é “a condição permanente de todas as ações de arbítrio

sob as quais se manifesta o homem.” (KANT, 1996, p. 348) É determinante, mas não

determinável porque justamente implica na liberdade que faz o homem acontecer. A força

prática neste sentido é o que dá vigor à disponibilidade do uso da razão. A determinação de

alguém, de algum limite está num ideal transcendental cuja problematização parte de uma

coisa qualquer, para em seguida encontrar ou um conceito para a necessidade absoluta ou a

necessidade para o conceito.

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Para tratarmos do conhecimento humano, sua síntese ou ampliação, é preciso saber de

antemão da experiência possível que se dá sobre os objetos do mundo dos sentidos, de onde

devemos buscar sua significação. Ele inicia com intuições, delas passa-se aos conceitos para

terminar nas idéias. Na Crítica da razão pura, há a compreensão do que vem a ser a Doutrina

Transcendental do Método a fim de se atingir o tão almejado entendimento do mundo com

base no domínio dos objetos. Ela é “a determinação das condições formais de um sistema

completo da razão pura.” (KANT, 1996, p. 427). Aferrada a uma disciplina, esta Doutrina não

se isenta de especulação, seja com respeito às definições, aos axiomas ou às demonstrações.

Seu uso polêmico ocorre porque trata dos juízos com referência aos conflitos da razão.

Já ao final dessa primeira obra, cuja perquirição sobre o conhecimento é a grande

questão, vimos encetada a preocupação de Kant quanto ao uso prático da razão pura: como

dispor dela visando ao bem supremo, atingir a felicidade sem ferir o aspecto moral da

possibilidade da experiência? Os sentidos que nos apresentam o mundo dos fenômenos, o

qual se relaciona ao mundo moral são vistos como uma conseqüência de nosso

comportamento no mundo sensível. A moralidade, o uso prático da razão é o leitmotiv da

segunda obra filosófica deste escritor, que tem na crítica da razão seu maior reconhecimento.

A prosa de José Saramago embora não tenha o ensaísmo como proposta, acena na

direção de uma reflexão com os personagens. Conhecimento e moral são entrevistos nos atos

dos heróis sem glória. Entretidos com a duplicação – neste momento a tomamos como objeto

– eles fazem a polêmica acontecer; quem é o original de quem? Como conhecer o outro e a si?

Pretextar uma divergência? Nessa linha de interrogação, o narrador acompanha os passos dos

duplos absolutos, bem de perto conjuntamente à desmoralização do Senso Comum. O

processo gnosiológico que perpassa no romance é identificado com a sensibilidade ou a falta

dela no trato com as questões íntimas que a duplicação envolve. Porque ela está além da

simples intuição, é uma experiência concreta, é a vida que se impõe, pela semelhança? Pela

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vontade da variação? O tempo é incondicionalmente psicológico, por ele temos noção das

incertezas, da falta de iniciativa e mesmo da precipitação nas ações dos seres duplicados. A

existência regrada de algumas personagens, o sentido de oportunidade do Senso Comum,

também confluem para essa instância da sensibilidade de acordo com Kant. Quanto ao

espaço, os entes ficcionais se movem ora da casa para o trabalho; à locadora de vídeos;

produtora de filmes; na estrada; recebem visitas esperadas ou não e no auge da narrativa os

dois protagonistas se encontram numa casa de campo. Nesta, antepomos uma decisão tácita

até pela descrição que o narrador fornece do ambiente: porteira aberta, porta da mesma

maneira, com janelas fechadas. Para ter acesso, é preciso subir quatro degraus e

obrigatoriamente parar no limiar; no seu interior, a casa estava imersa em penumbra com uma

luz plena irradiando da porta aberta. Dessas imagens retiramos ingredientes salutares ao

entendimento do não-ser, daquele que foge à regra, do que não se enquadra na perfeição e

habita as exceções. Não por acaso o personagem para no limiar. Perfilado, não se deixa ver;

pensa chegar ao fim do caminho, porém, é interceptado pelo Abismo. Impedido de retornar, a

angústia e o terror não se restringem apenas ao pesadelo, ao contrário, se estende ao precipício

da duplicação.

A nossa discussão acerca da agregação existencial – tema do romance de Saramago –

vai em direção oposta à idéia de homem consignada na teoria de Kant. O homem duplicado

não pode ser visto apenas como objeto dos sentidos externos que sirva de conhecimento para

seu outro eu. Há o substrato humano independente se tratar de original ou reprodução, enfim,

algo que resvala no incognoscível. Sem dúvida, o pensamento diz muito dos duplicados;

aquele que se julga de caráter intransferível, enseja tratar seu “oponente” como coisa

descartável, para uso em serviços perigosos. Enquanto submetido ao usual, o bizarro sem

opção está alheio; convertido em dúvida, é cercado por ela e indisposto a uma síntese

arbitrária do que venha a ser habitar o mundo de cópias. Neste sentido, é possível falar em

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liberdade? Naturalidade? Diríamos que há uma luta ferrenha entre forças que se medem a fim

de saberem se a igualdade do outro equivale à igualdade absoluta.

No tocante ao revés iniciado pela desavença de ser ou não um elo no encadeamento do

itinerário hominal de O homem duplicado, nos reporta ligeiramente ao que Immanuel Kant

denomina de “Idealismo Transcendental”. Observamos que os personagens passam por uma

mutação de pensamentos, seja por perder a situação que julgava ter nas mãos, seja pelo

afrouxamento de seu lugar existencial. As chamadas “leis da sensibilidade” do filósofo

alemão tropeçam na acurada investigação dos personagens principais no livro do escritor

português, cujo intuito é contar uma experiência humana que se quer desvencilhada da

analogia. Foge ao domínio e não induz a validez no mundo compatível do entendimento. O

homem da duplicação, em pleno conflito no uso da razão, espalma a imagem do espelho, a

sua e a de um desconhecido. O faz como quem acorda de uma vez o que traz no seu interior e

busca incessantemente apesar de parecer não querer fazê-lo. Não há senão a promoção do

problema em meio à racionalidade em vacum. O bem supremo de Kant cede espaço ao bem

particular que apesar disso, não ocorre, fica às vésperas, no interdito, na coalizão impensada

dos interesses. A visão aterradora de si reproduzida em outro corpo de mesma voz e gestual; o

toque no ombro incapaz de constituir amizade ou entendimento ao final do romance, não

configuram sentidos concludentes num mundo de leveza. Denunciam por seu turno, um

comportamento cuja “fraqueza moral” (SARAMAGO, 2002, p. 297) somam para menos o

sujeito sem pessoa, abandonado pela razão que engloba e evita a variegação.

Sigamos o itinerário interpretativo com a segunda obra de Immanuel Kant, agora com

a Crítica da razão prática (2002), cujo interesse maior é entender como o homem faz uso da

racionalidade, tendo os princípios morais por meta. Se na Crítica da razão pura, a

investigação versava sobre a problemática do conhecimento, nesta, a análise é referente ao

problema moral que cerca todas as ações humanas. A busca pela felicidade, a maneira de agir

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para obtê-la entre seus iguais, faz o homem se mover de determinada maneira que irá ocupar o

pensamento de Kant, no universo das idéias em que ele se vê inserido. A boa ação,

moralmente falando, equivale a obedecer à lei moral em si e esta deve ser proveniente da

razão que determina esta ou aquela conduta. Desta forma temos acentuada a liberdade, a base

da vida moral. Até que ponto se pode ir para conseguir alguma meta na vida? Que preceitos,

escrúpulos guardar? Quais limites devem ser ultrapassados? E se o meu bem estar for o início

do mal de meu próximo? Quem considerar meu próximo? Estas são indagações inerentes às

questões morais, síntese da fundamentação crítica do pensamento kantiano. Outro fator que

deve ser lembrado é a vontade moral como motivo norteador da moralidade, sendo que ela

deve ser regida por um respeito pela lei em si; não esquecendo o acordo estabelecido entre

felicidade e virtude, embora elas apresentem discordâncias no interior do sujeito: quando

atender uma e desprezar outra? Qual priorizar?

A moral, segundo o pensador alemão, é uma questão para ser resolvida pela razão,

pois a fim de atingir o supremo bem, o que conta é a autonomia, capaz de garantir pela

escolha das máximas (as leis subjetivas), a validade como leis universais. A ética kantiana

estabelece a incompatibilidade interna entre dever e liberdade, porque o homem ao viver entre

seus semelhantes atende a leis que muitas vezes não concorda, mas para garantir uma

liberdade geral, se vê restrito no que considera um bem estar pessoal. Assim, passar do campo

teórico para o prático exige muita perspicácia, muita reflexão e acima de tudo racionalidade

em qualquer ocasião; visto que os objetos não são dados, é a razão prática quem os produz.

Para tanto, se faz o conhecimento prático da ordem do dever-ser em contraposição ao teórico,

cuidadoso com a ordem do ser. A concepção moral de Kant prima pelo respeito incondicional

pelo ser humano que chega à autonomia por meio do uso da razão; esta, nunca restrita apenas

ao manejo teórico. O modo de pensar conseqüente do filósofo entende o sujeito reflexivo o

qual seja para si mesmo, internamente, um fenômeno; digno de investigação quando juntamos

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conhecimento da razão e conhecimento a priori como uma e mesma coisa. Por ser deste

modo, a lei da causalidade partindo da liberdade é uma proposição fundamental prática pura,

da qual se constitui o começo e determina os objetos que formarão o conhecimento do

homem.

Chama atenção no pensamento kantiano a praticidade que ele vê no uso da razão; se os

imperativos se valem pela regra de um dever-ser, as máximas são por uma proposição

fundamental subjetiva. A felicidade que se busca, o sentimento de prazer no sujeito se faz

pelo entendimento entre razão e vontade no qual, o deleite possa ser usufruído por meio da

observância da lei. Com isso, ela é prática ou passível de o ser se qualificada enquanto

universal. Nestes termos, a razão pura é por si prática porque lei universal/lei moral; e

satisfazer essa exigência da moralidade é para Kant, algo que está em poder de cada pessoa.

No entanto, surgem impasses nessa praticabilidade. São as questões de âmbito do livre-

arbítrio: como se falar em intuições ao tratarmos de objetos se nenhum objeto pode nos ser

dado? Como a razão pode determinar a máxima da vontade? De que forma a razão pura pode

ser prática? Portanto, da lei moral extraímos que a razão especulativa assegura um

problemático conceito de liberdade e, se pensarmos a vontade de acordo com sua

determinação num mundo inteligível, teremos o homem – sujeito dessa vontade – pelo prisma

de uma causalidade. É a vontade livre, a contrapartida da causa que diz respeito ao ente.

Assim entendido, os objetos de uma razão prática são os de bom e mau; estes por sua vez vão

significar de acordo com a vontade, então determinada pela lei da razão. Tais definições

devem ser estabelecidas após e através da lei moral que assegura mediante a razão pura

prática, o móbile da ação. Para Kant, “somos membros legislantes de um reino moral possível

pela liberdade, representado pela razão prática, (...)” (2002, p. 133) o que denota expressão de

um respeito por essa lei na caracterização do homem, sujeito da lei moral. Ora, como a razão

prática visa tornar os objetos efetivos, ela não parte da intuição para que isso aconteça, mas

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indica somente uma lei da intuição; com isso, a urgência agora é a distinção entre as doutrinas

de felicidade e moralidade, sobretudo as reivindicações de riqueza, saúde, ser pobre, ser

honesto em função deste ou daquele aparato no qual o homem se sinta peça importante. O

domínio prático a que Kant tanto requisita concentração é o que nos eleva acima do mundo

sensorial e proporciona conhecimentos mais seguros. A moral contribuirá neste intuito, ao

canalizar esforços de como devemos tornar-nos dignos da felicidade.

Vejamos como o postulado teórico de Immanuel Kant repercute na narrativa de

Saramago. Estabeleceremos relações que incidem sobre a compreensão de cada um dos

personagens acerca da moralidade, como forma de garantir a felicidade ou a busca dela pelo

homem. Como já frisamos no início de nosso texto, o protagonista do romance português

tendo uma vida sem atrativos, acaba sacudido pela duplicação. Tem para si que é preciso

deixar seu jeito furtivo e buscar outra aventura de viver, enfim, pôr em prática a liberdade da

qual usufrui; seja por ser sozinho, seja por não querer assumir um compromisso velado. Põe

atenção redobrada ao assunto que o demove de ser um sucedâneo. Ele é focado no espaço de

seu apartamento. Aparentemente é livre, contudo, essa liberdade não o redime de se afastar ou

por vezes se lançar rumo à transgressão de limites que o reduz, o incompatibiliza de se sentir

gente, ter a normalidade por regra. Como Kant avalia o procedimento do homem através do

que ele faz para obter o supremo bem, o sujeito sem posse de si na ficção é visto como

alguém em busca de uma nova consciência em meio a perplexidade. Nisso, temos alguma

afinidade com o pressuposto filosófico uma vez que a alteração do personagem baseia-se no

dado sensível, não, porém com o dado matemático. De início, impulsionado pela curiosidade,

o homem duplicado se reveste do interesse que aguça sua racionalidade a fim de montar e

solucionar o quebra-cabeça. As aulas ministradas de História servem à reflexão que necessita

objetividade, mas no fundo levam ao vazio, tal é o sentimento de vertigem por parte do

personagem principal. Se a ação tão cara a Kant resolve muito pouco ao homem de duas

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vidas, os princípios morais ficam defasados, inócuos. Quem usará quem? A troco de quê?

Quais vantagens obter da duplicação? Tornar ou não pública esta situação? Toda essa

indagação vem do fato de que o personagem não pode ser reduzido a uma única experiência,

portanto, não podemos também falar da unidade de experiência como proposta de

conhecimento do homem na narrativa.

Assim disposto o conflito no romance, narrador e personagens instigados pelo inédito

do caso, não se furtam ao estado de interiorização para se falar numa consciência modificada

do sujeito. Sem dúvida que o tempo é elemento priorizado aos seres da ficção como forma de

sensibilidade, incompatibilizados em espaços redutíveis à experiência única, esta não tem a

repercussão esperada nos homens que se querem diferentes. Não é o que Kant chama de busca

pela felicidade, mas, diríamos, um deslocamento, a falta de posicionamento que marca o

homem sem face definida. Dessa maneira, o espaço enquanto forma de sensibilidade externa

dá a conhecer um sujeito defasado se levarmos em consideração a totalidade de vivências que

não se efetiva. A liberdade de antes da duplicação se transforma em fardo devido a

impotência em modificar o contexto, não se trata de um bem estar. Antes um mal estar

constante nos dois homens unificados por uma pergunta infiltrável: quem sou eu neste outro?

O interesse que impulsionou o pacato professor de História a sair da letargia a que estava

reduzido, ganha outra versão na pele do ator. A vontade deste, primeiro por tirar vantagem da

semelhança, depois de suprimir a existência de seu rival, transforma-se em vingança sexual;

mostra o quanto a independência é discutível no âmbito da moralidade estranha à capacidade

de escolha do sujeito indefinido. O homem prático, homem da ação de Kant tem outras

prioridades em Saramago. Não se trata aqui de satisfazer determinada lei moral, é a satisfação

de uma existência em conflito que nos ocupa. Para tanto, as respostas não se oferecem através

do uso de máximas, muito menos pela opção de certas categorias existenciais; há algo de

intranqüilo, de desnorteio entre os homens. Chegar à solução abrupta também não distingue

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seres de potencialidade duvidosa, da mesma maneira que Máximo Afonso vê que não é o fato

da nomeação (caso de depressão, marasmo, monotonia...) que resolverá essa espécie de mal

sem cura.

Em todo caso, temos a apontar no protagonista a falta de iniciativa que o distingue,

incompleta para as coisas da vida que lhe diz respeito. Oriundo de um tempo sem tempo

certo, ele está prestes a um interesse por si nunca visto. Pesa, pondera, mede-se e o resultado é

sempre inferior, tanto é verdade pelo que observamos em seu olhar esquivo, a decadência

moral à vista em detrimento da enormidade detectada naquele que considera seu original.

Desqualificado para viver, não enxerga alternativa, não se encontra, sequer se vê enquanto

sujeito de suas ações. Por isso, há concordância forçada em reuniões cujas interferências são

sempre as mesmas e sempre ridicularizadas. Quando encontra interlocutor, as ações se tornam

totalmente descabidas em relação à autonomia de si, perdida para o eu de escolhas feitas. Se

corretas ou não, elas não incitam contra-reação por parte do duplicado. É notório que António

aventa inúmeras possibilidades de vingança; corre atrás daquela figura que lhe transpassa a

vida, provoca incompatibilidades, enfim, estimula revolta e insiste num paliativo para

sobreviver. É certo também que neste personagem, os atrativos morais são questões que

pululam em gestos, palavras proferidas com intuito de machucar, provocar contusões na alma.

Não é uma moralidade em termos kantianos, visto que o supremo bem de um personagem

implica na dissolução vital do outro. Pelo contrário, em ambos, notamos que não se trata de

transpor barreiras existenciais é a falta delas o nó intrincado, inclusive, a consciência exige

espaço nos seres da ficção com um passo fora dela.

Diante do inexplicável da duplicação há descontentamento à vista. As coisas, as

pessoas tão bem definidas/definíveis ganham novo contorno, ou melhor, se ressentem deles.

O que é salutar e o que repercute nos meandros de vida e morte não incidem numa escolha

sem volta, a qual resulta em contrariedade. Ser cópia, reprodução, item de série, pivô de uma

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ordenação, são quesitos que o homem se debate no romance que tem no uso da razão, o

elemento de embate entre o protagonista e o personagem conhecido por Senso Comum. Este

sempre a convocar a prática da racionalidade para se safar das dificuldades. A fraqueza de

ânimo do homem duplicado, os gemidos que o laceram por causa de uma dor antiga, fazem

ver com mais perspicácia quanto a rotina, a repetição o enfada. Essa dor antiga, sem remédio

nem distração é o que lateja, o obriga a se inventar a cada dia, preso, entretanto, à falta de

opção. Quando o personagem brinca com a sorte, mostra a expectativa de se aprender algo,

“nunca jogue as pêras com o destino, que ele come as maduras e dá-te as verdes”

(SARAMAGO, 2002, p. 16), na oportunidade de se construir algo, o autoconhecimento?

Exibir a falta dele? É pela indisponibilidade do convencimento de si que o ente de ficção se

faz vazio, ele de espírito vagueador, inconstante e evasivo, não encontra lenitivo para o

insuportável. Ao contrário do que o narrador sarcasticamente afirma, o pensamento é o que

conta, a ação por exígua que seja desmerece o homem desse romance; diante de uma presença

silenciosa, apenas o devagar da respiração, a precipitação cede lugar ao imaginar e o

perambular sem fim é trocado por um acomodar-se prazenteiramente e se pôr à escuta.

Tertuliano Máximo Afonso que tem tanto de corajoso quanto de covarde, perde o

chão, perde a tranqüilidade, perde o seu guia que é a razão quando se depara com aquela

imagem na televisão, se ajoelha como quem presta culto e diz de forma incrédula: “sou eu”.

Porém, é um eu sintomático, não se deixa apreender, foge ao controle. E o aparentemente

simples, adquire outra tonalidade, tem o peso da concretude com aquilo que o narrador ironiza

em outro contexto: “a perdição irracionalista” (SARAMAGO, 2002, p. 17) ameaçadora deste

mundo.

Essas constatações nos levam ao pensamento de Max Horkheimer no livro Eclipse da

razão (2002) o qual se preocupa em indagar desde o cerne o conceito de racionalidade que

rege a cultura industrial contemporânea. Para este escritor, prevalece o sentimento geral de

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temor e desilusão devido ao alcance dos bens materiais seguida de perto por uma

desumanização crescente. A idéia de homem que se busca neste livro vai além de classificá-lo

como o portador da razão, aquele que tem a força de decidir o que seja útil para si, capaz de

inferir, deduzir, reduzir a complexidade das coisas e dos homens ao redor; eis o que o autor

denomina de razão objetiva. Saindo da estrutura objetiva, a razão subjetiva dá conta da

relação de um objeto ou conceito em vista com algum propósito. Assim fundamentada, a

razão objetiva desde Platão determina a vida, a idéia do bem supremo e o modo de realização

dos fins últimos que acompanham o homem. Relegada a segundo plano, a razão subjetiva, o

“dizer” subentendido da faculdade de falar; essa capacidade de calcular probabilidades e

assim coordenar os meios corretos com um fim é preterida pelo conceito de logos ou ratio,

alicerce da razão objetiva, base para o conceito do sujeito pensante na sociedade ocidental.

O que Max Horkheimer coloca como crise do pensamento ocidental, diz respeito à

inadequação da objetividade no uso da razão. Os sistemas filosóficos daí decorrentes

implicam numa convicção em descobrir estrutura totalmente abrangente do ser e com base

nisso, poder derivar a concepção do destino humano. Já nos tempos de Montaigne, a razão se

revela com uma tendência a dissolver seu próprio conteúdo objetivo, através de uma atitude

conciliatória. A filosofia racionalista tinha como principal esforço, formular uma doutrina do

homem com função intelectual em substituição à religiosa do passado. Embora não tenha tido

os resultados esperados, os sistemas filosóficos racionalistas, “foram apreciados como

esforços para fixar o significado e as exigências da realidade e para apresentar as verdades

que são comuns a todos.” (HORKHEIMER, 2002, p. 24). No entanto, ficava em voga a

questão de atender ou à revelação ou à razão para se tratar de uma verdade suprema, nisso se

fundavam os conflitos. A razão sendo destrinchada em sua composição cede a independência

e aí vira instrumento para se alcançar determinado fim. Cresce o papel da matemática, da

ciência enquanto a razão subjetiva é vista como algo que se conforma a qualquer coisa, por

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isso menos importante. Com um poder de resistência, a razão subjetiva mostra a verdade

como costume e, portanto, a despe da aura espiritual, como pretendem os cultores da razão

objetiva, sempre em busca de um sentido inerente nos homens, nas coisas.

A experiência humana que o autor do Eclipse da razão quer esboçar é uma experiência

muito próxima do que encontramos n’O Homem duplicado: a amostragem da aflição do

sujeito na efervescência da própria incapacidade de atingir uma ordem objetiva, pois ela não

condiz com o que lhe vai por dentro, não explica sua realidade em tudo e por tudo conturbada.

Pelo contrário, o personagem foi tocado pelos últimos acontecimentos que passam a modelar

a sensibilidade que agora o identifica. Apreender os fatos parece mais honrado que refletir

sobre eles, isto ocasiona tensão entre o postulado moral e a realidade social. A reificação na

sociedade organizada tornou-se instrumentalização da atividade humana feita mercadoria, é o

lucro, a rentabilidade, a mola mestra para se lidar com o humano. Na tentativa de extrair uma

filosofia dessa visão das coisas, o pragmatismo tenta se valer por si quando adota a opinião de

que uma idéia, conceito ou teoria nada são se não levarem à ação. A verdade, para esse

pensamento, é algo que funciona mais; os meios certos e os fins esperados são a tônica dessa

filosofia cujos resultados da experiência, podem atuar sobre a conduta humana. Vimos, no

entanto, que essas últimas colocações não podem nos fornecer idéia equivalente do homem

duplo.

Horkheimer entra na discussão sobre as possíveis soluções também em conflito acerca

do declínio do pensamento filosófico. A filosofia moderna passa à ciência o papel da

especulação, nisso próximo ao que Platão pensava ao querer transformar os filósofos em

governantes. Salvar a humanidade em ambos os sentidos, é submetê-la às regras e métodos do

raciocínio científico. Seja no pragmatismo, seja numa neo-religiosidade, temos a tentativa de

estabelecer um princípio absoluto como poder real ou vice-versa, mas procurando sempre a

identidade com o bem, a perfeição, a realidade para explicar o homem. Como são os

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resultados que se buscam nessa visão objetivista, o conhecimento é medido pela lógica; a

ciência moderna reifica a vida em geral ao contemplar o mundo como mundo de fatos e

coisas, esquecendo que eles são relacionados a um processo social. Os intelectuais nesta

disputa cometem um crime contra a sociedade conforme Horkheimer, por sacrificar as

contradições e complexidades do pensamento às exigências do senso comum; pela hostilidade

a tudo que se refira ou se queira estranho. Nisto se dá o declínio intelectual pois, há a

pretensão de adaptar a humanidade ao que a teoria reconhece como realidade; cada facção

pretendendo expressar uma verdade, distorce-a procurando torná-la exclusiva.

Quanto à abordagem da natureza no eclipse que nos ocupa, passa-se do domínio do

objeto, sua explicação, aplicabilidade até a liquidação do sujeito que deveria usá-lo. Por ora,

equivalem-se a dominação da natureza e a do homem. Os menores gestos, os atos formais ou

informais são tratados pelo viés da potencialidade funcional. Desta forma, a civilização

integrará uma revolta da natureza como outro meio ou instrumento. Temos então a

autopreservação do indivíduo através das exigências de preservação do sistema, fazendo do

comportamento subjetivo, ajustamento que aparenta independência, sendo, contudo um

paralelo de passividade. É enganoso olhar com entusiasmo a falsa multiplicação de escolhas

quando a mudança de qualidade, se houver, diz respeito à inferioridade, sendo reducionista,

muda-se o caráter de liberdade. Adaptar-se (fazer-se igual ao mundo dos objetos) é o novo

ritmo da humanidade moderna para quem a natureza foi despojada de todo valor ou

significado intrínseco e o homem, de todos os objetivos que possam lhe explicar, resta o

sentido de auto-conservação. Desde a adolescência, o conflito aparece pela ligação entre

razão, eu, dominação e natureza; assim o caráter do indivíduo se bifurca pela opção entre

resistência ou submissão, tendo à espreita para entrar em ação o impulso mimético. O que

Horkheimer coloca como auxílio à natureza é libertar seu pretenso opositor: o pensamento

independente.

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A ascensão e o declínio do indivíduo no pensamento do alemão se inicia com a crise

da razão. No passado, um instrumento do eu, na modernidade, torna-se irracional e

embrutecida por visar a autopreservação a todo custo. Observar o sujeito compreender sua

própria individualidade significa vê-lo como ser humano consciente, reconhecendo sua

identidade. Quando o sujeito começa a pensar em si mesmo como a mais alta de todas as

idéias, ocorre a dissociação entre o indivíduo e a comunidade, portanto, do ideal e do real.

Dentro desta perspectiva “o homem emergiu como indivíduo no momento em que a sociedade

começou a perder a coesão e ele tornou-se consciente da diferença entre sua vida e a da

coletividade aparentemente eterna.” (HORKHEIMER, 2002, p. 139). Na contemporaneidade,

destaca-se as inúmeras oportunidades que cercam o indivíduo contrapostas às probabilidades

concretas cada vez mais rareadas. Surge a imitação, a verdade enquanto instrumento para

dominar a natureza e da pressuposta inteireza que resume o coletivo, depreendemos o declínio

da individualidade.

Em dias que a existência humana é medida pela eficiência, produtividade e

planificação, a queda do indivíduo acontece graças a atual estrutura e conteúdo da mente

objetiva; ainda os meios da cultura de massa servem de reforço às pressões sociais sobre o

sujeito imerso na dissolução de seu eu. Privado da espontaneidade, o homem da resistência

não se dobra à conquista e à opressão, ao invés, luta para ter sua humanidade preservada no

respeito pela diferença. O papel da filosofia nesta conquista, na concepção de Horkheimer, é

entender e fazer valer o método da negação, denunciar o que mutila a espécie humana e

impede seu livre desenvolvimento; é, enfim, obter confiança no homem emancipado das

amarras supersticiosas e/ou ultra-racionais.

É patente na Literatura de José Saramago a visão da existência que perdeu seu

significado objetivo. O existir diferenciado ao qual nos referimos, exerce fascínio no que tem

de contrário ao determinado, de obediência à regras e medidas. O destapar a caixa de Pandora

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significa neste contexto a curiosidade em conhecer o outro; levou a ambos a esse encontro, a

deparar-se com a duplicação de forma definitiva, com todos os percalços oriundos deste

gesto. Os males daí decorrentes surgem no sujeito e se espalham pelo seu duplo, mas sem

uma esperança ao fundo que possa dar cabo do inusitado. No entanto, não podemos afirmar

categoricamente que se trate de imagem pessimista da humanidade nesta narrativa, é antes a

abordagem de um universo refratário a igualdade, inclusive a absoluta. Fato também propício

de se invocar o atormentado Hamlet para reforçar o antagonismo irreconciliável entre os

duplicados envoltos na atmosfera de legitimidade e usurpação.

Entre o sujeito e ele mesmo, o temor e a desilusão apontados por Max Horkeheimer,

declaram a desumanização em Saramago, combatida por meio da discordância em aceitar-se

como fiel da balança; sujeitar-se a cumprir certo propósito, servir a uma finalidade. Vemos o

homem em declínio quando algum personagem se recusa a ouvir seu interlocutor, fazer valer

apenas seu pensamento, prevalecer-se sobre o outro, imagem de si. Na mesma proporção, o

protagonista, vítima e algoz, se encontra num estado de inadequação para o que há de

objetividade. Por isso se põe numa concepção de destino afinada com a discussão do que

venha a ser verdade, bem como se essa verdade pode ser entendida comum aos dois

implicados. Ressaltemos que o lado prático da duplicação não é superestimado, quase serve

somente à reflexão, ao pensamento ponderado dos dois homens que olham no espelho e não

se refletem.

De início, o que parecia simples coincidência, perfeitamente explicável e base de uma

funcionalidade, sai de controle, sai do domínio das mãos dos personagens e aí não se discute o

bem ou a perfeição universalizante. O espelho fica de lado, a boa imagem é interrompida para

explicar o homem. É o momento das contradições, do sentir-se a mais no mundo, ódios

ressaltados e a dor da consciência da culpa por não ter agido de acordo com o que considerava

verdade inquestionável: ser uma pessoa comum, portanto, única, insubstituível. O caráter de

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complexidade da duplicação, os embates com o senso comum dizem muito do homem

obrigado a conviver, a abstrair-se na estranheza a fim de tentar independência criativa. Se

retificarmos com o álibi da passividade daquele, teremos uma luta muito mais velada que

concreta pela recusa em adaptar-se, pelo querer, mesmo de forma amena, o pensamento

independente. Toda a abordagem do livro Eclipse da razão auxilia a estudar a ficção de

Saramago por meio da vertente dúplice do que vem a ser imitação ou verdade. Desejar um e

rejeitar o outro aspecto, a fuga da idéia de ser instrumento hábil da totalidade, leva a pessoa

do personagem a expor pontos de vista, deixar rastros de indignação e assim expressar

espontaneidade – coluna vertebral da emancipação humana que a Literatura procura valorizar

enquanto doadora e receptora de vida.

Podemos destacar essa referenciação não apenas no romance de 2002, mas em obras

como Todos os nomes (1997) que só pelo título enseja a abertura para discutir os domínios da

razão a entravar o conhecimento do homem sobre si. A indefinição que ora se adianta, mais

tarde se duplica embora num só homem. É um sujeito qualquer, sr. José, anônimo, de trabalho

aborrecido, sem atrativos, cujo passatempo é juntar nomes de pessoas famosas, depois das

nascidas, mortas, de uma mulher desconhecida, todos os nomes de gente distante.

Desacompanhado, ele tem para si a necessidade de fazer o percurso, é livre após cumprir o

horário de trabalho; neste mesmo local enquanto senhor de seu tempo, procura mobilidade em

meio a burocracia, vai e vem numa desenvoltura de quem tem um ideal a realizar. Sem

destaque nem reconhecimento, esse sr. José é alguém comum, tem uma angústia metafísica e

desconhece o nome do caos que o rege, por isso vai alimentando a ordem transposta do

mundo que o ocupa. Assim como o narrador coloca que o espírito humano “toma decisões

cujas causas mostra não conhecer,” (SARAMAGO, 1997, p. 24) o auxiliar de escrita da

Conservatória Geral age de acordo com o que acredita, mesmo não sendo reconhecido pelo

trabalho que executa, é livre e faz de tudo para o ser em relação ao destino daquelas pessoas

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que ele admira, ou daquela que ele acredita ser sua eleita. Inventa-lhe um destino, requer um

começo, desacredita de seu fim ao experimentar o sentimento de confiança em si. De vida,

outra vida, outra pessoa falamos quando isso ocorre. Muito parecido com o livro do homem

que se encontra em dobro e não sabe o que fazer de si.

O sr. José que não queria resignar-se por ser quem é, tem afinidades com Tertuliano

Máximo Afonso que tem um nome completo mas não é senhor de si. Está dominado pela

presença que lhe tira o sono, embora não se imponha, tem essa consciência, daí a culpa, daí o

remorso e um sentir-se rebaixado diante de uma imagem que é a sua, mas não é ele. Ao

contrário do que movia o sr. José na Conservatória Geral, a busca não promoveu um encontro

satisfatório ao homem duplicado. Antes um desfiar de problemas que ele queria não lembrar

ou não acreditar existentes. Conhecer, saber do outro a partir do nome, do endereço, é a

abertura para esta espécie de abismo intransponível que, no entanto, exerce a atração da

experiência não vivida. Se o absurdo chama-se duplicação ou a mulher desconhecida, o tempo

não é o de medir as barreiras, porém é o de se lançar sobre elas. Com energia, embora sem

precipitação, os atos de personagens em ambientes distintos, dão idéia do quanto a aventura

de viver é absorvente em se tratando de um ocupar-se da própria existência.

Num tipo de gradação, do agito passa-se à calmaria, ao silêncio embriagador de quem

atenta a um grande espanto que não passa. Adentrando no mundo sensível do romance,

aprendemos que a duplicação mostra ao homem o que ele é ao adquirir a consciência de o ser.

Por mais sofismas que medeiam seus pensamentos, os personagens estão envolvidos numa

aura de insipidez cujas virtualidades encerram o pensamento igualmente cindido, por vezes,

envilecido. Há, portanto, a clara demonstração de uma atmosfera irresolúvel com o fito de

levar à suavização do sujeito, obcecado por aprender seus limites, intemperanças.

Desreferenciado, o homem comum, sujeito da indeterminação, de repente se coloca a

perguntar: o que faço aqui? Qual a representatividade de minha presença? Quando ocorre

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minha presença? Achacado pela inépcia de existir, inaceitável enquanto imagem cristalizada,

não se restringe a conhecer o universo cujo acesso é previsto. O conhecimento do sujeito

almejado como tal, lhe exige tato a fim de conhecer as minúcias de noite, escuro e treva que

desmentem seu nome. Asfixiado, duplicado, o atingido pela reificação não se explica nem se

entende pelo uso da razão que classifica, nomeia e afasta contrariedades; muito menos se

aquieta pelo testemunho de saber-se usuário daquela faculdade. Chama para si o vitupério das

coisas, dos seres arvorados em desconhecimento para sair da penúria existencial e garantir

dignidade para além de conceito, categoria, as máximas que para si cria e em seguida destrói.

Necessitando de vigor em cada passo de uma jornada que só tem princípio, os

personagens desambientados muitas vezes pensam mais do que fazem. Mostram-se sem

objetivos definidos, inapropriados em servir a algum propósito. Detentores da liberdade

restrita (o serviço, a rotina, pessoas maçantes marcando fronteiras) os habitantes da ficção de

Saramago acercam-se da possibilidade de ter sentimentos confusos ou aclarados; arrebanhar

um pouco de si difuso em atos, gente que não diz muito com sua presença, mas se incomoda

pelo fato de existir. É o retrato, é a projeção de si a deformar muito mais que formar imagem

precisa, mostra-se num esgar, num titubeio de quem não quer a aptidão. O sentido da mente

desacelerada aparece para o personagem que não sabe como lidar com ela. No caso específico

do duplicado, temos a vida que não é sua, a morte passada em branco sentencia o não fazer

diferença assim como sonhos misturados entre um eu que existe e não existe ao mesmo

tempo. Irrealizados, irrealizáveis, preconizados com relutância, as querelas vivenciadas

contêm atitudes fronteiriças de quem se vê num bifurcamento. Entorpecido pela aparência,

embora desejoso de fugir da imitação, desconfia do regresso enquanto não acredita num início

de vida, uma vez consumado na mentira da qual não consegue se apartar.

Ao contrário do que o sr. José acreditava, a morte não resolveu todos os problemas

para o homem duplicado, iniciou outro e muito mais intenso: tomar uma resolução que caiba

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na forma da evidência humana da qual se julgava possuidor. Se, por um lado temos em Todos

os nomes uma espécie de reservatório onde encontramos todos os nomes deflagradores do

sujeito – vistos como potência de vida e morte – o guardião da expectativa em O homem

duplicado finca-se na antemanhã, na anteposição da efetividade que não se cumpre. Há uma

maneira de ser pelo lado sensível que se quer estabelecida apesar de passar por etapas como o

envilecimento de António Claro e a covardia de Tertuliano Máximo, o duplo exige a troca de

ambos. Ao começar a morrer para a continuidade, o personagem duplicado dispõe da recusa

em ser auxiliar de viver, quer e precisa de mais do que isso. Outros matizes, espécie de

loucura, de alienação enterrada para as formas de sensibilidade que dizem do mundo e

formam o mundo, porquanto dividido, ainda evocado pelas arbitrariedades de culpa e

conformismo.

Um dos pontos norteadores da produção literária de José Saramago é o pressuposto de

que a razão petrifica a sensibilidade; quando o humano desaparece dos títulos das obras

(Todos os nomes, A caverna, Ensaio sobre a cegueira, lucidez) indica um chamamento aos

olhos do sensível, do que se questiona seja de forma velada ou explícita acerca do

estabelecido para falar do homem. Conquanto estejamos tratando de romances específicos, os

personagens mais recentes e os antigos têm em comum o fato de mostrarem fragilidade e

força concomitante à procura da diferença de ser. O sr. José, guarda de todos os nomes,

resolve calar-se. Isto, no entanto, não indica consentimento para o que aprisiona, antes é

descoberta sob o autoquestionar: “como iria viver sua vida daqui para diante” (SARAMAGO,

1997, p. 263). Dúvida pertinente ao homem da duplicação, não sendo ele mesmo, não

consegue ser o outro, não pode retornar ao passado nem vislumbra um futuro do qual seja

senhor absoluto. É importante frisar que ambos os personagens, ao demonstrarem não saber o

que fazer de si, perdem a “idéia fixa” que os moviam: a busca por um terceiro como

explicação de seu interior indevassável. Personagens submetidos à dura lição de viver

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interpretam como podem o roteiro cuja autoria reivindicam. Assim é Máximo Afonso, na

descrição do narrador: “susceptível em excesso, o que é um indício flagrante de pouca

confiança em si mesmo, fraqueja gravemente pelo lado dos sentimentos, que em toda a sua

vida nunca foram fortes nem duradouros.” (SARAMAGO, 2002, p. 63) o que traduzimos

como a característica mais acentuada do personagem na narrativa: a opção pelo sentimento,

sendo a fraqueza para muitos é, ainda, uma resposta para o que será dele num futuro remoto

ou distante.

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4. CAPÍTULO 03:

Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco-sem-saída. Sou um homem que escolheu o silêncio grande. Criar um ser que me contraponha é dentro do silêncio.

Clarice Lispector

DIALÉTICA DE SI: A CONSCIÊNCIA EXACERBADA

Desde o início, o romance O homem duplicado apresenta uma discussão que, sem ser

tese, nos leva a uma dialética nos termos que os personagens se colocam. Querem, sobretudo,

saber de si, enquanto enraizados na figura do outro. Os homens duplicados são muitos e é a

falta de singularidade o fator irremediável entre os seres da dispersão; personagem da

película, personagem da vida, a duplicação abre espaço à controvérsia. Ora são as razões

ligadas à curiosidade de um, ora são suas conseqüências e efeitos a preponderar. Isto posto,

enquanto o homem se pensa único, não abre o horizonte ao que está de fora, por perto,

longínquo. Já ao saber-se reproduzido, cai em prostração, se retrai, se vê diminuído e se

predispõe às abstrações. Nasce por isso uma vontade por liberdade ainda não experimentada.

A sensação de força que toma conta do duplicado, logo se esvai com a consciência também

distinta de si a se impor na presença daquele homem em tudo seu igual.

Sem dúvida, encontramos uma confusão instalada na vida de Tertuliano e António;

confusão sem comparação visto que, trata-se da vida com ou sem complemento significada

pela descoberta de alguém com o mesmo rosto, corpo e voz sem, entretanto, nenhum grau de

parentesco. A tomada de consciência, resultado de todo o processo da duplicação, trouxe a

desestrutura do que antes era uma existência cunhada pela unidade. No entanto, não se trata

de um alcance absolutamente revolucionário a demonstrar novo alvorecer para o sentido

humano requisitado na cadência de existir dos personagens. Vimos um desejo de sobressair,

destempero de ações em função da maneira de ver, sentir e agir dessas figuras emblemáticas

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criadas por Saramago. Os antagonismos crescem à medida que a duplicação se impõe; o

sujeito a se perceber, enquanto ser pensante se encontra no contraste com o sósia de ocasião

junto às potencialidades humanas postas sob questionamento. Então se torna legítimo

perguntar, como preservar a dignidade e autonomia humanas neste contexto? Quando

assegurar a vida por si? É plausível dizer acerca da realidade deles? Verdadeira?

Como afirmamos, trata-se de um momento na Literatura do escritor português em que

o homem é levado pelas circunstâncias a conhecer mais de si, pensando na liberdade e nos

interesses do indivíduo que deseja fugir do ajustamento, daí a idéia da duplicação. O fato de o

duplicado sentir-se inferior por ser quem é, afetado pela idéia de não haver amanhã para si,

convoca o pensamento como forma de diferenciação do homem que está em plena

efervescência de se achar um erro. Passa a perguntar-se sobre a importância do sentimento

seja ele a expressão do amor por Maria da Paz, o amor pela mãe Carolina Máximo, da

amizade com o colega de Matemática, da relevância atribuída às palavras do Senso Comum;

já que é a presença marcante de um seu igual que ocupa o espaço e delimita a existência.

A liberdade é um dos requisitos que pode aclarar o homem do romance português. A

fim de entendê-la com maior alcance faremos um paralelo com o pensamento de Jean-Paul

Sartre (1905-1980) em suas obras principais, a começar com O ser e o nada (1997). Neste, a

construção do indivíduo partindo de um vácuo é oportunidade da qual extrairemos condições

de enriquecimento do estudo sobre O homem duplicado. O legado de Sartre nos propiciará

considerações outras acerca do romance de José Saramago tomadas as devidas precauções de

temas, propósitos, tempo e espaço de referencialidade. Na narrativa-guia de nossa tese, a

princípio o conteúdo do pensamento, o que é apenas pensamento não conta conforme satiriza

o narrador, seja um desabafo, seja um cuidado mais desenvolto a respeito da retidão de vida a

qual o personagem principal está submetido. Isto, embora seja uma ironia com toda a tradição

da cultura ocidental, ao longo do enredo, o sujeito irritado consigo procura desanuviar a

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depressão atendendo ao conselho do professor de Matemática (o uso em potencial da razão

como forma de solução dos problemas) de assistir ao filme Quem Porfia Mata a Caça; depois

por conta própria, Um Homem Como Qualquer Outro. Pela seqüência temos um estado de

espírito desse personagem cuja pretensão é de discutir, entender (o porfiar do primeiro filme)

o algo mais de uma vida pautada pela rotina. Isto através de uma busca da qual se tornou a

vítima; em seguida se vê como outro que não deseja, pois é alguém que não se mostra; não se

deixa apreender. Apesar da expansão do espírito neste caso específico, os filmes – referência

direta ao que o personagem vive em particular – mostraram ao personagem o que ele não

sabia que era. O duplicado, longe de ser uma parcela de contrários que se conciliam, mostra-

se igual enquanto metade das partes do humano refratário ao amálgama de si. Aqui fazemos

um parênteses quando o personagem se vê distinto do que era antes por usar a barba e o

bigode do ator, distinção também da consciência oriunda não da nova fisionomia, mas da

peculiaridade da situação: se passar por outro e se sentir bem com isso. Os caracteres e

tumultos da alma de um personagem repassados por outro não atingiram o estágio de solução,

ao contrário, a edificação do homem pelo pensamento e respectivas conseqüências,

aumentaram a necessidade de um autoconhecimento. Se o desassossego daquele que se

considerava o original ocupa o lugar da firme frieza do momento da descoberta, isto é sinal do

homem propenso à fraquezas, também passível de dominá-las. Situação que identificamos

como a instalação da dialética de si desdobrada em dois personagens com a mesma presença.

Saramago numa espécie de resposta enviesada a toda uma historicidade de construção

do homem visto ora só por suas ações, ou impulsos, ora ainda sujeito de instintos, defende

com seus personagens não só isso como via compreensiva, mas também, como imprescindível

a união a fatores emocionantes; tanto é que ao longo dos acontecimentos do romance o

personagem descobre a sabedoria inscrita nas emoções, conforme o questionamento do

narrador no princípio do livro. Entendemos como uma inversão do crescimento humano

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apresentado no romance; não é mais a razão o fator que identifica a figura humana,

transforma-se por sua vez em elemento de ligação na cadeia da composição aberta pela

liberdade de escolha. A vida dos seres da ficção mesmo trazendo em si um arsenal de

dificuldades devido esta ou aquela priorização, se faz de acordo com o que encontramos no

ensino e muito mais na aprendizagem do professor de História. Nela a singeleza se mistura à

complexidade ocasionando o conflito que se instala entre os homens da duplicação, aqui algo

bem próximo a Sartre, cujo intuito era a busca pela liberdade em todos os seus matizes. No

entanto, este conflito não se dilui numa totalidade como poderia servir de sugestão, há por

outro lado, a recusa no romance de um ser sombra do outro. O interior não se aquieta com a

conformidade e a eventual existência gera não a construção de conceitos, mas a consciência

em plena dialética. É importante ressaltar que ela não se dá simplesmente entre o sujeito e o

objeto, porém, entre o sujeito e seu duplo que almejam cada um a seu modo a consciência de

si.

Como resultante literária, o duplicado não encontra resolução, é paisagem sem fundo,

o homem com um saber por construir ao invés de buscar um absoluto que lhe ampare, está em

transformação. Para chegar ao paradoxo em que se encontra resumido – a dialética de si – o

exacerbamento da consciência ocorre de modo a enfrentar a presença de seu antônimo. Na

angústia de possuir vida imprópria, a composição existencial do duplicado se ressente do

nada; a existência lhe desmorona com todo o arsenal de experiências que acreditava ter

soerguido sozinho. Característica que nos autoriza a encaminhar o estudo à leitura de O ser e

o nada, livro no qual Jean-Paul Sartre prima pela questão em termos teóricos, especificamente

ontológicos.

Ao discutir a exterioridade em relação ao existente, a filosofia de Sartre considera que

o dualismo entre ser e aparecer não se situa tranquilamente, pois o ser de um existente não se

diferencia de sua aparência. O fenômeno – o que é digno de apreciação – é, porque é

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indicativo de si. Segue-se que descartada a idéia do contraste entre aparência e essência, outro

parece surgir: finito e infinito, assim disposto em: “O existente não pode se reduzir a uma

série finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação com um sujeito em

perpétua mudança.” (SARTRE, 1997, p. 17). Conforme a opinião aceita sobre o poder da

aparência, da aparição para tratar do fenômeno, surge o problema em que o ser desse aparecer

se faz a questão inicial nas investigações do filósofo acerca do ser e o nada.

O fenômeno sendo o que se manifesta, designa-se de forma autônoma conjunto

organizado de qualidades, as quais não são suficientes para que o ser do fenômeno reduza-se

ao fenômeno do ser. Portanto, faz-se necessário encontrarmos o algo mais para que possamos

chegar à distinção. Neste aspecto, ser - consciente é a referência do sujeito cognoscente. Ser

consciente dentro deste pensamento é ter a consciência vazia de algo imposto em substituição

por uma consciência posicional do mundo, eu e o mundo sabemos o nosso lugar. O ser no

sentido sartreano escapa ao conhecimento e o fundamenta, já que há um ser da coisa

percebida enquanto assim é. A consciência limitada por si é plenitude de existência, sendo

anterior ao nada e retira do ser enquanto é um não-ser; portanto, a subjetividade em discussão

beira à falta, sua característica. O ser como aquilo que está em toda parte, também “a

consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este

ser implica outro ser que não si mesmo.” (SARTRE, 1997, p. 35). O que é suplantado neste

momento é a aparência para a forma do em si.

Sem citar Heráclito, Sartre dimensiona o ser existente em toda parte e em parte alguma

que se manifesta e encobre na mesma proporção. Isto que se manifesta primeiramente à

consciência, não pode agir sobre esta, em compensação, si - mesmo não significa nem

atividade nem passividade; o si - mesmo que não é derivado do possível, sequer pode ser

reduzido ao necessário. Contudo como o faz Sartre, afirmar que o ser é. O ser é em si. O ser é

o que é. Não responde às indagações acerca do ser e do nada aí implicado.

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As condutas humanas do homem no mundo podem ser explicadas inicialmente como

relações de uma realidade apreendida objetivamente. O filósofo francês começa com o

exemplo que ele acredita ser o mais desejado: saber do homem que eu sou. O que isto pode

nos revelar? De interrogação em interrogação o não-ser do que está fora de nós e em nós

condiciona as perguntas levantadas. A indagação como atitude humana conduz ao segundo

passo, ou seja, a negação. Dito assim fica expresso que o homem é o único ser pelo qual pode

haver destruição. A destrutibilidade a começar da negação em níveis puramente humanos

mostra o não-ser originário do sentido de negação condicionado e sustentado pelo não-ser. Na

esfera da consciência, importa saber qual a primeira relação entre o ser humano e o nada, qual

a primeira conduta considerada nadificadora?

Transcendendo Hegel, para quem o ser se reduz a uma significação do existente, o

filósofo de O ser e o nada entende que está no ser a origem de seu transcender, a questão

reside em delimitar porque ele não pode ser outra coisa. Para que isto se efetive, cada um dos

projetos da realidade humana carrega em si uma compreensão pré-ontológica que é preciso

considerar. Contrário também a Heidegger para quem o homem é um ser das lonjuras, Sartre

revela que a aparição do si - mesmo é uma emergência da realidade humana no nada. Do ser é

preciso retirar o nada, o qual possibilitará a negação no mundo como medida de interrogação

sobre o ser. Assim sendo, só o ser pode nadificar-se e para que isto ocorra é preciso ser. O

homem imerso nesta dialética apresenta-se “como um ser que faz surgir o Nada no mundo, na

medida em que, com esse fim, afeta-se a si mesmo de não-ser.” (SARTRE, 1997, p. 66).

Então, o homem imbuído de descobrir um mundo parte da negação; se é através do

homem que o nada surge, o que deve ser o homem em seu ser para que isto aconteça? Se em

seguida é citada a realidade humana como resposta, como o nada se dá por meio dela? Dessa

forma adquirimos o par homem-nada para ver na consciência humana a tendência a escapar-se

a si. Nadificar, não ser corrompido com o existente, faz com que o homem para negar o

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mundo na totalidade ou em parte traga em si o nada como aquilo que separa o seu presente de

todo um passado saturado que o alienava. Retomando a idéia de que o nada é fundamento da

negação porque traz em si a negação como ser, chegamos ao pensamento fundamental de

Sartre: a liberdade como pressuposto maior de todas as ações pensamentadas do homem. Há

um ponto de concordância com Heidegger quanto à angústia: esta equivale à tomada de

consciência do homem para sua liberdade e assim poder modificar o mundo no todo ou em

parte.

A mudança, a transformação é esperada, pois não ser agora o que será depois implica

na conduta decisiva de ser o que ainda não sou seja em improviso seja em determinação, com

a ressalva de que parta sempre da iniciativa do homem. Consciência de liberdade diz-se

angústia de uma negação descrita com base na consciência e temporalidade. Tal liberdade

caracteriza uma espécie de obrigação de refazer o Eu que designa o ser livre; sendo, o Eu se

faz em meio à angústia que marca o homem separado de sua essência por um nada. A

angústia para Sartre é mais que uma sensação de mal estar, é a captação reflexiva da liberdade

por si e, caso o homem trate os acontecimentos surgidos por um gesto de alheamento, isto

significa que a angústia pressupõe em si um poder nadificador e não determinador. A fim de

que o processo não seja interrompido, a liberdade deve ser captada no próprio Eu como se

tratasse da liberdade de outro, só assim esta pode se efetivar e provocar os efeitos pretendidos.

A projeção da liberdade de que trata o filósofo requer as possibilidades humanas da

fuga da angústia que vem a ser sua tomada de consciência. Noutro ângulo surge a negação

como comprometedora da liberdade para que o homem possa questionar, isto pode ser

colocado em prática se ele se tornar seu próprio nada. Assim, cessa um saber absorvido sem

reflexão e inicia outro repassado pelo nada. Enquanto a consciência volta sua negação para si,

surge a atitude que pode ser interpretada como má-fé. Então podemos perguntar o que o

homem pode ser para que em seu íntimo possa ser de má-fé? Qual conduta? No, pelo

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silêncio? Entre as muitas especulações, a intersecção se dá quando se trata a má-fé pelo fio

condutor da ambigüidade. A saída é o homem se portar, ser de forma plena e única o que é. O

perigo segundo Sartre é que isso se revele num aprisionamento, num artifício redutor do

homem; porque em toda parte o ser escapa a ele e, entretanto, é. Logo vem a consciência do

outro como sendo o que não é, isto incomoda, é visto como modelo que muitas vezes não se

enquadra com o querer do sujeito em liberdade e aí se dá o caso do julgamento da questão

como má-fé, sinceridade, afins ou contrárias para se definir o eu como sendo e não sendo o

que é. Em conclusão, Sartre diz que para haver má-fé, “é necessário que a própria sinceridade

seja de má-fé.” (1997, p. 114) O primeiro passo que esta dá é em direção da fuga daquilo que

não é possível, qual seja, fugir do que se é. Ao contrário, se há o enfrentamento, o risco de se

interpretar o projeto humano como má-fé também se abre à consciência na medida em que

não é vista como totalidade, mas o núcleo instantâneo do ser para o qual dirigimos a atenção

especulativa.

A descompressão de ser que caracteriza a consciência se dá como pré-reflexiva de si,

porquanto se trata da distância ideal na imanência entre o sujeito e si mesmo. Desta forma, o

Nada que surge das entranhas da consciência não é: é tendo sido, conforme deixa claro o

filósofo. A realidade humana adquire substância, alcança o ser, no e por ele, quando é o

fundamento do nada no coração do ser. Por sua vez, a consciência de si passa pelo

impedimento de ser e paradoxalmente é responsável por este. Como o subtítulo do livro

adianta, o sentido ontológico é objeto de busca no estudo do ser e do nada; na esteira desta

descrição, o ser é fundamento de si enquanto é retratado pela falta, ou em outras palavras, o

que determina seu ser por um ser que ele não é.

Para chegar à conclusão de que a realidade humana é primordialmente seu próprio

nada, Sartre traça limites e horizontes de ação do nada conseqüente ao Para-si e o Em-si;

como Para-si, se define enquanto lhe falta certa coincidência consigo. O escritor, a todo

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momento enfatiza as opções que o homem traça na vida e o condiciona ou liberta conforme o

grau de profundidade das escolhas feitas. O projeto de ser humano se concretiza quando há a

decisão de estar a par do ser, por isso chega-se à negação e por esta se vê arremessado ao

exterior, rumo a um sentido fora de alcance que, no entanto, se abre como possibilidade. O

Nada ronda os sentidos e separa a realidade humana de si, sendo sua fonte localizada no

tempo. Quando Sartre se refere ao Em-si, o faz para falar da relação de ser que o homem deve

sustentar com o passado que o persegue, o atormenta e muitas vezes abriga o sentido

desejado; desenvolvida nestes termos é uma relação do tipo do Em-si, também denominada de

identificação consigo mesmo. Se o presente não me diz quem eu sou, a simples referência ao

passado também não clarifica a busca; a conexão, entretanto, se faz entre ser e não-ser com

destaque para este porque carrega toda a carga de nadificação necessária para que o Em-si

possa se fundamentar.

Enquanto o Passado é uma lei ontológica do Para-si, o Presente é Para-si; em

conseqüência nos deparamos com o Ser e o Nada. O Para-si que sempre se lança em busca do

ser, se coloca em forma de fuga. Já o futuro se reveste da necessidade de ter-de-ser na medida

em que se pode não sê-lo. Então, nos chama a atenção que a realidade humana ao descobrir-

se, ou mesmo se colocar nesta posição encontre em suas investidas a falta, a fuga estampadas

na mudança que observamos no homem e no mundo. Nesta intenção, o homem pretende o

Para-si, a apropriação do que lhe cabe como ser humano o que desencadeia o projeto rumo ao

Em-si, aquilo que o pode definir em meio a objetos e imagens criadas de acordo com

circunstâncias alheias à sua liberdade. Este ser de sentido problemático se posta em frente às

possibilidades que o iluminam ou turvam enquanto põem em prática um discurso construído

com ou sem sua intervenção.

A temporalidade, fundamental para o desenvolvimento do homem tem para Sartre uma

força dissolvente, mas no fundo é um ato unificador. Multiplicidade e unidade emboladas,

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pela temporalidade é correto dizer o modo de ser de um ser que é si - mesmo fora de si. O

homem que busca se saber e por decorrência fazer sentido no mundo, convoca dimensões de

nadificação o que certamente conduzirá à multiplicidade de modos de observação. Dessa

forma, o passado influencia a maneira que o sujeito pretende ser reconhecido, do mesmo

modo que a sua atualidade de ser em-si pressupõe deixar de lado o que o Para-si era antes. A

negação surge mais uma vez na consciência de que um Eu conheça seu passado embora não o

seja mais, mas também ainda não é o que por conta própria pretende ser. Sartre faz questão de

ressaltar sua diferença no modo de perspectiva com Heidegger, enquanto este destaca o futuro

como o estágio maior de maturidade que o homem possa colocar em prática, aquele acentua o

presente na detecção e alteração da realidade com a qual o homem trabalha, sente, é

consumido e consome a temporalidade em contínua mudança.

Ao afirmar que o tempo da consciência é a realidade humana que se temporaliza como

totalidade, Sartre intenciona pôr em relevo o inacabamento do processo. O que está em jogo é

a capacidade que o homem tem de reunir num olhar a totalidade inacabada; resulta em

fracasso o esforço que ele empreende para fugir de seu condicionamento e ser para si seu

fundamento, fracasso com o nome de reflexão. Esta, por sua vez é sinônimo do Para-si que

tenta recuperar-se como totalidade em inacabamento. O reconhecimento proporcionado pela

reflexão, por vezes gera a dúvida, algo compreensível em se tratando do sujeito em pretensões

de se conhecer. Disso temos que, se a reflexão for entendida como fracasso por não mostrar

resultados práticos, verificáveis, de outra maneira ela culmina em captação da temporalidade

quando esta revela o modo de ser único e incomparável de uma historicidade, em outras

palavras, do homem.

O acontecimento real chamado por Sartre de terceiro processo de nadificação é o Para

- outro, que entendemos como o impacto de sentido que o homem pretende causar em quem

com ele vive. No plano psíquico, O ser o e nada retira a consciência reflexiva enquanto

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consciência de duração, possível graças ao tendo sido que plaina num mundo fantasma como

situação real do para-si. A propósito da idéia do reflexo “não pode ser algo a refletir o nada, a

menos que se faça qualificar por alguma coisa que se reflita enquanto relação com um fora

que ele não é.” (SARTRE, 1997, p. 234-235). A percepção, já que não é distinguível por um

exterior não admitido como si, o que fui e o que pretendo ser, constitui uma negação original

como não sendo este que aparece. A negação interna ocorre na ordem de relação entre dois

seres em que um é a negação do outro, por isso qualifica o outro por sua própria ausência, no

âmago de sua essência. A procura, a pesquisa minuciosa por se conhecer implica reconhecer o

nada, o ainda não, o que não é como um nada individualizado. O nexo se dá através da relação

de ser entre o Em-si e o Para-si.

O espaço que se busca potencializar não é o mundo, mas sua instabilidade, porque o

homem envolto numa totalidade se vê desagregar-se enquanto multiplicidade. Não servir a

ninguém que não seja ele mesmo, é um pensamento que anima as individualidades se

juntarem em prol da liberdade de agir dessa forma para com isso ser de maneira mais

completa. Contudo, tal possibilidade só adquire substância pelo sentido da falta de espaço, do

não preenchimento, do vazio ambientado com a vontade de quem a possui. A ressalva

acontece quando uma proposta existencial enfrenta a indiferença entre aquilo que ainda não é

e aquilo que não pretende deixar de ser o que é. O que nos impele a interpretar a qualidade

como o ser e a quantidade junto ao espaço como um tipo único de negação. Sartre envereda

por estas associações em busca da relação humana original capaz de formalizar a negação

como princípio, uma vez que é a falta, o inacabamento, aquilo que se adia e a potencialidade

que move o homem a tentar ser diferente.

Entendemos com o pensamento do filósofo francês que o homem está em desacordo

entre o que pretende ser, o passado que o denuncia e o futuro que lhe escapa cada vez que se

coloca como objeto-utensílio a fim de servir interesses alheios àquilo que lhe compete

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enquanto potência humana. Ao tomar consciência da escassez em torno, por dentro

principalmente, ele exige um tempo particular quando então o espaço toma outra dimensão,

mais acurada com o sentido de plenitude apurado. As frases mais comuns então se referem a

essa nova compreensão, do tipo: sou este nada que tenho de ser para poder ser o ainda-não

que me autoriza a ser o que é já tendo sido. De outra forma, seria mais um acreditando ter se

realizado pelo alcance da estabilidade emocional, financeira, psíquica, mas enganado quanto

ao seu eu mais recôndito. A maturidade se expressa pela atitude do ser definir seu lugar

existencial ao revelar a um Para-si como indiferente aos demais seres. Não importa o

pensamento exterior sobre um eu que se quer individualizar, importa sim o espaço da negação

como relação de um ser consigo.

O conhecimento do ser desentranhado na visão de Sartre, diz respeito ao não ser o que

é, o nada dessa forma pensado entra na relação do homem com o ser que para-si assume o

Para - outro. Como se antecipasse à colocação do problema em O homem duplicado, o autor

de O ser e o nada declara: “Esta estrutura ontológica é minha; é de mim mesmo que cuido, e,

no entanto, esse cuidado [cura] ‘para mim’ revela um ser que é meu sem ser-para-mim.”

(SARTRE, 1997, p. 289); é meu, sou eu e, contudo, não o conheço. Até chegar à fase da

negação, os sentimentos se misturam e um deles é a vergonha de se declarar desconhecedor;

vergonha de em si não ser o ser da aparência para o outro. No campo da reflexão aberta, a

existência do outro se torna mais relevante quando sobre minha relação interna se depara com

o interior do outro que se manifesta, toda vez que a consciência reflexiva ultrapassa a mera

relação de exterioridade indiferente dos corpos a se movimentar. Ao entrar no mundo o ser

humano deixa de estar só. Por isso tem tanta importância a relação humana no pensamento

sartreano; ver o outro é ver o reflexo de si. O outro como um conjunto de experiências

intransferíveis, munido de vontade e emoção completa a experiência que me falta. Caso a

restrição apontada com a identidade da essência do homem esbarrar na diversidade

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incomunicável das consciências humanas, isto não impede que os acontecimentos de uma

experiência particular sirvam para constituir o outro enquanto outro; pois o outro não é apenas

aquele que vejo, mas aquele que me vê e, portanto, capaz de servir para a unificação de minha

experiência porque é ausência. Com efeito, no texto de Sartre o outro é aquele que não é o que

eu sou e que é o que eu não sou. Por isso pode haver aprendizado, na diferença ou no

reconhecimento dela e não por meio da imposição de uma igualdade seja de pensamento, seja

de comportamento.

Tentar a própria vida dentro das coordenadas de O ser e o nada é fazer-se reconhecido

como um eu inigualável. Para tanto, arrisca-se a experiência no intuito de revelar-se não

vinculado à forma objetiva ou a qualquer existência determinada. Como não posso captar a

subjetividade alheia, nenhum conhecimento chamado universal pode ser extraído das relações

entre as consciências. Assim, é o dado pessoal, o toque diferencial que irá demarcar a

separação ontológica, esta é possível graças à relação humana exigente do encontro com o

outro e não sua constituição. O interesse pelo outro situa-se na base do reconhecimento de seu

espaço existencial, bem como do ser que não sendo eu, é mais do que uma probabilidade, sem

ser objeto, é existência separada, é, além do mais, relação com o sujeito.

A aparição do homem num universo em discussão atrai a descentralização do modo de

pensar e entender o mundo, ainda mais que sou aquele pelo qual há um mundo. Tal

constatação acontece neste primeiro livro teórico reconhecido de Sartre por meio do

significado adquirido pelo olhar. De fato, a cada instante que um terceiro me olha, procuro

interpretar este olhar; primeiro há a consciência de que sou visto e, portanto, produzo reação

da qual não detenho a abrangência. Nisso sou o nada, não sou o que é visto também não sou o

que penso para quem me olha. A realidade em qualquer homem o faz sujeito: o fundo de

presença originária na qual ele pode se descobrir acerca da relação vital que anima a se

constituir. O olhar não abranda e sim reforça o sentimento da presença do outro com o qual a

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relação é travada enquanto o outro é sujeito e quando o eu assume-se na objetivação. A frase

síntese para estas colocações é: “estou condenado a ser perpetuamente minha própria

nadificação.” (SARTRE, 1997, p. 379) Com ela, o filósofo permeia todo um discurso de

afirmação da liberdade humana ao poder se revelar ao seu par numa relação de sujeito.

Nadificar-se é se ver como o ainda não completo, procurar na negação de uma visão

construída a afirmação da potencialidade humana; na dualidade de negações, o corpo

manifesta-se na relação objetal entre os homens.

Na definição de Sartre, o mundo e o homem se fazem por meio da relação. Tal ponto

de vista assimila o conhecimento como contraditório, uma vez que ele é comprometido

devido à contingência humana submetida. O mundo que se realiza enquanto sou no meio dele,

portanto com a incumbência do nada a se realizar, indica-se como a realização do mundo

quando então o homem se perde nele a fim de existir bem como transcendê-lo. O vazio

encontrado ao se pensar no futuro é algo sempre fugidio, torna-se então o ser do presente; por

esta linha, a facticidade prelineia a nadificação primordial sob a qual o homem toma

consciência do mundo. Como é fato que conheço o outro pelos sentidos e isto não é suficiente

para que a relação se estabeleça, o filósofo coloca o homem na iminência de sair da

contingência – processo nomeado de náusea – ao propor o outro enquanto corpo em situação.

Cada corpo possuindo algo que o diferencia dos demais, é percebido pelo observador na

medida em que o outro anuncia com sua presença no mundo aquilo que ele é e, no entanto,

me escapa. Por nossa conta e risco, é a percepção de um único ângulo quando o escritor

ensina a observação por inteiro.

Pela facilidade com que as pessoas são influenciáveis, deixam se definir no olhar do

outro, havendo interferência no nível da consciência reflexiva, tal linguagem se revela

insuficiente na concretude da existência no meio do mundo. Dentro das relações moventes e

recíprocas, instala-se o conflito originário na troca das experiências entre a aparência como

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conhecimento e a posse de um pelo outro se fazendo necessário a recuperação de um eu

surrupiado com um olhar. Num primeiro instante de identificação do outro ao ser observado,

fica latente a negação de ser o outro; assim como a liberdade do outro é fundamento de meu

ser, a indefinição particular acompanha o desejo de liberdade que o outro possui e do qual o

eu deseja se apossar. As ponderações são muitas e variadas sob a perspectiva de ser em

detrimento do que aparece, como estas no livro: “e sou impregnado por este ser que temo

encontrar um dia em uma curva de um caminho, que me é tão estranho e, todavia, é o meu ser,

sabendo também que, apesar de meus esforços, não me encontrarei com ele jamais.”

(SARTRE, 1997, p. 460). Ponderações muito próximas do que encontramos em O homem

duplicado e sua manifestação de não ser impregnado pelo outro. Este que é tão estranho,

mesmo com esforço e dedicação, não é possível se encontrar, o ser que é motivo de procura,

motivo de viver daquele voltado para a consciência reflexiva de seu ser e estar no mundo.

A linguagem como definição do homem proposta por Heidegger com a aquiescência

de Sartre, importa aos atos livremente concebidos e executados de projetos cujas

possibilidades adquirem no exterior um sentido que escapa ao proponente; desta exposição

retiramos que a linguagem não visa dar a conhecer e sim fazer experimentar. O outro de

minha circunvisão é visto, experimentado, conferindo à linguagem seu sentido; embora o

sentido de quem olha ainda não está posto. O corpo assim entendido é corpo em situação com

o qual lido com interesse, inveja, indiferença, desejo ou amor. A maior relação, no entanto, se

codifica por meio da emoção com a qual se opera a modificação em geral da consciência e das

relações mundanas no que recai numa alteração radical do mundo. Portanto, no resgate da

emoção o homem pode agir sobre uma facticidade cuja presentificação, seja sua própria

transcendência nadificadora. Isto não significa domínio absoluto sobre o querer do outro,

significa por outro lado em qualquer atitude tomada, o reconhecimento da instabilidade na

relação humana.

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A essência das relações ocorre do conflito, por isso quando o Para-si estando sozinho é

transcendente ao mundo, faz-se o nada pelo qual há coisas; nada com relação ao estado de

consciência definido, de emoções identificáveis e coisas com as quais ele adquire o sentido de

vida ou por outras palavras, se coloca como objeto para apreciação de um eu particular. Não

havendo coincidência entre o Para-si e o ser-Em-si, a nadificação, a facticidade e o corpo ao

simbolizar o ser-Para-outro, faz-se a natureza intrínseca do Em-si. Então nos perguntamos o

que este considera como válido numa relação, quais aspectos são nadificados? Quando

apontar a objetidade do sujeito?

Como categorias cardeais da realidade humana – ter, fazer e ser – classificam entre si

as condutas do homem. Neste ponto destacamos o valor atribuído à ação no desempenho

destas categorias com as quais a liberdade pode ser alcançada como objetivo maior. Todavia,

agir não significa apenas mudança espacial, é, antes de tudo, modificar o mundo partindo da

metamorfose interior. A ação ao se efetuar, implica o reconhecimento da falta objetiva com a

qual a consciência pode se retirar do mundo pelo ser a fim de abordar de prontidão o não-ser.

O estado de coisas com que a ação se depara, constitui em sistema isolado de coisas tomadas

em consideração. O motivo empreendedor visa conferir significação a partir do projeto de um

sentido ausente; entre ter a certeza do que fazer para chegar a ser, a liberdade de ser atuante

garantirá a complementaridade solicitada na ação que garante a condição do homem no

mundo. Se os objetivos ainda não foram alcançados, é o processo de liberdade que impulsiona

sua realização; a negatividade do ainda não atingido faz com que haja modificação. Porque o

eu escapa do Em-si pela ausência notada, encontramos direção rumo às possibilidades do Em-

si que adquire estatura móbil.

A realidade humana uma vez plenificada com a liberdade, realiza a ruptura

nadificadora com o mundo e consigo. Então não se justifica, na visão de Sartre, nenhuma

espécie de determinismo a respeito do que o homem é, daquilo que possa vir a ser, resumido

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na famosa frase, “estou condenado a ser livre”, por conseqüência a fazer o entorno a também

o ser. Ao colocar as coisas de modo a acontecerem, o homem põe em prática o conceito de

Liberdade, impensada sem a companhia do nada porque não é si mesmo, está em perpétua

possibilidade de fazer-se. É isto que caracteriza a humanidade insatisfeita. Quando o sujeito

consciente produz-se, reconhece a impossibilidade da síntese entre dois seres existentes já que

não são homogêneos, cada um permanecerá em sua incomunicável solidão. A liberdade

assimilável à existência seja pela vontade ou pelo esforço passional é causa de um ser quando

internaliza o ter-de-ser. Como não basta o querer, é necessário querer o querer, para isso a

consciência desimpedida manifesta igualmente a soltura das maneiras de ser o nada

introjetado. Outro ponto de discussão pertinente é o motivo levado a cabo por uma ação; em

ordem crescente, motivos, móbeis e fins são capazes da formação da consciência reveladora

da organização do mundo, pois, livre, lança-se em direção das possibilidades com as quais se

define.

Como afirmamos, a liberdade tem primazia no pensamento de Sartre em relação, por

exemplo, à vontade. Aquela é vista como originária e ontológica fazendo com que cada ser

humano possa se desenvolver por meio dos próprios atos; agir com personalidade está na

mesma proporção dos atos contribuírem para nos fazer. Ao assumir a tarefa de ser tendo por

princípio o ter-de-ser o próprio nada, o homem se torna mais conseqüente na consciência de

que nada existe a não ser por meio da consciência de existir. Esta é mais que ocupar um lugar

na existência, é ser o diferencial, se colocar na vida como projeto. Nisso, há escolha que só

pode ser considerada livre caso pudesse ter sido outra, outra que indicasse a transformação

radical do ser-no-mundo. Lembrando que esta só pode ocorrer se iniciar pelo sujeito da ação;

o corpo, portador da consciência reflexiva, ao assumir o projeto que o define se vê muitas

vezes na fadiga por causa da entrega necessária ao partir da nadificação para que a facticidade

tenha valor singular.

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O projeto original do ser-no-mundo partindo do nada é irremediavelmente escolha,

neste domínio tudo ainda está por se fazer. Desprotegido, o ser concebe o complexo de

inferioridade porque de prontidão é um projeto do Para-si no mundo, o que entendemos como

a significação pretendida pelo homem no mundo desprovida da idéia de uma natureza insigne.

Como toda possibilidade singular se articula em conjunto, sua realização depende da força

muitas vezes moral de quem a coloca em prática. Na medida em que há a possibilidade criada

de integração com o mundo, este se oferece como totalidade que vem aos existentes pelo

surgimento do homem no ser. Por conseqüência há a escolha do próprio sujeito correlata à

descoberta do mundo; é preciso frisar que para Sartre escolha e consciência são a mesma

coisa. Pela consciência ser nadificação, compreendemos que ter consciência de nós é

escolher-nos; enquanto não formos escolhidos pelo mundo, fazemos sua significação

escolhendo a nós mesmos.

O ser que sou revela uma escolha ou por outras palavras, o ser. Sem a junção da idéia

de quantidade, a submissão à nadificação passa por uma escolha sempre em vias de acontecer

para logo em seguida se transformar em outro que não o da atualidade. A chance de intervir

no que possa acontecer e por isso fazer o futuro anunciar o que somos, confere sentido ao

passado que condena a quem pensa menosprezá-lo. Com a interferência da mão do homem,

fazem-se sinônimos tanto a escolha, quanto a nadificação bem como a temporalização que

dando prosseguimento são a significação vivida e interiorizada do ser humano. A intervenção

tão necessária quanto a prática da liberdade é ponto crucial sem o qual a pessoa humana não

se realiza. Tal constituinte originário leva a crer no livre projeto que ainda não é. Por ser livre,

o homem vê sua liberdade perpetuamente sendo colocada sob julgamento, mas o maior deles

é o realizado por ele; aí vemos os limites, os impérios, o escalonamento, a superação sendo

colocados juntos como opção para a realização de uma realidade quebrantável.

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Isto que sou, que é preciso ser, passa pelo nada constituidor. Aparição ou desaparição

se dão conforme se avalia a distância com relação a ele; a inércia ao ceder lugar à mudança

possibilita por meio da ação do homem sua configuração mais convincente porque é vista

dentro de um projeto de vida em aberto. Faz-se necessário, é mesmo imprescindível a

interferência de quem deseja mudar e mudar-se juntamente. Se as coisas, os fatos ganham

contornos diferenciados com a liberdade humana, é possível dizer o mesmo se quem dela faz

uso se completa na ação empreendida. Livre em situação vejo-me na presença do próximo,

este outro que me ajuda a ser; nas relações profissionais, pessoais até o nível ontológico, a

articulação se efetua pelo movimento. De saída da inércia, podemos dizer e abarcar o livre

projeto não só de um discurso, mas de suas conseqüências em se tratando do dado sensível

referente ao homem. Havendo a transcendência – a observação além do concreto – as palavras

significadas impulsionam quem dela faz uso a se identificar ao nível da situação em geral e

ser de modo particular; há por isso, identificação com o móbile pré-existencial.

A realidade humana que tanto preocupa Sartre, o esforço que o ser humano empreende

para ser si - mesmo frente a um mundo embotado por contradições, mantém em existência

determinadas características sociais e abstratas que se faz necessário administrar para obter o

sentido da existência procurada. Quando, pela livre escolha podemos nos escolher no mundo,

isto significa a livre associação de idéias e/ou comportamentos capazes de nos distinguir de

outra escolha não tão livre quanto esta. A desobrigação de ser agradável em circunstâncias nas

quais se espera isto indica a maturidade ontológica atingida com o nada de circunspeção para

o ser de projeção. Assim desenvolta, a liberdade humana esbarra na existência do outro. Surge

a dimensão de alienação que é preciso vencer sob pena de não se realizar a transcendência

solicitada na prática da liberdade; em conseqüência, o que o homem quer é a paixão por este

ato.

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O ser e o nada ao se esmerar em destrinchar os contornos da liberdade humana, decide

pela compreensão do outro como o alienado. Na medida em que isto se reverte, ou seja, a

alienação é vista como presente naquele que deseja sua aniquilação, requer a possibilidade da

transcendência. O homem desenhado com este perfil tem para si a tarefa de conhecer ou

reconhecer ações e atitudes como questões oriundas de um processo de quebra das amarras

existenciais. Experimenta, arrisca, absorve e é absorvido por situações que representam o

universo do qual faz parte. A nadificação dentro de tais características implica algo além das

possibilidades compreendidas junto ao sujeito; a morte passa a ser nadificação sempre

possível do exterior quando se fala da realidade humana. O porvir por si indica um sentido

ausente a derivar da própria subjetividade, isto faz com que a vida forneça a significação que

a morte encerra. Como é o ser que está sempre em questão e o Para-si é o ser que exige

sempre um depois, a nadificação supera a morte nos termos em que o ser sob questionamento

é o ser como Em-si, portanto, é a totalidade em aberto o pressuposto da vida interrompida por

causa da consciência reflexiva.

Jean-Paul Sartre ao propor o dissecação da vida destacando sua nadificação, o faz na

perspectiva de alertar aos sentidos interrompidos e/ou ainda não observados, constituindo a

morte enquanto não existência por si. Se vivo além do que o outro pode ver, o sentido de

vitória fica caracterizado como desnorteante ao outro e por se encontrar naquele que se coloca

na vida para além da facticidade. O que contraria Heidegger, pois Sartre vê a morte como o

fato contingente em si. Porém, é de vida, vida transbordante que o texto do filósofo francês se

ocupa. A situação com a qual o sujeito trava contato especifica-o, é também o ponto em que

há o posicionamento da realidade humana; cada pessoa que realiza sua situação, é em

situação, está se fazendo de modo a se particularizar. A conseqüência de tais observações é

sumarizada pelo filósofo quando, “o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos

ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira

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de ser.” (SARTRE, 1997, p. 678). A responsabilidade aí implica necessariamente arcar com o

peso das escolhas feitas partindo de um mundo de conhecimentos e técnicas que as escolhas

assumem e iluminam. A repetição ou a transgressão depende do nível de consciência atingido

com o qual se pode situar o sujeito no mundo. O “é” do sujeito que tem o ser em constante

questionamento, chega a estar atrelado ao nada, tem o ser como presente e inapreensível, o

que não significa esquecimento ou indiferença por seu sentido.

Junto à responsabilidade, o homem é visto enquanto unidade devido à livre unificação

que ele adquire com cada gesto ou palavra de mesmo conteúdo. O fato que se segue é a

comparação quando se destaca o projeto fundamental comum, entretanto, em cada tendência

achamos a pessoa em sua inteireza. O projeto de ser que tanto se destaca neste livro em

estudo, se define ontologicamente como fatal em ser, portanto, a liberdade tem por trás a falta.

Isto que se torna imperioso preencher, logo se transforma na realidade humana prenhe de

criação. Neste caminho, há o desejo para o qual se realiza como desejo de maneira de ser, mas

uma maneira que fuja do comum, que marque de forma inconfundível a pessoa. Em face

disto, ser livre é saber nadificar-se, entender-se como o que falta o ser para colocar-se em seu

encalço; por isso a liberdade é a existência. Sendo assim, a importância do instante muitas

vezes o marco de mudanças abruptas de orientação, também contribui na tomada de nova

posição diante de um passado estanque.

Dentre a relação original que faz o homem atrelar-se à vida, vale reforçar, o fazer, ter e

ser conjugam aspectos da existência nos quais o homem se mostra vulnerável à distinção.

Qual priorizar, que medidas tomar para demarcar cada espaço de compreensão? Vimos que

para Sartre, fazer e ter são indissociados a uma consciência amplificada das possibilidades

que o homem cria para si e seu contexto, mas é no ser o enraizamento daquilo que o define, é

capaz de transcender-se rumo a experiência mais rica do sentido construído por ele. Da

mesma forma que o homem tem a capacidade de criar algo por si e se encontrar nisto, o fato

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dele se lançar em busca daquilo que o potencializa enquanto ser humano diz muito do uso

empregado da liberdade de ser. Em tal relação, posse, apropriação fazem frente ao panorama

do eu dilatado; não é mais o sentido que o outro atribui, mas é o buscado e encontrado pelo

próprio eu que conta numa existência aglutinante.

A nadificação a que chego quando persigo o ser é individual e concreta, sendo esta e

não outra atraio por isso a escolha do mundo. A realidade humana como escolha do ser tem

muito a revelar, por exemplo, quanto à qualidade do ser entendida como o ser no total.

Conhecido como o ser Em-si, posteriormente ganha o aspecto do projeto original que tem na

sua apropriação o objetivo último numa escala que passa pelo nada revelador. A consciência

do indivíduo quanto mais transcendida mais há a chance dele se encontrar neste projeto que à

primeira vista parece fuga de si. Ao contrário, transcendida a consciência a tendência é

sempre preencher seja uma experiência e mesmo a falta dela, substituições à parte, importa o

ato refletidor com o qual o homem se depara em cada interrogação. A ontologia em todo este

processo não pode ir além do que fornecer as questões; mostrar os fins, os possíveis

fundamentos e o valor da realidade humana. Esta, movida pela paixão por perder-se para se

encontrar é o movimento maior que o homem pode empreender na visão de Sartre.

Para-si, Em-si, a noção que o ser busca dentro de uma acepção original e singular tem

no nada outra realidade que significa privação singular. Entre a facticidade e o absoluto, o ser

se coloca no nível da consciência de si assumindo a primazia ontológica do Em-si sobre o

Para-si, o que leva ao apontamento final da prioridade do ser sobre o nada. Mais do que um

vazio desprovido de significação, o nada é um ser tendo sido para fundamentar o ser que se

coloca. Enquanto projeto de fundamento sempre presente, o fracasso é outro possível nesta

categoria; fazer, ter, projeto de ser rumam à separação inevitável entre o ser e a consciência de

ser. O projeto de tal forma caracterizado, causa de si, é o emblema com o qual a nadificação

orienta os sentidos já que o Em-si e o Para-si não são definitivamente justapostos. Cada um na

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sua temporalidade é o que a ontologia determina como a região ideal da causa de si porque se

faz eficácia transcendente da consciência.

O homem ao assumir sua potencialidade criadora se perde para que a causa de si

exista; nisto podemos dizer que o nada resulta na constituição do caráter necessário para o que

se convenciona o viver. Então a busca, a procura intermitente pelo ser oculta de si o projeto

livre por trás da busca, nas tarefas dispostas, os objetos encontrados ao longo do caminho

fazem do empreendedor alguém obediente para com as exigências da nadificação. Contudo,

caso se ache nas coisas procuradas, vem o desespero de não poder ser por si ao mesmo tempo

em que as atividades humanas são equivalentes, o grau de consciência não é. Na concepção de

Sartre, o homem que age de tal maneira é um agente moral pelo qual os valores existem e não

ao contrário como poderia deixar transparecer à primeira vista. Na angústia é quando a

liberdade toma ciência de si como única fonte também como o nada sem o qual não há

mundo, portanto, não há homem consciente de sua existência.

A procura que se quer apropriação resulta num ser mais integrado à sua natureza,

objeto de indagação em O ser e o nada pela intervenção da liberdade. O ser humano com sua

realidade incompleta se vê e olha como aquele que ainda não é o que é e por princípio auto-

construído pretende ser o que não é por meio de uma escolha efetuada com a consciência da

existência adquirida, resultando num projeto existencial mais apurado. Embora o livro de

Sartre não ofereça as respostas oriundas da ontologia, fica a questão de se entender como um

ser situado nos interstícios da compreensão de si, pode se colocar em fuga e mesmo assim

poder assumir uma atitude fundamental que diga respeito a sua constituição? Quais os

parâmetros que definem o ser na situação estando em liberdade? Angústia, responsabilidade

se mesclam para que o ser que se quer existente possa conduzir à identificação ou reivindicá-

la, ambição maior do filósofo francês.

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Jean-Paul Sartre como filósofo da liberdade deixa passos inscritos em O ser e o nada

no que diz respeito à consciência tomar forma pelas mãos do homem. Ele compreende no

decorrer dos acontecimentos que lhe atinge, a necessidade em fazer com que o ser no mundo

“funcione” de maneira a tentar a autonomia da consciência, em relação ao solipsismo anterior

do psíquico. Nos termos concretos, equivale à preocupação com o engajamento como forma

de liberdade humana desvencilhada de qualquer espécie de determinismo. Nesse livro em

especial, no qual o escritor defende a tese de que a existência precede a essência, é forte a

problemática da contingência e a reflexão sobre a má fé, nome com o qual ele identifica o

inconsciente. O imbricamento entre a consciência individual e seu poder de influência ou de

ser influenciado pelo outro é possível graças a co-presença originária da capacidade que o

homem tem de agir sobre o mundo.

Quando estudamos a duplicação do personagem que intitula o livro de José Saramago

junto à filosofia de Sartre, consideramos o dualismo entre ser e aparecer como faz o filósofo

não de maneira tranqüila, pois o ser do existente não se diferencia de sua aparência: confusa

com a idéia falsa de igualdade. Instalada a duplicação, o fenômeno digno de apreciação no

dizer de Sartre, é o indicativo para que haja toda uma discussão em torno de si. Na narrativa

vimos que está descartada a idéia do contraste entre aparência e essência igualmente na

filosofia que pretende estudar a complementação ou a disparidade entre ser e nada. A dialética

se impõe uma vez que o conflito gera outro: finito e infinito em se tratando das manifestações

de uma presença não resolvida a partir de si, seria o momento gerador da imagem ao terminar

outra? Não resta dúvida de que toda a discussão oriunda da duplicação se faz presente pela

aparência, esse surgir de impossibilidades que resulta no atrito – na dialética de si – que o

personagem experimenta. Não há, entretanto, um conjunto de qualidades com o qual

possamos nos deparar a fim de sumarizar o protagonista duplicado, muito pelo contrário, a

fraqueza moral, a indecisão, a susceptibilidade são realçadas como forma de demonstrar o que

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o personagem passa, como ele é instigado a agir. Contrariamente ao que afirma Sartre o

homem duplicado ao se tornar um ser-consciente do que ele mesmo é não pode ser apontado

como referência do sujeito cognoscente, uma vez que é exatamente a falta de conhecimento

de sua pessoa que move este ser ambientado na linearidade e propenso a fugir dela. Na

afirmação do filósofo sobre ser consciente, ou seja, ter a consciência vazia de algo imposto

em substituição à consciência posicional do mundo, eu e o mundo sabemos o nosso lugar.

Observamos o inverso na vida do duplicado. A duplicação veio como imposição não só onde

o espelho impera para se fazer o vazio existencial do personagem, bem como o que é

percebido não serve de fundamento a quem se encontra na escassez de si.

Outro aspecto da filosofia de Sartre possível de referendar nossa leitura é a questão da

falta. Há uma lacuna no homem ao saber da duplicação, algo que ele procura preencher por

meio da busca de seu outro eu. A sensação de algo incompleto faz os pensamentos dos

personagens produzirem volteios; suas ações se chocarem e as opiniões embaterem em função

da pausa que eles experimentam na vida. O ser que ambos não são agita-os, move-os na

direção do existente que pretendem apreender. As condutas humanas que os personagens

mostram diante de um mundo modificado pela duplicação, não podem ser explicadas como

relações da realidade apreendida objetivamente. É certo que a presença física de outra pessoa

igual gera confusão até no uso da palavra adequada, do gesto insatisfeito quando o homem do

livro estudado tem como meta saber do homem que ele é. Isto pode nos revelar como de fato

o faz às interrogações de um ser pleiteado pelo não-ser que está fora, mas condiciona o que

vai por dentro. A indagação como propõe Sartre é uma atitude humana que leva à negação.

Disto podemos compreender que o personagem do romance gera destruição ao se negar, negar

a existência do outro e, no entanto, não oferecer soluções. A destrutibilidade ao começar da

negação da humanidade em outro personagem de mesmo aspecto, testifica alguém cujo

sentido é desconhecido. Portanto, é até esperado a negação condicionada e sustentada pelo

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não-ser que Tertuliano tem à sua frente. Diante de tal pressão, a consciência entranhada dos

dois personagens provoca a necessidade de saber qual a primeira relação entre o ser humano e

o nada, qual a primeira conduta considerada nadificadora? Tal como expresso na filosofia

sartreana.

O homem duplicado promove o surgimento de um sujeito que de repente toma ciência

da necessidade de saber do si-mesmo, isto posto de acordo com a emergência da realidade

humana espicaçada pelo nada entendido como duplicação. Do duplicado temos que é preciso

retirar o nada, o qual possibilitará a negação no mundo como medida de interrogação sobre o

ser. Assim sendo, só ele pode nadificar-se negando a duplicação ou assumindo-a como o faz

para tentar ser mais ele mesmo. O homem imerso nesta dialética faz surgir o nada a fim de ser

em meio à plenitude perdida para o original. Então, o processo que a duplicação instaura faz o

homem se perguntar como surge, o que ele mesmo deve ser junto de seu par e se isto tem

pertinência. Enquanto Sartre disserta acerca da realidade humana como resposta, a duplicação

se apresenta como questão. Esta concretiza o duplo homem-nada atingindo a consciência

humana pela tendência de escapar-se. No entanto, vimos que a busca, a capacidade da

conquista é o que move os personagens, duplicados, por isso nadificados, não se corrompem

com o existente. Querem mais já que têm a sensação de estarem diminutos; ao negar o mundo

na totalidade, a duplicação descoberta apresenta-se como aquilo que separa o presente de todo

um passado desconhecido e por isso causa desnorteio. Também provoca a vontade de ensinar

a História de forma invertida tal o desejo de viver intensamente o presente em busca de

compreensão. A rigor, a filosofia do existente de Sartre prioriza a liberdade como pressuposto

maior de todas as ações pensamentadas do homem. No romance isto pode ser levantado à

medida que o personagem sente como imperioso estar sozinho sabendo-se duplicado para que

seus sentimentos, o vazio exponencial o faça se colocar em questão. Nisto chegamos a uma

visão parcial do ser fictício. Preso à imagem espelhada, o ser humano que se inquieta na

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narrativa é alguém que não sabe lidar com a liberdade conquistada após a morte da primeira

imagem. Esta que poderia ser o primeiro passo para sua construção mais rica de humanidade é

ao contrário, fator de inquietação, mais ainda de insegurança. Tais considerações nos

permitem traçar o desconhecimento, o encontro e a indecisão do homem presente na atual

Literatura.

Na intenção do observar o ser humano, a prosa atual promove maior visibilidade do

drama existencial dado a indiferença nas relações e muito mais das emoções enquanto

identificadores do ser humano. Os personagens demonstram toda uma gama de experiências

que a duplicação esvazia e coloca em debate principalmente do sujeito com ele mesmo; nesta

linha colocamos reparo nos interstícios que a Literatura é capaz de absorver e expor de modo

a levar à reflexão. Ao contemplarmos o ser humano que a Literatura pós-moderna duplica,

dobra também os questionamentos e a compreensão que o texto exige. O homem comum, o

professor de História que num curto espaço de tempo perde suas referências, experimenta de

forma aguda a mudança, a transformação, pois não é agora o que será depois. Ele não

apresenta conduta decisiva de ser, como podemos ler na filosofia de Sartre, aquele que ainda

não é perdeu o improviso e se encontra em vias de determinação. Ao contrário da teoria em

que acredita piamente no ato de ensinar História, essa possibilidade não partiu do homem,

pelo menos não em consciência já que está duplicado. Com efeito, ciente da falta de

liberdade, a angústia de uma negação descrita com base na consciência e temporalidade do

homem duplicado, funciona como uma espécie de chamariz da obrigação de refazer o Eu.

Designante do ser livre, sendo, o Eu se faz em meio à angústia que marca o homem separado

de sua essência por um nada. Os efeitos causados pela angústia no romance O homem

duplicado provocam mal estar porque a liberdade perdeu seu sentido. Na perspectiva do

personagem principal, perdida a liberdade sobra incompatibilidade visto que o original até

então ocupa o mesmo lugar existencial. O gesto de alheamento compreendido por Sartre não

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tem sentido para o protagonista deste romance, uma vez que sua presença carrega o estigma

da presença que ele não pode simplesmente ignorar. Nadifica mas não determina. Pelo

contrário, incorpora a saturação que o primeiro sente ao descobrir o duplo: por ser quem não é

quando ignora o que é. A liberdade neste meio tempo é cerceada se vista a partir do eu que se

coloca em cheque, pois não pertence a si e não é inteiramente do outro, portanto não pode se

efetivar nem acarretar os efeitos pretendidos.

O ser que Tertuliano não é provoca-lhe emoções desencontradas. A clareza no nome

do original causa repulsa no professor de História que passa a não ter mais inclusive a certeza

de querer mudar o ensino, como em: “Mais dia menos dia não terei outro remédio que pôr

mãos a um trabalho de que ninguém vai fazer caso, (...) porém, não valia a pena fingir que

estava a enganar-se a si mesmo,” (SARAMAGO, 2002, p. 158) engano este cuja conotação é

sua pessoa. Ele que quer ver António como o engano a evitar, se atormenta quando ele mesmo

se vê dessa maneira. Assim como ninguém dava atenção à suas idéias inovadoras, a História

que protagonizava não interessaria a terceiros pela simplicidade da vida da mesma forma que

Daniel Santa-Clara não existia. O que fica é a impossibilidade de adiar o enfrentamento com o

engano que não é fingimento, é presença, tem atitude, é inteiriço em vontades e

posicionamentos, é livre e não pretende deixar de sê-lo. Enfim, é António Claro de quem

Tertuliano Máximo Afonso não faz sombra. É preciso admitir que a ausência, a inaptidão de

um ser o outro para além do que as aparências denunciam, mexe com as possibilidades

existenciais dos personagens, tal como o pressuposto adiantado por Sartre em O ser e o nada.

A realidade humana do romance O homem duplicado atende pelo nome duplicação.

Ela é o inexplicado, o que gera confusão e instaura o vazio dos personagens. O nada

inaugurado desenha limites e horizontes impensados pelos personagens até esse momento. A

partir da coincidência consigo cada um no seu tempo coloca em prática um modo de existir

cambiante. A consciência exacerbada adquirida com base na dialética que os personagens

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vivem, é ao contrário do que Sartre suporia a falta de opção que aprisiona e

concomitantemente acena com a liberdade pelo fato de um trazer em si a semelhança do

outro. Poderíamos confirmar que há o desejo tanto de Tertuliano quanto de António de um

projeto de ser humano quando ambos chegam à negação, todavia, o movimento que

observamos neles é de fora para dentro – devido à aparência – em busca de um sentido porvir.

A sensação de aniquilamento não é descartada, por isso o tempo parece paralisar. Nesse

romance contrariando o texto de Sartre, o presente é o fator complicador, é dele que os

personagens se ocupam afins com a relação de ser que o homem deve sustentar junto ao

passado ignorado de ambos. A explicação, a outra metade sem parelha podendo ser

denominada de identificação consigo, faz os sujeitos da ficção andarem em círculos com os

problemas encontrados. Inclusive, na pergunta quem eu sou, a mera referência ao passado

também não clarifica a busca. A carteira de identidade e as informações nela contidas mais

atrapalham que ajudam na compreensão que os duplos teimam em procurar. Têm a

consciência desperta para a conexão que não se faz. Desse modo não podemos afirmar que

haja alternativa entre ser provisório e não-ser a caricatura, especificada pela nadificação

negada a princípio, irredutível no decorrer do romance caso tomemos a duplicação como o

processo capaz de amostragem humana.

A ambigüidade que poderíamos extrair do comportamento dos personagens marcados

com a duplicação, se transforma numa ânsia por ser que se metamorfoseia ora em fuga, ora

em encontros inusitados ou premeditados. Ela se reveste numa necessidade, depois obrigação

que eles incorporam de ter-de-ser na medida em que não são. Neste momento é preciso

apontar para a afinidade com o ponto de vista de Sartre. Enquanto ainda está em ebulição a

dialética de si, os personagens fazem a realidade humana ao descobrirem-se na falta dela.

Sim, porque a duplicação embora sendo um dado concreto no universo romanesco coloca em

posição de igualdade as investidas por ser e a retirada de cena que acompanhamos no homem

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e no mundo. Desencorajados pela excessiva exposição da própria imagem, os seres da

duplicação ora hesitam, ora avançam na medida em que um não se vê como prerrogativa da

existência do outro. Se, por um lado os personagens são vistos pela falta de simplicidade no

modo de se postar diante da vida, por outro eles podem ser interpretados numa abordagem

cuja dinâmica os faz compostos já que estão em defasagem. Por outras palavras, a ausência

sentida por eles se abriga no consentimento do que a aparência dispõe e a desigualdade

anelada por sua vez orquestra. Os episódios da duplicação se sucedem e com eles o professor

de História com o ator de cinema avivam um desejo de apropriação do que lhe cabem como

ser humano. Resguardados os interesses de cada um, o que sintetizam tem relação direta com

o que Sartre denomina de projeto rumo ao Em-si. Este, capaz de proporcionar aos

personagens uma definição do que buscam ser entre objetos e imagens criadas de acordo com

circunstâncias alheias à sua liberdade. É preciso lembrar que a discussão por ser de verdade,

ser humano além do que representam como profissionais ou enquanto desempenham um

papel social, só foi possível por meio da descoberta da duplicação: o evento extraordinário do

qual cada um deles é uma parte indisposta a se juntar à outra.

Os seres ficcionais que assumem a protagonização da existência em O homem

duplicado fazem o sentido problemático frente às possibilidades a lhe turvarem o foco de

interesse pela vida. Isto posto enquanto não se decidem pela clareza do nome de António nem

pela grandeza do nome de Tertuliano. Nesta intersecção é que localizamos a explicação do

título da obra; ambos os personagens por causa deste comportamento são, não singularmente,

mas agora em comunhão, o homem duplicado. Para Daniel, o anônimo indesejado, já para

Tertuliano o desconhecido de si do qual pretende escapar, embora o persiga.

O presente irresoluto do livro de Saramago tem relação muito próxima da importância

dada por Sartre à temporalidade. Ele a vê como fundamental ao desenvolvimento do homem

enquanto força dissolvente, no que discordamos em favor do fundo unificador observado na

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narrativa aqui estudada. O romance ao apresentar homens permeados pela multiplicidade e

unidade emboladas, propõe a temporalidade a reuni-los na intenção de um modo de ser por

conta própria. No entanto, ela não está fora deles, mas dentro esperando um gesto, palavra que

seja de conseqüências fundadas. O duplicado é um homem que busca se saber, como isto

também é emitir sentido no mundo, para tanto a multiplicidade de observações se faz presente

seja na nadificação, seja na recondução à multiplicidade que se pretendia recusar. Vimos que

o passado perde influência na maneira que o sujeito pretende ser reconhecido, bem ao

contrário do pressuposto sartreano. Com isso, a negação que a duplicação inaugura também é

responsável pelo surgimento de uma consciência mais avançada de um Eu que não sendo

mais tranqüilo, também ainda não é o que por iniciativa individual almeja ser. Agora, de

pleno acordo com Sartre em sua predileção pelo presente na condução e percepção da

realidade, o homem e sua temporalidade específica – duplicado – é mais um na ignorância da

mudança a se fazer.

Consciência exacerbada, amplificada, o personagem de O homem duplicado tem a

oportunidade, a perspectiva e a possibilidade juntas para o que virá, mas de acordo com as

palavras da mãe do protagonista sua inércia é causa de reversão, como podemos ler em: “não

decidir a tempo pode tornar-se em arma consciente de agressão mental contra os outros,”

(SARAMAGO, 2002, p. 137) no que ela acerta pois, o professor com sua indecisão acaba se

tornando a ausência que o ator não admitia. No dilema, o duplicado assume sua face agressiva

ao querer aparar as arestas do que poderia ser contra-argumentação por parte de uma outra

vivência pretensamente igual a sua. Assim, se destaca neste homem o índice maior de

irresolução na cadência de um tempo sem desfecho. Com a consciência ebulitiva, a realidade

humana se destaca pelo inacabamento do processo, embora duplicado, a capacidade de

visualização resulta num fracasso feito condicionamento sem, no entanto, se configurar como

alternativa. Isto acontece dada a intenção de reunir num olhar a totalidade do que lhe possa

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acontecer num futuro próximo. A vida como traço interrompido oferece o reconhecimento

proporcionado pela visão do duplicado na tela, ao vivo, o que trouxe toda a gama do

incompreensível. Este visualizado no sujeito com nome e sobrenome, mas tão desconhecido

quanto visível. Ao observarmos o protagonista do romance aos olhos de O ser e o nada,

vimos que a duplicação se for entendida como fracasso em termos de uma existência saturada

e/ou por se saber, não mostra na verdade resultados práticos, verificáveis. Isto suscita por

outro lado, a captação da temporalidade enquanto modo de ser único e incomparável que a

historicidade do ensino/aprendizagem dos personagens se reveste.

Na narrativa o acontecimento real chama-se duplicação, ela atrai os personagens para

o que Sartre denomina processo de nadificação. A conseqüência disto é a impactação de

sentidos em que o homem se envolve querendo viver aquilo que não teve oportunidade; por

isso sua vida adquire outra ressonância. Se por um lado o duplicado parece indolente, absorto

em pensamentos improdutivos por outro a vida adquire tonalidade diversificada: ambos,

original e cópia embora de má vontade um com o outro, agem como detetives nas pistas para

encontrar a si mesmos. Usam subterfúgios para serem em momentos o que a vida inteira não

foram, confrontam e desmentem aquilo que a fotografia e o espelho incriminam. A

consciência de si tão dificilmente buscada, acentua a necessidade nestes homens tocados pela

duplicação de enxergarem o reflexo de suas idéias. Caso elas não tenham a dimensão de um

gesto por se fazer, a percepção indistinta pelo exterior só faz admitir como o eu particular que

foi, a pretensão de ser. Constitui, como Sartre faz questão de dizer, a negação original como

não sendo este que aparece. A duplicação pelo aspecto exterior e a impressão causada, sufoca

a parte interna. Esta, por sua vez provoca o conflito na ordem de relação entre os dois seres

ficcionais cuja negação compartilhada, desqualifica ambos ao projeto de chegar à essência,

uma vez que é a ausência o fator preponderante do romance. A investigação empreendida pelo

professor que muda de lado e passa a aprender em meio aos erros assumidos e o ator que não

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representa mais embora pretenda encenar uma vida real, assimilam ambos a necessidade da

relação mais íntima com eles mesmos, mesmo duplicados na aparência e na consciência.

A existência dos personagens frente ao mundo que ocupam se coloca num espaço

labiríntico marcado como eles pela instabilidade. Como Sartre propugna, vemos que a

narrativa recende o homem envolto por uma totalidade que renega ao desagregar-se enquanto

multiplicidade. Ao renegar a sujeição de forma explícita como o faz António e implícita como

Tertuliano, os atos dos personagens animam as individualidades disjuntas sem a liberdade por

ser de forma mais completa. O que cabe perguntar: se o protagonista está duplicado, faz

sentido o alvoroço pela completude do modo de ser? Que possibilidades ele têm de se ver em

liberdade diante da real presença do ator em seu fingimento? O ser que se faz mediante o nada

descoberto atrai a substância com apelo ao sentido, este, ausente no espaço, se faz igualmente

perdido para uma vontade vista como absurda porque alheia, embora desejada. O senão do

homem duplicado acontece quando tocado por uma proposta existencial não haurida dele, vai

de encontro com a indiferença. Em seguida é amealhado por ela quando não mais é quem

pensava ser, ao mesmo tempo em que não pode deixar de ser o que é aos olhos do mundo que

o conhece. Tanto é assim que as pessoas do trabalho, do convívio diário ao invés de

perceberem a mudança pela qual o professor passava, ressaltam ao contrário a permanência

nos modos de ser e sentir daquele homem em completa angústia por causa da falta de

respostas que o expliquem. Labirintos desconexos, a vida dos personagens se equipara em

dimensões a um espaço ainda não demarcado como eles pensam fazer. Entram nele estudando

o passo do outro, buscando associações que os levem à relações humanas capazes de trazerem

a tranqüilidade que eles sentem perdida para a duplicação. Esta, vista como o nada carregado

da formalização que eles prescindem, é por sua vez o princípio do qual eles têm nas mãos

para se fazerem em possibilidade sem chance de adiar, antecipar ou mesmo tratar como

indiferente.

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Ao compararmos o romance O homem duplicado com O ser e o nada, à primeira vista

parece que há transposição, extraída do nada de um personagem para que o outro alcance o

ser. Entretanto, não é o que acontece. A narrativa exibe o homem em desacordo: nem o ser é

retirado de um, nem o nada pode ser apontado em determinado personagem. O amálgama se

faz na medida em que o professor descrito como o exemplo do sujeito apático, resolve mais

por fastio do que por interesse, tomar consciência da escassez de reflexão na sua vida. Faz

sentido aqui as frases mais comuns em tal situação, como ensina Sartre, do tipo: sou este nada

que tenho de ser para poder ser o ainda-não que me autoriza a ser o que é já tendo sido. Por

estar duplicado, com a consciência exacerbada em dialética consigo, o personagem chega a

esta conclusão através do porfiar instaurado pelo filme. Discussão intensa com a interioridade

destroçada; com o senso comum, superado este, as dúvidas são assumidas por um homem

mais maduro, nem por isso bem resolvido, desacreditado de si mesmo. Quando o narrador

descreve António Claro, o que seria o original, portanto, portador de uma clareza nos modos

de ser e entender a vida vemos que ele também se duplica em incertezas, desacerto por não

saber lidar com a situação. Então o porfiar é introjetado e quem é, ou deveria ser o original, é

tão ou mais comum em interrogações acerca de um eu não mais pessoal. Em ambos há a

instabilidade emocional que não os deixam enganados quanto ao eu mais recôndito que é

preciso se não resolver, pelo menos mostrar iniciativa. O que acontece no rompimento com o

Senso Comum e também o conhecimento de outra face do ator desconhecida do público; nos

dois, o ser e o nada deixam de importar ao pensamento exterior em detrimento do espaço da

negação como relação de um ser do qual passam a se ocupar.

O homem duplicado ao se ver como desconhecido, incorpora o nada exponencial

capaz de tangenciar o conhecimento que busca acerca de um outro que vem a ser ele mesmo.

Seus problemas passam a girar em torno de colocações muitas vezes não iniciadas por ele e

sim pelo original, em outras, é dupla enquanto força caracterizadora da revelação por se fazer.

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Assim, há pertinência na reflexão de que sou na medida em que o eu me escapa, seja em

conformidade, seja na antecipação que sou incapaz, atrelado à perspectivas outras. É como se

o duplicado reconhecesse a posse do corpo, mas não o dele, as idéias não lhe pertenciam com

a mesma acuidade e assimilação; disto é possível extrair o fator perturbador da consciência

supostamente sua. Na fase da negação, como adianta Jean Paul-Sartre, os sentimentos se

misturam e um deles é a vergonha de se mostrar pela anulação, de ser somente na aparência.

Na falta de profundidade deste homem em desalinho com o que quer e o inalcançável,

chegamos a uma reflexão aberta de pretensões vultosas sobre a existência do outro, que neste

momento se torna mais relevante, mais palpável para quem se julga a insignificância

personificada.

Ao se convencer da relação interna tumultuada com o de dentro do ator, o personagem

principal do romance não da vida, deixa a arenga pessoal com a aparição misteriosa para

encarar outra, embora a contragosto com o titular da duplicação. A consciência reflexiva que

surge ultrapassa o mero interesse pela exterioridade por aquele de maior profundidade, coisa

que o duplicado não tem em si. Daí, entendemos porque este homem que não desperta

curiosidade com sua vida indisposta vai em busca de algo mutável muito mais que a rotina, a

falsa tranqüilidade com que percebia, se relacionava com o mundo. Ao entrar nesse novo

universo cunhado com a duplicação é acompanhado por outra imagem, outra forma de lidar

com os problemas. Por isso o vemos ficar tão à vontade quando usa os disfarces, o prazer com

a fotografia que traz aquela história por se saber. Porém, está sozinho em importância na

relação humana a se efetivar com base num movimento interior. Pensado, amadurecido pelas

experiências que foi capaz de fazer ou de deixar acontecer, somente dessa maneira podia

surtir efeito para em seguida mostrar ao mundo o reflexo de si. A emoção mais encarecida, as

experiências intransferíveis que os homens deste romance se empenham, provocam e mesmo

requerem, é a diversidade que se quer comunicável das consciências humanas afinadas aos

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acontecimentos provocados pela duplicação. Embora tal acontecimento seja visto como o

inusitado que os tira do comum de viver, isto não constitui a ambos como o outro desejado,

assim como encontramos no pensamento de Sartre. Digamos que esta contrição acontece

porque não é intenção de nenhum deles o equilíbrio por meio da unificação do modo de vida.

A ausência que observamos nos personagens tem relação direta com o efeito que a presença

misteriosa causa; ela ocupa os dados da preocupação de cópia e original. Vimos que, cada um

a seu modo não pretende ser ator sendo professor e vice-versa, querem sim sentir o efeito de

serem sozinhos no mundo: que suas opiniões não sejam influenciadas por uma imagem

recorrente; que as escolhas ou falta delas não possam ser atribuídas a alguém que eles não são.

Pensemos então que o aprendizado na e pela diferença solicita o reconhecimento dela numa

espécie de jogo de luz e sombra no qual o reflexo pode mostrar mais que o comportamento

pretende esconder.

O homem duplicado desdobra os personagens que inauguram a existência ainda não

experimentada. O fato de eles tentarem o conhecimento e não o reconhecimento já que o tema

à primeira vista é o da igualdade, segue-se a apreensão de um eu inigualável. Por isso temos

inclusive a confissão do duplicado acerca do abandono que o atrai em decorrência do risco

que assume, da revelação que se põe em busca, tudo ampliado de forma a sair da objetivação

que o determina. Nisto temos um paralelo com os projetos do ator de cinema, o brilho do

nome que já tem a clareza agora na forma de neon, o aplauso, o reconhecimento do público;

tudo se paralisa porque tal objetividade é freada pela duplicação que recusa identidade. É

neste momento que entra o detalhe, a sinuosidade, o traço característico que ator e professor

anelam por encontrar e que seja capaz de os definirem como inigualáveis. A data de

nascimento sendo a mesma resta a hora, os minutos e segundos para os diferenciarem.

Embora não seja uma questão de tempo, o dado pessoal mais que a marca diferencial é o que

os impulsiona a tomar atitude. A decisão talvez derradeira, talvez a primeira capaz de

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possibilitar a peculiaridade humana suscitada pela duplicação. Por mais egoísta que seja a

garantia do espaço existencial ao homem tocado pelo duplo, o fato dele se ver como um eu

em busca de não ser uma negação, revela-se na vontade por estar além do ser objeto. Também

ansiar à existência separada, e, sobretudo poder se colocar perante o outro numa relação

enquanto sujeito.

Da mesma maneira que Tertuliano Máximo Afonso sabia que “o mais difícil ainda

estava para vir” (SARAMAGO, 2002, p. 69) desde que a duplicação tomou sua vida, o modo

de pensar e entender o mundo, sem dúvida foi modificado. Está por vir um pensamento que

dê a explicação de sua existência junto de alguém que ignorava; está para tomar forma a

dimensão da qual não se ajusta nem consigo nem com o mundo que o vídeo e o olhar das

pessoas condenam. A começar pela namorada, os colegas de profissão, a mulher do ator,

percebem que têm diante de si outra pessoa, mas sem notar a grande mudança interior que o

duplicado experimentava. É uma demonstração de como o olhar pode enganar se não for

atento à sutileza que o dado humano apresenta. Sem meditar, a consciência corre o risco de se

integrar em outras já formatadas por opiniões implantadas com a aparência enganadora.

Então, quem é olhado se transforma no nada que é preciso preencher, lotar de sentidos já que

a interpretação pretende moldar aquele que é visto, embora não seja completamente aquilo

que a imagem denuncia como é o caso do duplicado. Despreparado, sem querer corresponder

às expectativas das pessoas que lhe conhecem, este homem tem a realidade revirada. Pois,

enquanto no seu íntimo não pretende ser aquele que é olhado com desconfiança, não arrisca

ser sujeito cujo fundo de presença originária possa se descobrir afirmando a relação vital a se

constituir. A visão que modificou a vida do pacato professor de História agora vertido em

protagonista tem um enredo cujo ator principal cai em importância porque quem é

coadjuvante em se tratando destas sendas ficcionais, chama mais atenção pela falta de ação.

Agregados, a fadiga da vida, o sentimento desencontrado perante a presença do outro fará

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com que os personagens mantenham relação controversa ao se colocarem no nível da

objetivação que nenhum deles aceita. Assim entendidos, o homem e seu arremedo neste

romance de José Saramago portam-se em nadificação quando a maior virtude do ente

ficcional é direcionar-se rumo à afirmação da liberdade humana, apesar de ser enfatizado o

caráter duvidoso de quem é atingido pela duplicação. Fazendo coro com Sartre, enquanto o

professor de História se vê permeado pelo nada, constrói-se como o ainda não completo na

investigação pela vida de Daniel Santa-Clara que não existe. Procura na negação de uma visão

construída, a afirmação da potencialidade humana em fazer o destino diferenciado em

dualidade.

A narrativa da vida do homem duplicado no período de seus trinta e oito anos

corresponde a um estágio da experiência que nega a relação com o mundo em detrimento do

mergulho na interioridade do personagem. Isto que vai contra o pressuposto de Sartre para

quem a relação com o mundo é que define o homem em seu caráter mais específico,

configura-se conhecimento contraditório. Porque duplicado, o homem se vê em contingência

humana, o que não o impede de tentar outra relação com o mundo de modo bastante singular.

O que parece se esconder, se negar, usa as mesmas armas da dissimulação, omissão, mentira

para obter vantagens que a aparência proporcionou a quem dela fez uso. O vazio que o futuro

indica na vida do duplicado é algo sempre fugidio, o que potencializa o ser do presente;

alguém cuja facticidade permite a nadificação primordial com a qual o homem resiste e tenta

um lugar no mundo. Apenas pelos sentidos não foi suficiente para se apontar o conhecimento

adquirido pelo homem que tem como missão de agora para frente responder a pergunta do

porquê de sua situação. Tertuliano, Daniel, António, cada corpo, imagem, possuindo algo que

os diferenciam, são percebidos em igualdade enquanto representação do ser humano que

anuncia com sua presença no mundo aquilo que ele é, no entanto, escapa a quem é acometido

pela duplicação.

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Numa espécie de jogo lúdico que o escritor faz ao utilizar a imagem de um só homem

com consciências e vidas separadas, entendemos com isso a denúncia do poder de influência

que a imagem tem. O duplicado ao se deixar definir no olhar do outro, sua consciência é

remexida em tudo aquilo que julgava saber e dominar, o que se mostrou insuficiente em

relação à concretude da existência no meio do mundo. No meio em que o personagem se

move não se vê seguro devido ao conflito originário e não troca experiência quando o assunto

é a aparência como conhecimento. Ao contrário, destituído dela e mesmo ao se descobrir item

de escambo, se vê na necessidade de recuperação de um eu surrupiado pelo simples olhar. Na

identificação com o ator Daniel que é o outro de António, Tertuliano passa de observador a

observado, fica por isso um lado de negação entre o corpo que todos querem ter e uma

imagem a ser negada. O homem, o professor, o sujeito acima de qualquer suspeita, com a

duplicação passa a ser o objeto da indefinição acompanhado de perto pelo desejo de liberdade

que o outro transmite. Contudo, o duplicado não sabe que sua presença também causou

semelhante efeito e nenhum deles tem mais harmonia. Esforços, estratégias são montados a

fim de que a aparência seja desmistificada: ser o personagem marcante da vida do ator; fazer

uso de seus jeitos e trejeitos; colocar em prática a veemência no ensino de História não foi o

bastante para o duplicado. Situa-se entre a impotência e a força humana que o ator exala

muito mais que em atuação sendo, entretanto, impossível imitar. Embora sabendo que é o

outro quem protagoniza a vida, o duplicado tem na sua interioridade resvalada aquela vontade

própria do ser humano de manter-se inatingível.

A linguagem do silêncio que os protagonistas adotam quando tocados pela duplicação,

faz com que seus atos sirvam de curiosidade cujo sentido escapa ao oponente de ocasião.

Disto haurimos mais uma vez que a linguagem não visa dar a conhecer e sim fazer

experimentar, seja o gosto de viver uma vida alheia, seja a oportunidade de estar numa

posição na qual não se encontra conforto. Ser ator sendo professor e vice-versa confere à

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linguagem seu sentido; as omissões, as entrelinhas naquilo que é dito e vivido por estes seres

de papel, deixam entrever sentimentos às vezes nobres outras nem tanto, mas tem o mérito de

instalar emoções cujo resgate é a maior virtude na jornada narrativa que os personagens

protagonizam. Tais emoções como o reconhecimento do amor por Maria da Paz, o agir de

forma correta com Helena contando-lhe a verdade sobre o marido, depositam na consciência

do homem duplicado aquela certeza não do encontro para a maior das respostas que o intriga

– quem sou eu? – mas do sentimento de ser homem, por ainda poder formulá-la. O que Sartre

chama de transcendência pelo fato do homem poder ir além do visível das relações humanas,

temos nos personagens recentes de Saramago. Qual seja, o agir acautelado com a vontade de

saber por origens e destinos num mundo ampliado por fora, mas infinitamente pequeno no

domínio do sujeito em desalinho com seu interior. É o querer do outro que foge ao controle, o

próprio querer que não se ajusta, por vezes nem se manifesta fazendo o reconhecimento da

instabilidade na relação humana que o romance se esforça por contemplar.

É importante observar que o livro centra-se nos personagens muito mais que na

situação oferecida pela duplicação. Primeiro eles são apresentados sozinhos, com sua

insignificância num mundo de resultados, esplendor e méritos. Fora dessa estereotipia,

quando os personagens se juntam, a essência de tal relação ocorre do conflito em que cada um

traça para si o modo de entender o mundo. O impasse se dá exatamente no momento em que

se vêem na incapacidade de fazer a transcendência. É quando o nada age; as coisas perdem a

importância; os cargos o valor e as relações se deterioram. O nada a respeito da relação junto

do estado de consciência atribulado com a duplicação, de emoções furtivas das quais o

homem desse livro adquire o sentido de vida. Também faz com que ele se coloque como

objeto de apreciação para o eu aparentemente resoluto. Díspares no impacto que a imagem

provoca, os personagens atingidos pela nadificação das palavras, dos conceitos e pré-

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conceitos adotados até aquela altura da vida, vêem seus corpos simbolizar o inesperado que

carregam em si.

Consideradas por Sartre como categorias cardeais da realidade humana – ter, fazer e

ser – ao classificarem entre si as condutas do homem, também o levam (tomando o romance

por parâmetro) a desfazer o domínio que julgava ter sobre elas. Ter um corpo passa ser mais

importante que seu significado para as outras pessoas; fazer sentido com o que se fala e se

cala e ser mais do que aparenta, são os pilares que levam o homem duplicado à dimensão da

liberdade a ser alcançada como objetivo maior. Se o agir tem um plano superior partindo-se

da mudança interior, então a ação a se efetuar, de apreensão, de busca por um eu

desconhecido é também o reconhecimento de que a ordem objetiva do mundo não pôde

atender aos apelos da consciência retirada da paz aparente. Já não se trata de encaminhar,

enfileirar as coisas, as pessoas que fogem ao enquadramento, à ordem estabelecida e sim o

deparar-se com a imagem que necessita se desfazer para ser além da convenção. Neste

sentido, a duplicação tem aspectos de empreender a significação que o homem pretende a

partir do projeto de um sentido ausente, desencadeado por aquela falsa igualdade de

condições. A falsa certeza de um desconcerta o outro que para chegar a ser, ambiciona a

liberdade da tela, do palco enquanto complementaridade daquilo que ele considera a posição

do homem no mundo. Como os objetivos dos personagens são colocados enquanto aquilo que

ainda não foi alcançado, isto não impede que ajam em liberdade visando sua realização. O

original ao negar a cópia que o outro quer deixar de ser, coloca-se no desejo de modificação.

Porque o eu ao escapar do sentimento da sublimidade dada a ausência notada com a

duplicação, faz do homem desse romance um ser à procura de direção rumo às possibilidades

de se ver como insubstituível considerada a estatura existencial. Embora não possa fazer

aferição dos efeitos da mobilidade com a qual manipula e é manipulado. Neste sentido, o

romance responde perfeitamente às indagações do homem atual, até que ponto pode-se ter a

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chamada opinião pessoal? Ser para além do que a aparência denuncia? Quem olha modifica

quem é olhado caso se trate de conformidade negada, mas sem força para se exteriorizar.

O homem duplicado apresenta a realidade humana pautada pela falta de liberdade

deflagrada, compreendida a ruptura nadificadora com o mundo e consigo que a duplicação

realiza. Esboroa-se qualquer espécie de determinismo a respeito do que o homem é; de nada

resolve nomear o personagem do início ao fim do romance com nome e sobrenome se este

não diz a ele mesmo quem seja. Ou sabermos que o protagonista é um professor de História

marcado pela ação rotineira de repetir os mesmos fatos que o passado se encarregou de

formatar. Bem como saber que o ator repete mecanicamente aquilo que lê, quando enfim, os

dois descobrem que eles mesmos foram repetidos. Atentam para serem livres, se entenderem

e não chamarem a atenção do mundo para aquilo que eles consideram um caso particular. Ao

fazer as coisas acontecerem a seu modo, o homem da narrativa põe em prática o conceito de

liberdade atrelado ao nada porque não é si mesmo, está em vias de acontecer. É nisto que

caracterizamos a humanidade insatisfeita que o livro se empenha em captar. Com a

duplicação, os personagens ficam mais conscientes do fato de poderem se produzir enquanto

seres pensantes. Reconhecem a impossibilidade da síntese entre dois seres existentes, gêmeos,

siameses, não clones, mas duplos sem serem homogêneos. Cada um em sua incomunicável

solidão entra por uma vereda de onde não mais sairá porque feita das perguntas erigidas com

a experiência. Sem respostas prontas, a consciência de si tipicamente posta em prática seja

pela vontade ou pelo comportamento passional – que vemos como tentativa de resgate do

homem marcado com o duplo – é causa de ensimesmamento ao internalizar a obrigação de ser

quando é dúvida. Conforme pensamos, o personagem avança de uma vontade despertada à

necessidade de tê-la para em seguida dominar a consciência desimpedida da duplicação. Na

possibilidade, se libertar das maneiras de ser o nada internalizado. Como o livro demarca, a

ação de conhecer, saber de si não pode e de fato não é colocada em termos de uma ordem

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crescente; motivos a ressaltar, da mobilidade e dos fins a se alcançar. Porém, a ação que ali

aparece formata a consciência reveladora da organização do mundo. Quando livre, mostra-se

na impossibilidade de se definir. Descoberto duplicado, o homem termina sem originalidade

ao sentir a pressão de suprimir uma voz igual, afirmando trazer a identidade de volta à vida

em suspenso.

Se a liberdade é primazia no pensamento de Sartre e a vontade é de Schopenhauer, na

narrativa de Saramago ambas se juntam no homem duplicado fazendo com que cada

personagem desenvolva por meio dos próprios atos ou somente na imaginação praticá-los, a

personalidade que os defina. O que sem dúvida é a quota de humanidade dos seres ficcionais.

Ao assumirem o objetivo de ser tomados pela duplicação que os nadifica, os personagens se

tornam mais conseqüentes na dialética de si, quando nada existe a não ser por meio da

consciência de existir. A falta de perspectiva e mesmo de um projeto existencial que os

homens marcados pelo duplo denotam, não lhes indica continuísmo; ao negarem o

determinismo, a transformação radical do ser-no-mundo é algo a se pensar enquanto deixou

de ser sujeito da ação. O corpo, portador da consciência reflexiva, ao se encontrar duplicado,

não tem mais projeto a defender que o caracterize. Na fadiga por causa da entrega necessária

que a duplicação pressupõe, ao partir da nadificação a facticidade tem valor singular que é

preciso apreender.

Na explicação que o marido dá à esposa temos um índice dos sentimentos do homem

que originou o duplicado: “A questão está precisamente aí, de facto a pessoa é outra, mas a

cara não, a cara é a mesma, Não é a mesma, É a mesma, [...]” (SARAMAGO, 2002, p. 227)

no que consiste para este homem que se descobre em outro seu ser no mundo. Ao invés de se

distanciar, compreende o projeto original desqualificado com o qual se compara, mais ainda

com uma escolha por se efetivar. Ao se sentir desamparado o ser da duplicação adianta,

porém, não deixa transparecer ao maior interessado, o complexo de inferioridade. Ao

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contrário, repassa-o, porque de imediato é um projeto do Para-si no mundo. Sem fazer alarde,

o sentimento dos personagens impregnados pela duplicação, refaz um percurso de

significação pretendida pelo homem no mundo, esta desprovida da idéia de se destacar com

suas presenças. Como não podemos assinalar tal projeto pela singularidade estremecida, se

livrar do duplo significa o uso da força muitas vezes moral de quem a coloca em prática, e

como vimos ela é bastante duvidosa em qualquer personagem apontado. Afastado do mundo,

o homem de posse da pergunta – quem sou eu? – enfatiza sem querer responder pelo risco, a

totalidade. Tal perspectiva surge no horizonte dos personagens a partir da idéia de homem que

lhes escapa. A cara destoante da pessoa que António tenta explicar à mulher, esbarra naquela

explicação pretendida. Da mesma forma que é difícil se fazer entender, a consciência

pleiteada pela nadificação, insiste na escolha sem, entretanto, ter agente determinante que

pratique o ato. Segue-se disto que os personagens são escolhidos pelo mundo, a cara e a

pessoa que todos conhecem, têm a significação atribuída à revelia de quem se julga dono da

própria imagem.

Localizados, exilados de si os personagens têm pela frente uma escolha capaz de

revelar o ser que possa identificá-los. Sem junção de pensamentos, a idéia de quantidade

apavora na medida em que a submissão à nadificação significa um passo aquém da opção

sempre em vias de acontecer, transmutada em outra realidade. Como enfatizamos, o presente

dos personagens é o centro condutor da narrativa, a possibilidade que lhes cai nas mãos de

intervir no que possa acontecer se faz anúncio daquilo que eles são ou ambicionam ser. O

rosto igual de homens cuja história é diferente equilibra-se em sinônimos de um tempo

marcado pela caotização dos sentimentos misturados entre os significados a vivenciar. De um

lado não há intervenção por parte do duplicado, de outro ela tem ares de esboço porque

envolve aquilo que o ser humano tem de mais baixo: o sentimento da vingança, rebaixamento

pelo instinto e a acomodação em se sentir superior por isso. Como acontece naquele trecho do

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romance em que consta a suposta vantagem adquirida pelo original ao descobrir ter nascido

primeiro, suprimindo com isto a história pessoal de um terceiro. Sem um livre projeto

originário, o homem que ainda não possui respostas definitivas de sua origem também não se

satisfaz com a realização da fantasia de superioridade. Por ser livre aparentemente, o homem

duplo vê sua liberdade escapar-lhe quando colocada sob julgamento; em perspectiva,

desdobrado, tal julgamento transparece em limites, imposições, o escalonamento diante da

superação que não se efetiva. Tendo em vista a morte daquele que se colocava como o

possuidor da essência que o outro gostaria de ter, sendo igualados pela falta de opção quanto a

este item, a ambigüidade persiste quando as palavras não se unem ao pensamento na

proporção que o ser tenta suplantar o nada que o minimiza.

A iminência que caracteriza o homem duplicado com o nada rondando sua consciência

faz dele a integralização da dialética em processo de se constituir. Pois, visto alternadamente

como aparição ou desaparição conforme a distância existencial chegamos ao paradoxo de seu

modo de ser ou pelo menos na apreensão de sua tentativa. Da inércia à mudança, o

comportamento do protagonista possibilita a configuração mais convincente do ser humano

que ele quer imitar, porque o personagem de sua vida é visto pela ótica de um projeto de vida

em aberto. Em estado de duplicação, este homem que se enxerga em miniatura tem para si

que é primordial interferir de alguma maneira no curso dos acontecimentos. É então que as

coisas, os fatos adquirem para eles tons diferenciados com a liberdade humana que

acreditavam possuir e, no entanto, não é algo do qual possam se vangloriar. A duplicação

mostra aos protagonistas coadjuvantes a soltura das amarras em perspectiva; estar na presença

do próximo e mesmo assim não reconhecê-lo como outro que ajuda a ser. No movimento

iniciado há o resgate do dado sensível referente ao homem. A controvérsia de perder o lugar

existencial ao mesmo tempo em que ocupa-o por meio de outra existência, faz do personagem

central da narrativa alguém que busca a transcendência – a observação além do concreto –

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seja pelas palavras pensamentadas ou naquelas significadas por atos que o identifiquem. No

nível da situação em geral e ser de modo particular, embora não se justifique, ainda não sabe

como colocar isto em prática.

Independente do contexto, da não datação que observamos no romance O homem

duplicado, há com certeza preocupação no enredo com a realidade humana laboriosa no

esforço do personagem, surpreendido pela perda do sentimento de ser humano. Frente ao

mundo e mais ainda para si mesmo, o embotamento em que se enquadra com as contradições,

proporciona ao duplicado a manutenção da existência perante determinadas características

sociais e abstratas; no intuito de obter o sentido da existência que ele busca. Sem escolha a

princípio, depois na iminência, todavia não se mostra preparado para usufruir dela porque o

romance termina na não resolução do que o duplicado fará da vida adquirida. Apesar de ficar

pouco à vontade com a desobrigação de satisfazer desejos pessoais, não tão pessoais, pelo

menos mostra maturidade ontológica ao não se precipitar ao nada de circunspeção para o ser

de projeção. O empecilho era o corpo, sem ele com toda a carga de significação, o duplicado

tem a desenvolver a liberdade humana paralisada na posse da substância portadora de vida, no

domínio, mas sem justificação.

A narrativa cujo homem é esmiuçado ao tentar a transcendência reluta no sentimento

do nada que lhe invade ao saber-se duplicado. Perfilado, toma atitudes com as quais inicia o

rompimento das mordaças existenciais; por isso experimenta ir além do que o Senso Comum

classifica como recomendável, arrisca conhecer além do óbvio, se mistura ao processo e se

torna parte dele. Zerar a mundivivência ao se igualar ao homem do vídeo, da imagem

construída significa para este personagem alçar possibilidades de compreensão junto ao

sujeito que para ele a detém. O que serão, o que farão de si é algo cujo sentido ausente deriva

da própria subjetividade, que o escritor maneja sem manipular como se os personagens

agissem sem sua interferência, seus gostos pessoais, nisso reforça a força vital de cada ente

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fictício. Sendo o centro argumentativo o próprio homem de roupagem literária, a questão de

sê-lo ou deixar de ser implica a depuração pelo sentimento do nada. Embora a contragosto,

este oferece oportunidade ímpar do questionamento do que seja o ser, numa relação de pares

cuja superação é a da morte física. Ao voltar todas as expectativas para a subjetividade

intercambiante, a totalidade se desfaz em atendimento ao pressuposto de que a vida

interrompida provoca a insurgência da consciência reflexiva.

Se Jean-Paul Sartre propõe o dissecação da vida destacando sua nadificação partindo

da morte ou da interrupção do que há de mais nobre no ser humano – o sentimento oriundo do

viver em comum – a Literatura coaduna em projeção ao dialetizar sentimentos interrompidos

e/ou ainda não experienciados. Para o filósofo, a morte se dá quando não há existência por si;

já a duplicação na narrativa adquire o mesmo sentido quando não podemos distinguir os

personagens por tal prisma. A sensação de não poder compartilhar as mesmas vivências, as

angústias parecidas, a troca do sentido da vitória ou derrota caracterizam o desnorteio em se

encontrar na vida de acordo com pressupostos pré-estabelecidos. Ponto de intersecção entre o

romancista e o filósofo, o sentido da vida em ebulição perpassa seus textos. É então que as

situações, as intrigas entre os personagens ganham coloração especificada quanto ao

posicionamento da realidade humana que tanto o professor quanto o ator apresentam. Cada

personagem que se coloca em situação, o faz na medida em que pesa e pondera as

conseqüências e riscos de se assumir como ser humano que eles no presente deixaram de

representar. A responsabilidade bem como o adiamento dela mostra uma faceta dos

personagens que para eles seria melhor destruir (por isso é tão emblemático o fato de

Tertuliano apagar o rosto criado pelo vapor no espelho e aquele revelado pela fotografia que

ele rasgou logo depois de contemplar). A repetição dos homens e sua possível transgressão da

imagem, propõe um distanciamento do nível de consciência a se atingir capaz de fazer o

sujeito se situar no mundo. Ser para o homem duplicado referenda o constante

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questionamento quando se vê atrelado na dialética de si, substituído enquanto presença e

inapreensível pelo que deixou de significar já que não é a imagem virtual que responde por

seu sentido.

No livro de Saramago, junto à crise de identidade o homem tem abalada a unidade do

pensamento e medita em profundidade a cada gesto, palavra que já não têm o mesmo

conteúdo. Toda a cadeia interpretativa que se segue na vida do duplicado é mergulhada na

comparação, sendo que ele se vê destituído de um projeto fundamental em detrimento da

tendência uniformizadora a que se vê exposto. Ser em perspectiva tanto desagrada o homem

duplicado que ele não mais se define ontologicamente, já não o vemos compartilhando seus

gostos e suas maneiras de tratar com os problemas que até então eram vitais, a liberdade para

ele se resume em falta. Chama mais a atenção o fato dele não lutar por preencher isto que

parece um vazio do que a necessidade observada em fazê-lo; é por este caminho que

chegamos à transformação da realidade humana prenhe de criação que o romance aborda. O

desejo pela maneira de ser é mais amplo embora se prefigure numa fuga do comum, o

habitual marca tão profundamente o protagonista que ele se confunde na pessoa que ele não é.

Nisso ele quer ser livre, mas não encontra condições, ao contrário, nadifica-se, entende-se

como a ausência não notada; o ser que é preciso se colocar ao encalço para fazer a diferença.

Somente assim pode fazer sentido a liberdade repetidora da existência. Nossa interpretação

focaliza o duplo na importância do instante no qual as mudanças abruptas de orientação

geradas pela duplicação é o fator contribuinte na tomada de nova posição diante do passado,

tão inerte quanto o ensinado nas aulas de História.

Saramago ao eleger um personagem que coloca em discussão a relação original capaz

de fazer o homem atrelar-se à vida, o faz contrabalançando as categorias de fazer, ter e ser

dando ênfase neste último. Isto por marcar aspectos da existência nos quais o vivente literário

se mostra vulnerável à distinção. Enquanto para Sartre, fazer e ter são indissociados a uma

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consciência amplificada das possibilidades que o homem cria para si e seu contexto, o ser se

enraíza naquilo que o define ou fica em vias de. Na transcendência, no passo além que os

personagens se mostram iminentes devido a duplicação, há o vislumbre da experiência mais

rica de um sentido a ser construído. Por isso ser é importante, ser homem mais ainda. Ter o

corpo, mas não as idéias do outro, desperta no eu a significação ainda não pensada; não se

trata mais do olhar com o qual o outro o descobre, mas do encobrimento causado por este

mesmo olhar.

A duplicação ao inserir o nada na vida dos habitantes da ficção desvela seres perdidos

na individualidade, propensos a uma escolha que os confunde. A parte que eles sentem

ausente é a mesma cuja realidade humana se acerca como alternativa do ser, seja em relação à

qualidade do sentir, seja na necessidade de se despertar para tal. O mesmo podemos dizer das

sensações que original e cópia sentem e não podem desprezar; fica por traduzir o afeto filial,

fica de fora a razão e o respeito ditados pelo Senso Comum, importa ao personagem em

ânsias de saber de si, o conhecimento da existência de um professor chamado Tertuliano

Máximo Afonso que não existe mais. Posto entre o nada e a vontade tênue de ser além da

simbologia, a dialética introduzida na consciência do indivíduo desfaz qualquer plano que

revele continuidade. Ao invés, transcendida a consciência, duplicada tanto quanto o corpo

desaparecido, provoca ainda mais a indecisão definidora do personagem. Perder o sono e

depois em sobressaltos acordar com a idéia de que algo estava à espera; a notícia dada pelo

jornal é apenas índice da contrariedade que ele não se mostra capaz de desfazer. No fato de

que há reflexão, há também o sentimento da obrigatoriedade de contar a verdade às pessoas

interessadas nas conseqüências provocadas pela duplicação. O que marca o personagem

justamente porque não é mais possível esconder que ele não morreu. A perda contrariamente

ao proposto pela ontologia, não forneceu ao homem a paixão suficiente para se encontrar

estando perdido. Sem nenhuma espécie de fundamento nem controle, o homem duplicado não

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sabe mais corresponder ao esperado, apenas sai como quem em breve retorna com outra

história para contar, de sucesso ou não podemos entrever pelo tom de decisão que ele sai ao

encontro da voz desconhecida. Ainda antes desse encontro, Tertuliano Máximo Afonso vivo

apenas para ele, Carolina e Helena, tomado por evasivas, promessas feitas e no adiamento

delas chega a um ponto em que “não podia ir mais longe, continuaria a não saber quem era

este homem, salvo se ele próprio o dissesse.” (SARAMAGO, 2002, p. 312) Como sabemos

que ele não está disposto a ouvir e nem manifestar os planos que não tem, resta com as

palavras, o medo circundante e o tempo cada vez mais escasso para as coisas que ele não tem

muito menos o ser que ele não é.

A igualdade que assusta, a noção de si perdida traz à tona a acepção original e singular

vista como uma necessidade imperiosa de se alcançar. Nisso, a trama romanesca parece se

repetir ao final do enredo, entretanto reforça a parcimônia de ser e viver que o ser humano

atravessa na contemporaneidade. Com e através do nada justificador de outra realidade, a

duplicação dos corpos, de imagens criadas, mostra por sua vez a privação singular da

existência sem compreensão. Sem ser fatalidade sequer tática do absoluto, o fato da

consciência dialetizada com a culpa de trazer outra vida sem sê-la totalmente, coloca o

homem do romance no nível da consciência de si exacerbada com a primazia perdida. O ser

sobreposto ao nada, mais do que um vazio desprovido de significação, faz o homem buscar

seu fundamento ao se colocar sob discussão no presente. Separados, o ser e a consciência de

ser, a causa de si é procurada com base na orientação dos sentidos desvigorados entre o que

aparenta e o que se é. Cada um dos personagens modificados pela duplicação com sua

temporalidade específica prepara o modo peculiar de transcender a consciência.

Salta aos olhos no romance O homem duplicado, a potencialidade que o protagonista é

investido da criação de si e, no entanto, não colocada em prática. Pelo contrário, o

personagem principal é descrito sem força suficiente para buscar a verdadeira causa de si.

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Nisso também vemos relação entre a narrativa e o pressuposto filosófico de Sartre quando

este defende a tese do nada na constituição do caráter necessário para o que se convenciona

viver. A duplicação na vida dos personagens qualifica a procura intermitente pelo ser oculta

na imagem tão próxima da perfeição. Como ela não acontece, ser livre pressupõe o abandono

das tarefas cotidianas, algo que realmente acontece na narrativa para satisfazer as exigências

da nadificação. Contudo, por mais que os rostos, a visão fale de igualdade, o desespero se

instala justamente porque o personagem duplicado no corpo tem a consciência alterada por

não poder ser por si. Ao inverso do que propõe Sartre, este livro de José Saramago não se

preocupa com a ação que o homem vá fazer para se descobrir; se o faz é minimamente dentro

de um objetivo previamente refletido, pensado a fim de responder a questão crucial de o

homem saber mais do que ele mesmo pode ser. Somente neste sentido podemos atrelar os

méritos e deméritos dos personagens no que diz respeito à moral descrita por Sartre. A nódoa

do duplo exercita a angústia enquanto passaporte à liberdade em tomar ciência de si como

única fonte, apesar do nada ou justamente por causa dele para haver mundo, diante da

consciência a se firmar.

Na medida em que O ser e o nada prima pela liberdade sem a qual o homem não pode

intervir em seu mundo, o ser humano transcrito em O homem duplicado traduz a realidade

incompleta. Por se achar como aquele que ainda não é o que o mundo pensa, tem para si a

necessidade de se construir embora não sendo a imagem efetiva por si, é preciso ter, mesmo

que seja a consciência da existência adquirida. Suponhamos que a duplicação funcione na

narrativa como uma espécie de filtragem sem a qual não se pode falar de um projeto

existencial que vincule os personagens entre si. Como Sartre, Saramago também não se

preocupa em fornecer as respostas originadas pelo perambular dos personagens, fica,

entretanto, as questões dentro do processo de entendimento que o ser humano é capaz de

empreender. Fugir ou assumir a responsabilidade de ser pode dizer muito da persona

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narrativa. Entretanto, não são as respostas o mais importante mas as perguntas possíveis de se

elaborar, contanto sirvam de parâmetro tendo em vista personagens que assimilam

inquietações iguais ao ser humano.

Se o mais importante em O ser e o nada é a tomada de consciência pelo homem, O

homem duplicado responde à altura quando compreende que o personagem pode muito bem

mostrar indeterminação, a complexidade em se formar um ser consciente partindo do nada

que o duplo significa. Quando os acontecimentos não têm mais a mesma importância, a

necessidade implantada diz respeito à autonomia que escapa se o ser no mundo “funciona” de

acordo com a consciência do sujeito, sozinho, mas em liberdade. A vida concreta, o homem

concreto, assimilado à ausência bem como à falta, o vazio que o determinismo simboliza pela

duplicação, acarreta ao personagem central maleabilidade. Neste caso, exigida para lidar com

os problemas da contingência, ao mesmo tempo em que o protagonista adquire reflexão mais

aprofundada sobre tudo que lhe cerca. O imbricamento dos personagens no nível da

consciência ser individual generaliza o poder de influência que o homem duplicado deseja

extirpar, por isso sai armado com pistola e carregador munido de uma bala, como se inferisse

o alvo específico a atingir.

Com a Crítica da razão dialética (2002) Sartre pretende colocar em prática a parte

teórica que O ser e o nada encaminhou. No livro temos o resultado que a liberdade alcançada

pode fazer junto da nulidade oferecida pelo nada para que o homem atinja o limiar do ser. A

crítica se faz quando a razão se vê na problemática de se determinar o homem no seu espaço

de saber, da existência por se consolidar; na intenção de responder se haveria ou não uma

razão dialética, o livro se desdobra partindo de uma discussão com o Marxismo e

Existencialismo. É a práxis que o escritor visa do início ao fim do livro a fim de despertar o

sentido de emancipação que o homem deve buscar para se sentir realmente um ser humano. A

maturidade advinda com a compreensão se cerca da mobilidade, outro nome para a

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metamorfose que, segundo Sartre, é preciso que o homem internalize, mais ainda coloque em

prática. As várias abordagens de Marx a Kierkegaard, passando por Hegel a Kant, fazem da

filosofia de Sartre uma iniciação pela liberdade.

A razão dialética se nutre da incompletude das ações cujo método e ciência estão por

se fazer. Assim, ao desconfiar das teorias, a Crítica da razão dialética percorre o trajeto das

relações humanas buscando espaço de representação não só no dado concreto, mas também

no nível de profundidade que a Literatura oferece. De Proust, Valéry a Flaubert, a

subjetividade do sujeito na movimentação da História, serve de contrabalanceamento para o

pensar dialetizado do filósofo francês. Sistematicamente, o homem é abordado como parte de

um círculo de relações no qual tem oportunidade de confrontar idéias e objetivos sem os quais

elas não se tornam reais na mudança do espaço social. Para Sartre, o homem deve ser

reconquistado da idéia de escassez que o marxismo fixou; o sentido maior vem a ser

exatamente a pluralidade dos sentidos uma vez que a contradição passa ser uma constante. A

especificidade do ato humano em poder se superar dá ao homem a chance de se ver em

projeto; o fato do singular e individual vir à tona, significa tão somente que estes fatores

preparam terreno para que a subjetividade se fortaleça em meio ao grupo, no convívio, enfim,

na prática das relações humanas.

Por meio da superação dialética, o homem se realiza tendo em vista a liberdade em ato

por ser esta a “irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural” (SARTRE, 2002, p. 115)

ele propõe e dispõe do projeto de vida de acordo com a vontade nascida de seu íntimo. Dessa

forma é possível falar de realidade humana quando é o ser que se coloca em questão, mais

ainda se esta for buscar na fonte a razão dialética. Pela ação o homem usa de suas

possibilidades para colocar em movimento a História e o conhecimento possível de se atingir.

Dessa maneira, indissociados, razão dialética e práxis humana, as contradições se fazem a fim

de encontrar nossa experiência em relação a empreendimentos de regras e limites criados com

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base no mundo concreto. Também na unidade dialética, ser e negação perfazem um conhecer

no qual o homem se esmera por entrar e não adotar como lei incondicionada. Ao fazer a

dialética, ele referenda a unidade dispersiva ao mesmo tempo em que integra uma força

totalizante vista pelo lado da interioridade com os homens e consigo. Fazer, conhecer e vice-

versa respondem à expectativa de juntos mostrarem ao homem o quanto ele é capaz; a vida

humana em sua expressão de singularidade no nível da consciência adquire temporalidade

concebível quando da participação em conjunto fazendo-se experiência dialética enquanto

experiência crítica.

Os conhecimentos adquiridos na participação de conjuntos humanos se dão por meio

da dialética cuja conseqüência é a reflexão crítica que, quanto mais aprofundada maior é a

reciprocidade – fundamento das relações humanas. O que Sartre chama de “nesse passado não

vivido por nós” (2002, p. 173) fazemos uma ponte com o personagem Tertuliano Máximo

Afonso em desespero por ensinar num presente que não é o dele, o passado que também não

pôde vivenciar. No contexto do romance, enquanto não ocorre a totalização, a integração se

dispersa na inteligibilidade dialética das opiniões e, principalmente da práxis individual que

garante a aplicação de limites que os personagens se engalfinham por riscar. Razão

constituinte como garantia da razão dialética, intensifica o modo da lógica da liberdade que o

pensamento sartreano labora. A crítica ou a experiência dela vincula-se à identidade

fundamental numa vida singular, ligada à história humana cujas contradições de experiências

apontam ao porvir que cada ação realiza em seu momento específico.

Homens e coisas colocados no nível da compreensão são mediados pela prática

daqueles a título de uma experiência a se desenvolver. Fazer e compreender direcionados para

o que a realidade humana possa efetivar num determinado momento de sua História têm

relação direta com a pluralidade das atividades a que o homem é exposto. A práxis do

indivíduo sendo dialética, o mais certo é sua relação com o outro também ser; nisso se

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configura a dispersão do movimento uma vez que tratamos da relação dos homens entre si.

Quando o traço fundamental de tal relação se firma pela negação da interioridade, o detalhe

da existência outra é o que não se vincula a minha. No reconhecimento da liberdade, mudar-se

é o primeiro passo para se ver o outro como um ele que será; mais do que uma realidade

material num mundo material, o indivíduo pode transcender tal aspecto com sua ação. Se a

escassez o definiu durante um bom tempo, a temporalidade testemunha a liberdade adquirida

com a consciência do dilaceramento interior ocupado pela nova posição crítica conquistada. O

ser humano assim entendido desenvolve-se não por ser visto com um ser organizado, mas,

como responsável por uma prática inserido em relações humanas dispostas com base num

projeto sempre em vias de se concretizar devido as contradições encontradas pelo caminho.

A inércia, no entendimento sartreano é o que impede o homem de ser visto como tal;

por isso o momento humano em que o homem objetiva-se ao descobrir uma estrutura interna

e externa para além da necessidade, orienta o quão profundo é o sentido de liberdade

conquistado e porque não, concretizado. No movimento dialético temos a negação da matéria

como estrutura inerte, aí é o suporte da negação da ação ou em outros termos, a negação do

homem pelo homem. Tal pressuposto permite situar nas relações humanas a coletividade

movida por interesses que visam suprimir esta última negação, porque o que interessa,

alcançado o nível de consciência transcendida com a dialética, é modificar a realidade interior

partindo-se da exterioridade. Na ação humana, vistas e atendidas tantas contradições quantas

forem as vontades manifestas, há o pensamento crítico reivindicado na razão dialética

antecipada pela vida humana vista enquanto projeto de uma totalidade em andamento;

ressalvadas as idéias de totalitarismo que diminuem o fator humanidade sempre visado.

Ao se unirem, os homens o fazem numa relação sintética de alteridade pensada de

acordo com a necessidade de mudança sem a qual não há dialética. Mais uma vez a práxis

orientará o movimento dialético instalado o interesse no campo social em que o homem

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transita; por sua vez a relação do homem com a coisa estabelecerá o nível de reificação a que

se vê submetido e com o qual ele pode subverter negando-se a integrar uma totalidade

constituinte embora dialética. Colocadas as relações em termos de interesse, a conseqüência

imediata é antagonística; dominado pela máquina que substitui o operário, mas sem a qual

não há o desenvolvimento planejado, o homem permanece o mesmo sempre em busca de se

situar. Nisso temos que a experiência dialética na qual o homem é definido pelo seu ser-fora-

dele, ocorre mais no âmbito da subjetividade porque prevalece a imagem passiva e invertida

da liberdade.

Ser visto como o outro, se colocar como objeto torna a prática da liberdade bem mais

difícil e a transcendência da consciência dialética quase inalcançável porque o objetivo que a

filosofia de Sartre se propõe, tem sentido somente se a livre prática do indivíduo preparar

terreno e sedimentar anseios do movimento humano de transformação. Se ver, se misturar em

meio aos objetivos de determinada realidade é a chance que o homem tem de se descobrir no

meio das coisas construindo e/ou consolidando sua subjetividade enquanto o une como

organismo prático a seu meio ambiente. Digamos então que o sujeito está maduro o suficiente

para que faça a crítica da razão dialética, vendo-se e entendendo-se em meio aquilo que pensa,

faz e objetiva; o passado em seu empreendimento humano ainda age porque a prática no

modo de conduzir a vida contribui na significação como ser transcendente. Por isso a práxis

só pode desalienar porque se torna movimento transparente da ação. Nela não está apenas o

sujeito que age de acordo com determinado interesse, mas é ele mesmo o objetivo, o

movimento, o grau de profundidade do que faz depois de adequadamente pensado aquilo que

deseja, é o que o faz ser em meio as coisas.

Quanto à projeção do que o homem é em sua própria prática, temos na união de

pessoas com os mesmos objetivos, a afirmação do humanismo seja no trabalho, numa reunião

que vise melhorias ao grupo. É pelo olhar deste, enquanto práxis humana e não simplesmente

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como um coletivo inerte que é possível reivindicar e mesmo afirmar a unidade contraditória

dos membros do grupo. Para que isso aconteça, cada pessoa deve ser respeitada enquanto

alteridade; esta, a unidade das identidades sempre por se alcançar. Isto demonstra que o

pensamento de Sartre está vinculado à ação, somada à vontade mais a união que só acontecem

em conjunto se o homem conquistar a liberdade no modo de pensar e ser. É importante

também observar que isto não se aplica somente à determinada associação com fins

específicos, refere-se inclusive aos ajuntamentos cotidianos que tem na prática a pretensão de

recuperar o homem perdido na imagem do Outro, por meio da organização da práxis.

Entre reciprocidade e alteridade o homem se faz à medida que o Outro interfere em

suas opiniões. O fator desumanizante por sua vez atravessa se a unidade do ajuntamento se dá

por meio da coisa; assim, a realidade deve superar o prático-inerte em que a coisa decide a

relação dos homens. Na coletividade, as relações humanas desvelam a serialidade como

ligação de impotência tendo por base a consciência dialética cujo propósito derradeiro é a

superação de tal serialidade. Ao contrário, se tal não acontece, vigora a inércia do ser-comum

estampado no homem com o selo de algo trabalhado até o estatuto de coisa humana em meio

a outras coisas humanas. Como esta é a realidade a superar na perspectiva de Jean-Paul Sartre,

o despertar da consciência crítica é o mais importante para se falar de sociabilidade

indispensável como primeiro passo do que ele denomina de dialética mais complexa: a do

indivíduo prático e a do grupo não dispensam a práxis que a liberdade prontifica, sendo que o

motor de tudo é a ação individual.

O homem que se faz refazendo-se tem domínio da liberdade alcançada; se algo

permanece é justamente a afirmação da possibilidade de luta travada contra certa ordem que o

esmaga e o diminui individualmente. Na liberdade dialética, o motivo condutor ainda é a

negação da própria passividade bem como de alguma atividade humana que cerceie o

crescimento daqueles que a fazem. Transposto o estágio de ver a realidade como um campo

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de experiência reduzido à característica prático-inerte, a ação humana avança em direção às

modificações que a vida cotidiana exige. Assim especificada, a negação das dialéticas

significa ter o olhar voltado exclusivamente à exterioridade e à pluralidade subsumindo o

homem numa imagem inventada. A construção humana pelo contrário, viabiliza homens

individuais em livres atividades que possam se enxergar numa dialética da mesma forma

constituída.

O fato de o personagem romanesco ser duplicado e ser um professor de História faz

pensar de forma crítica a dialética que vive. Não se trata da necessidade material que o induz

a este comportamento e sim algo mais urgente, mais complexo, algo que o faz querer sair do

plano serial. Marcado pela passividade, descrito como hesitante na narrativa o homem e seu

múltiplo têm a entender: o pânico a dominar no momento em que um terceiro sobrepõe-se

entre eles e a fuga parece ser a saída viável, passam ambos a viver na imitação serial como a

alteridade que renegam. Diferentemente do que Sartre avalia os personagens não se

completam por assumir suas interioridades como algo a cumprir, ao contrário, é todo um

mundo com sua história que lhes toma a percepção e instala a relação dialética que ainda é

preciso situar. Sem dúvida eles sentem a urgência em reorganizar o pensamento, mas não há

concordância quanto a se desfazerem em unidade sintética na qual a liberdade possa ser

absorvida como livre desenvolvimento. Porque o sentimento mais imperioso se forma

partindo-se de uma ausência que incomoda. O vazio dos/nos personagens duplicados tem

relação direta com a ação individual deles em desvelar o mundo como nova realidade; o

problema dos dois estarem no mundo sem subjetividade garantida, reforça a negação da

impossibilidade de ser homem. Instaurada a duplicação, ela leva à dialética no plano da

prática de cada personagem enquanto eles tentam fazê-lo pelo lado da racionalidade que, no

entanto, se mostra insuficiente.

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A dissolução de objetivos imediatos pela aparente adaptação do estado de ser

duplicado sobrevive até se tornar insuportável. Quando então a individualidade grita, o

sentimento de insurgência não abranda nem releva e o homem saindo da inércia age de acordo

com o que ele mesmo pensa sem se importar com as conseqüências disto. É, em termos

sartreanos, o estágio do descondicionamento prático. Se algo permanece é a necessidade da

mudança pela qual o original e a cópia travam luta. Não nos cabe aquilatar o nível de

consciência de cada um, mas no duplicado é possível observar o alcance de metas (conhecer o

outro, saber do nome; encontrá-lo) embora estas sejam suplantadas pela individualidade

ampliada e problematizada segundo um interior multiplicado. Nesse ínterim, a desorganização

do pensamento é que leva à permanência do indivíduo na dialética, por isso a prática

individual fica rarefeita em detrimento do agir reflexivo.

O caráter duplo de que o protagonista se vê investido forma ou mesmo deforma o

sistema de valores cujo domínio vê como indispensável conseguir. A crítica da razão dialética

se instala e produz resultados na medida em que, duplicado, a exterioridade já não responde

às dúvidas e anseios dissolvidos pela ação pensamentada do homem ao se conhecer. Na

superação individual há o diálogo estendido, distribuído de acordo com as várias direções em

se tratando de um indivíduo comum, como é o caso do romance O homem duplicado.

Conduzir expectativas neste contexto é traçar as condições da vida comum perdida para a

presença de alguém que se julga com brilho próprio.

A habilidade junto às contradições é uma qualidade a se apontar no homem que perdeu

sua individualidade; o que podemos chamar de ação dialética é simultaneamente atividade e

processo a serem inventados em pormenores. Na multiplicidade, ao fugir da idéia de

totalização o personagem da narrativa imitando a vida, opera a práxis como uma dialética que

ele aprende a manejar. Foi por isso que Tertuliano venceu os argumentos do Senso Comum,

superou a presença misteriosa e foi convencido pela mãe a assumir o amor por Maria da Paz.

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A tensão contraditória que seguimos ao longo do romance português, mostra a dispersão nos

modos de ser a que se vêem submetidos os personagens consignados com a duplicação. As

modificações das ações tanto do professor quanto do ator estabelecem a subjetividade

orgânica a defender, seja na amostragem em existir, agir ou mesmo compreender embalando o

sujeito em plena mutação. O professor que se interessa por filmes e o ator que se pergunta

como é ensinar História sintetizam a oposição individual ao comum e a identidade entre eles.

Desde o início desta argumentação vínhamos afirmando da liberdade a conquistar que

a Crítica da razão dialética defende como tese principal. Nesta linha de raciocínio situamos o

romance O homem duplicado que não deixa de ser também uma luta por liberdade nos modos

de ser e agir, com o diferencial de que quando se alcança tal objetivo, o personagem enquanto

homem pós-moderno, não dá mostras de saber o que fazer com ela. Tangenciado pela tensão

serial, o homem duplicado põe em movimento a transformação de que julgava dispensável,

habituado com a vida rotineira. Vale lembrar que o livro gira em torno da tensão e não da

resolução. É fato a dispersão das ações de ensinar; o marasmo de estar em casa e não fazer

nada; planejar o fim do relacionamento com a namorada e não fazê-lo, incorre disso a

duplicação. Por sua vez esta demonstra a fragilidade moral do personagem quando obedece ao

outro em suas disposições, por ser o Outro em nome daquilo que ele não se desvencilhou

ainda: a práxis comum. Para ser ele mesmo, o duplicado precisa de um passo a mais; o

diferencial é que a narrativa considera a liberdade dialética sem fins imediatos. A

possibilidade permanente da mudança é outra atitude a se considerar pelo estatuto

ambivalente da personalidade dos personagens atingidos com a duplicação. Acanhado com a

liberdade de o ator viver muitas vidas e ele sentir a idiossincrasia em si, o duplicado sem

retórica sofre a práxis comum de António Claro quando encarna Daniel Santa-Clara,

superando o ser-comum, ou melhor, transmitindo a Tertuliano tal sensação.

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A prosa de Saramago trabalha com mestria o fato de o protagonista reclamar sua

legitimidade como pessoa, mas de uma forma hesitante, duvidosa em alcançar êxito.

Parecendo mais obedecer ao que lhe acontece, o duplicado na fraqueza se vê transformado na

imagem fugidia que tenta apreender. As escaramuças desde Quem Porfia Mata a Caça

protagonizadas pelo homem sem uma prática que seja fundamento da verdade, o colocam na

dialética enquanto dissolução permanente do que pensa, principalmente do que é, absorto no

nada engendrado pela duplicação. Se o professor dispensa o projeto que sempre defendeu,

embora tenha dado corpo à idéia de ensinar a História de forma invertida, não pode fazer o

mesmo com a vida que leva aos trinta e oito anos – período do acontecimento vital de sua

vida. Neste sentido, a dialética não é mais por ocupar um lugar na existência, aparentemente

solucionada com a morte do homem que desencadeou todo o processo tenso de ser duplo e ser

nada a um só tempo. A prática requisitada pela dialética passa a ser o desenvolvimento

regulado em não poder ter a experiência de si mesmo.

Jean-Paul Sartre com a Crítica da razão dialética discorre acerca da necessidade de

haver luta em todos os propósitos a que o homem se lança. Ressalvadas as devidas

distanciações e objetivos, O homem duplicado se investe de tal espírito quando o duplicado

em plena dialética de não saber o que fazer de si, morto aos olhos do mundo, se vê ameaçado

de perder inclusive a consciência da vacuidade existencial. Ao nos aproximarmos desse

homem transfigurado, vemos que se trata de um homem singular: pretende se realizar em

humanidade quando visa transformar o outro em objeto não humano.

No intuito de complementar nossa argumentação acerca da representação do homem

na Literatura atual, passamos agora ao estudo de Minima moralia (1993) de Theodor Adorno

(1903-1969). A dialética de si que observamos em Sartre nos conduz a perceber o

exacerbamento da consciência do indivíduo que, longe da moderação como virtude, está na

atomização não só de suas relações pessoais, mas inclusive nele mesmo. A questão recebe

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outro olhar com Adorno. Nesse livro, concebido com base nas experiências da segunda guerra

mundial, os assuntos contidos trazem análises a respeito da alienação a que o homem se vê

submetido num mundo recheado da indústria cultural e racionalidade tecnológica. As

deformações de caráter social e cultural fazem eco à existência moderna denunciada por

Adorno, cuja tarefa assumida é de desvendar as muitas máscaras da falsa consciência. A força

libertadora que o autor vê no uso de aforismos como recurso para dar forma ao seu

pensamento, traz junto de si um âmbito individual para o qual conclama as diferenças.

Justamente o ir além das aparências é motivo condutor de quem se arrisca na avaliação do

tempo presente. Embora o contexto do livro seja o da experiência da segunda guerra mundial

e de ser publicado em 1951, o rigor das avaliações, o sentido crítico da concepção de Adorno

nos auxiliará de maneira incondicional na interpretação do romance O homem duplicado.

Como podemos falar de consciência de si, de o sujeito se encontrar numa

efervescência identificada pelo nome de dialética se ele é engolido por uma atmosfera que não

o deixa pensar nele mesmo? Como garantir o mínimo de moralidade nas parcas reflexões que

ele ainda é capaz de fazer se sua vida está danificada? Moralidade de quem, por quem, para

quem atingir? Tais dúvidas que encaminhamos ao personagem principal do citado romance,

dizem respeito à experiência individual do sujeito condenado pela história que ensina; no seu

entender ele ainda está pleno desta condição, entretanto, em si já não apresenta significado.

Do pensamento adorniano, retiramos a valorização deste algo desaparecido como principal

porta de entrada para nossa interpretação. A anunciada decadência do indivíduo, enfraquecido

e feito oco pela manipulação da sociedade se torna em Minima moralia o requisito para se

falar da experiência ainda assim subjetiva proporcionalmente encontrada em O homem

duplicado.

O individualismo que corrobora para a liquidação do indivíduo é algo a ser combatido

juntamente com a ingenuidade, a descontração, enfim, “de todo descuidar-se que envolva

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condescendência em relação à prepotência do que existe.” (ADORNO, 1993, p. 19)

Prepotência que lemos como a visão posta, o não questionamento, a aceitação tácita dos

modos de ser e viver que impedem a conscientização do sujeito sobre seu valor. A

necessidade de estar atento, de saber fazer distinção entre a ilusão e o sofrimento é outra

vertente a se lembrar na subjetividade em destaque. A existência privada é cada vez mais

minada por uma semelhança imposta nos modos de comportamento, sendo subtraída na

realização universal. Isto, no entanto, não invalida a necessidade de reflexão independente.

O sentimento de sufoco, de retraimento que apontamos no perfil do protagonista da

narrativa em estudo indica a pressão da conformidade, além de ver baixar seu grau de

exigência em relação a si próprio, de acordo com Adorno. O que coloca o personagem em

dialética de si paralelo à urgência da criação e mesmo vazar a consciência por se ver um

ocupante do mundo. A perda da disciplina do ensino é inteiramente residual no arvorar

daquilo que vê o ator representar nos filmes. Quando não há proteção, auxílio ou conselho a

seguir, soçobra a manifestação da desesperada concorrência entre si muito maior que a

universal. A lacuna no indivíduo se esgarça pelas equivalências sentidas, por exemplo, num

comportamento negado em si (o da prepotência), mas visível no outro seu igual. Acarreta seja

na solicitação pelo diferente, seja na negação da igualdade abafada com a realidade

contrastante. A progressão da desumanidade que gera o atrofiamento do sujeito como explana

Adorno é a medida da supressão do tato configurado como a convivência humana impossível

dos tempos atuais.

A objetividade com que a humanidade passa a ser vista em se tratando do indivíduo

enquanto tal fez este perder a autonomia a fim de se realizar sendo representante do gênero

humano. Minima moralia se ocupa em trabalhar tal estado das coisas frente ao homem cuja

vida já não se pode dizer que lhe pertença; a tecnificação ao precisar os gestos, fazendo-os

rudes faz o mesmo aos homens. Desta forma, podemos falar no deperecimento da experiência,

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uma vez que a questão da funcionalidade é a diretriz do instante consumido e, logo

substituído por outro de igual ou menor importância. A praticidade como forma de condução

da vida apresentada de maneira a fazer crer no favorecimento das relações pessoais, faz,

contudo, atrofiar o que é humano. Há a perda da sensibilidade em detrimento das finalidades

imediatas como, por exemplo, no fechamento de um contrato típico de negócios no qual

perguntas triviais a respeito da família são mero pretexto para o bom funcionamento da

relação comercial. Isto demonstra o lado sombrio da “objetividade nas relações humanas, que

acaba com toda a ornamentação ideológica entre os homens, tornou-se ela própria uma

ideologia para tratar os homens como coisas.” (ADORNO, 1993, p. 35) Quanto mais prático,

mas fácil de embotar sentimentos, sensações e apagar as emoções envolvidas em cada ação

humana.

A frieza no trato com o outro, a palavra amistosa desaparecida, a consideração não

mais praticada formam o ambiente típico para a propagação da força da lógica, liame da

coerência ao fazer de si uma coisa e se deixar congelar neste processo. Por isso não há o à

vontade para a consciência esclarecida. Há ao invés disso, o chão preparado para que haja não

o silenciamento dos interesses materiais, muito menos o nivelamento a estes, porém, a

maturidade para integrá-los nas relações interpessoais a fim de superá-los. A raridade de tal

situação desmerece o valor das pessoas; cada uma com sua experiência de vida passa a ser

considerada o exótico a ser esquecido. A crítica de Adorno se situa justamente neste ponto

que para ele deve ser retrucado: é a experiência espiritual, intransferível que conta. Sendo

assim, o definhamento da experiência produz o paradoxo da consciência já que o vazio entre

homens tão próximos é o responsável pela visagem da cópia calcificada e reificada dos

acontecimentos. A substituição observada provoca o mesmo em relação à repercussão destes

no comportamento humano, todos os atores de um mesmo ato, são por conseqüência sujeitos

sem iniciativa perante a ausência de subjetividade.

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“A doença própria de nossa época consiste precisamente no que é normal.”

(ADORNO, 1993, p. 50). Frase emblemática de Theodor Adorno resume bem seu

pensamento acerca de como o homem se deixa envolver pela alegria do conjunto, do fracasso

do grupo, da adaptação bem-sucedida e num crescendo, no desembaraçado sentido prático. O

que é preciso diagnosticar, a doença a ser combatida também é preciso ser inventado com

cada percepção levantada. Fugir do normal é aquiescer na contestação, no não contentamento

e, sobretudo, na base dos conflitos tanto externos quanto internos fomentando aquilo que

poderia ser a cura. Normalidade de parelha com a objetividade cerca, suprime o homem na

investigação que poderia empreender. A sociedade ao assumir a doença dos indivíduos trata a

desgraça subjetiva enterrada na medida em que a faz desgraça objetiva visível. É preciso

ressaltar nesta observação o contexto referente ao regime fascista. Entretanto, se colocarmos

em termos de subjetividade a ser resgatada, da consciência recuperada afim com a dialética de

si, possível, recomendada, a saúde pode ser apenas o outro lado do esquema da mesma

desgraça. Tudo isso se a experiência for considerada como o exótico a ser extirpado.

Ao desconhecer o que se passa entre os próximos, as pessoas se movem pela idéia do

lucro, da imediatidade das relações cada vez mais distantes marcadas às vezes com o peso da

hostilidade. O fato é da mesma maneira provocador da anulação de si dentro da dominação

dos sentimentos enquanto resultante do domínio maior de um homem por outro, de um ideal

por algo desprovido disso. Privadas pela cultura organizada, as pessoas em última instância se

vêem desprovidas inclusive de uma experiência de si mesmas. Na perspectiva de Adorno, o

inverso é a principal razão de ser do homem, qual seja, o pensamento realmente independente

que priorize o elemento crítico. O grande entrave que o texto aponta é a liberdade perdida da

Filosofia para a Ciência no que tange à especulação, à reflexão; quando isto acontece, a

subjetividade vai pela mesma via de extinção que a Filosofia. A Literatura entra pela porta

dianteira na discussão por trabalhar com a imagem do mundo muitas vezes acabando com a

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falsidade e a prevenção. Então, faz sentido que o espírito de dialética seja atribuído ao

personagem o homem duplicado cujo contraste observado na sua pessoa é o da razão

dominante, da retirada do entorpecimento que o consenso significa. Processo de busca e

apreensão, a dissolução do concreto no interior do próprio indivíduo dá ocasião para

pensarmos no quê a exclusividade perde campo quando falamos na substituição da

experiência.

Por outro lado, o conjunto de experiências que o duplicado imaginava possuir se faz

lacunas como aquelas observadas por Theodor Adorno com as quais podemos medir o

distanciamento ou a continuidade do conhecido. Homem a meio do caminho com sua

subjetividade, o duplicado não obstante, opta pelo encurtamento sem explicitar o continuísmo

que nega mesmo sem alarde. A vida consciente do sujeito do conhecimento ocorre em meio à

insuficiência e, só ela produz a existência não regulamentada. Esta, a propósito do

pensamento passível de ser despertado pela crítica, juízos revisitados, enfim, pela dialética no

intuito de ser identificada se transforma em ensinamento. Não sem razão o protagonista do

romance é um professor.

A imagem do espelho, o reflexo de modos de ser em O homem duplicado mostra uma

insistência com aquilo que Adorno chama de dialética por esta se mover pelos extremos com

o propósito de levar à inversão. Neste ponto acreditamos que Saramago diverge do pensador

na medida em que os personagens não querem ser o outro, apesar da indignação da imagem

roubada. O que é salientado o tempo todo é a vontade deles no direito à particularidade e, por

extensão, o dilema de não poder escolher. Contudo, se funde nos dois textos a denúncia da

desumanização, do outro ser notado apenas enquanto objeto, refletido, subsumido para deleite

de uma das partes na contenda de viver. Talhado para não servir de exemplo, o duplicado

dentro de uma sociedade repressiva como nos ensina Adorno, se nivela ao conceito de homem

embora isto não passe de paródia da imagem e semelhança. Tanto isto é cabível que os

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adjetivos original e cópia são usados indiscriminadamente ao longo do romance na nossa

compreensão, com a finalidade de desmascarar a idéia de quem se parece com quem e mesmo

para confundir a semelhança. Chegamos a tal constatação ao observarmos o comportamento

arredio do personagem protagonista. Ele parece fugir o tempo todo, se esquivando de ser

objeto de contemplação, enfim, de se subtrair aos olhares alheios quando na verdade é o seu

que mais o preocupa. O inominável de dentro dele o acusando de ser ninguém, colocando-o o

tempo todo em discussão com a imagem descoberta.

A experiência da duplicação vivida por seus protagonistas Tertuliano e António

mostra uma humanidade prostrada ante a impotência de assimilar à experiência aquilo que

escarnece da totalidade. Sem conclamar o impasse, tentam embora na maioria das vezes em

pensamento, deglutir o que lhes acontece; cada um a seu modo vive em função de não se

entrelaçarem. É bom frisarmos que nisto eles respondem positivamente ao que Adorno propõe

como o homem representante de um mínimo de moral para consigo: o requisitar do diferente;

o discernimento necessário a se fazer entre os outros e em si. As emoções que sobrepujam no

fato da duplicação existir contrastam com a objetividade que os personagens tratam a situação

aos olhos do mundo. O não se adaptar, o impasse, resolução questionável ao invés de

exemplificar o mau uso da objetividade, mostra por sua vez o sujeito na iminência de ser

abolido de sua condição. Ainda prepondera a vida do pensamento na narrativa já que não

houve a adoção de nenhuma medida exemplar, nenhuma conduta em destaque e,

principalmente não houve decisão sobre qual vida erigir.

A vida do pensamento começa para os personagens à medida que se distanciam da

vida prática, algo que se encontra desenvolvido na filosofia de Adorno. Minima moralia

exercita a noção de subjetividade na era da sua liquidação; ao negar a idéia do absoluto para

tratar com o elemento humano, também há condenação quanto à relatividade. O cuidado deve

ser com o não apagar os vestígios humanos na transformação observada; por outro tanto,

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lançar mão da possibilidade de ir além de si mesmo por meio do questionamento, da oposição

fecunda bem como da assimilação compreensiva daquilo que nos contradiz, ensina Adorno. O

livro apresenta substratos nos quais o escritor vê o papel do intelectual que é posto no mundo

separado da práxis material. Qualquer medida cautelar, demonstração de ódio, avanço ou

recuo de liberdade serão sempre coisas consideradas erradas porque partem do intelectual cuja

aura é a de distanciamento com a praticidade intrincada das relações humanas.

Com o ceticismo esperado para a época que o livro foi escrito, Theodor Adorno

avança em compreensão e lança dúvidas sobre o que ele chama de lutadores, homens que

vivem em permanente luta consigo mesmos. Estes intelectuais para o filósofo adotam

rapidamente determinada posição teórica sem observar conseqüências, fazendo-se absurdo se

filiar a um ideal composto por outros. A sobra diz respeito ao indivíduo que perdura em meio

às unidades humanas padronizadas, aquele que não se deixa convencer facilmente por

critérios de susceptibilidade, da facilidade dos modos de fazer a vida acontecer. Desconfiado

das algaravias, o indivíduo no plano desenhado pelo filósofo, é o que não vende sua

individualidade nem adota espontaneamente o veredicto que outros pronunciam a seu

respeito. Guerras, convenções, políticas extremistas, estatísticas, são fatos que a sociedade

tenta impor pelo espírito objetivo quando na verdade só são possíveis graças ao emudecer da

humanidade sobre aquilo que lhe aflige.

O horror que somos capazes de demonstrar tendo em vista o processo de absorção,

passa a ser a medida a se determinar do quanto ainda podemos falar da instância do Eu. O que

é auto-renúncia e o que é pura alienação são perguntas cuja resposta busca eco no

discernimento do indivíduo em meio à quantidade dentro da multidão. A compreensibilidade

tão cara ao espírito do livro empenhado numa moralidade satisfatória adentra na distinção

entre a intenção e a cópia. A Literatura lhe serve de parâmetro porque a ambigüidade notada

em seus textos designa o ponto de indiferença entre a razão objetiva e a comunicação, fator

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este de primordial importância para se perceber os significados incrustados. Neste aspecto, O

homem duplicado identifica a inexatidão do trato da vida com a objetividade da imagem nada

intencional feito cópia de dramas não vividos. O ator, o original perseguido pela cópia que de

si tem muito pouco, exercita sua arte sem destaque nem reconhecimento. Podemos traçar um

paralelo fazendo dele a problemática da subjetividade enquanto incorre no conformismo a

erradicar. Para Adorno tal ação é seguida de perto da crença na extinção da arte porque ela

seria a responsável pela crescente impossibilidade de representação do que é histórico. Como

vimos pelos títulos dos filmes em que ele atua (Quem porfia mata a caça, Um homem como

qualquer outro, O código maldito, A deusa do palco, O passageiro sem bilhete, A morte ataca

de madrugada, O alarme tocou duas vezes, Telefona-me outro dia, A vida alegre, Paralelo do

horror) sempre figurando em segundo plano, age na vida concreta de forma contrária e se

impõe como o portador da subjetividade negada ao duplicado. Ponto nevrálgico de discussão

da arte, não só quando a duplicação faz seus estragos e deixa o ator sem atuar, o professor

sem ensinar, mas também porque os dois juntos formam a representação do drama maior da

subjetividade. Adorno discute as motivações humanas e incita o leitor a ver nesta suposta

impossibilidade da arte de exercer seu papel, a liberdade perdida do sujeito. Se não se pode ou

não se alcança a representação do fascismo, por exemplo, é porque o sujeito já não possui a

liberdade de denunciar seus horrores.

Recorrendo a Epicuro, Adorno explana o lugar do indivíduo em tempos de

egocentrismos exacerbados, “a situação na qual o indivíduo desaparece é ao mesmo tempo de

um individualismo desenfreado, onde ‘tudo é possível’” (ADORNO, 1993, p. 131). Em

multidão, mas interiormente sozinho e gostando disso, o homem pinçado pela reflexão vive as

contradições de perder o elemento mediador, se empobrece, embrutece e regride ao estado de

mero objeto social. Caso os traços de humanidade ainda possíveis de se encontrar neste

contexto se ligam ao indivíduo isolado, eles também nos chamam a encerrar a fatalidade que

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individualiza os homens somente para depois destruí-los por completo na solidão. O que

fazer? Como fazer? Não encontramos em Minima moralia. Encontramos isto sim, que está no

pensamento dialético a fonte da tentativa em quebrar os elos da corrente cujo nome é o caráter

coercitivo da lógica, usando para isso as próprias armas dela. Por isso há pertinência em

vermos no homem duplicado a face espelhada em humanidade solícita por se expressar.

Tomado pelo ângulo do absoluto, o indivíduo não passa de uma reflexão das relações

de propriedade, como o ser humano não se limita a isso, o que vem a seguir com esta

consciência é a inserção ou não num sistema de mimetismo. Neste, para ser humano faz-se

necessário imitar outros seres humanos e assim sucessivamente até a anulação das

características pessoais. Quem não adere ao princípio da herança mimética é excluído e

mesmo ignorado. No poder de troca entre o dinheiro e a força de trabalho, o homem sai

perdendo quando as forças produtivas não são seu substrato último, representam por

decorrência sua forma histórica; esta ligada à produção de mercadorias fica cada vez mais

raro não se sentir uma delas. Para Adorno a lógica dialética também não se faz sem a extração

dos processos de industriosidade, planejamento, sujeição. A vontade em apenas ser sem

compromisso com mais nada fica cada vez mais atrelada à utopia, a conceitos abstratos, o que

o filósofo observa com certa amargura.

Ao tratar da maturidade de uma pessoa, Adorno usa o exemplo de uma planta na

estufa. Na antecipação, vive cercada de muito esforço e aprende inclusive a sofrer. Dessa

maneira, traça uma lei individual cujo enigma se dá na troca de equivalentes. Dentre eles,

aprender a encontrar a calmaria em meio ao tumulto; andar quando todos correm; olhar ao

lado quando muitos seguem em frente. Neste ritmo da existência, a pessoa antecipa

subjetivamente o que é considerado a loucura objetiva juntamente com a impotência do

indivíduo que ademais, se transforma uma na outra. Então, temos a superfície ou a

profundidade com que a existência acontece, dadas às respectivas notas do tempo. Enquanto

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durar a angústia de sua passagem sem nada poder fazer, resta ao indivíduo a quota de vida

determinada pela sociedade. Não pode mais viver a vida de si para si, faz-se, por isso, um

número a mais numa estatística sombria cujo tempo é objeto de assassínio.

A liberdade perdida mostra o quanto há de injustiça, do poder de reivindicação dos

direitos perdidos para o horror da privação, da autonomia suprimida, no momento em que o

homem percebe a inverdade de toda realização meramente individual. Esta estranha sensação

de não poder se destacar entre os muitos, de ainda ser capaz de esboçar reação com uma

pergunta, dá sentido à epígrafe que Adorno vai buscar em Baudelaire para a terceira parte de

Minima moralia: “Avalanche, queres me levar em tua queda?” Se houver indignação, ainda

há esperança para o ser humano, assim pensamos por causa da experiência resguardada, das

lembranças individuais que o sujeito confisca como propriedade. Daí termos a convicção de

que o homem duplicado age de maneira idêntica ao pronunciar a pergunta principal de sua

vida: Quem sou eu? Embora ele não tenha a resposta, o fato de se indignar na pesquisa dela já

demonstra a afinidade que buscamos. Em termos filosóficos isto não funciona como

envoltório sem a aura de sentimentalidade que poderia transmitir, só faz sentido invocá-lo

quando o presente pode e deve ser mudado com a experiência que o passado formou. Já no

romance, os personagens desprovidos de um passado e sem futuro à vista com o presente

disjunto, favorece ao desconhecido ser mudado; principalmente para o professor de História

ancorado nela toda vez que o presente lhe deixa na prevenção.

Na expectativa de se pensar o Eu como o faz Adorno, o sentimento é visto como algo

a resgatar ao mesmo tempo em que pode ser visto com garbo e sofrimento. Ainda é a via de

configuração da alma humana, daquele que traz na expressão dos olhos o desejo desesperado

de se salvar por meio da autodeterminação da subjetividade. Mais uma razão para

interpretarmos em O homem duplicado a mesma vontade de resgate da emoção, de encontrar

sabedoria nela conforme avalia o narrador do livro. Portanto, longe de ser a nostalgia de

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salvação é um recurso do qual os bem situados só vêem porque aprenderam com a cultura a se

envergonhar da alma e por isso a ridicularizam em quem se ressente dela. Na nossa

compreensão, a subjetividade discutida no texto do filósofo apresenta a severidade do

julgamento feito pela sociedade burguesa sobre como o trabalho, a beleza, a constância do

sentimento podem interferir naquela de modo parcimonioso. O desamparo, a desproporção

com que situamos cada um destes aspectos no sujeito embevecido da ordem ditada pela

sociedade, apronta embora muitas vezes sem ter a intenção, a insubordinação contra a mesma

ordem. Ao desmistificar o homem como aquele que ganha dinheiro e por isso é homem, o

texto filosófico se situa na dialética simultânea das épocas cuja liberação é requerida partindo

do que seja o gênero para o ser humano, desenvolvendo-o até chegar à emancipação da

sociedade.

O esforço de existir empreendido no ritmo do movimento nem sempre confere à

existência um significado, porquanto sem saber o que fazer com ela, os viventes querem

torná-la imperceptível. É por isso que surge a idéia do indivíduo inserido no todo sem chance

de desvinculação, o tédio de existir sem ter mais para quê; a renúncia a que todos se vêem

obrigados a fazer principalmente em se tratando de escolhas, marcam o inebriamento daquele

que não tem lugar e se conforma na realização deste conceito. A opinião pública com sua

objetividade causticante permite tão somente à vítima entender a violência da entidade

anônima diante da qual deve se curvar. O sim sempre repetido é a senha para ser aceito neste

mundo embotado pela clareza disfarçada das relações, da moralidade bem situada dos seus

defensores o que não os exime de serem ao final os destruidores destas mesmas boas

intenções.

A consciência que de espontânea passa a reduzida se o objeto da experiência for tão

grande que diminua o indivíduo, é responsável por um domínio da moral, algo também de

certa forma incomensurável. Entendemos com isso que qualquer ação praticada pelo sujeito

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não pode ser julgada conforme expectativas criadas e sim como algo resultante de um

conceito destituído de mensuração. Ora, não é outra a sensação que invade o homem

duplicado. Não poder se medir nem intervir porque a duplicação não foi catalogada nos

compêndios da compreensão judiciosa da sociedade, faz dele um pária cuja moral é mais que

discutível. É a experiência que conta e se ela sobrepuja o sujeito em suas vontades este se

torna vítima tanto quanto não pode fazer diferente ao que foi levado a praticar. Nessa roda de

objetividade crescente concomitante ao apagamento da subjetividade, encontramos no

pensamento de Adorno a inervação moral no âmbito da consciência de mesmo porte a fim de

fazer pensar na assimilação redundante, na revolta plantada de acordo com a maturidade do

leitor. Somente ao aprender conviver com a moralidade sem falsos moralismos é que o sujeito

pode resgatar o Eu perdido para noções pouco cristalizadas, por isso mais condizentes com a

humanidade a ser resgatada.

Nem vítima nem adepto, o que o filósofo deixa bastante especificado é que a

consciência moral não é um jogo em que se ganha hoje e perde amanhã; a indiferença do que

ele chama de culpa moral aponta para a impotência em tomar decisões próprias crescente com

a dimensão do objeto. Disto extraímos a intolerância do seu texto com a visualização do

homem por outro como algo a ser desbaratado e não compreendido na dimensão humana que

lhe é peculiar. Bem ao contrário, não é a suposta facilidade das relações que deve ser vista ou

resolvida de maneira paradigmática. É por outro lado, observar pelas reações do ser humano o

quanto há ali de conformidade com a realidade social que diretamente o atinge na vida

privada. Reagir de forma inesperada, brutal quando escapa à supervisão do mundo é sentir-se

ameaçado na esfera que foi ampliada de seu próprio Eu. Exteriormente é o mesmo sujeito

gentil, atencioso, mas, na intimidade a hostilidade se faz sentir na medida em que submete

aquela à exigência crítica porque é ela afinal que investe o outro da condição de sujeito.

Negada esta, não deixa de fazer o mesmo consigo ao acolher na consciência a estranheza que

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se vê amenizada. Acontece o contrário com Tertuliano Máximo Afonso que acolhe em sua

consciência a estranheza nem um pouco amenizada, enquanto a conformidade externa depõe

contra todos os sentimentos nobres fazendo-o demonstrar uma moralidade sofrível.

Pelo desenvolvimento da argumentação de Minima moralia, a atenção a ser

dispensada nas menores coisas referentes ao sujeito informa de sua consciência limitada ou

não pela subjetividade reivindicante. Caso haja uma má mediação da sociedade, a reflexão só

pode abarcar a imediatidade. Fugir disso significa nos menores gestos a maior moralidade de

si para consigo, outro nome para a coerência do ser humano particular que ao invés de rejeitar

a diferença, faz por merecê-la. Sem ser performática, agindo dessa maneira a humanidade

cresce na acolhida, no sorriso, na presteza e deixa de tratar o outro apenas como algo a mais

no conglomerado das coisas possuídas.

O homem que buscamos compreender e Adorno discorre como uma questão prioritária

incita variadas vezes não só o pensamento à revolta, mas enxergar a opressão por trás de cada

boa intenção para com a maioria. Desconfiar da hierarquia é um princípio de base para quem

pretende despertar consciências, trazendo em si as convergências desfeitas, as opiniões pouco

abalizadas, terra fértil para a rebeldia professada. Também fica bastante expresso que o

filósofo fala contra o espírito de conformidade, de não se deixar levar pelos fatos como coisas

naturais; como são criados, portanto culturais, muda o sentido de acordo com quem os

manipula. Não ser manipulado é característica do homem cujo perfil Adorno se empenha em

traçar.

Aos poucos, à medida que a consciência se transforma, podemos falar de

exacerbamento se a dialética pode ser encontrada no sujeito tão experiente quanto se permita.

Com a liberdade sempre em foco o atributo maior do pensamento aliado ao discurso atua

contra o comprometimento com o positivo, o bem explicado, fazendo-se consciência inquieta.

A discussão concernente à repressão aliada à moral faz ver o quanto isto contribuiu para o

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afastamento do indivíduo da sociedade e vice-versa por causa dos interesses em voga. Quanto

mais o indivíduo é rechaçado de seu interior mais vê na composição da riqueza o ingresso à

vida em sociedade. Do plano econômico a uma visagem da individualidade escassa, a moral

cambiante na organização do mundo planifica injustiças e o modelo de imoralidade vem a ser

o qualificativo dessa moral tão requisitada nas relações entre os homens. Atingida a meta, no

centro das atenções, as pessoas se esforçam para se integrar no ritmo fazendo da subjetividade

algo próximo do impossível em se pensar, abordar de forma a enobrecer o Eu que elas

perderam.

A vida assim considerada transforma-se na ideologia de sua própria ausência como

denuncia Adorno. Pela atenção à vida composta de sentimentos tais como o amor, o homem

pode ser coerente com os paradoxos que observa no mundo trazendo-os para dentro de si.

Com isso não se confirma a fraqueza, todavia, é em mostrar-se fraco que ele pode sair do

círculo vicioso da integração sem emoção, da adaptação voluntária. Negando este estado de

coisas, a desqualificação que poderia desmerecê-lo, ao contrário, o impede de ser visto pela

imagem da igualdade. Não poderíamos deixar de observar o mesmo com relação ao

protagonista cujo designativo não se reduz ao nome com sobrenome ou a profissão. Chamado

de o homem duplicado, internalizando o que seria uma desqualificação ele tem a oportunidade

de tentar ser diferente, de ser afinal humano como ainda não o foi. Na configuração da própria

consciência o sujeito que desaprendeu a se pensar, por sua vez toma o pensamento como a

possibilidade da comprovação de si mesmo. Isto gera a sensação de ser vigiado na capacidade

de pensar, trabalho a que a filosofia no ponto de vista de Adorno, deveria buscar unidade para

a oposição entre sentimento e entendimento a fim de proporcionar a chamada unidade moral.

Porque só a faculdade de julgar mede a firmeza do Eu e, se o mundo está bestificado por não

ver a loucura de sua própria organização, igualmente o sujeito pronto a manifestar

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aquiescência, demonstra deficiência moral e falta de autonomia com a devida quota de

responsabilidade.

À consciência dilapidada resta um laivo de observação. Ao perceber a loucura objetiva

chamada pelo autor de impulso à utopia, o sujeito em plena efervescência dos contrários

dentro de si, expande em conhecimento ao adotar a razão como ferramenta para resistir no

desespero e no excesso. A subjetivação ocorre em dispêndio do que a existência requer. As

pessoas sugadas pela totalidade sem, contudo, poder se assenhorear dela enquanto seres

humanos se digladiam por desconhecerem a linguagem que tal situação demanda. Equivalente

é a vontade de viver: pela dependência da negação da mesma vontade que premida pela

autoconservação anula a vida na subjetividade, conforme ensina Adorno.

O Eu que move o homem o coloca como um todo, como um aparelho a seu serviço.

Desta forma quanto mais anulado, integrado ou reticente o Eu se mostrar mais o homem

emana autonomia. A visão dialética dos modos de ser e viver compõe o desenvolvimento para

que o sujeito se abandone, por exemplo, a um perigo desconhecido, experimente então um

lugar vazio na consciência. Por essa razão temos no personagem professor Tertuliano

Máximo Afonso a consciência aberta para as implicações da duplicação. A emancipação

histórica do ser em si se assegura e se compromete com a ambigüidade que a vida humana

oferece, daí fazermos a observação de que o sujeito está numa dialética de si. Porque não

identificarmos nele o homem duplicado? O perigo ocorre onde a dialética é vista enquanto

recurso e não como entrega despudorada a ser feita. O conhecimento, e não poderia ficar de

fora o maior deles – o conhecimento de si – não só deve ser extraído do que existe, mas se faz

indispensável ver nele a deformação nesta degenerescência a que pretende negar. Minima

moralia trabalha com aquela fagulha a que o pensamento se vê contrafeito, qual seja, o

reconhecimento de que ele transita na sua própria impossibilidade. Receptivo a isto, o homem

compreende-se pela extensão e profundidade com que pode pensar-se, embora entregue ao

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mundo feito de condicionamentos e se querendo incondicionado. A consciência deste limite –

a dialética de si – é o que vai definir pela exacerbação.

Livro seminal na obra de Adorno, junto com Horkheimer (1895-1973), Dialética do

esclarecimento (1985) marca definitivamente o pensamento filosófico acerca de como o

conhecimento pode levar a humanidade não à libertação, mas a uma espécie de barbárie. A

liberdade propiciada pelo processo de racionalização das atividades não apenas se tornou

problemática como muda o sentido da ciência. Com fins escusos, o esclarecimento quando

acusado de autodestruição se vê entre a privação do uso afirmativo da linguagem conceitual

científica e cotidiana, da mesma forma a oposicional. Como os autores criticam, a proibição

do puro pensar arrosta o cerceamento da imaginação teórica, abrindo-se ao desvario político.

Investigar a autodestruição do esclarecimento é o objetivo a que se propõe Dialética do

esclarecimento ciente de que a liberdade na sociedade é indissociada do pensamento

esclarecedor; este só pode ser paralisado pelo temor da verdade. Do mito, extraída a falsa

clareza com que moldurava o conhecimento resta a obscuridade e a clareza com que elabora a

realidade. Pelo progresso social o homem desaparece enquanto indivíduo por servir ao

aparelho embora se perca em seu uso. As muitas informações não significam esclarecimento,

a questão é fazer este tomar consciência de si; a racionalidade e a realidade social partem

juntas do mito enquanto esclarecimento e o esclarecimento revertido à mitologia, arquiteta

dessa forma a dialética.

O progresso do pensamento sempre teve por princípio livrar o homem do medo e

investi-lo na posição de senhor. O fator intrigante como deduz Adorno e Horkheimer é que o

homem totalmente esclarecido se encontra sob a égide da calamidade triunfal. Se a meta

sempre foi desencantar o mundo ao dissolver os mitos, fazendo a reversão entre imaginação e

saber, se, ainda, a superioridade do homem está no saber, porque o esclarecimento extraído

desse processo é marcado pela coerção externa? A natureza que o homem pensava dominar

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oferece resistências porque não se compara ao domínio pensado e longe de se desenvolver

junto da coerção externa, o esclarecimento está além da instrumentalização e da praticidade.

As várias vezes em que a Dialética do esclarecimento insiste que conhecimento é

poder, também vemos até pelos efeitos do nazismo que o esclarecimento é totalitário. Se

ainda podemos ver conhecimento nos mitos, a racionalidade adotada se embasa no ser e

acontecer captados ambos pela unidade. O número é o grande condutor do pensamento que se

quer válido; a busca pela distinção é o mais importante para poder enfim discriminar entre a

própria existência e a realidade. O mito responsável por dizer a verdade acerca das coisas e

dos homens, relatar, denominar, expor, fixar, explicar acaba virando doutrina para a

representação dos acontecimentos. O esclarecimento como meta depois de destruídas as

distinções entre a realidade e o mundo é submetido ao domínio dos homens. Então o homem

passa a identificar em todas as relações a existência do poder, despertado da alienação uma

vez explicado com as restrições. A dialética se constrói ao poucos quando, pelo aumento do

poder há alienação sobre o que exerce poder; na essência das coisas, perdura a dominação. Se

no passado esta se dava sobre a natureza agora é sobre os outros homens no intuito da

acumulação, no ter para poder submeter e não ser submetido.

O esclarecimento já desenvolvido desde o mito, pelo rigor da lógica formal ao julgá-lo

cai na mesma órbita. Isto porque ao tentar explicar os acontecimentos pela repetição

numérica, recai no princípio da imanência que o esclarecimento defende contra a imaginação

mítica. Aqui é necessário frisarmos que a tomada de consciência do personagem o homem

duplicado, passa pelo processo de inserção num número que ele recusa integrar. À dominação

que a existência do original significa, tem como conseqüência ao duplicado um fechamento,

espécie de restrição aos modos de ser encarados até então como únicos. Ao procurar o

conhecimento em si visto na forma do outro que não é, percebe que aquele está além do

número par que ambos passam a representar à humanidade desconhecedora do drama. Por

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este prisma, o romance contraria a idéia inicial de como se chegar ao conhecimento exposta

na Dialética do esclarecimento. Pois, neste livro o que é digno de conhecimento pode ser

mensurado, o incomensurável é eliminado numa época em que os homens são forçados à real

conformidade. Importa o todo, o indivíduo é dissolvido na unidade da coletividade. A

abstração neste sentido é instrumento do esclarecimento no processo de liquidação do

indivíduo. Impulsionado pela lógica dos números o conceito em qualquer setor da vida do

homem, exerce a dominação típica na medida em que o eu sabedor da ordem e subordinação

ambiciona encontrar a verdade no pensamento ordenador. Lembramos que o professor de

Matemática ao sugerir ao professor de História que assistisse o filme Quem Porfia Mata a

Caça, tem para si que a vida do colega precisa de ordem, de solução para o marasmo

instaurado. Entendemos isto como a desmistificação de que a ordenação pura e simples não

explica nem resolve o homem independente de ser o personagem, mas a vida como um todo.

Inclusive, o porfiar que é discutir, retirado do filme longe de resolver o problema do

professor, o coloca no centro de uma disputa em que não há vencedor. O homem posto entre o

emaranhado da natureza em face do elemento individual vê não sem certo horror o que não

pode ser expresso pela linguagem ambientada na contradição. Em decorrência há o trajeto

passando do medo mítico ao medo cristalizado de não poder submeter os acontecimentos à

realidade pautada pelos números. Então, o esclarecimento é a radicalização da angústia mítica

como pretende Adorno e Horkheimer porque o dado humano sobrepuja as certezas, as

convicções tão bem acertadas com as virtudes conceituais.

Do caos do inexplicável para a civilização bem arregimentada com respostas possíveis

de se encontrar junto ao cálculo baseado na repetição da natureza, a consciência dos homens

sai em quase nada modificada se é o princípio da igualdade o elemento funcional a perseguir.

O contrário como podemos encontrar na narrativa de O homem duplicado expressa a ânsia

pela diferença oriunda de uma repetição que não se explica pelo número, sequer pela

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funcionalidade de um rosto muito visto. Contudo, a super exposição não é garantia da

individualidade que se busca e é justamente isto a crítica incrustada na imagem dos dois

homens iguais. Outra vez é a liberdade requisitada quando se coloca em dúvida a

individualidade; ciência e poesia separadas pela linguagem têm no símbolo as condições de se

sobressair à imagem da cópia para tentar a autonomia da natureza. A conhecida antítese entre

arte e ciência é retomada por meio da duplicação ideológica e na reprodução dócil; ao insistir

na explicação aceitável na totalidade, o homem menospreza a arte ligada a expressão do

sentimento mútuo dos homens. O saldo fica por conta do saber identificado com a ação da

arte enquanto manifestação da natureza humana que se nega a entregar-se à reprodutibilidade.

O sentimento da liberdade perdida para a presença de um estranho ao invés de configurar a

antítese entre arte e ciência – leia-se a duplicação de homens ligados à arte e a educação –

mostra o equilíbrio difícil diante da vida repetida em indefinições, sobressaltos e alienação do

que se é em frente ao espelho.

O poder coloca o indivíduo a escolher entre a dominação e a obediência. A

manipulação do procedimento matemático, por exemplo, torna-se o ritual do pensamento no

qual se iguala ao mundo. Quando este não se deixa aferir dá-se a dialética do esclarecimento

pela ação do pensamento livre; também, seguindo o percurso de Kant, a dominação universal

da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante. Dessa forma, é coerente dizer que

sujeito e objeto tornam-se ambos nulos. Contrários a essa redução do pensamento a uma

aparelhagem matemática, Adorno e Horkheimer analisam que tal procedimento gera a

ratificação do mundo como sua própria medida, se o esclarecimento se reduz a uma mera

tautologia, ponderam eles, estamos de volta à mitologia sem poder escapar dela.

Para os filósofos o mundo continua contaminado pela mitologia quando sob a

dominação, o homem se vê alienado nas relações com os outros homens e, inclusive consigo

mesmo. No parâmetro da autoconservação, assemelhar-se à objetividade ou aos modelos para

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segui-la confirma tal hipótese. Enquanto pensa controlar os processos de produção no

trabalho, o homem é controlado em suas vontades por meio da submissão à autoconservação;

assim se ressente no mundo desprovido da subjetividade como um mecanismo dispensável ao

processo automático de controle. A dominação a que se vê submetido o professor de História

não só pela presença ou o olhar do ator de cinema, tem como resultante a vontade de dominar

do primeiro. A intenção de manipular as situações para colocar o outro em desvantagem,

demonstra o quanto é discutível no romance, a perspectiva da subjetividade para se falar de

vidas cuja pretensão ao longo da história deles é a individualidade.

Dialética do esclarecimento se insurge contra o pensamento a serviço da lógica que

conduz à coisificação do homem. Perder o nome longe de ser uma perda mítica lembra a

tentativa de dominação da natureza externa e interna sem a qual não se atinge o fim absoluto

da vida. A questão se instala ao criar uma alternativa para sair da dominação da natureza ou

da natureza ao eu. As provações a que a humanidade teve que se submeter para a garantia da

formação de um eu como caráter idêntico, determinado e viril do homem não deixa de ser

uma tentativa do eu de sobreviver a si mesmo. O senhor quem escolhe e decide o que fazer de

si, impõe aos outros o serviço, a submissão de ver sem aproveitar com todos os sentidos a

vida aflorar. O que poderia ser a fruição artística é substituída pelo trabalho manual de onde

sai a dominação social da natureza. A dialética do esclarecimento é destrinchada pelo

pensamento de Adorno e Horkheimer tendo como exemplo as medidas tomadas por Ulisses

quando seu navio se aproxima das sereias. A relação de quem comanda e de quem é

comandado se dá por intermédio da detenção do saber. Nisso, a facilitação técnica da

existência tem por trás a continuação da dominação e a experiência sensível é mais uma vez

submetida. Na divisão entre pensamento e experiência temos o empobrecimento do homem

na medida em que se iguala pelo isolamento cuja necessidade lógica é a outra face da

dominação. Em Saramago o que encontramos é o enfrentamento do homem consigo por

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intermédio de uma repetição nunca dantes vista. O encontro de dominador e dominado, o

intercambiar dos processos de sentir e ser se efetiva quando os saberes de ambos são

colocados em dúvida como forma de entender a vida.

O pensamento livre do mando media o uso dos instrumentos de dominação, a

linguagem, as armas e por último as máquinas ao alcance de todos. Entretanto, como lemos na

Dialética do esclarecimento, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si mesmo; é

negado pelos próprios dominadores como ínfima ideologia. Assim, faz sentido que os homens

tomem consciência de que a potência do sistema cresce na proporção que os subtrai ao poder

da natureza quando a razão na sociedade se torna obsoleta. Segundo Adorno e Horkheimer é

somente pensando que os homens distanciam-se da natureza com o propósito de torná-la

presente de maneira a ser dominada. Na capacidade de elaborar um conceito, o esclarecimento

se apresenta como um fator responsável por ver a natureza perceptível em sua alienação.

Como dialética, entendemos que a dominação do substrato natural não ocorre sem sucumbir a

ela. Diante do que o conceito pode fazer em termos de objetividade, podemos mencionar o

quanto a ciência servindo de instrumento distancia os homens do natural, inclusive para medir

a distância perpetuadora da injustiça.

Da mesma forma que o esclarecimento ofereceu resistência à dominação em geral, o

homem na liberdade do pensamento pôde disciplinar tudo que é único e individual. A

conseqüência é que o todo não compreendido se volta enquanto dominação das coisas, contra

o ser e a consciência dos homens. Prevalece por isso na práxis revolucionária, o duelo entre a

inconsciência e o enrijecimento do pensar. Este para os autores é sim destrutivo se servir

exclusivamente de simples construção de meios; em dialética, na ousadia de ser, superar o

falso absoluto com o qual foi enquadrado no princípio da dominação cega. O esclarecimento

atinge seus objetivos quando os fins práticos mais imediatos se revelam como o objetivo mais

distante. Somente assim o saber auxilia o homem na busca e/ou resgate do sentido último de

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humanidade. Se compararmos tais princípios com o que encontramos em O homem

duplicado, veremos um personagem atento a uma reflexão sobre si de modo a criar condições

de se estabelecer as diferenças. Estas, procuradas no propósito de se livrar da dominação

projetada no ator Daniel, o outro de António Claro.

Seguindo a trajetória do herói grego da Odisséia, os filósofos encontram em Ulisses o

testemunho da dialética do esclarecimento. O herói das aventuras é também o protótipo do

indivíduo burguês conduzido pela ordem racional a que se submete muito mais que as razões

proclamadas pelos deuses. A duplicidade do esclarecimento encontrada no personagem de

Homero faz pensar em Nietzsche quando este percebe no movimento universal do espírito

soberano, tanto o sentimento de seu realizador último quanto a existência da potência hostil à

vida. A opressão detectada em tudo que é vivo fornece elementos para a interpretação da

epopéia independente de ser vista como romance ou não, as condições ideais para denunciar a

dominação e exploração que o homem é senhor e servo num só texto. Por ser este

entrelaçamento de mito com esclarecimento, a Odisséia expõe a oposição do ego sobrevivente

às inúmeras dificuldades do destino propiciando assim a formação da consciência de si. A

volta para casa do herói cansado é igualmente o retorno à pátria onde é respeitado e aos bens

materiais. Diferenciado pelo saber com que age, Ulisses na espacialidade de suas aventuras

fomenta as condições para a constituição da individualidade ao se opor às forças míticas; o faz

visando sair vencedor nas aventuras por meio da astúcia, conforme explana Adorno e

Horkheimer é perdendo-se que Ulisses se conserva.

Já o herói do nosso tempo sem consciência daquilo que é também sem forças para

driblar o desconhecimento a que se vê reduzido, só tem uma arma para sobreviver: a espera.

Trazendo em si a duplicidade, de nada resolve o saber que ele acreditava possuir. A segurança

de uma imagem sem mácula se desfaz transplantada a outro personagem que, sem explicação

vive a realidade ignorada. Enquanto sacrifica a consciência de si, o herói homérico vai além

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do sacrifício exigido pelo mito ao agir de acordo com sua potencialidade de indivíduo

humano. A ação marcada pela racionalidade civilizatória em detrimento da irracionalidade

mítica, contudo, acarreta a introversão do sacrifício: a história da renúncia. Temos neste

raciocínio mais uma explicação para a gênese da dialética do esclarecimento no que tange à

transformação do sacrifício em subjetividade, esta não se dá de forma harmoniosa. Na

renúncia, o herói se vê obrigado a encontrar as soluções para cada obstáculo; a dignidade só é

conquistada achatando a ânsia de felicidade plena, universal, indivisa. O eu de Ulisses

representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do destino; para isso a astúcia do

herói se vê munida da palavra com seu poder sobre as coisas, da dualidade com a qual pode

jogar. Adorno e Horkheimer concordam que o herói homérico ao se intitular Ninguém, se

salva fazendo-se desaparecer, comparam este recurso com o esquema da matemática moderna

enquanto adaptação pela linguagem ao que está morto. O homem entre as forças míticas tem

como ameaça o esquecimento e a destruição da vontade, como vemos que o herói supera a

ambos o faz por meio da eliminação do sofrimento. Já o duplicado ao renunciar a ser si

mesmo dispensa a ilusória felicidade que o dado racional poderia lhe fornecer. Sem palavras

que o explique nem ação meritória que o resgate do dilema, simplesmente se vê absorto pela

duplicidade da vida que compõe. Em dobro, ele é ninguém, sozinho continua a sê-lo uma vez

que não tem autoridade nem moral nem pessoal para erigir qualquer personalidade.

Ao se denominar Ninguém, Ulisses como sujeito renega a própria identidade a fim de

preservar a vida em troca de uma imitação mimética do que ainda não tem forma. O eu

diluído com o uso da palavra visando a auto-conservação, ao mesmo tempo em que é

esperteza é estupidez serve ao objetivo mais imediato de sair da dificuldade. Ao se identificar

renuncia à aparência, o que para os filósofos mencionados faz a dialética da eloqüência. A

força dessa dissolução é o esquecimento; esquecer a identidade momentânea, mas depois

esbravejá-la transforma-se na contramão da astúcia com que o herói é conhecido. O conceito

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de pátria oposto ao de mito faz o paradoxo de maior profundidade da epopéia uma vez que

marca a passagem histórica da vida nômade à vida sedentária do lar receptivo. Enquanto o

protagonista sem pátria nem lar a defender, do romancista português, é reduzido por um

mimetismo do qual não encontra explicação e encontrá-la não é a tarefa que mais o preocupa.

O eu dissolvido na imagem que se torna agressiva porque repetida, tem no pensamento o

refúgio de algo que quer esquecer sem sucesso. Ainda naquela fase que o duplicado revela

não gostar de si isto se explicita ao negar o próprio nome, por extensão, sua identidade. Ao

traçar a assinatura na ficha da loja deixou ver apenas as duas últimas palavras, Máximo

Afonso ficando o T. sob a alegação de que “assim é mais rápido” (SARAMAGO, 2002, p.

10). Em comparação a Ulisses, Tertuliano começa a pôr em prática não a astúcia, mas a

vilania na intenção de saber de si, deflagrando não de imediato a desvinculação das

identidades ou pelo menos, sua vontade.

O esclarecimento visa o sistema feito forma de conhecimento, toma para o sujeito o

apoio necessário para a dominação da natureza. As dificuldades no conceito de razão fazem

no indivíduo humano a conversão a um processo reiterável e substituível, não mais que um

exemplo para os modelos conceituais. Com isto, o esclarecimento expulsa da teoria a

diferença, essencial para que o sujeito tome consciência de si. Os autores apontam o marquês

de Sade como aquele que mostra o sujeito burguês liberto pelo entendimento sem interposição

de outrem; a burguesia chega ao poder pelas mãos do esclarecimento. Na genealogia da

moral, a personagem Juliette perfaz o caminho traçado pela razão, porém no sentido de

desmascarar o total benefício de seu uso. Se ao longo de sua história o pensamento serviu

como órgão de dominação, assustado com a imagem que o espelho devolve, abre-se, todavia

ao que está além e que o homem pode captar como o faz Juliette. Indignada, essa personagem

perfaz a dialética do esclarecimento ao proclamar a identidade entre dominação e razão.

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Quanto ao esclarecimento como mistificação das massas dentro da indústria cultural,

Adorno e Horkheimer fazem questão de destacar que a cultura contemporânea confere a tudo

um ar de semelhança, fazendo o homem se perder nesse processo. Algo bem próximo do que

encontramos no enredo de O homem duplicado. A falsa identidade entre o universal e

particular proclamada pela necessidade de consumo é mais um mecanismo de dominação

através do poder do dinheiro. O sujeito da sensibilidade perde espaço para a indústria que

reproduz de antemão as necessidades que aquele pensa ter. Então a totalidade toma lugar no

efeito de harmonia; na cor particular; na penetração psicológica das artes em geral. Extinta a

força criadora no Ocidente, extingue-se também o dado humano da espontaneidade. A

imaginação criadora seqüestrada pela técnica reprodutora reduz, de todo modo, a tensão entre

a obra inventiva e a vida rotineira. Em todos os setores da indústria cultural o padrão de

competência é transformar os produtos finais nas mãos dos consumidores numa linguagem

quotidiana versada pela naturalidade capaz de convencimento. A imitação colocada em

termos de absoluto deixa de ser algo negativo e passa a ser justificado como estilo de

identidade, a obra quando não podendo resistir, integra-se ao sistema reprodutor. Ritmo,

dinâmica, repetição são os novos valores agregados à obra porque não se dissociam do que é

novo e atraente para o consumidor inebriado com o produto adquirido. Na contramão, o

romance de José Saramago expõe o desconforto pela imagem repetida. A identidade perdida

com a descoberta da duplicação reitera a falta de justificativa para o eu se anular na falsa

opinião de ser mais humano que o outro.

A indústria cultural após contaminar a obra de arte, invade a diversão também

reprodutora da dominação. Dessa maneira não se pode falar de nenhuma espécie de

pensamento particular ou nenhum esforço intelectual, prevalece o aceitável da falta de

sentido. Como nos filmes cômicos ou de terror o pensamento em si é desfeito e mesmo

massacrado para evitar o transtorno de seus efeitos. Ancorado pela sociedade industrial o

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homem se vê em desgaste contínuo por causa do esmagamento de toda e qualquer resistência

individual, sendo-lhe oferecido em troca a satisfação através da sublimação estética. Ao

eterno consumidor, a fuga do quotidiano exposta nas telas da diversão mais uma vez reproduz

os projetos de expansão da razão capitalista. O dado humano contra o mecanismo social é

desfeito pela razão planejadora fazendo o consumidor aplacar os impulsos humanos quando

lhe é entregue a verdade sob forma de catarse. Divertir é ficar longe do sofrimento e para isso

é necessário não ter que pensar; estar de acordo significa libertar o pensamento como atitude

negativa, enfim, é o que os autores chamam de desacostumar as pessoas de sua subjetividade.

Como o objetivo final é a assimilação, a semelhança perfeita é a diferença em vista.

Cada pessoa se faz peça de troca, mero exemplar, desprovida do dado sensível para resultar

no puro nada introjetado e perceptível ao perder com o tempo a igualdade. A indústria que

reduz os homens a clientes ou empregados estendeu seu domínio à humanidade inteira, eles

não passam em ambas as alternativas de objetos a seu serviço. Está na estereotipia dos

homens o mecanismo de dominação social da indústria cultural. Desse modo, podemos

perguntar junto ao texto da Dialética do esclarecimento qual o inimigo a combater? É o que já

está derrotado, o sujeito pensante. O controle social se exerce pela mentalidade repisada do

conformismo às normas, na ilusão de que o único conhecimento válido esteja ligado a alguma

especialização. Ignorando os outros e depois a si, o sujeito jogado de um lado ao outro sem

chegar a lugar nenhum dentro da indústria cultural, determina o lugar fixo do trágico na rotina

ao temer sua intensificação. Domina por essa via não só os instintos bárbaros, mas também os

revolucionários para os quais perderia terreno cedendo poder ao pensamento livre. Na

narrativa, a dialética começa com o descobrimento da duplicação e com ela a recusa na

assimilação. O pensamento de ambos os protagonistas é mostrado de forma tal a não se

compatibilizarem pela igualdade. Desta maneira interpretamos como a crítica desenvolvida

pelo escritor no sentido de negar a falta de pensamento do homem atual. Com a duplicação

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fica explícito que os resíduos no modos de pensar não podendo ser vistos em conformidade

também se debatem no vazio. Bem como na não compreensão, no nada irresoluto, todos estes

colocados de modo a serem tão valorizados enquanto conhecimento, quanto reduzir a

existência a uma sentença racional e se confortar nisso.

A harmonia de vida no capitalismo tardio diz respeito à renúncia à pretensão de

felicidade, a entrega sem limites, a aceitação tácita da falsa identidade entre o sujeito e a

sociedade na qual pensa estar inserido. Desse processo a liquidação do trágico confirma a

eliminação do indivíduo guiado pelas antenas do poder ainda mais excludente quando afirma

a comunhão. O que os escritores da Dialética do esclarecimento chamam de pseudo-

individualidade é a falsa idéia que o indivíduo tem de possuir um eu pensante. Porque o

indivíduo sozinho ou em conjunto, forma um entrecruzamento de tendências universais

proclamada em alto e bom som para o sentido maior de reintegração total na idéia de

universalidade.

Repetição, cópia, imitação são dados a que o homem se agarra quase em desespero no

intuito de achar a individualidade. Ao tentar ser igual para ser diferente, ele acaba por

sucumbir à ideologia do mesmo; ocultar a contradição ao invés de acolhê-la na consciência é

mais um item da alienação cujo destrinchar leva à dialética. Vemos que no romance a

dialética se faz não pela acolhida da cópia, porém, pela não aceitação sem, contudo, encontrar

uma possível resolução para o caso dos homens iguais. Até chegar a essa conclusão o

indivíduo troca o prazer pela assistência, se informa apesar das notícias já chegarem filtradas;

conquistar prestígio então é mais importante do que ser conhecedor. Invertidos os processos

da individualidade, a percepção das coisas e pessoas está a serviço de algo diferente do

indivíduo em si ou o seu crescimento enquanto pessoa. Retomando a cultura como uma

mercadoria paradoxal, o texto teórico envereda pelos caminhos tortuosos da desmitologização

da linguagem. De um lado processo total de esclarecimento, do outro recaída na magia. Na

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poderosa publicidade da indústria cultural, palavra e conteúdo, racionalização e encantamento

mágico não se separam quando a liberdade de escolha reflete sempre a coerção econômica,

vale dizer, escolha sempre do mesmo.

Em relação aos limites do conhecimento, o livro alemão discorre acerca dos elementos

do anti-semitismo para delinear o alcance do entrelaçamento dialético entre esclarecimento e

dominação. Resulta disto que a ordem prescinde da desfiguração dos homens. A racionalidade

imperante está ligada à dominação como base do sofrimento, enquanto para quem a domina

atinge o máximo da eficiência, quem é dominado sente não ter o saber opressor. A

subjetividade negada é mais que um elemento racista, é a própria condição humana surrupiada

sob a forma do purismo alardeada. À falta de reflexão sobre si, responsável muitas vezes pela

dominação se atrela ao esclarecimento enquanto este não desencadeia a parte de verdade cujo

acesso à consciência o mundo da reificação impede. Pensando sobre si o homem duplicado se

vê subjugado por quem aparentemente é mais merecedor da existência que ele. Isto perdura

até tomar atitude de vingança e submete sua imagem num corpo estranho a se tornar objeto,

uma vez desconsiderados seus sentimentos.

A movimentação do espírito proposta na Dialética com efeitos sentidos na

movimentação do corpo, não se entrega à afirmação de fatos e supressão de questionamentos.

Se transforma, ao contrário, na alternativa para sair do mimetismo a que o homem se vê

reduzido em meio aos homens cumpridores de ordens. A condição da civilização exposta pelo

comportamento cuja educação social e individual é suspeita, sob o impulso do mimetismo,

conduz à compreensão do diverso visto como idêntico. Com isto vem a pergunta do que seja o

diferente, quais características podemos identificar quando homens e coisas se mostram

indistintos pela falta de reflexão? As manifestações humanas neste contexto são por isso

mesmo controláveis e compulsivas porque apenas repetem o previsto dentro da objetividade

em que se enquadram. O homem duplicado que no início da duplicação atribuía os fatos

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concernentes a si como decorrentes do destino, alterca com o Senso Comum. Ao mostrar

personalidade quando vê como indispensável agir para descobrir o outro eu que não tinha

conhecimento, se questiona, faz o mesmo com o mundo circundante. Nisso já prelineia o

diferencial solicitado para além da identidade apenas resvalada na imagem encontrada na tela

do vídeo.

Adorno e Horkheimer se tornam bastante atuais quando denunciam o deturpamento do

conceito de razão, principalmente com referência ao sentido patológico no anti-semitismo, por

causa da ausência de reflexão que o caracteriza. O apagamento da subjetividade neste

contexto também fomenta o mesmo num mundo onde a práxis importa muito mais que a

fruição sobre o que se faz, pensa ou sente. Por outras palavras, a práxis sem a perspectiva do

pensamento denigre o homem em sua natureza. Tal extinção do sujeito para os autores, se

efetiva a começar pelos olhares cuja falta de reflexão transmitidos aos próximos, por sua vez

completam um quadro real pautado pela infelicidade. O esclarecimento usado pelos

dominadores a fim de oprimir é possível graças ao consentimento dos dominados que têm

suas aspirações roubadas quando não transformadas em algo odioso, porque responsável pelo

sofrimento atual. Daí temos uma justificativa se houver, para o impulso mimético, o

comportamento reificado dos homens brutalizados pela racionalidade pauperizante. Se a

engrenagem da indústria não admite a vacilação do homem, este é superado na medida em

que não pode mais ser visto como sujeito. O setor econômico enquanto fator essencial para o

homem se ver como tal, aliado ao ato de consumir se faz mais expressivo a cada compra cujo

objetivo é ser igual tendo mais, com a falsa aparência de ser diferente. Os despossuídos, na

interpretação dos autores, não são apenas aqueles impedidos de acesso aos bens de consumo,

mas, sobretudo, os que perderam a capacidade de julgar pelo pensamento. O esclarecimento

de posse de si, quando chegar ao nível da revolta mesmo num tom de violência, seria a chance

de romper com os próprios limites.

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Da mesma forma que a utilização da razão em prol de objetivos escusos demonstra

como os inteligentes facilitam as coisas para os bárbaros, a sobrevivência alegada enquanto

colaboração prática é a chancela transformadora da idéia em dominação. Terror e civilização

estão na mesma proporção que esclarecimento e dominação ao que a consciência do indivíduo

se vê submetida por meio da dialética dos acontecimentos que lhe cercam. O conhecimento

tão proclamado como forma de acesso à humanidade em plenitude, passa pelo crivo da

classificação em tempos de objetividade sem fronteiras. Como sua condição primordial, ele

por sua vez a destrói quando a classificação é vista apenas como etapa e não o saber em si.

Motivo para mais uma vez podermos dizer que há a dialética do esclarecimento.

O progresso que separa as pessoas pelo usufruir bens de consumo, por exemplo, os da

comunicação, têm como efeito mais corrosivo ainda a assimilação dos homens quando os

isola. Não discutindo idéias, os homens se aniquilam em poder de observação, mudança da

realidade a que se integra. Os acontecimentos que a razão alienante tenta juntar num mesmo

bloco explicativo, trazem em si a semente da fatalidade desconcertante. O paradoxo de poder

ver e não poder mudar na consciência dilacerada do homem, resulta em que este se projeta

naquele. Justamente é o que faz o personagem do romance muito mais que ser é se sentir um

duplicado. Na frase “Toda reificação é um esquecimento” (ADORNO e HORKHEIMER,

1985, p. 215) reitera nossa atenção para a ausência reflexiva que produz a dialética do

esclarecimento. A objetividade, o resultado das ações sem atentar para o processo de quem as

pratica gera o apagamento, o esquecimento do ser do homem contra o que os autores

reclamam. Na mesma direção estão quando apontam o esclarecimento a serviço de alguma

ideologia, contra a planificação, o mimetismo compulsivo da repetição desenfreada de ações e

idéias. Estas, plantadas por uma razão que se quer superior sem conclamar, sem suscitar

controvérsias.

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O declínio da individualidade que observamos em Dialética do esclarecimento como

sua maior denúncia diz respeito à compreensão como algo de histórico e, incluindo no mesmo

quadro interpretativo, o despertar de dúvidas sobre a assimilação como algo de positivo.

Nesse livro, emancipar a humanidade significa o respeito pela diferença real e procurada. Na

autonomia e na incomparabilidade do indivíduo se cristaliza a resistência, tão valorizada pelos

autores contra o poder cego e opressor da realidade, vista de acordo com o todo irracional.

Para eles a filosofia com um passo adiante da ciência é a própria voz da contradição, sadia,

desejável até, no intuito de fazer ouvir o grito abafado do homem preso às amarras de um

pensamento ainda não elaborado.

O ato de pensar nas verdades em construção faz do homem o indivíduo que não se

anula ao fugir da obrigatoriedade de se escolher, alternativa mais clara de acordo com

conveniências outras que não a sua. A verdade enquanto todo é tão perigosa quanto vê-la por

parte sem a devida reflexão do sujeito. Sendo assim, a dominação quando vista como

contradição relegada ao âmbito da arte, aí entendida como forma de beleza, trai o princípio

gerador do pensamento, espírito e mesmo linguagem. A indústria cultural e seu aparato

distorcido junta ao trabalho de precisão o erro como acaso. Mostra o aspecto ruim da

subjetividade e do natural fazendo ver ao mesmo tempo a praticidade, o envoltório de

facilidade, despreocupação de seus produtos ao alcance de todos. Neste mundo que precisa do

homem inteiro para seus fins imediatos só tem chance de sobreviver quem como o Ulisses usa

seu poder de força astuciosa. A dialética do esclarecimento toma corpo assim que as etapas

intelectuais no interior do gênero humano cerram a esperança imobilizando-a; desse modo

testemunha petrificada de que todo ser vivo se encontra subjugado embora pareça dominar.

Ambos os livros de Adorno nos ampliam a capacidade de leitura de O homem

duplicado uma vez que a subjetividade é o ponto alto de discussão nessas obras. Se,

teoricamente observamos a ausência de reflexão como apagamento da individualidade, a

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moralidade sob pontos de vista distintos, o pensar arguto na forma romanesca, não é garantia

para que o homem possa sair da igualdade a que se vê exposto. Quando os protagonistas não

se julgam mais capazes de fazerem o que fazem, são levados pelo impulso mimético; um a

imitar o ator na intenção de encontrá-lo, o outro a se fazer passar pelo professor de História

que nunca foi. Nisto podemos dizer que há não uma racionalidade paupérrima, mas

racionalidade borbulhante sem, contudo, amenizar o desconforto existencial dos personagens.

Tanto isto é verdade que o narrador deixa claro no homem duplicado, a definição de um

sujeito cujo rótulo não é o de ser um modelo de homem, é, ao contrário, dado à vacilação, de

moral questionável. A revolta observada em termos teóricos como solução à perda da

subjetividade é notada no homem de duas vidas, porém, ela não resulta numa espécie de

melhoria direcionada a uma coletividade, sequer ao seu portador. Embora aconteça a vingança

no romance, os efeitos sentidos se voltam contra o provocador e contribuem de forma

decisiva para o estado de inaptidão em se escolher. Apesar de estarmos sujeitos à objeção para

este último argumento visto com a saída final do personagem – a intenção é encontrar e tudo

indica aniquilar a aparência indesejada de outro igual a António Claro – toda a arquitetura do

romance indica a não formatação do personagem com alguma resolução.

Ainda é preciso ressaltar que uma das metades desse homem duplicado, o ator que

sendo coadjuvante na tela pretende ser principal na vida, é parte da indústria cultural tantas

vezes questionada por Adorno. Assim exposto, o protagonista do romance também tem sua

quota de alienação; duplicados, ator e professor têm então a chance de viverem a lucidez de

si. Situação análoga ao que encontramos no romance Ensaio sobre a lucidez (2004). Esta

narrativa gira em torno de um acontecimento singular, como é típico na poética de José

Saramago, capaz de levar os personagens a um maior conhecimento pessoal. Com referência

direta ao livro Ensaio sobre a cegueira (1995) inclusive a retomada de alguns personagens

como o velho da venda preta e a mulher do médico, Ensaio sobre a lucidez longe de ser um

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tratado ou estudo teórico sobre as conseqüências do uso da razão, é uma narrativa de vidas

cerceadas por uma decisão inédita num país imaginário: o voto em branco. Nas duas obras, os

personagens não são nomeados, ao contrário da ênfase dada na nomeação dos seres fictícios

de O homem duplicado. A cegueira branca e a clausura que os personagens sofreram,

serviram-lhes para vivenciarem a experiência da desumanização quando a racionalidade é

interrompida por causa da busca pela sobrevivência. Já com o voto em branco, os habitantes

da capital no outro Ensaio fazem uso do direito que acreditavam possuir. O conhecimento, a

moralidade no caso de eventos tão significativos descritos nos romances, dão a tônica para

que os personagens vivam a cegueira, a lucidez ou a duplicação a fim de tomarem consciência

de si. O efeito pode ser observado enquanto eles estão acossados pela vida coletiva.

Refugiados num sanatório, colocados sob estado de sítio, os personagens anônimos das duas

narrativas questionam o sistema político independente do partido; a democracia pouco

flexível quando não estimada pelos dirigentes de qualquer país; a ausência de relações

verdadeiramente humanas entre pessoas de diferentes camadas sociais, por isso há a falta de

nomeação para enfatizar a força suprimida das pessoas dentro de uma coletividade.

Com a duplicação vemos que a brancura da vida dos dois personagens com nome e

sobrenome indica a possibilidade de conhecer a si mesmos no momento que descobrem a vida

zerada, em branco, por causa da existência de outro ser com o corpo, a aparência sem

distinção. Ensaio sobre a lucidez ao investir os personagens do poder de exercer um direito

constitucional que é negado pelas autoridades, mostra a dialética nos modos de pensar e ser na

qual não há síntese, assim como o duplicado não se atrela a qualquer das vidas que ele tem a

possibilidade de viver. A moral em discussão tem sentido quando não se pode apontar a

determinado personagem ou situação que sejam modelares, são ao contrário, bastante

questionáveis. Também é possível identificar junto aos livros mais recentes de Saramago uma

preocupação concernente ao conceito de verdade para tratar do ser humano. Assim temos,

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“em toda verdade humana há sempre algo de angustioso (...)” e “nós todos continuaremos a

mentir quando dissermos a verdade,” (SARAMAGO, 2004, p. 56 e 57) o que nos leva a

identificar tal assertiva nos personagens em busca do esclarecimento, proporcional à aflição

que isso pode acarretar, porque sempre teremos apenas uma versão dos acontecimentos.

Outra característica bastante comum nessa Literatura é um personagem se destacar

nessa busca capaz de dizer quem ele é, mesmo se o desconhecido se multiplicar em vários

eus. Vimos que ao duplicado embora com o nome em relevo, a vida lhe é distante se o tópico

de verdade ou mentira for solicitado. Nos Ensaios, a cegueira ou a falta de esclarecimento

junto das relações humanas não atinge a mulher do médico, entretanto, quando esta

personagem reaparece no segundo Ensaio justamente por isso ela é acusada de desencadear a

onda de protesto (como definiu o governo) por meio do voto em branco. Então a lucidez é o

que impede de enxergar a verdade dos fatos, os reais motivos para que a brancura dos votos

acontecesse. Enquanto Tertuliano Máximo Afonso é o homem do questionamento de si, é ele

o duplicado. A dialética de si arregimenta também em meio a lucidez reclamada, o comissário

de polícia encarregado de encontrar as provas que culpassem a mulher do médico como a

responsável pelos votos em branco. Ele sabia da inocência da mulher, pelos encontros, as

conversas e a sensibilidade à mostra, o comissário entendeu que as autoridades ao desviar o

foco das atenções encontrando um culpado, invertem a situação. A mulher do médico é quem

demonstra a humanidade escassa em meio aos interesses escusos representados até então pela

corporação, o governo dos quais ele fazia parte. Ao tomar a iniciativa de reverter a

determinação e começar a perguntar o porquê de fazer o que fazia o comissário portador da

lucidez, não só efetiva o esclarecimento ao escrever a carta aos jornais denunciando a farsa de

culpar a mulher do médico mas, inclusive alcança com maior plenitude o estado de

humanidade que o livro pretende aflorar.

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O fato da imagem dos dois homens se refletir contradiz o desenrolar dos

acontecimentos no romance que vigora a diferença nos modos de pensar. Como desencadeado

pelo narrador do Ensaio sobre a lucidez: “Por muito que se tenha tentado e continue a tentar-

se, nunca se há de conseguir que as pessoas pensem todas da mesma maneira”

(SARAMAGO, 2004, p. 86). Referindo-se aos votos em branco, o narrador convoca o direito

ao pensamento particular que os anônimos e os componentes do jogo do poder possuem. As

dificuldades, também as responsabilidades por tal atitude é o que vai determinar a quanto de

esclarecimento o homem pode chegar. Assim como a mulher do médico era atenta aos

mínimos detalhes quando a cegueira imperava entre os homens de seu contexto, o duplicado

com um olhar apurado percebe a igualdade que ninguém reparou. Nessa mesma linha, o

comissário com muita acuidade entra pela vereda do conhecimento e provoca a dialética. Esta

acontece no instante em que compreende o plano sórdido de inculcar a culpa a uma inocente,

isto para que os reais motivos da votação maciça em branco não surtisse os efeitos esperados

pela população.

A brancura da cegueira e a dos votos assim como a duplicação é a marca do protesto a

que se junta a moralidade resgatada por personagens reivindicantes ao direito à humanidade,

negado quando expressa a diferença. A cegueira denuncia os abusos da razão; a votação em

branco protesta contra a inferiorização a que a população é submetida pelo governo e a

duplicação serve de alerta ao homem perdido em meio às coisas e obrigações diárias. São em

conjunto a formação de uma consciência por meio da dialética nos modos de ver e sentir.

Ainda em comum entre os personagens dos três livros referidos, há o fato deles ao

vivenciarem a contestação maior de suas vidas, estarem isolados do mundo. É característico

da obra de Saramago, é como se ele fizesse seus seres fictícios perceberem o quanto se

ignoram enquanto os faz pensar com a maior intensidade sobre a vida que mais importa: a do

sentimento.

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Na primeira metade de Ensaio sobre a lucidez somos apresentados a personagens

anônimos, homens do povo que ao não comparecerem a sessão de votação começam a se

indagar se votaram em branco. Em seguida temos o mesmo procedimento por membros do

governo, como se quisessem montar as peças de um grande quebra-cabeças ao encontrar o

líder revoltado. Aquele que influenciou a população a votar em branco, assim desestabilizar o

atual e o futuro governo que, apesar do poder depende do povo para ocupar o posto. Depois

dessa primeira fase, o livro expõe a trama da hierarquia burocrática que comanda a vida das

pessoas; isto também é uma constante nos romances de Saramago. Ora é a informação que vai

do subalterno até o chefe imediato, ora é o rei ou o primeiro-ministro ou ainda o presidente

que repassa ordens aos inferiores até chegar ao homem do povo e assim a vida se emperra em

meio a discussões que não levam ao crescimento individual. Ocorreu o mesmo com a

descrença do professor de História em modificar sua prática pedagógica, embora procurado

pelo diretor da escola para que apresentasse formalmente suas idéias, estas se perderam em

meio ao desconforto existencial muito maior na duplicação.

Os moradores da capital – ironicamente chamados de brancosos por integrantes do

governo – por causa do voto de protesto, impedidos de sair da cidade e abandonados pelo

governo que se retirou com toda a máquina burocrática, mais tarde resolvem voltar e desistir

do plano de fuga em massa para manterem a opinião formada. São os moradores também os

responsáveis pela veiculação da carta do comissário contando a verdade que o governo queria

esconder sobre a mulher do médico. Isto nos convence de que a formação da consciência

crítica do homem simples, do povo é o chamariz na literatura cuja figura principal é a

humanidade a tomar conhecimento de sua força decisiva na condução da vida.

Os ecos do pensamento de Sartre e Adorno no texto de Saramago encontram-se

espalhados a cada vez que os personagens sozinhos ou em grupo decidem por livre iniciativa

se ajudarem sem esperar que alguém o faça por eles. Foi assim em Memorial do convento, na

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criação de uma consciência crítica também em Levantado do chão, seguindo na mesma

direção os Ensaios que enfatizam na convivência coletiva, a oportunidade do homem se fazer

não apenas indivíduo livre, mas, sobretudo, ciente do seu poder de emancipação. Quando

“cada um decidiu por sua conta e a sós com a sua consciência,” (SARAMAGO, 2004, p. 166)

no episódio em que os brancosos resolvem abandonar a capital, demonstra o quanto as

diferenças nascidas entre eles podem ser apagadas na medida em que conta mais o

crescimento individual.

Dentre as inúmeras discussões entre o presidente e o primeiro-ministro no caso da

população que votou em branco e por isso foi abandonada pelo aparato governamental, se

destaca aquela em que o presidente conclui que a cegueira de quatro anos atrás reaparece

agora numa outra versão. O que para o personagem representa uma idéia de continuísmo

proporciona ainda mais o pensamento a compor o quadro interpretativo em que conste a falta

de equivalência entre o dado racional e o emocional, como vimos enfatizando ao longo de

nossa tese. Na reunião ministerial onde a citada constatação acontece, o primeiro-ministro é

quem mais se aproxima da realidade que o romance pretende esgarçar. Este pondera que a

brancura dos votos manifesta uma cegueira tão destrutiva quanto a do passado ao que é

rebatido pelo ministro (não por acaso) da justiça afirmando sobre a lucidez dos fatos. Por aí

temos vestígios do quanto a máquina política e administrativa pode conduzir os

acontecimentos de acordo com a interpretação mais conveniente para os interesses do poder.

O que é lucidez neste contexto necessita ser combatido, a forma com que as pessoas passam a

questionar e reivindicar seus direitos pode gerar gastos e conseqüentemente o lucro do poder

diminui. É isto que podemos entrever nas entrelinhas em que o povo com seu direito

adquirido é o inimigo a combater. O poderio quando testado se impõe pela força. O

comissário sabia do preço que iria pagar por agir e ser livre no episódio no qual teria

oportunidade talvez única de ter sua humanidade reconhecida, por isso se sentou no banco

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daquela praça com a sensação de despedida. Ao ser assassinado já havia despertado mais

consciências para a realidade dos acontecimentos embotados pelo governo. Fazendo um

paralelo com a morte de António Claro em O homem duplicado, neste caso a morte apressa a

transformação imperiosa de se fazer, a tomada de consciência de si já que o original não

existe mais. O nada com o qual podemos identificar este momento específico na vida dos

personagens adquire o vulto tão grande quanto a liberdade que eles experimentam.

O que os políticos faziam para entender a votação em branco era algo chamativo a

lucidez a se recuperar. Colocar a vida em debate lhes parecia algo de suma necessidade

apelando à inteligência, à lógica dos acontecimentos como se isso fornecesse uma explicação

razoável para o fato que colocava em risco suas carreiras. Nesse requisito conclamar as muitas

pessoas talvez atingir a maioria para que olhassem no espelho a fim de se certificarem de não

estarem outra vez cegas, nos permite identificar aí traços daquela liberdade de consciência

contestada. É outra vertente ao que o homem além da profissão vive. Olhar no espelho e nada

ver é duplicar o problema de existir sem se fazer notar.

Da mesma forma que os políticos tentam convencer a população do país que votou em

branco a reconhecer que estava cega, a insurgência em não acreditar no que as aparências

deixam ver, demonstra o quanto de emancipação os personagens, os anônimos podem fazer se

mostrarem como na verdade são: seres à procura de si. Embora isso aconteça num enredo que

concentra a vida de dois homens conhecidos sem serem notórios, o ator e o professor, a

dialética da imagem que eles vivem está incrustada na capacidade inventiva de cada um. A

consciência se expande quando não está mais tranqüila, porém rebelde com a ação do

esclarecimento tomada como necessidade inadiável.

Dentre os efeitos de sentido na linha de pensamento pautada pela liberdade como

proposto por Sartre, em relação ao homem tomar consciência das possibilidades que ele é

capaz de criar e ser, podemos citar, localizar o eu inigualável. Isto que é tão forte na literatura

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de Saramago é bastante ressaltado nos personagens singulares cujos traços humanitários se

destacam por causa da sensibilidade com o que lhes acontece. Dessa forma é o homem

duplicado e não o original quem desencadeia toda a trama capaz de alterar a vida dos

personagens ao seu redor. É o comissário de polícia e não o comandante ou o ministro da

justiça quem coloca em prática a noção de lucidez, ausente no plano racionalizante que

deturpa a visão dos fatos.

No caso em que estudamos a duplicação ou a lucidez não se restringem à observação

da subjetividade alheia a fim de definir os contornos visíveis. A dialética de si avulta quando

a razão é destituída do posto de doadora de sentidos, uma vez que nenhum conhecimento

unilateral pode ser vinculado às relações entre as consciências em formação. Encontrar o

outro – muito comum nas narrativas de Saramago – é o elemento demarcador na separação ou

mesmo da constituição da qual tratamos, vale dizer, da consciência de si. Por este prisma

podemos entender a vasta busca empreendida pelo sr. José no caso da mulher desconhecida

em Todos os nomes. Também localizamos naquele personagem singular a busca da ilha

desconhecida, mas com a consciência delineada para a confirmação do sonho que ele foi

capaz de erigir primeiro sozinho, depois com o auxílio dos demais personagens que

aprenderam a sonhar com ele.

Outra coincidência nos romances é a existência de uma carta que deflagra conflitos,

amplia a visibilidade dos personagens entre si, enfim, produz uma dinâmica para que haja por

sua vez nos seres criados, a criação da consciência partindo daqueles que habitam o universo

ficcional. Primeiro, o duplicado envia uma carta à produtora de cinema para descobrir o

endereço do ator que tinha sua exata fisionomia, depois disso se digladia com a consciência a

respeito das conseqüências de seu ato. Segundo, após autoridades se perguntam o porquê dos

eleitores votarem em branco, surge na redação do jornal uma carta de uma das pessoas que

foram aprisionadas num sanatório há quatro anos, quando a cidade foi acometida de uma

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cegueira branca. A carta insinua a possibilidade de haver relação entre o fato da mulher do

médico não ter cegado e a votação em branco, o que será distorcido com a descoberta do

assassinato cometido por ela. Mais tarde no mesmo romance em que o conhecimento e seus

limites são desenvolvidos, a carta do comissário é o que confirma as relações de lucidez

ausentes entre os personagens que não deixa de ser entre os homens em geral. Já n’As

intermitências da morte (2005), a carta enviada ao diretor-geral da televisão é o que coloca

em pauta o impacto do retorno da morte à vida num lugar fictício onde aquela havia sido

suspensa.

O homem que originou toda a controvérsia da duplicação está morto ao final do

romance, assim como o comissário, o médico e a mulher do médico foram mortos pelo

homem da gravata azul com pintas brancas. Juntos eles colocam em alto relevo o momento de

lucidez, de conhecimento que os personagens podem obter se tiverem em vista a capacidade

de se colocar no lugar do outro. São enfim, passíveis de sentir mais que fazer as coisas em

função do crescimento inevitável – personalidade consciente – quando é o saber de si o

fundamental para se entender como ser humano.

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5. CAPÍTULO 04:

Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros – amasse-os – não os compreendesse.

João Guimarães Rosa

HUMANO, SIMPLESMENTE HUMANO

O horizonte que se descortina no romance O homem duplicado possibilita uma

interpretação cujo suporte teórico aponta para a Filosofia. Enquanto o personagem principal

dessa narrativa se esmera pelo conhecimento, também questiona sobre o saber de si; isto nos

proporciona estudar esse livro como a procura por respostas sobre quem é o homem. A leitura

crítica da Literatura em consonância com a Filosofia é uma contribuição para a área de

pesquisa em Ciência da Literatura, uma vez que pretendemos nos empenhar na abordagem do

texto literário imbuído da tradição do pensamento ocidental. José Saramago ao focalizar no

personagem a pessoa, o indivíduo como centro essencial de seus romances, o faz ressaltando a

dúvida sempre presente do ser humano saber quem é, o estar no mundo, perfazendo uma

inquietação como força emocional a mover os homens.

Na redimensão das relações humanas, encontra-se o padrão da existência diferenciado,

instaurado por atitudes e valores dos personagens que encarnam o estado de humanidade

repensado no universo ficcional do escritor português. O interesse maior da pesquisa é saber

sobre o homem, seus limites e sentidos no nosso tempo caotizado sob inúmeros aspectos, o

que nos leva a avaliar como uma das razões para o título do romance.

A narrativa de José Saramago expõe o homem em ânsias de se encontrar no mundo

enquanto duvida da própria vontade. Por essa via de entendimento, o escritor repensa no

discurso ficcional os valores essenciais do ser humano, entre eles a identidade do sujeito, a

possibilidade de se copiar/multiplicar o que sempre eticamente foi único. Em O homem

duplicado temos contornos dos quais podemos extrair subsídios para interpretar o personagem

em vistas de ter saído da tentativa de explicar a si e o mundo por um viés da busca da

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essência, mas sem alternativa para colocar no lugar. O protagonista é alguém que não tem

grandes expectativas na vida, está enfadado com a rotina e quando a anormalidade bate a sua

porta, não se vê em condições de enfrentá-la, tal é a abertura que oferece ao Senso Comum.

Com o desenrolar dos acontecimentos, do inquirir das outras personagens, o duplicado aos

poucos se vê dotado de uma vontade para sair do dilema em que se encontra. Entretanto, há

empecilhos pelo caminho, talvez aquele criado por si seja o maior: ele representação de outra

vivência? Nessa conjuntura fazemos um paralelo com a obra O mundo como vontade e

representação (2001) na qual Arthur Schopenhauer (1788-1860) questiona o quanto o homem

sabe de si e por conseqüência do mundo onde vive. A representação da qual o homem dotado

de um espírito filosófico toma consciência, leva o mundo a ter a magnitude da observação

empreendida pelo sujeito. Essa condição humana atingida pela vontade, proporciona uma

visão da qual não se pode escapar dada a possibilidade do nada que ronda, cerca o homem

instado pelo conhecer. O espaço da representação surge como o alcance da vontade, algo

intrínseco ao mundo e aos corpos.

Desdobrando o pensamento de Kant, Schopenhauer vê a coisa em si como a vontade

capaz de oferecer outra dimensão ao mundo, especialmente a vontade de viver a mover os

indivíduos como força cega em meio às muitas forças da natureza. Por isso entra em cena a

visão de mundo do filósofo que entende a satisfação de um desejo como início de outro numa

cadeia incessante de contrariedade ou não. Dessa forma, a vontade de viver se atrela à dor,

angústia, o bem-estar perfazendo o nada a compor a humanidade sempre insatisfeita; a saída

então é eliminar a vontade, mas não a vontade íntima, última do homem e sim aquela

ancorada a um saber estabelecido. Ao visualizarmos isto na obra de Saramago, teremos um

protagonista enfadado com uma vida muito conhecida, mas não apreciada; um sujeito que

confessa não gostar de si; não saber quem é; não dar vazão aos sentimentos e adiar o quanto

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possa a satisfação de sua vontade em adquirir o primeiro lugar na escala existencial entre ele e

seu igual.

Schopenhauer sublinha o tempo todo a capacidade do mundo ser pensado, por

extensão o homem dotado de vontade insubstituível. O entendimento que se busca, parte da

representação até atingir o desdobramento no sujeito e no objeto; assim, a reflexão que

distingue o homem e o liberta de suas determinações é capaz de levá-lo a decidir pela vontade

que é seu caráter essencial. O saber, conhecer abstratamente as coisas e a si mesmo implica o

homem dar sentido a sua existência enquanto pergunta-se, o que é o mundo? Quem sou?

Sendo-lhe isto estranho e problemático ao mesmo tempo. Esse é um dos pontos de contato

mais fortes com o romance de Saramago uma vez que o duplicado se vê em condições

inferiores, passa a valorar essas perguntas que o filósofo destaca como propriedade superior à

ciência. A representação de que trata; o sentido que se tenta estabelecer ao mundo partindo-se

da vontade do homem, passa pela existência de um corpo. Aqui perguntamos: se o homem

está (é importante ressaltar que a narrativa não se esmera em elucidar este estado e sim se

cercar dos conflitos dessa condição) duplicado, como falar da existência de um corpo? De

qual corpo? Schopenhauer pondera: “o indivíduo é ao mesmo tempo o sujeito do

conhecimento e encontra aí a chave do enigma: essa palavra é a vontade.” (2001, p. 109). Pois

bem, no romance temos inicialmente que Tertuliano – o duplicado – tem vontade de conhecer

António – o original – mas é uma vontade acanhada, de quem quer mais é se esconder do que

mostrar; depois se esconde no disfarce do ator que tem uma vontade diferenciada de conhecer

seu duplo. Há certa funcionalidade, quer tirar proveito da conformidade. Nestes termos, cabe

perguntarmos: qual dos dois de fato existe, tem um corpo coberto de vontade? Isto que vem a

ser a substância íntima, a raiz da conduta racional do homem está embrulhada em O homem

duplicado. Por causa da parecença sem precedentes, Tertuliano e António quando se

encontram, têm o ímpeto da comparação, se olham, se medem, se despem e em cada veia, nas

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mãos dispostas em estrela, nos sinais da pele, cicatriz do joelho, tudo se repetia, inclusive o

sentimento misto de humilhação e perda que os envolvia. Aí o que se dispõe entre eles é a

questão de quem significa o quê, qual deles é capaz de chegar à diferença que conduz a

representação num mundo cada vez mais primado pela igualdade.

Arthur Schopenhauer afirma que a vontade enquanto coisa em si é refratária da

pluralidade, sua objetidade reforça os caracteres individuais ou a chamada personalidade

completa. Ao discutirmos homens em estado de duplicação, a individualidade é algo bastante

questionável, porque os traços que a acompanham são transviados de um ao outro como se o

narrador quisesse mostrar a oscilação do caráter deles. Posto dentro da ambiência humana

insatisfeita enquanto manifestação particular. Assim, a narrativa foge a um encadeamento de

partes que compõe o mundo, para ser a manifestação de uma natureza estranha à objetidade.

Essa consciência geral que o filósofo imprime à vontade afim com a representação total, é

díspare com o homem dotado da compreensão de si ou em vistas de. No romance, a primazia

fica por conta daquele que alcançar esta noção. António e Tertuliano ou vice-versa têm por

trás e pela frente o domínio propenso de caracterizá-los; na confusão entre verdadeiro e falso,

o presente que lhes ocupa faz volteios na imaginação, nas circunstâncias de se sentir quem é o

mais forte ou o mais sagaz. O contraste que se anuncia no duplicado, vira excepcionalidade

não só por conta da fraqueza moral dele e da argúcia do ator; nem mesmo quando este morre

deixando sua personalidade com Máximo Afonso, mas é algo indispensável até às últimas

páginas do romance. Sem fórmulas, sem receita, o homem tem consciência da duplicação,

precisa ser ele mesmo embora suprimido com a morte do outro, fica incapaz de adotar a vida

que disfarçadamente assumiu.

Podemos, portanto, ponderar que a idéia de humanidade neste livro é o objeto

principal, justamente o recorte que procuramos estudar em nossa tese: versar sobre o modo de

representação do homem na Literatura atual. A contingência da particularidade na fisionomia

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se mostra em abstração e a discussão partindo disto, traz à tona todo um conhecimento a

revisitar e/ou erigir tomando-se em consideração o fato do duplicado ser um professor de

História. Diferente da experiência individual que protagoniza, a História que ele ensina

adquire contornos e caracteres vistos em conjunto. Por se descobrir parte de alguém é que o

duplicado se abre a uma visão mais profunda da natureza íntima da humanidade, fica alheio às

questões burocráticas da escola, entra no tédio da vida em alegoria e prolonga a verdade

adiada a respeito de si. Enquanto Tertuliano age dessa maneira, William Wilson do conto

homônimo (1940) de Edgar Allan Poe (1809-1849) estaca na dúvida.

O duplo nessa narrativa acompanha o narrador protagonista desde os anos escolares

iniciais até a fase adulta. Se vê num deserto de erros; tocado pelo que considera a mais

estranha de todas as visões ou uma maravilha, esse homem que tem horror a seu nome

reconhece as primeiras advertências ambíguas do destino. O xará do personagem se impõe

pela personalidade ao interferir nos propósitos de William Wilson, também ao ridicularizar o

outro com seu nome, imitando-o nos trejeitos. Não tinham nenhum parentesco apesar de

terem nascido na mesma data. Percebemos no formato da história certo ressentimento por

parte do narrador por não saber quem seja tendo à sua frente um alter ego que lhe insulta com

a presença física. Este por não poder alterar a voz pode perfeitamente ser visto como a

consciência do personagem. Na dupla repetição, do nome e do homem, “William Wilson” se

entretém em destacar o vexame causado pela semelhança moral ou física dos personagens.

Diferentemente do romance de Saramago, esse conto apresenta os conflitos do original cuja

cópia é melhor de acordo com este. Senão, qual a explicação para o louvor ao senso moral,

talento geral e critério mundano mais agudo do William Wilson repetido? As dúvidas do

personagem aumentam na proporção de seu desconhecimento, beiram ao vórtice da loucura

durante a qual mergulha numa investigação por saber a identidade do singular indivíduo. O

mais urgente a responder: quem era esse Wilson? E donde vinha? E quais eram suas

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intenções? Isso se arrasta numa concentração em si por parte do narrador neste instante

afastada a figura do outro William. Agora se somam a angústia, o horror e a vergonha a

formar a má fé por onde o personagem vai. A intromissão do reproduzido William Wilson o

persegue em assuntos de ambição, tirania, vontade aos quais o narrador confessa ter se

submetido à vida toda. Internalizada a idéia da própria fraqueza extrema e desamparo, o

original começa a murmurar, hesitar, resistir lá do seu modo. É num baile de máscaras que a

existência se unifica em “William Wilson”; na iminência de um adultério, o suposto titular do

nome é tocado no ombro enquanto ouve aquele sussurro odiado e conhecido. Enfurecido, o

narrador decide acabar com a exaustão da semelhança, numa sala anexa ao baile leva o outro

para um confronto derradeiro, fere-o mortalmente com a espada e ao não suportar a cena

desvia os olhos. Gesto inútil porque à sua frente tem um grande espelho onde a própria

imagem com as feições lívidas e manchadas de sangue caminhava ao seu encontro. Era

Wilson, ele falava, mas a impressão era a sua voz externando-se e, nessa cena final o paralelo

com O homem duplicado é impossível não ser feito:

Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás morto... Morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu vivias... E, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!”(POE, 1940, p. 21)

Como já tivemos ocasião de comentar, o narrador na história inventada de Saramago pensa

sobre a inutilidade da vitória fazendo referência aos dois homens na duplicação. De todas as

similitudes e particularidades a serem destacadas entre o romance e o conto, as influências ou

não, tomamos como primordial a referência do quanto é perturbadora a presença de um seu

igual na vida dos personagens. Em tempo: o fim interminável de Kierkegaard pode ser mais

uma vez solicitado mediante a solidão destacada em todos os personagens até aqui estudados,

com ênfase no duplo de suas vidas. Matar o outro ou assistir sua morte deflagra a maior das

altercações, àquela da qual não se pode impunemente fugir.

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Voltando à obra O mundo como vontade e representação, apresenta uma concepção de

que é possível atingir o cerne da vontade e dos sentimentos humanos através da arte, neste

caso do romance, porque insubstituíveis e inalienáveis. O mundo inteiro que é apenas

objetivação diante de uma vontade por conhecer-se requer a liberdade da consciência para a

representação; o que quer dizer que os pormenores de uma vida são possíveis de serem

representados pela arte entendendo que “a própria existência é uma dor constante tanto

lamentável como terrível;” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 281). Como esboçar então uma vida

em duplicidade? Onde apontar os pormenores propensos à diferenciação? Neste ponto,

prevalece no romance de Saramago essa dor não contida dos personagens, seja pela falta ou

excesso de uma humanidade sem distinção, sem pensamento próprio. À semelhança do que

encontramos em: “(...) tanto quanto posso saber não estou doente, o que sucede é que tudo me

cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição (grifo meu), este marcar passo, (...)”

(SARAMAGO, 2002, p. 13) Se a conduta dos homens está sob suspeita, o que fazer de si

também está. Ao mesmo tempo em que a vontade os identifica, sua aplicabilidade entra por

um processo de dúvida, decisões em rompante cujas conseqüências anunciam seres de

liberdade relativa. Retornando ao pensamento de Schopenhauer, encontramos um contraste

quando este vê que a essência do homem se dá pela unidade da sua conduta perceptível

através da razão; e se a vontade quer sempre vida não podemos afirmar o mesmo em relação

aos habitantes da ficção de O homem duplicado. Senão vejamos. Protagonista e coadjuvante

oscilam entre um comportamento e outro, ambição; desfaçatez; requinte de crueldade com o

sentimento alheio; medo; receio repassados de um ao outro muitas vezes dando idéia de que

querem esconder de si tais atitudes. Vista por esta perspectiva, a razão auxilia a supressão da

humanidade. Quanto à manifestação do querer, o filósofo alemão tem a teoria de que é o

presente, somente ele a forma de toda a vida. Isto está de pleno acordo com o abordado até

aqui em nosso estudo sobre a narrativa. Não se discute o passado dos heróis, quem compõe

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sua árvore genealógica muito menos o que acontecerá a eles num futuro próximo. É o

presente, o que acontece a eles agora o norte do romance. Caso as decisões ensaiadas tomem

forma, elas apenas desfocam o presente conturbado que os personagens mostram. Se

pensarmos como Schopenhauer que os sofrimentos são eternos e é bem a essência da vida,

com o duplicado temos uma confirmação. Ele era a própria representação do tédio antes do

filme. Após, tem sua vida alterada, é afrontado, negado, humilhado, desprezado e por fim

obrigado a tomar uma direção existencial. Enquanto isto não acontece, o livro deixa em aberto

qualquer afirmação da vontade de viver; a voz ao telefone é prova disso, repisando o mesmo

confronto do início. Os recônditos ficam por conta da humanidade em vistas de se firmar.

As ações, prestigiadas pelo filósofo da vontade humana, juntam o homem às vontades-

motivos. No romance, as ações de ambos os lados não alcançam ressonância nem a magnitude

de um querer condutor. São calculadas, sentidas a contra-pêlo inclusive repassando a idéia de

um sobressair em relação à disposição alheia. É claro neste contexto que uma ação invade a

vontade de outra na pretensão de negá-la. Conservar a vida assim pensada equivale além de

equilibrar-se na dor. Ao duplicado cabe a busca da manifestação antes da conservação.

A Literatura enquanto refrigério da dor de viver conduz o pensamento filosófico ao

que o escritor considera um modo de conhecimento puro, livre de todo querer (2001, p. 336).

Visto dessa forma, o professor de História que de um dia para o outro se descobre duplicado,

encontra apoio na professora de Literatura e senso de direção na mãe – assídua leitora de

romances –. Embora a concepção de mundo aponte à impossibilidade da fuga do

aborrecimento, a arte é o que pode preencher senão a vida inteira do duplicado, alguns

momentos de vida.

A vontade, colocada por Schopenhauer como a própria existência independente se em

conjunto ou por partes, faz do homem um ser propenso a necessidade, miséria, lamentos, dor

e morte. De acordo com essa disposição, a questão de se chegar à individualidade perante o

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resto do mundo acaba numa identificação com estes fatores. Pois segundo o escritor, é

impossível fugir deles porque a vontade de viver está atrelada à afirmação da vida, esta, “já

não se liga ao fenômeno particular, ao indivíduo determinado; ela abarca a própria idéia do

homem em si, (...)” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 377). Prossegue o querer-viver que

somente encontra obstáculo no conhecimento, transformado pela liberdade, é tomado pelo

homem possuidor no mundo da Vontade sabedora de si mesma.

O texto de Saramago resvala na idéia de que a morte não funciona como o fim

daquelas intempéries próprias do pessimismo, é ao contrário, o começo de uma nova

perspectiva a ser apontada: a individualidade. Sob questionamento do início ao fim do livro,

esta nos revela o quanto há de enleamento na vontade de viver em particular ou no conjunto.

Enquanto o conhecimento obtido com a duplicação desconstruiu a idéia que o protagonista

tinha de si, a vontade aqui se manifesta como uma não-vontade porque fica em vias de tomar

seu lugar, atributos de seu ensimesmamento. A apatia de Tertuliano enclausurado em si por

causa do trabalho, a vida sem nenhuma vontade acaba na consciência disso, porém na

ignorância do que possa realmente representar a sua (grifo meu) vontade. Ao ignorar o que

quer confirma o nada saber de si. Não é o menino a se fazer homem, mas é o homem com

toda carga de experiências aos trinta e oito anos que sente a necessidade intransferível de se

construir sem ter ninguém por parâmetro. As experiências que julgava suas, se extrapolam,

pertenciam a um seu igual que, agora morto, o obriga a ser ele mesmo. Neste emaranhado há

a desilusão do ineditismo, concomitante ao nascer de novo é a certeza maior diante da

vontade de viver, em suspensão mediante o desprazer que o personagem demonstra em

relação à existência. Da mesma forma que Helena não pode mais ingerir comprimidos para

fugir de si, Tertuliano-António também não pode; ela se resolve primeiro tomando a iniciativa

de colocar a aliança no dedo daquele marido de mentira, olhando-o como se fosse a primeira

vez, ao passo que ele aguarda o desenrolar dos acontecimentos.

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Na penúltima página do livro, o narrador conta de uma conversação que irá se repetir,

como repetidos foram os homens no decorrer da história seja no querer ou na falta dele. Com

isso coloca que “o tempo arrependeu-se e voltou para trás.” (SARAMAGO, 2002, p. 315).

Visto os conflitos não se resolverem, os problemas daqueles personagens podem ser

considerados os da humanidade. Em comparação, as equações de sentimento, materialidade,

desencontros são repassados no romance. Ao final, redundam nas palavras igualdade, gêmeos,

igual até chegar à afirmação-convicção de voltar que, escrita no futuro dá mais ênfase na idéia

de um possível desfecho. Se bem resolvido, é outra incógnita porque a pistola que no primeiro

encontro entre os homens da duplicação estava vazia, agora está com uma bala engatilhada. A

voz do outro lado da linha que quer o encontro (entre o pretenso original e aquele imaginado

solecismo a combater) recusa ser comparada a um fenômeno, quer antes o isolamento como

forma de dar espaço às probabilidades que os rodeiam.

Mesmo se tivermos em conta a tarefa do filósofo de acordo com Arthur Schopenhauer,

qual seja, a de explicitar a decifração do enigma do mundo, vemos sobrepujar a vontade sobre

qualquer indício definitivo referindo-se àquela incumbência. Aliado o conhecimento racional

e o intuitivo, sua performance parte da compreensão acerca do corpo para pensar o mundo. Na

complementação entre sujeito e objeto, a manifestação da vontade dá primazia àquele por ser

o núcleo corpóreo da representação. O princípio da individuação em Schopenhauer aspira ao

conhecimento racional o fato de buscar o significado moral. Sem embargo, retomemos: a

precisão de decifrar o enigma é germinada na reflexão humana perplexa diante do mundo

misterioso. O personagem narrativo que ainda não despertou para a vida, não se conhece e

não atribui sentido no que faz, ainda desconhece quem seja é o principal motivador para o

aparecimento do homem duplicado. Através do processo reflexivo diante do inexplicável,

tateia com cuidado a vontade; o corpo multiplicado, a dúvida sobre ser digno de representação

faz nossa correlação entre Literatura e Filosofia adquirir consistência.

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Ao prosseguir no escopo deste estudo, temos as habilidades do homem ao enfrentar

receios, o desconhecido na intenção de se fazer unidade, não importa se há de suprimir o

outro, o importante para o sujeito do romance é o vigor de existir. Na esteira desse

pensamento encontramos o Humano, demasiado humano (2004) no qual Friedrich Nietzsche

(1844-1900) através de aforismos trata de temas concernentes ao homem. Este, de espírito

livre, não é mais o indivíduo que se preocupa com a inversão dos valores habitualmente

utilizados e dos hábitos valorizados, está além de medir-se pela aparência. Ele é exigente,

mal-acostumado e se vê acima de uma multidão guiada pela unanimidade de opinião, se

interessa apenas por coisas que não mais o preocupam. Nietzsche que se inclui no rol dos

espíritos livres, se posta como um problema, um vir a ser, não há aqui uma lógica que

pressuponha sentido oculto, prevalece ao contrário, no mínimo o duplo sentido no qual se

insere a natureza humana. A coisa em si que tanto preocupou os filósofos é digna de risos,

porque ela está vazia, vazia de significado; não pode mais ser vista como a razão suficiente do

mundo fenomênico, exige do homem sua quota, interferência diante do mundo esvaziado.

De Schopenhauer, Nietzsche valoriza a retomada das formas antigas e potentes de

olhar o mundo e os homens, qual seja, a percepção da diferença. A representação (como erro)

é a fonte, a chance do significado passível do homem atingir; assim expresso, emerge o

ilógico de sua “relação fundamental com todas as coisas.” (NIETZSCHE, 2004, p. 38). O que

tem valor nesta hierarquia, é o conhecimento inexato e por sermos seres ilógicos, por isso

injustos, somos capazes de reconhecê-lo em plena desarmonia da existência. Ao homem

comum, o valor da vida vem dele se julgar como mais importante que o mundo, este, em seu

conjunto é sem objetivo, sendo assim, sente-se desperdiçado enquanto humanidade. Se não é

um espírito livre, fica o restolho ao pé do desespero, do contrário, é condição mais que

desejável. Vive para conhecer sempre mais, está acima do comum dos homens, costumes, leis

e avaliações tradicionais das coisas.

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O erro, a errância que Nietzsche trata como humana sina: “Quem pensa mais

profundamente sabe que está sempre errado, não importa como proceda e julgue.” (2004, p.

271) atrelado ao dever de trair os próprios ideais, faz do homem um sujeito mais coerente

com sua natureza, é nisso que o filósofo chega quando usa a expressão “eu superior”. Nestes

termos, o homem que teve sua vida interrompida por uma intersecção nunca vista (a

duplicação) se vê um erro enquanto se pergunta as conseqüências disto. Diante do que o

narrador chama de “eterno retorno” (SARAMAGO, 2002, p. 79) dessa busca inebriante por

ser homem num mundo plasmado pela incompreensão. Desenvolve-se então a riqueza do

personagem porque profundo, não se impõe nem pela imagem nem pelo protesto do que

considera injusto. Tem os dias atormentados pela opinião que não consegue ler como falsa.

Num primeiro momento, o ímpeto foi deixar as coisas como estão, ou seja, agir como se nada

de excepcional tivesse ocorrido. Entretanto, a urgente necessidade de saber de si, fez do

homem duplicado o erro em pessoa; aquele que desacredita de si, sente o desamparo, o vazio

da pergunta sem resposta: que é ser um erro? Transferir a questão ao duplo, não satisfez esse

homem suprimido de vontades. Nesse sentido, o “eu superior” de Nietzsche passa de

Tertuliano a António com a intensidade do modo criterioso por se fazer notar. Fraco a

princípio, tímido em seguida, questionável ao longo do processo e por fim, na dúvida em

acatar ao não à traição de si quando pratica a dupla infidelidade, bem como do abandono dos

ideais que nunca possuiu. O que ocorre em O homem duplicado e é sintomático de Humano,

demasiado humano é um olhar dúplice do acontecimento singular dos personagens: o

conhecimento de viver. O jogo que se instala no romance de curiosidade e meditação sobre a

conduta humana depara-se com um entrave. Porque não há a manifestação do “espírito livre”

de forma plena nas entidades ficcionais, apenas laivos dela. Tanto é que, ao professor cabe a

observação do segredo, ao ator, o agir como superior em sua opinião. Finalmente, o que seria

um problema à parte, fica comum a ambos porquanto a agudeza da questão envolve o ser

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humano, apto a perguntar sobre o que acreditou: nas verdades internas dignas de veneração.

Temos, entretanto, na narrativa, não a solução, mas perdura o enigma, vira problema cuja

incógnita não faz o duplicado senhor de si, ele é mais um entre muitos sem virtude. Se há um

pró ou contra considerados como seus, o protagonista ainda está em fase de descoberta para aí

sim, mostrá-los e mesmo guardá-los de acordo com as conveniências. Isto se explica porque,

com a morte do rival com sua personalidade, Tertuliano-António, ainda está prestes a ser ele

mesmo, preso a uma prerrogativa na iminência de acontecer. Ele está numa espécie de limbo

no qual os valores estão suspensos e a perda de personalidade se faz evidente.

A vida neste tempo ficcional é marcada pela desconfiança, é uma questão de se

apontar onde ela é maior: se na vingança pelo duplicado ter roubado o sossego de Helena ou

no uso indevido das identidades como recurso em potencial para existir; embora de forma

mínima e até incipiente. Cessa toda e qualquer obrigatoriedade externa com a morte de

António disfarçado de Tertuliano. Nasce outra mais profunda, mais impreterível, capaz de

levá-lo a olhar a hierarquia de poder no trabalho; ser expoente naquilo que somente ele

acreditava – ensinar História de forma invertida –. No entanto, para que isso ocorra é

necessário o primeiro passo que ainda não foi dado. A certeza que podemos extrair do

comportamento hesitante é em relação ao duplicado sair ao encontro da voz desconhecida

disposto a sobressair, sobre si? A voz intimidante? Ele que se instalou num mundo paralelo,

quer desmantelar o modo de ser diferente.

Friedrich Nietzsche desconsidera a lógica para tratar do homem, este que se tornou

humano, demasiado humano por causa de seu uso, na crença do poder proporcionado pela

razão em tudo provar e comprovar. Ao invés, aponta para a não correspondência da lógica

com o mundo real; assim como não há igualdade das coisas, não há identidade de uma mesma

coisa sob diferentes pontos do tempo. Para isso faz-se necessário segundo este ponto de vista

a descida do eu às profundezas, ter o ocaso significando o esvaziar-se de uma sabedoria

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antiga. O romance entra em consonância com o pensamento de Nietzsche quando convoca um

homem comum, sem atrativos para saber de si. Duplicado, perde o eixo de conduta, tem as

respostas esvaziadas e se coloca em desalinho a ponto de não ser ele mesmo e não fazer

correlação com a imagem denunciante do vídeo. Fugindo da clausura das respostas imediatas,

pré-meditadas, o personagem se esmera em fugir de explicações metafísicas – assim como

Nietzsche – quando não se submete a solução simplificada, redutora do homem que encontrou

sua imagem, vivendo outra vida num filme do qual não participou. O vir a ser é mais do que

evidente no livro dos homens iguais. Arrastar o próprio corpo; ter o ermo enquanto proposta

de recolhimento faz do homem que acordou entre os muitos a dormir, um ser predisposto a

estar entre outros homens após profundo recolhimento; embora saiba de antemão que o

homem é algo a ser superado em benefício do super-homem. Então, a vida e a experiência em

O homem duplicado, de início estão sob suspeita, no final há apenas indícios de ambas,

predominando dessa forma o caos na vigência e vigor do homem. Situação análoga ao

testemunho do herói Zaratustra: “é preciso ter ainda caos dentro de si, (...)” (NIETZSCHE,

2005, p. 41). É perceptível que a essência do homem neste romance, não é atingível, nem é

seu propósito, antes há o viver estipulado num aprendizado, não está nem fica completo como

é da índole da natureza humana. Resta, como indica Schopenhauer, atinar com a manifestação

da vontade de que o homem dá expressão na narrativa; sendo o ponto de partida infenso a

qualquer dúvida lógica, em compensação baseado numa certeza verdadeiramente imediata do

mal físico e moral. Estipulado nestes termos, o duplicado tem para si, em si, o sentido de sua

experiência; é no seu corpo que se encontra o substrato, se vê num espelho tosco e imperfeito

cuja conduta anseia a prioridade perdida para o invólucro.

O que tem de humano, demasiado humano no romance é a abordagem da

irracionalidade do tema duplicação, no sentido de fazê-lo sem volteios científicos, sínteses

genéticas, comprovações a serem feitas; há por outro lado, um raciocínio de possibilidade da

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existência com base nessa irracionalidade. A felicidade, razão e virtude aqui assumem o nome

de náusea. O campo de sensibilidade do homem duplicado fica sob a condição de fazer de si

fonte de experiência. Primeiro aceitando-se como erro, depois enxergando nisso a

oportunidade de livrar-se da comparação. No capítulo “O homem em sociedade”, Nietzsche

trata das cópias: “Não é raro encontrarmos cópias de homens importantes; e, como no caso

das pinturas, a maioria das pessoas prefere as cópias aos originais” (2004, p. 197). No caso do

homem duplicado, ele é o tipo que passa despercebido aos olhos da sociedade, porém, é o

mais importante na narrativa porque é a cópia, embora sabendo disso recusa o rótulo. É

negado enquanto tal e o mais importante recusa-se. Quem prevalece o original é a questão que

se instala, mas não é ser original a relevância da vida de ambos. O que chama a atenção é o

questionamento de como ser cópia num mundo sem originalidade. O obscuro e a inexplicação

na trajetória dos dois é o que adquire vulto, importância porque o homem dessa medida é

mais humano sem ser demasiado, é simplesmente humano quando entende que a clareza e a

explicação lógica das coisas são reducionistas. Dessa maneira prevalece ao homem o ser

ponte e nessa transição, nesse ocaso o estar a caminho como bem visualizamos na narrativa.

A filosofia de Nietzsche geralmente está associada a termos como: super-homem,

eterno retorno, vontade de poder. Pensando nisso, a obra literária que ora nos ocupa se afasta

desta estereotipia por avançar na compreensão do homem de espírito livre atento às

desavenças interiores. Território onde não cabe mais o homem que a tudo apequena, a

existência humana ainda se mostra espantosamente sem qualquer sentido. Alguém que se pôs

a caminho sem se preocupar em fornecer respostas, também dispersa o conjunto. A arte de

viver pode ser comparada à cautela no escrever e ensinar. Se o sujeito for professor – aqui

temos um paralelo com personagens de narrativas distintas da obra de José Saramago (José

Anaiço e Tertuliano) – o conhecimento só o satisfaz quando pode ser ensinado. Acaba por se

considerar via de passagem, anulando-se em seriedade para consigo. A proposição de

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Nietzsche nos leva a ver especialmente em Tertuliano Máximo Afonso esta seriedade perdida.

Encontra-se na dúvida sobre como corrigir os erros dos alunos se ele mesmo se sente

inadequado; é simultaneamente indulgente, dispersivo, crítico em relação aos educandos que

não acompanham seu raciocínio e irônico com a falta de lógica com que se comportam. Isso

está associado ao problema pelo qual passa e não consegue encontrar a direção certa que

sempre considerou ensinar. É ele quem terá a incumbência de aprender mesmo às apalpadelas,

pois não há pegadas a seguir. Do outro lado da história, o ator que ao fingir muitas vidas, terá

um papel novo a desempenhar porque não há performance parecida na qual se espelhar.

António e Tertuliano terão uma vida a adotar diante de concepções questionáveis, quando se

dará a ruptura pela adoção do rosto é a questão que não se esgota no romance.

Quando o filósofo associa verdade à idade, observamos no simples deixado de lado

pelo homem comum, já maduro, algo que Nietzsche repudia porque nas coisas singelas

ignoradas, encontramos o que há de mais alto em espírito. Seguir o próprio caminho aliado de

si na perspectiva de se criar, conseqüentemente ao mundo, esse homem no ocaso tem muito a

descobrir. Pensando assim, o homem duplicado, com trinta e oito anos, é o sujeito que está

perdido entre a aparência trivial e a imaturidade em se tratando do autoconhecimento. O

infortúnio que foi a duplicação, trouxe conseqüências distintas. Com certeza mexeu com a

sensibilidade dos dois atingidos; a dor e a emoção passam a ser vistas sob ângulos irregulares

a se conduzir enquanto mal humano, necessário? A dor de um é a satisfação do outro e a

emoção ganha volteios de sabedoria, aprendizado, seja pelo aspecto da surpresa ou do

descaminho significativo. O dizer “não” à figura duplicada equivale à conquista do direito de

criar novos valores – o sim da criação junto ao seu mundo – conforme propugna Nietzsche.

Ao estudarmos a grandeza do homem na narrativa de José Saramago nos deparamos

freqüentemente com um acontecimento singular que o envolve, o toma para matéria de

discussão. Da duplicação à cegueira branca, uma jangada de pedra a atravessar o oceano, o

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espaço de uma Conservatória de Registro Civil, uma ilha desconhecida à vista, enfim, algo

que dê conta da exceção que significa o homem num mundo cheio de vicissitudes cujo

exterior se mostra, embora perdure o sentimento de escassez.

As narrativas mais recentes do escritor português, dentro desse debate acerca do

homem, o vê sem uma origem (duplicado apenas), tomando-se como obrigação de se

construir, gastando seu montante de energia sob o encalço de ser governado por si. Ao

discutir e ampliar a vontade de viver (no estilo de Schopenhauer), seja negando-a, seja na

ânsia de modificá-la, o faz sem contrabalançar à fadiga. Ao contrário, desejando-a até, como

forma de expressar-se pelo descontentamento de estar e não ser no mundo. Se há um olhar

dirigido ao futuro, está contaminado pela melancolia porque ainda não encontrou as respostas

que tanto o intrigam. Nesse mundo da duplicação, desprovido de ordem como as fitas na

mesa, encontra-se o homem enfraquecido com o rumo dos acontecimentos. Mesmo quieto,

fingindo naturalidade, sua disposição interior revela que a suposta austeridade demonstrada

naquilo que fazia e era, mostrou-se apenas insuficiência bem como o seu pensamento não era

exclusivo como acreditava. Assim como Schopenhauer na certeza da felicidade estar atrelada

à dor em qualquer postura que a pessoa tenha na vida (viver pela busca do conhecimento,

resignado ou otimista) o que é descabido é fazer o sofrimento justificação da felicidade. No

romance, encontramos no homem de dores dobradas um sentimento além do estabelecido.

Adquire de início a postura de derrotado sendo logo desvanecida por uma busca; insatisfeita,

empreende outra, desta vez com perspectiva renovada mediante a convicção ao sair de casa,

também para um encontro num lugar afastado. Isto sinaliza para um desfecho o qual, no

entanto, não se dá.

Está certo que António Claro tenta a todo o momento rebaixar Tertuliano Máximo

Afonso, pelo nome, a história pessoal, o presente sem nexo e o futuro descompassado.

Também está certo que quando os dois se comparam, há descrédito mútuo através de

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subestimação. Quando o narrador se centra nos personagens na mais completa solidão, aí

verificamos um sujeito em desordem consigo. Sendo embora mais identificável porque mais

individualizado, considerada a forma de se ver no mundo sem o olhar judicioso de sua

imagem projetada no espelho.

O homem duplicado apresenta uma história cuja falta de diretriz na vida dos

personagens vem somar o chamamento que o sujeito se faz; chamamento este ocorrido por

causa da perda, insegurança no modo de vida, indiferença pela sucessão dos dias e noites. Em

vista de um equilíbrio, o personagem duplicado não encerra sua participação na vida do ator.

Sem existência, jogado numa mudança radical de vida, se vê obrigado pela situação a andar,

se ver numa noite sem manhã que o amenize nem meta final a atingir, visto ele e o fim se

confundirem.

A subordinação que detectamos no protagonista do romance em estudo, ocorre pela

coerção da força física de António, a moral do Senso Comum e a covardia dele mesmo, isto

tudo sem ser atenuado pelo narrador. Ao adquirir o status de personagem por si, o duplicado

tem a liberdade do espírito (em face ao pensar de Nietzsche), mas não sabe o que fazer com

ela. A dependência fica explícita assim como o interesse pessoal, justificado ao carregar em si

a imagem do homem que também está sob questão. Desapareceu o fundamento, inclusive a

verdade que lhe foi imposta como original.

À condição de verdade questionável em que se transformou o ser da ficção de O

homem duplicado, revela supressão de idéias sobre si. Isto se confirma com o desdobrar dos

fatos que a princípio o fazem cair em prostração, mistura de tédio e melancolia, tal qual

percebemos em: “É a carreira e o trabalho que me têm a mim, não eu a eles,” (SARAMAGO,

2002, p. 14). Dessa forma perdura a expressão de dúvida que o protagonista traz no

semblante, convertendo-o, até repassando-a aos demais personagens. Isto implica a

transformação no modo de pensar e agir dos habitantes da ficção, irrequietos por certezas e

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probabilidades. Ora é o desmascaramento, ora é o uso da máscara e ainda, por fim, a nudez do

rosto o elemento falho de justiça característicos nos atos dos personagens. Estes, instigados

pela curiosidade em estreita conexão com a habilidade de viver, avançam de opinião em

opinião a uma partícula capaz de singularizá-los. De um lado há a justiça cumprida por causa

do desfacelamento da harmonia entre o casal António e Helena, por outro, a traição de ambos

os lados da duplicação. Traição de si? Traição dos princípios? Há princípios entre eles?

No abandono das coisas simples da vida, das verdades ocasionais, no enredamento de

um modus vivendi está o fator de complicação da narrativa, absorta em traduzir a ânsia dos

personagens em meio à querelas de grandeza ou mesmo de minudências existenciais.

Voltando ao espírito livre de Nietzsche, os personagens num grau maior ou menor de acordo

com o olhar mais atento bem como as formas de vida que eles perfazem, podem se aprofundar

e se ampliar. Na medida em que se ocupam de ouvir o estardalhaço interior e tratam disto,

independente dos meios utilizados, são por isso humanos, muito humanos. Diversificados, o

professor e o ator de cinema têm em comum um ódio visível e outro abafado; sentimentos

nutridos por uma raiz entrelaçada, qual seja, a semelhança, encarada como acinte do qual eles

não conseguem se desviar. O divergente é a maneira de conviver com este sentimento: revolta

contida, revide planejado em detalhes e uma culpa sob medida crescem no romance correlatos

a própria minúcia e diligência usadas no tempo da exceção que vivem. Ainda é preciso

ponderar sobre este eu na contradição e confusão; é quem mais sinceramente pode afinar o

discurso a respeito da subjetividade, pois é um eu criador, com vontades, estabelece para e por

si os próprios valores a seguir ou não. Fala do corpo concomitantemente o solicita.

É importante estabelecer o modo como os protagonistas do romance tratam a

duplicação, denota perda de liderança sobre causas, intervalos de significação de si perante a

vida. Reverte-se o ângulo de sentidos. O homem atrelado a motivos e conseqüências

ocasionais, é colocado no centro sem ser o líder. Buscar um lugar entre a duplicação significa

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criar “o nada a partir do mundo.” (NIETZSCHE, 2004, p. 298) De repente, se sentir o nada,

encaminha nossa compreensão a dividir os homens iguais entre uma parcela da humanidade,

preocupada com a insignificância diária e outra concentrada na ruptura, algo que lhes conte

quem são de verdade. Temos sobremaneira a perda da ilusão acerca de si mesmo, perdeu-se

na narrativa, o sentido de viver adotado como único. Nas fotos instantâneas, na carta, a voz ao

telefone, os documentos trocados, há o registro de algo a sobressair ao desejo de

comprovação, se fosse o caso de clonagem. A imagem colhida longe de ser a representação de

uma perspectiva metafísica, mostra o sujeito em disjunção com sua humanidade: ao queimar

as fotos; desfazer a imagem/vapor no espelho; disfarçar a voz; enviar e depois buscar a cópia

da carta, tudo isto denota gestos de quem se ressente das idéias antes fixas, agora inexistentes.

Não há mérito a louvar, segurança nas decisões, há, sim, um intercambiar de emoções

inexplicáveis.

No embate do homem consigo no livro de José Saramago, o papel das circunstâncias

requer que saibamos de antemão que a hierarquia dos atos com os quais o personagem se

ocupa, é gerada com base em sua total falta de ordem. São, portanto, apenas índices de

conhecimento sobre o ser fictício imbuído num juízo duvidoso acerca do outro, que vêm a ser

o de si. Exemplos de vaidade, vingança, utilidade ou maldade na troca das identidades é uma

questão de mudança de ponto de vista por parte dos protagonistas, em agonia por se tomarem

como limitados, tudo arranjado sem a interferência do narrador. Disto resulta que o processo

de liberdade a ser instaurado, atende aos requisitos propostos para o homem ser dotado do

espírito livre: “será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se

transformar, de moral em sábia.” (NIETZSCHE, 2004, p. 82). Esta transformação é tão

latente na história inventada por Saramago que a imagem do homem é comparada ao casulo,

quase borboleta, quase ser humano: metamorfose na crisálida, mutação na imagem, na

conduta de interesses que são e ao mesmo tempo não são seus, homem duplicado. O saber que

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o professor ensina, perde o sentido também a moral teoricamente na mesma linha, deixa de

ser uma coisa bonita, pois quem sabe e o quê em tempo de duplicação é controverso. Ainda

na fase da procura pelo ator, Tertuliano aluga um filme com o sugestivo título: Diz-me Quem

És, tal assistência não logrou os efeitos desejados: “mas não veio acrescentar nada ao

conhecimento que Tertuliano Máximo Afonso já tem de si mesmo (...)” (SARAMAGO, 2002,

p. 90) e quando os olhos se congestionam e a fronte pesa, indica que o homem da narrativa

está se enxergando passar do estágio de brilho fácil ao da penumbra, desmistificando-se.

Podemos afirmar, atinge a sabedoria sugerida por Nietzsche, pois se desvencilha da moral

encarquilhada.

Ao tratarmos de humanidade e tomarmos o personagem Tertuliano como centro da

abordagem salientamos seu desejo de extrair de si o incômodo rótulo de duplicado. António

que se vangloria de ser o original de quem Tertuliano é a cópia, não oferece a complexidade

daquele em relação ao grande conhecimento que se anuncia na rota de vida cuja seta aponta a

uma via de mão dupla. Por se julgar bem resolvido, dono de uma história toda sua, António

perde em plenitude para Tertuliano. Este, sem a lógica com que julgava o mundo e a si, tem

agora que inventar-se a cada palavra, gesto, seja de fastio, desenvoltura naquilo que quer ou

pensa ser seu. Por isso insolúvel de acordo com a disposição dos acontecimentos, desacredita

não só das verdades do Senso Comum, mas, também dos pensamentos que lhe assombram,

pensamentos estes recheados de dúvida e desarmonia. Assim distribuídos, o pensar inexato e

os atos do duplicado encaminham a uma vontade livre, o que lembra o legado de

Schopenhauer, embora não se cumpra, o narrador deixa claro que ele tem a oportunidade.

Aqui o sistema filosófico de Schopenhauer cuja prevalência da vontade sobre a razão é

o locus amenus do homem, contribui na medida em que é insaciável. Desalojado, com base no

próprio corpo ele encontra a primeira chave diante das portas aparentemente trancadas, o

outro nome para se identificar seu lado humano. Neste momento é indispensável

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diferenciarmos o pressuposto desse filósofo no quesito, conhecimento adequado da vontade a

fim de se alcançar a meta traçada. Em primeiro lugar, o duplicado está no encalço do citado

conhecimento; então deixa em aberto se é conveniente ou não. Segundo, sem ser

propriamente uma discussão estética e/ou ética, a narrativa literária confuta as vontades de

seus entes ficcionais uma vez pressurosos em relação a seus corpos. Especificamente o corpo

duplicado não é – ao contrário do filósofo – o único lugar assegurado de o homem ver-se

idêntico ao fundamento do mundo. Destarte, ver-se na fisionomia do outro é a perdição para o

personagem e não a base sólida de sustentação para ele compreender o mundo e, por extensão,

dar-se a conhecer.

Com a duplicação, o homem adquire mais consciência de sua condição precária e

passa a valorar coisas das quais não se importava: um telefonema, a visita da namorada, os

conselhos da mãe, a presença do cão vendo nele autoridade, tudo enformado para que

Tertuliano cresça em perspectiva. Ao pesar as alternativas e medir as opções, o protagonista

do romance vê como partes de ilusão estar derrotado ou vencer o coadjuvante dos filmes,

ambos em desvantagem, sem lugar fixo aonde se possa apontar a título de distinção. Vale

lembrar que, instaurado o processo de mutação entre os personagens, ambos têm o sabor

amargo da derrota na boca, tal a afirmação de não estar certo nas vantagens de uma vitória ou

seu oposto. O que ocorre porque de Daniel Santa-Clara passando a Tertuliano Máximo

Afonso até António Claro, temos distanciamento e aproximação no modo de vida ainda não

vivido, intérpretes que são de uma história cujo fim requer assinatura.

Com a leitura interminável do livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas até a

procura por Daniel Santa-Clara, o António morto, mas Tertuliano vivo este já não é ele

mesmo e sim António disfarçado, temos não a evidência e sim adequação de motivos. De

forma que a liberdade tão preocupante aos homens da ficção, não é algo gratuito disposto pelo

narrador, é, ao contrário, centro de discórdia entre o sujeito que não sabe quem é e aquilo que

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irá fazer de si. Tanto é pertinente esta colocação ao instar às perguntas: o que irá acontecer?

Ou a variante, e depois? De onde vim, para onde vou? Repetem-se por toda a narrativa, de

maneira a levar o duplicado a retroceder em iniciativas, dominado por um medo de ser e viver

sem as amarras da convenção – protetora – mas de um preço incalculável: a cópia de si

mesmo.

No encontro onde os dois personagens se olham com profundidade, a António veio

uma estupefação da qual Tertuliano já tinha conhecimento. Esta reação é equivalente à de

Maria da Paz que da admiração nos olhos passa a uma expressão dolorida, uma falta de saber

de si extensiva ao homem postado a sua frente. Como entendemos, “a verdade é outra e bem

diferente” (SARAMAGO, 2002, p. 101), contamina os personagens, fato que acontece não de

súbito, mas, lentamente como se instalou a história do duplicado, de descoberta em

descoberta. Nos momentos em que se entrecruzam a obviedade da aparência e o desconforto

de não mais se enxergar nela, surge um silêncio perturbador, põe de lado a idéia de conjunto e

ganha contornos impensados. Aí o improvável se instala, a indecisão do primeiro passo a dar:

a pergunta a se formular e a incerteza da resposta a atingir. Quem é o homem deste contexto?

Sob quais pretextos se atinge sua condição de ser humano? Iniciativas à parte, o equilíbrio

receitado pelo Senso Comum cai em desuso à semelhança da adoção das grandes verdades.

Os trejeitos, subterfúgios do duplicado para encontrar Daniel Santa-Clara e mais tarde

António Claro, o fizeram se sentir ausente de si naquela figura que traz uma vida

desconhecida, mas também sua. O intrigante, este algo que ele mesmo não viveu, tem muito

de si sem ser ele; não convencido, também sem força para demonstrar que a experiência de

professor secundarista era uma vida inteira de dedicação a uma causa nobre, fica relegado a

segundo plano. Os objetivos em curto prazo, traçados pelo duplicado, aos poucos geram a

insatisfação que ele passa a demonstrar até no aspecto físico: aparência inesperada; o discurso

inconvincente e um assujeitamento naquilo que considerava as razões mais altas a seu lado.

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Além dos personagens que se envolvem com o homem duplicado em seu percurso

existencial, das interferências do Senso Comum em pontos culminantes no romance, temos a

aparição da voz desconhecida a anunciar algo desproporcional. Diríamos tratar-se de uma

espécie de auxiliar ou mesmo de versão mais sutil do narrador. É importante notar que isto se

dá também em narrativas como A jangada de pedra (1980), perfazendo o questionamento,

dúvida, lamento até, senão o que dizer a respeito do comentário acerca da insatisfação da

vida; da jaculatória sobre a existência da felicidade espalhada em mar, luz e vertigem ou

quando acontece constatações do tipo: “Nas perguntas que fazes é que mentes, se já sabias

antes a resposta, em tão pouco tempo duas vezes falou a voz desconhecida.” (SARAMAGO,

1980, p. 301). O agravante no livro cujos homens são iguais é a voz desconhecida ir aos

poucos tomando corpo, se projetar no espelho e ainda assim ficar ignorada.

Conforme salientamos anteriormente, os livros de José Saramago apresentam de forma

geral, um acontecimento que retira os personagens de uma vida pautada pela ordem. Há,

podemos nos expressar assim, uma suspensão do habitual a onerar a elucidação do que seja o

fato simples de existir com as implicações daí decorrentes. A jangada de pedra se ocupa de

uma viagem inusitada dos personagens a fugir da rachadura surgida nos Pireneus, a separar

Portugal e Espanha do resto da Europa. No começo, juntam-se Joaquim Sassa, José Anaiço e

Pedro Orce, todos com uma rotina bastante comum: professor, farmacêutico e empregado de

escritório. A fuga transcende o elemento surpresa e se configura na despensa daquilo que

fazem, sendo mais ainda daquilo que são. É indispensável registrar que eles saem em busca de

algo a mais “para ver, sentir e saber,” (SARAMAGO, 1980, p. 72), dito de outra forma, estão

separados da lógica do mundo. O encontro destes personagens também ocorre por fatores

incomuns que o narrador insinua como sendo a causa da divisão das terras: uma pedra atirada

ao mar, o chão que treme somente debaixo dos pés de determinado personagem; um bando de

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estorninhos a seguir o sujeito aonde vai; um risco no chão, tudo isto irá se somar para que a

viagem aconteça e os encontros potencializem a solidão de cada um.

As mulheres costumeiramente são um capítulo à parte nos livros do escritor português,

neste não poderia ser diferente. Joana Carda, formada em Letras sem exercer a profissão, irá

se juntar ao grupo após perceber que com uma vara de negrilho ao riscar o chão, inicia a tão

comentada erosão causadora da divisão entre a Península Ibérica do resto da Europa. Par de

José Anaiço, ela é responsável pelos caminhos do grupo. Já Maria Guavaira é quem se torna a

companheira de Joaquim Sassa, abandonando sua propriedade, o luto e a vida acertada de

antes. Ela mostra com os olhos, a nuvem azul por dentro a anunciar as coisas imprevisíveis

que estão por vir na jornada adotada. Também é a pessoa que descobre a jangada de pedra e

define seu uso.

Os personagens nesta viagem são obrigados a deixar tudo para trás, os pertences já não

servem como meio de definição do que são, fato possível de observar também no livro Ensaio

sobre a cegueira (1995), no qual os entes de ficção são obrigados a dividir o espaço único e

lutar pela sobrevivência. Tomando por parâmetro a duplicação, ficam suspensos os ideários

em longo prazo e ressalta-se a vida que eles trazem ou pensam conduzir. De modo análogo, os

passageiros da jangada têm consciência: o mais importante não é o que ficou e sim a vida

deles, com eles, embora sem definição segura a se apegar.

Mesclam-se silêncio e movimento num círculo de entendimento do qual não escapa

nenhum dos seres ficcionais, quando não mais se deixam aprisionar pelos efeitos da pressa e

impaciência. Na suspensão da qual tratamos anteriormente, retiramos um personagem mais

rico de atitudes e gestos em favor do lado humano o qual primamos nosso trabalho de

interpretação; mesmo que se reforce a incapacidade de compreender como Maria Guavaira

deixa claro. É idêntica em proporção a perplexidade de Tertuliano Máximo Afonso e António

Claro em rota de colisão pelo extraordinário que lhes ocupam. Neste momento é pertinente o

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comentário em tom melancólico daquele outro professor, José Anaiço: “Há coisas que

acontecem na vida, e às vezes são tais que não podem repetir-se,” (SARAMAGO, 1980, p.

277), se forem os homens a repetirem-se, aumenta a indecisão e mais ainda a complexidade

do que se projeta à frente, seja em moldura, seja no afastamento de quem sabe da distância

medida com a prostração daí resultante.

Como adotamos, o fato de sair de si dos personagens reclama aquele espírito humano

que eles encarnam, qual seja, a variabilidade do destino pendente da ação empreendida. Se

ninguém pode fugir dele como quer o narrador, é bem provável que o destino de outrem caiba

noutra pessoa. Mas, entre caber e assumir há espaços sem possibilidade de preenchimento,

porque se o “que tem de ser, tem de ser” (1980, p. 133) o personagem ao ser estremecido,

empurrado a viver, encontra a diversidade do mundo a partir de si. A experiência sendo única,

a pessoa pode ser “usada” por outra, não pode, entretanto, aproveitar por inteiro a sua. É

justamente isto o que os personagens tentam por toda a narrativa: fazer valer a própria

experiência de vida.

A confusão, a falta de horizonte dos que cercam os viajantes da jangada de pedra,

parece ser a instalação do reino do caos; das pessoas, retifica o narrador. Não é descabido

lembrar: o duplicado com as fitas e a vida revirada se vê dessa maneira. Aqueles personagens

vão à cata do que nunca tiveram, não tendo para si objetivos claros nem a utilidade do

deslocamento, a fronteira parece perto e longe a um só tempo. Algo propício a que

perguntemos acerca da delimitação, onde e quando fazer o traçado. Joana Carda também não

tinha noção das conseqüências de seu risco no chão, resultado, temos o caos no interior dos

personagens. A estrada que eles tomam para si rumo ao desconhecido torna-se o mundo

dentro de um mundo particular, assim o homem se descobre numa vastidão a explorar.

O processo desencadeado com a rachadura no chão e a duplicação têm uma relação

análoga. Entendamos. Os personagens a bordo da jangada de pedra, oferecem oportunidade à

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constatação do narrador: “Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira,”

(1980, p. 80), eles à deriva da realidade dura, experimentam a mudança no ato em si de refrear

aquilo que elegeram como prioridade. São, ao sabor dos acontecimentos, seres mais

propensos à unidade vincada com a diferença. Sozinhos como Pedro Orce ou formando casal

como os demais, deixam que o pensamento se transforme em movimento ao ouvir o apelo

daquilo que não se repete. Ao invés em O homem duplicado, a vida dos personagens em plena

maturidade dos trinta e oito anos, se repetiu, mas, com a variante de negar a fusão. Existem os

enganos, o chão que pisam parece firme para em seguida se desmanchar através do

pensamento feito restrição, abandono das respostas prontas ao lidar com os alunos à maneira

de José Anaiço. Respostas estas se transplantadas à existência do duplicado, perdem o efeito

esperado.

Em A jangada de pedra partiu-se o continente fazendo homens e mulheres especiais se

juntar em direção ao que não tem explicação. Já em O homem duplicado, o homem está

partido entre uma história que não é sua, pensa ensiná-la quando na verdade nem ele domina

o conteúdo em mente. Em termos de explicação, fica o rastilho, a terceira via do rio humano

sem margem a atracar. Parece despropositado tanto a viagem dos navegantes da jangada

quanto a busca pelo duplicado, contudo, o avanço se dá pelo alvoroço dos homens cada um a

seu modo, estando todos a escutar o silêncio conjugador. É de tempo, é de medo a jornada;

sem ilusão à vista, os percalços, os imprevistos, a escuta com o olhar e o baixar dos olhos em

sinal de entendimento, a tristeza, denunciam um sujeito acossado em sua condição. O

narrador ponderando a respeito da viagem em vista coloca: “o homem é um ser inteligente,

sem dúvida, mas não tanto quanto seria desejável,” (1980, p. 101) abrindo brechas para

considerarmos sobre essa inteligência desejável ser o acolhimento ao inexplicável,

redimensionar silêncio e solidão, fundamentais para se pensar o homem.

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Joaquim Sassa, José Anaiço, Pedro Orce, Joana Carda, Maria Guavaira e mais tarde

Roque Lozano formam o elenco que na jangada fica prestes a descobrir aquilo que Tertuliano

Máximo Afonso e António Claro encontram, depois de Cipriano Algor e Marçal Gacho

apenas esbarrarem na caverna, após lutarem em vão contra as cópias. O duplicado experiência

o vácuo de ser da aparência, o sem sentido do que fazia e era enquanto se notava em conjunto,

em dobro por causa de imagens nada harmoniosas, dentro e fora dele. Não obstante, o pânico

de se ver repetido perdura porque não cabe mais a introdução de razão, ordem, coerência para

o caso inimaginável do homem duplicado. Dentro da jangada o que parecia um erro,

abandonar terras, profissões, inventar outro modo de sobrevivência, seguir os instintos de um

cão, com o duplicado em “sua metafórica navegação pelo rio do Tempo acima”

(SARAMAGO, 2002, p. 84) o erro se dilui num traço de união, perfazendo o inexplicado. Aí

percebemos uma lástima, a angústia, a insuficiência das palavras à beira do inefável. Homens

marcados pela provisoriedade acatam a suspensão por meio da ligadura dos sentimentos;

outro olhar de si, em si e do mundo. Por este viés entendemos a gravidez das personagens

dentro da jangada, ignorando o pai, também a profusão de gestações ao redor deles, configura

nova etapa de razões a serem definidas.

O elemento de humanidade que os personagens apresenta, a diversidade de pontos de

vista: o que é traição? Conveniência? Humildade? Agir racionalmente? Faz com que eles

sejam sujeitos a se fazerem enquanto não coincidem com a liberdade adotada, seguem a

direção do lugar assinalado com um traço no chão, também a perspectiva que o espelho dita.

Outrossim, estão em busca da ilha desconhecida, da mulher desconhecida, do homem “muito

visto”, do sonho de voar da passarola que são os motivos condutores para que os personagens

vivam em plenitude suas vidas interiores – objeto caro na literatura contemporânea. Embora

pareça contraditório a vida interior ser mostrada com base em fatos externos como os

elencados, eles servem à imagem externa dos entes da ficção quando constatamos nestas vidas

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o vazio, a ilusão e solidão formando, deformando o homem. Logo, é bastante cabível a

pergunta que Joaquim Sassa tenta fazer por três vezes, tendo sempre a mesma resposta:

“Vamos por aí, a ver o mundo.” (SARAMAGO, 1980, p. 136). Se o mundo tem a dimensão

do sonho de cada um, se eles se juntam em torno de um único ideal, então os matizes serão

tão variados quanto for a capacidade de olhar deles. Sem, entretanto, ser um conhecimento do

mundo, mas de mundo capaz de captar sentidos incrustados fazendo-nos pensar sobre como

podemos conhecê-lo.

A pedra enorme que os personagens de Memorial do convento (1996) são obrigados a

carregar faz com que eles se sintam massacrados não só pela sua grandeza, mas pela força das

autoridades que determinaram aquela tarefa. Há outra versão em A jangada de pedra. Pedra

entre pedras, enorme, com a forma tosca de um barco, difusa, escondida, observada apenas

por aqueles cuja viragem dos dias não faz do homem uma ruína, é capaz de navegar no rio do

tempo tão humano quanto seus contornos. À credibilidade de ser conduzido por uma jangada

de pedra, por extensão acreditar ou não naquilo que se conta, vê, toma como verdade, é – nas

palavras do passageiro mais velho (mais experiente) do grupo – uma questão de acréscimo ao

que se é ou existe.

A princípio, quando José Anaiço, Joaquim Sassa e Pedro Orce ainda estão decidindo

sobre a viagem, fogem das autoridades, do cerco da imprensa porque sabem da reação que

provocariam se revelassem que fatos como uma pedra atirada ao mar, pássaros a perseguir, o

chão a tremer por baixo dos pés, foram responsáveis pela separação do continente. É similar o

comportamento dos homens atingidos com a duplicação. Escondem primeiro de si, depois dos

próximos, da imprensa, das autoridades temendo cerceamento, a curiosidade, o ridículo a que

estariam expostos. Isto em ambas as narrativas convocadas, comprova o pensamento do

narrador quando “não há um princípio para as coisas e para as pessoas,” (1980, p. 47), se não

há um princípio, uma verdade a descortinar, porque se falar em surgimento? Quando partem

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ou quando chegam ao fim da viagem? E se em outra passagem do livro, este mundo é na

reiteração do narrador, uma comédia de enganos, de quantos enganos se faz uma navegação

de cabotinagem, por isso de humanidade?

À descoberta se lançam os seres da ficção os quais ganham status de humanidade ao

adquirir formas trabalhadas de existência singular. Seja através de um subterfúgio, troca de

emoções entre luto e a alegria de um novo relacionamento, seja no abandono das coisas e

respostas que não clarificam o homem. As virtudes heróicas são outras e bem diferenciadas de

um tempo inteiriço. Ao duplicado que não consegue aprender-se repetido como os ciclos que

são uma vez para nunca mais, falta-lhe a justeza do julgamento com a quota de

indiscernibilidade. A harmonia vem de outro lugar. É embarcar rumo ao ignorado, encontrar

um mais que sósia e não saber as palavras a usar ao tom de desafio ou de perda da identidade

nunca sua de fato. À perda do continente equivale a do conteúdo interior, com isso, vem a

consciência segundo a qual a vida começa mais tarde.

A obscuridade das coisas e pessoas, o encontro e seu desenrolar faz esses personagens

variarem entre inquietação, desassossego, tal é a freqüência com que são relatados os

quilômetros e o tempo percorridos pelo continente em marcha. A despeito de a agonia ser

repassada para cada personagem em seu desconhecer, na chegada ou não, na sensação

desconfortável se valerá a pena, o reparo, o atavio é feito entre casas com paredes de labirinto,

janelas e portas fechadas. A sensibilidade à mostra no homem em meio à conturbada trajetória

da jangada de pedra é a escuta para além da ciência classificatória. Extrapolar a idéia de

fenômeno e enfim pelo tato, sentir que o desconforto, a estupefação são apenas etapas de

quem se coloca a caminho. Ao esmiuçar o convencionalismo de se atribuir tudo a um

capricho da natureza, o narrador e os personagens, estes em maior grau dão o toque da

diferença em relação aos milhões de pessoas que sofrem o abalo sísmico sem reavaliar a

própria situação. A debandada, o alvoroço da maioria é o sinal de que o movimento é

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percebido somente pela exterioridade. A atenção, o deter-se de José Anaiço, Joaquim Sassa,

Pedro Orce e os demais ocupantes da jangada é o diferencial assim como chega o tempo para

o homem duplicado.

A rachadura maior ocorre quando os homens da ficção deixam de ser viajantes

comuns ao encalço de uma fronteira, sem qualidades nem importância a destacar, para serem

os condutores de uma vontade de parelha com o pensamento. Maria Guavaira, por exemplo,

sabe que é alvo da cobiça dos empregados da fazenda; distante, poderia ser negligenciada,

mas excedeu em vontade e passa a ligar-se aos outros personagens, inclusive afetivamente. O

fio azul que o cão Ardent leva até Maria Guavaira lembra o azul profundo dos olhos de Maria

Adelaide em Levantado do chão. No mesmo instante que a cor lembra realização, promessa

de futuro harmonioso, o presente está ajustado ao enigma enfrentado pelos personagens.

Outro cão também auxilia o protagonista de O homem duplicado a tomar a decisão que

implicará os destinos envolvidos em sua história. Tomarctus fica perto, parece questionar,

ouvir os receios do dono.

Roque Lozano, um personagem secundário presente apenas no início e no final do

romance A jangada de pedra, considera a existência das coisas somente quando as vê, ao que

o narrador completa: “para que as coisas existam duas condições são necessárias, que o

homem as veja e homem lhes ponha nome.” (1980, p. 67). Tomando isto como provocação, a

situamos junto de Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, os protagonistas de O homem

duplicado. Temos nomes completos, homens investigadores do nome um do outro, se vêem,

mas não retiramos daí um conhecimento. É bom esclarecer, eles também não alcançam. É

preciso um movimento de reflexão mais apropriada para isto acontecer. A redução do homem

e do mundo é concomitante nos dois romances mencionados. Nesta direção, podemos dizer

que há identificação com a possibilidade de pensar o mundo e o sentido dele, dessa forma

fazê-lo aparecer. Não importa se atende pelo nome de cegueira branca, condicionamento

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numa caverna, o homem levantado do chão, compactado na duplicação, vale de certeza é a

chance de especular sobre a multiplicidade do caráter inacabado ali presente.

Os argumentos utilizados pelos personagens de A jangada de pedra são reveladores de

uma visão do homem cujos atos anunciam arrependimento por um lado e por outro, a

propulsão ao ignorado. Há um poder redutor, este informa o conveniente e marca os passos

dos homens dependentes. Há também o saber dessa condição e o querer sair deste envoltório,

talvez cedo ou tarde e provavelmente sem tempo para outra coisa; razão de choro e lamento

como faz questão de enfatizar o narrador, aqui num tom de amargura. Os protagonistas desta

narrativa se abrem para o que são, se transformam em exceção pois nem todos os homens

agem nessa diretriz.

Joaquim Sassa ao atirar uma pedra ao mar; Pedro Orce ao sentir a terra tremer sob os

pés e José Anaiço perseguido por um bando de pássaros, provocam estranhamento. Navegam

para além do previsto. Por sobressair o sentir em vez do fazer, o incidente de cada um,

despercebido aos olhos da multidão, nos permite interpretá-lo como peça na engrenagem

maior da existência deles. Adotam o ritmo da vida desacelerada, param para ouvir um ao

outro, porém, não se trata de uma viagem nostálgica na qual o passado é enaltecido. É o

presente, o que fazer de si o elemento com o qual se ocupam. Atitude que observamos não só

neste livro, mas nos posteriores de José Saramago nos quais a preocupação maior é com o

homem preso entre muitas opções de ser e viver sem, contudo, se identificar a qualquer delas.

Prefere antes, buscar uma terceira via. A imaginação fantasiosa secunda o personagem sempre

prestes à invenção de si, à parte, consegue subtrair-se dos medos de outrora, substituindo-os

pelos atuais. Qual caminho seguir? Em quem confiar? Há resultado entre ser invasor e ser

patriota? Quem dita o quê?

Dos inúmeros lugares por onde passam, especificamente em Lisboa, os ocupantes da

jangada, estão perdidos, não sabem em qual região do mundo se encontrarão daí a instantes,

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dias, quando não será mais o mundo e sim os homens a experimentar a mudança. Os homens,

os derradeiros? Os primeiros? Olham para estas coisas, não as entendem, assim como não

chegaram à conclusão a respeito das rotas percorridas pela jangada, estão à mercê da

compreensão. Ainda um passo, ainda uma milha, os personagens não são mais o chamariz

para que imprensa, autoridades e curiosos em geral tomem-nos como fenômenos a serem

explicados.

Joana Carda quando risca o chão com a vara de negrilho é quem mostra a necessidade

de ir ver as coisas acontecerem, ela e os demais se fazendo, mesmo desconhecendo princípio,

meio e fim. Embora não se retraia à incerteza, por certo a valorizando até, esta personagem

mergulha e traz seguidores nos experimentos e tentativas dos quais “tudo só parece, nada é,”

(1980, p. 126) se nada é e tudo parece ser, é exatamente neste sentido que os personagem

seguem, se transformando, acumulando experiências, abertos à impossibilidade. Igualmente o

homem duplicado deseja fugir da aparência, o resultado se mostra ambíguo, por isso o nada

deste contexto apavora.

Diante de expectativas e mesmo pela absoluta falta dela, o fato de pensar na

existência, procurar a serventia disto, o eu de cada personagem chega à conclusão da

ignorância acerca da vida. Incluindo aí o fato de não servir mais para nada a pedra atirada ao

mar, os estorninhos a voar sobre o professor e o homem da terra trêmula, o momento de se

atravessar é o mais importante. A presença de cada um deles formando a bifurcação: “somos

os mesmos e não nos reconhecemos” (1980, p. 166) propicia a uma compreensão a ser

empreendida. De personagem a personagem esta necessidade é repassada até chegar ao

duplicado. O narrador no início indicia que o homem não havia mudado, ele era o mesmo de

todos os tempos, ou seja, o mesmo inquiridor das coisas e pessoas. No entanto, está numa

“confusão cruzada de becos sem saída” (SARAMAGO, 2002, p. 204) entre o expresso e o

oculto.

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Estar juntos como a única verdade da qual compartilham, faz os passageiros da

jangada seguirem a caminho sem ter nem para quê, mas confiantes na continuação da viagem;

tal qual o duplicado sai ao encontro do sujeito cuja voz é igual a sua, deixa um bilhete

informando de seu retorno. Volta por isso o desejo de conquista, a vontade de entender e as

vidas por se fazerem.

Na oportunidade desta interpretação cabe pontuar, a posse de si é de outro rompante. É

o despontar de interrogações não satisfeitas, lutar contra uma espécie de deus feito à imagem

e semelhança daquele que interroga, por isso ignorado. Debater-se significa ir contra o refúgio

em si mesmo, a escolha de vida, não sendo feita, impõe-se. A rigor, podemos afirmar que o

homem narrativo, introduz-se em cada acepção da qual se torna consciente de não existir. Isto,

quando se expõe a um fato na intenção de fugir de si indo ao encontro de outra vida aos olhos

de terceiros. Não se trata, todavia, de internalizar vida alheia, assumir outro papel, mas fazer a

diferenciação. Intenso, duplicado, o homem está através do outro, sofrendo por conta própria.

Terrificado ante à possibilidade de se ver humano, simplesmente humano sem nenhum

disfarce auxiliar, o pavor é transmitido do inusitado à normalidade. Sozinhos, os homens

enfrentam o inumano tenha ele o nome de exploração ou duplicação. O ponto de intersecção

se faz ao atribuir um sentido à vida a qual desmascara mais em cada passo que se pensa ser

pessoal.

A dignidade humana tão requisitada pelos personagens de O homem duplicado tem

força motriz intensa. É o sujeito que não se enquadra numa representação, ensaia protesto por

se ver rebaixado na condição social; no poder de intervir junto ao processo de trabalho da

escola e, contudo, é reprimido através da força física, institucional e mesmo pela fraqueza

moral sem poder disfarçá-la. Quando tudo aponta para que uma decisão firme seja tomada,

essa mesma condição humana se esboroa. Tertuliano Máximo Afonso não tem sagacidade

para escolher ser António Claro, muito menos a assumir-se perante o mundo que chora a

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morte do ator Daniel Santa-Clara e da jovem Maria da Paz de quem foi noivo. Encontramos

em decorrência, reforço na hesitação de antes, o dono de uma dor intransferível é condenado a

ser si mesmo. Tanto é que nem mesmo a voz ameaçadora ditando os passos a seguir impele o

herói a duas vidas, mistura de esperança e angústia. O sofrimento de ser homem aqui se

impregna não mais pela impotência de ajudar outros homens a sair de uma situação de miséria

existencial, porém do pensamento sem consonância consigo. Na duplicação não há

transformação pelo aspecto social, desse sofrer oriundo das mãos de outros homens e sim pela

mutação de si. Homem mais condizente com sua physis é levado por meio das reflexões mais

aguçadas que a do Senso Comum, a entender-se como capaz de liderar uma revolta particular.

A dor deixa de ser fundida no intuito de recepcionar os meandros da falta de compreensão.

Se o homem não havia mudado conforme o narrador faz questão de salientar, quem é

então esse homem que, duplicado ainda se debate com a questão de ser um erro? A sensação

de estar integrado a alguém desconhecido e ao mesmo tempo parecido, causa repulsa,

cessação de desejos, causa ainda mais dúvidas sobre o peso da vida destroçada em verdades

arruinadas. Esse sujeito cognoscente isento de vontade é alguém que contempla o objeto de

seu querer, dentro do legado de Schopenhauer, para quem as idéias facilitam a relação com a

vontade. Através de um livre e consciente esforço o corpo do homem “anuncia a existência de

uma outra verdade, para além do mundo representado.” (MOREIRA, 2004, p. 275). Havendo

desprendimento do corpo – o debate em si no romance – podemos dizer que o indivíduo

torna-se sujeito do conhecimento em pauta e acede à idéia. O altercar prenunciado na

assistência do filme fez Tertuliano perder o ar professoral dado seu corpo, vida e história

ficarem à mercê de um outro conhecimento a despojar.

A humanidade extensiva aos personagens da ficção de José Saramago conta atrelar-se

a si mesma de acordo com tudo o que morre e nasce de forma incessante. Uma existência ao

encalço da própria explicação requisita para si a força que outrora fora despercebida, apesar

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de parecer aos olhos comuns feita de fraqueza inquestionável, os recursos são muitos e apenas

uma vida não é o bastante. Há de se contar com a duplicação espécie de sentimento do vazio,

desencontro entre ser mais e parecer menos tendo a piedade desperta. Se nada existe em face

da reflexão aqui necessária, é preciso nortear os pontos de vista, incumbir cada um dos seres

da ficção a sentirem por conta própria. Entendido dessa forma teremos mais chance de nos

aproximar de cada um sem fazer explicação mecanizada ou até mesmo falar por eles.

A fim de maturar nosso pensamento acerca do tema que ora nos ocupa, convém

retomar o discurso do narrador ao final das ações no romance O homem duplicado. Houve a

morte, a difícil conversação entre o morto/vivo, mas falta algo a mais pendente do fazer

intransferível. Temos então: “não há quem perceba o espírito humano,” (SARAMAGO, 2002,

p. 284). Na voz do narrador isto soa à conclusividade. No entanto, dito em referência a um

personagem completamente desnorteado sobre qual decisão tomar entre viver a vida de outro

e morrer para si ou não assumir a vida alheia nem ser ele mesmo, cabe uma percepção mais

abrangente. Se tomarmos o espírito humano sob a cadência daquilo que cada personagem

resolve fazer de si, então teremos infinitas ponderações. Desde Schopenhauer convocando o

homem a agir sob o impulso da vontade interpretando a experiência no intuito de

provavelmente encontrar a essência do mundo partindo-se do corpo até Nietzsche com a

impulsão a ser um espírito livre, desdobramos por este prisma, o reforço da idéia segundo a

qual a alma humana é algo que não se enquadra num esquema de representação. Limitado o

olhar ou mesmo visto por cima, as surpresas se esvanecem na medida em que o protagonista

de uma vida se vê procedendo de acordo com o que considera justo e honesto. Não alguém

desprezador do próprio corpo, mas no auge de experimentar os sentidos daí decorrentes;

inclusive olhar e desprezar seu oponente.

O duplicado haurido na humanidade disposta entre modo e configuração

disponibilizados na fala do narrador: “Tanto é o que precisamos de lançar culpas a algo

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distante quando o que nos faltou foi a coragem de encarar o que estava na nossa frente.”

(SARAMAGO, 2002, p. 11) contribui num sentido por se fazer; é a necessidade de lançar a

outrem a responsabilidade de interpretar algo inédito qual seja, o reflexo do espelho. Este

ainda não visto, essa dor antiga não suplantada por algo distante e próximo ao mesmo tempo,

faz com que a humanidade do personagem se ressalte por meio das restrições tácitas feitas por

si. A pergunta, quem é o ator, de repente se transforma em, quem é o homem? Quem sou eu?

E, através de respostas nem sempre precisas, razões investigadas, o personagem ganha feições

inusitadas. Não se trata de um talento exorbitante, de um marco no ensino de História, é

simplesmente o homem que viveu à margem de si, em tudo se cansando e aborrecendo.

Desperto ou bem próximo disto, começa a dar ouvidos, a aprender com as pequenas coisas da

vida. O espaço ocupado na existência da namorada; a preocupação do colega de Matemática e

num grau superior a da mãe; o despique do original; o gesto louvável de Helena ao final da

narrativa são motivos afins para o duplicado se entender melhor, veja-se em humanidade sem

a qual não pode prescindir. Lembrando Schopenhauer e sua ênfase na experiência do homem

para se falar de conceitos e princípios, é o caso de valorar a intuição e o sentimento sobre a

razão tendo em vista a concepção de humanidade às voltas com seu significado. Dito isto,

vemos a Filosofia secundar a Literatura, pois esse autor reconhece que nenhuma filosofia

conseguirá explicar tudo, sempre escapará algo porque a vontade primeva é misteriosa.

Entrementes, não só O homem duplicado, mas todas as obras literárias cuja viga mestra é o

duplo se acercam dessa idéia sem se incumbir de explicar o homem ou o mundo.

O professor confirma seu espírito vagueador e até evasivo por se colocar na imensidão

das reflexões que o formam, desencadeiam em seu presente, também na circunscrição do que

poderá vir a ser diante da história do duplicado. Ao experimentar a sensação de ser cópia, de

compor uma situação irremediável, ele constrói sua humanidade tão paradoxal quanto às

opções a serem feitas. De gente comum, passa a atitudes suspeitas de quem ao esconder a

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figura tranqüila do pacato professor, chega ao incomum, ao indecifrável, perfazendo desde

então o humano, muito humano. Perde, nesse processo, o equilíbrio para as questões cujas

forças constrangem: o que é ser natural? Agir sem suspeita? Ação ou inação? Amplia-se a

diversidade da vida quando é o homem o objeto de cópia, não exatamente igual no que se

refere ao entendimento, mas na procura, tão antiga quanto o mistério circundante.

Por falta de referencial, a humanidade do personagem brota em cada filme em que se

vê embora não tenha protagonizado, não ensinou ninguém a adotar qualquer espécie de

verdade, não delimitou as falas e, no entanto, é ele quem está lá. Uma vida transbordante da

lonjura existencial. Chora e sorri, sofre e se encanta, mas não vive essa vida. Tem as

dimensões, porém, não as traçou. Daniel, António, Tertuliano, os nomes figuram, porém não

entram em conexão frente ao centro de interesse em se discutindo o humano. Para um é a

luminosidade do néon e ao outro, a discrição da vida ordinária perdida, mas impotente em

encontrá-la. O problema está em que não sabe nem tem idéia por qual substituir.

Enquanto Daniel é o duplo de António, ambos com a clareza no nome têm em

contrapartida o obscuro por condição, por isso este inverte o papel e passa a procurar pelo seu

outro eu, a cópia. Tertuliano que é afinal o duplo encorpado de António coloca-se numa

constringência da qual não se liberta. Justamente é nesta condição que a narrativa se apega

para desfiar a gravidade pensamentada dos personagens, a exemplo: “não sei que palavra

poderia expressar agora a sobreposição e confusão de sentimentos que noto dentro de mim

neste instante,” (SARAMAGO, 2002, p. 125). Sem dúvida um deles é a vontade traduzida em

força original. Se lermos esta afasia do personagem com as lentes de Schopenhauer teremos a

negativa à razão competência em prol da introdução especulativa acerca do erro, a ilusão, a

dissimulação que nessa fase da vida assumem para ele a duplicação. Na parte prática isso

equivale deparar-se com o sofrimento, a ansiedade e o remorso; dadas as condições do

intelecto, o duplo se empenha em fabricar máscaras com as quais possa se ajudar no objetivo

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de ocultar seus interesses pessoais e o egoísmo. Não podemos esquecer que o disfarce do

duplicado (a barba e o bigode) é uma das muitas variantes (a máscara de ferro no castelo de

Zenda; a vida de Felix; o baile de máscaras de William Wilson; a vida do sr. Hyde) dentre

aquelas narrativas similares na temática. O propósito ainda e sempre é o mesmo: ocultar para

os outros e revelar para si o que não se pode mais ignorar.

Não se trata do balanço de duas vidas colocadas entre as vitórias e as derrotas. É sim,

o amalgamar das duas, a possível igualdade humana a vincular os personagens diante da

duplicação. As palavras não pronunciadas, as vitórias com aura de ilusão dão conformidade a

que os sujeitos da ficção se encaminhem à posturas diversificadas. Neste ponto, estão atentos

ao silêncio, de prontidão para acontecerem enquanto seres beirando à humanidade porque até

então, apenas ensaiavam. No entreposto, o homem não se aceita no papel de glosa tampouco

faz uso do arbítrio para se justificar.

No impasse de escolher entre rir e chorar, atuar ou ser sincero permanece “a secreta

angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura.” (SARAMAGO, 2002, p. 269).

À maneira da angústia dos entes ficcionais trabalhados, o protagonista de uma vida em estado

de duplicação, se ressente, se vê na reserva porque não atinge a resposta satisfatória ao nível

da existência. Desta forma, salta aos olhos tais questões: estar à altura de quem? Há

paradigmas a seguir? Se Tertuliano é o duplicado e o original está morto, como manter um

padrão de vida ao qual não ajudou a soerguer? Sendo o original na aparência não consegue

fingir para si mesmo, perfazendo por isso a reprodução da inquietação. O agravante do que se

faz e daquilo que se espera em se tratando do homem duplicado, vem a ser de acordo com o

inexplicável, do caos que tanto se debateu para colocar ordem. Assim diríamos, dele também

se colocar no enquadramento de uma resposta desejável para si e para os outros cuja visão era

a do sujeito bem comportado de antes.

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A imagem nova e clandestina da qual não consegue mais se livrar, se impõe com a

força da indiferença que o duplicado tenta aparentar. Por causa do terreno se mostrar muito

escorregadio, fazemos eco a voz de Maria da Paz pouco antes de morrer: “Não podia ir mais

longe, continuaria a não saber quem era este homem, salvo se ele próprio o dissesse.” (2002,

p. 312) e como vimos que ele não diz, prevalece a pergunta por que até o mais interessado no

assunto está em vias de se encontrar.

De acordo com o caráter duvidoso do protagonista ao longo da narrativa, percebemos

que sua vontade maior ao fim da história era sobre a normalidade da vida retomar seu curso.

Isto, entretanto, ficou fora de cogitação com a voz ameaçadora ao telefone. Vítima e algoz, o

duplicado traz em si o sentimento maior da anormalidade; a consciência de não saber

exatamente o que fazer, se um golpe ou uma fuga. Parece mais viável, mais fácil até que as

explicações não sejam dadas, muito menos as justificações para seus atos. Não esqueçamos

que o duplicado não respondeu ao convite de Helena para dar vida ao marido que ele

encarnava. Se por um lado seu desejo maior era deixar as coisas como estavam, por outro, sua

dor se aprofunda sob um embotamento cuja ação é empurrá-lo a congraçar com a vontade. O

que cabe perguntar, a vontade agora é original ou falseada? Por não se tratar mais da ocasião

de vinganças, a verdade é outra vez ponto de discussão quando o personagem sai ao encontro

de outro personagem seu igual, na clara intenção de eliminá-lo. Revela destarte, a falsidade do

véu que cobre o mundo envolto na individuação associada à unidade radical desfeita.

No encalço do protagonista de O homem duplicado, temos o propósito já proclamado

de observá-lo enquanto desencadeador do humano. Para isso neste momento, nos valemos do

livro de Hannah Arendt, A condição humana (2004). A estudiosa investiga o tema título de

sua obra sob aspectos que segundo ela, garantem ao homem seu estar no mundo. Vivendo

entre os homens, o teor da vita activa reforça a idéia de que o sujeito se faz em meio a uma

pluralidade asseguradora de sua condição, pois só assim é possível expor o pensamento que

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aliado à ação faz do homem um animal social e político. A grande distinção que Arendt faz

entre labor e trabalho corrobora sua argumentação rumo à localização do homem enquanto

definidor de seu espaço vivencial.

Do início ao fim do livro, a escritora é fiel à idéia segundo a qual o homem é um ser

político e como tal é reconhecido pelo discurso. Isto que faz com as mãos, as idéias tomando

forma através da palavra ativa, ganha sentidos dos quais são possíveis discutir. É justamente

este o propósito maior do livro, a possibilidade de refletir sobre a prática atual. A condição

humana vislumbrada com base na discussão de labor, trabalho e ação é uma divisão com

intuito de chegar ao ponto de entendimento no qual o homem ascendeu vôo da Terra, desta

até o Universo e de lá, mergulha para dentro de si.

O labor consiste naquele processo biológico no qual o corpo humano gasta suas

energias com vistas a assegurar sua condição humana. É sempre visto enquanto atividade

haurida em sacrifícios, dor; já o trabalho é a parcela da atividade que implica criatividade, é a

criação de objetos num mundo inventado pelo homem. Por último a ação – a atuação do

homem entre os homens – a pluralidade o torna fecundo à sua condição, com a ressalva de

nenhum homem ter ou vir a ser igual a outro.

O estar entre os homens requer a ação. A princípio, com a formação do pensamento

ocidental pelos gregos, ser ativo significava participar de assuntos públicos e políticos. Vita

activa perdeu a conotação política e passou a englobar o engajamento nas coisas deste mundo,

desde que estas não significassem o trabalho árduo com as mãos, visto como de menor

interesse ou mesmo menos digno dos homens de ação. A ênfase então recai na contemplação,

naqueles que podem usufruir do ócio para poder decidir os interesses da maioria. Num cosmo

governado por deuses, a mortalidade destacava a existência humana; assim, não temer a

morte, mostrar valentia e visar a glória era um sinal de imortalidade do qual só os

verdadeiramente humanos podiam se gabar.

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Com Platão reforça-se a idéia da separação entre contemplação e ação no destino da

polis, pois só os mais preparados, os filósofos poderiam governar. Com isso, o homem passa a

ambicionar a liberdade para participar dos negócios humanos, isto significava que ele deveria

estar livre das necessidades de sobrevivência, deveria ser dono de sua casa para exercer poder

lá fora. O social, o convívio com outros aflora o espaço onde se dá a excelência humana. Bem

entendido se e somente se, o mundo proporcionar seu exercício. Outrora a propriedade

assegurava a condição de cidadão, num mundo que exige maior participação na esfera pública

é a plena cidadania o requisito maior. Desta forma, voltamos ao ponto crucial destacado por

Hannah Arendt, qual seja, a pluralidade como fator de condição humana.

Pluralidade de opiniões, pessoas, interesses, todos passados pelo crivo do discurso, da

palavra vivificadora a reunir o homem, o projeta em realce além dos interesses privados. Com

uma visão aprofundada do pensamento de Karl Marx, Arendt faz a diferenciação entre labor e

trabalho. Antes da era Moderna o trabalho era considerado um tipo de escravidão. Com Marx,

ele passou a ser visto enquanto força produtiva capaz de alterar o processo social; assim a

vida humana na medida em que é criadora do mundo, está num processo de reificação,

prepondera por fim o reconhecimento do homem neste processo. Se o trabalho para Marx

efetua o metabolismo entre homem e natureza, o labor abarca as condições fisiológicas em se

tratando da condição humana.

A separação feita por Hannah Arendt entre Homo faber e Animal laborans é um

assunto que ocupa boa parte do livro para demonstrar quanto a criatividade foi sendo retirada

do homem enquanto ele passou a simplesmente se ocupar de tarefas cujo mérito era apenas

executar algo já pré-determinado. A arte neste contexto entra como uma espécie de pausa para

que o homem, ao fabricar coisas inúteis possa exercer a mais alta força intelectual humana.

Aliada à ação e ao discurso, o homem coloca um sentido a sua vida, com isto a pluralidade tão

enfatizada no decorrer do livro se configura recurso fundamental ao se falar de igualdade e

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diferença. A respeito de homens, ser diferente não equivale a ser outro; a alteridade se firma

através da singularidade, sendo que a pluralidade faz-se paradoxal entre seres singulares. A

palavra vertida naquilo que nos faz tomar parte na vida por meio da ação, só é possível num

mundo de liberdade, logo a efetivação da condição humana da pluralidade – o uso da palavra

ativa – é responsável pela distinção e singularidade entre os iguais. Junto ao jogo das

identidades, a sobrevivência do sujeito ante à vivência presente estilhaçada, aponta às

possibilidades de ação e reflexão desse sujeito.

Discutindo a impossibilidade filosófica em se definir o que o homem é e na

contrapartida de quem é para tratar da diferença, a vida humana constitui uma história e pelo

qual a História vem a ser; como não há autores explícitos, ela acontece mediante a ação. O

fato de o homem poder demonstrar sua condição humana está associado à disposição de agir e

falar, imiscuir-se no mundo e começar uma história por conta própria. Procurar quem é,

revelar e exibir a individualidade, faz do homem tanto herói quanto covarde no sentido da

liberdade desfrutada. Por outro lado, quando ocorre a ausência de relacionamento humano há

a desumanização nos termos de Marx, o qual faz do resgate da dignidade humana a essência

de seu projeto, ver o homem acima de um membro entre mercadorias intercambiáveis.

Podemos dizer que o homem passa a se ver enquanto caráter problemático. Isto perante O

homem duplicado e aquela trágica repetição num universo plasmado de imagens, resulta

nestas serem desveladas na capacidade de alienação. Também são sugestivas diante da atração

exercida sendo um sucedâneo para a miséria da experiência pela qual passam os construtos

ficcionais distintos na condição de duplicados.

O labor, esta necessidade imperiosa faz o homem ficar a sós consigo na procura de

manter-se vivo, o uniformiza e o faz o animal laborans. Na liberdade, o reverso implica o

elemento de começo ser substituído pelo processo, reforçando, a história é feita pelo homem.

Por ser deste modo, ao longo de sua existência coloca em prática a capacidade de fazer,

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fabricar e produzir, atributos estes do homo faber. Esta experiência humana só acontece se

tiver a ação como referencial, a capacidade de iniciar novos projetos, desta maneira encarece-

se a pluralidade humana. A liberdade, no entanto, tem seu preço, qual seja, o homem não

poder ter fé absoluta em si mesmo, já ambientado entre seus iguais. O nascimento, a

possibilidade de começar de novo, faz da existência humana singularidade sempre renovada.

O capítulo seis de A condição humana trata da vita activa e a era moderna no qual

podemos aprender sobre três eventos cruciais para se entender o homem na modernidade. São

eles, a descoberta da América; a Reforma e a invenção do telescópio. Todos têm em comum o

fato de partir da iniciativa, da interferência do homem na destinação daquilo que lhe diz

respeito. Portanto, ele é arremessado não a um outro mundo, nova perspectiva em relação ao

etéreo ou ao funcionamento de novos instrumentos possibilitados pelo telescópio, mas para

dentro de si mesmo, com todo o mistério que aí se esconde. Isto denota preocupação com

experiências entre o homem e ele mesmo, perfazendo com isso uma alienação em relação ao

mundo. A filosofia perde espaço para a ciência, então ditame das regras em relação a se

posicionar diante dos outros e das experiências mundanas.

Idêntico ao modo de a realidade ser colocada em dúvida desde Descartes, a condição

humana em geral extravasa a impossibilidade de confiar nos sentidos e na razão. Por

conseqüência, há a perda da certeza a respeito da verdade, a salvação se ainda houver deveria

estar no próprio homem. Hannah Arendt segue por esta linha de raciocínio confirmando que a

eminência está nas mãos do homem o qual traz em si a convicção da existência. Por isso se

pergunta o que fazer com ela. Diferentemente de Descartes e Leibniz os quais viam em Deus

uma explicação última às coisas, a modernidade ancorada na ciência, coloca no homem a

capacidade de conhecer o que ele mesmo faz, destituído embora, da idéia de poder conhecer a

verdade por meio da revelação, objeto de credibilidade àqueles filósofos. Há por esse motivo

uma espécie de elevação da mente, lugar fechado contra toda realidade a fim de sentir

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somente a si própria. Em tempo, na conexão entre pensamento e a experiência de sentidos,

característica da condição humana, o homem pode usar os resultados de sua mente por meio

de um sistema capaz de orientá-lo na atividade de fabricar e agir.

As descobertas da era moderna, segundo a escritora da Condição humana, inverteram

a ordem de prioridade entre vita contemplativa e vita activa. A primeira, relegada a segundo

plano, porque a sede humana de conhecimento foi saciada pela confiança do engenho das

próprias mãos do homem. O conhecimento e a verdade continuaram sendo de importância

vital, entretanto, só podiam ser atingidos por meio da ação. Diante desta situação, o filósofo

volta as costas à perecibilidade do mundo e se recusa à busca de um outro mundo de verdade

eterna, se recolhe a si. Desta conclusão, faz sentido haver também inversão dentro da vita

activa. As atividades de fazer e fabricar, prerrogativas do Homo faber, levam-no à convicção

de poder conhecer aquilo que ele mesmo fabrica. Se a produtividade associada diretamente à

criatividade identifica este homem, não se trata mais de relacionar os objetos de conhecimento

a um “por que”, nem a um “o que” e sim a um “como”, explicação motivadora para o

surgimento à idéia de processo, a história nas mãos humanas.

Contudo, apesar da importância atingida pelo homo faber na instrumentalização do

mundo, na fabricação de objetos artificiais complementadores de seu universo, a felicidade

passou a ser a medida na dor e prazer experimentados na produção e consumo das coisas.

Diante disto, o princípio da própria vida entra deduzida na parcela essencial no

aproveitamento daquilo que o homem faz. Na diversidade da condição humana é a vida a

invalidar as outras considerações a respeito das várias capacidades aí inerentes. Embora, isto

pareça um retorno à ênfase dada ao labor como atividade para manter o processo biológico, o

homem adotou e fez valer o princípio de que a vida é o bem supremo. Juntamente com a

inversão de posições entre ação e contemplação, o foco de interesse do mundo direcionado

para a vida, fazem o ponto de partida para o desenvolvimento moderno. A condição humana

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ganha contornos diferenciados à medida que se perde a certeza de um mundo futuro, o

homem moderno é arremessado para dentro de si e não a um embate com o mundo ao redor.

Não poderíamos deixar de mencionar que uma vez iniciado o combate, no rastilho dessa

forma de aniquilamento distinguimos o vazio emergente no homem, possivelmente o mais

certeiro produtor de sentido.

Dentro destes limites, a atividade humana na era moderna detém ainda a capacidade de

agir visando desencadear processos, porém isto se dá mais em nível científico quando se

procura aliar natureza e o mundo humano porquanto isto ocorra fora do âmbito das relações

humanas. A atividade de pensar ao transpassar todas as outras é vista por Hannah Arendt não

só como possível, mas também, indispensável onde houver condições de liberdade política. É

mais uma vez reforçada a idéia segundo o qual os homens vivendo juntos, democraticamente,

possam buscar os mesmos interesses, garantia da condição humana.

Ao procurarmos atingir o escopo desta interpretação, faz-se necessário discutir como o

pensamento de liberdade, palavra e ação podem entrar em conexão com o romance O homem

duplicado, uma vez que o lemos enquanto relação de experiência predominante na condição

humana. No início, o narrador destaca que o protagonista vive num marasmo. Com Quem

Porfia Mata a Caça, entra num universo labiríntico do qual extrai a convicção de estar no

mundo. Não se trata de observação tranqüila, ele está acompanhado de uma sombra que

raciocina, o implica na tangência do necessário e da futilidade os quais passam a ocupar a

condição humana de ambos. Tal o grau e a amplitude das perguntas repassadas pelos homens

da duplicação: quem sou? O que sou? O que é ser um erro? Onde o acerto?

A pluralidade tão acentuada por Hannah Arendt torna-se um transtorno no livro de

Saramago. Compreendemos que a estudiosa destaca esta idéia num espaço social onde os

homens possam viver em conjunto e lutar por melhorias na vida pública. Retornando ao livro

O homem duplicado, o ambiente de trabalho onde se insere o personagem protagonista,

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duplicado, constitui uma discussão, pois ele reivindica mudanças no processo de ensino. De

início, ridicularizado pelos colegas de outras áreas, ganha adeptos e por fim convence o

diretor a aceitar sua proposta. Redige-a, mas isso não tem prosseguimento, tamanha a

urgência do personagem se resolver enquanto duplicado; embora isto não tire o mérito dele ter

aliado a palavra à ação em função de suas convicções.

O horizonte definidor do protagonista é a liberdade, de antemão sabendo o quanto esta

expressa aguda forma de desencanto. Tem namorada, mãe, profissão, mas ele em si, não é

nada, se sente um nada mais ainda redimensionalizado com o sentimento de ser fotocópia do

ator, também fingindo ser o que não é. A liberdade desfrutada está encharcada da presença de

seu outro eu; dessa maneira é uma liberdade relativa. Age na busca do original, quer seu

nome, endereço, saber daquela existência que não compartilhou, quando enfim a obtém, não

sabe o que fazer com ela. Nem sabe ser o outro nem sabe mais ser ele mesmo, uma vez que

nunca o foi.

O uso da palavra é outro aspecto merecedor de atenção. No espaço público, o homem

duplicado denota ser um sujeito de vontades, expõe a idéia que segundo ele ajudará o ensino

de História. No particular, precisa do disfarce da voz, da barba e do bigode do ator para se

apresentar diante daquela figura que espantosamente é a sua. Quando estão nus um diante do

outro, ele é a representação em pessoa, se acovarda diante da argumentação mais incisiva do

ator. O fato de ele abaixar os olhos, abaixar a cabeça e depois se martirizar com o que poderia

ter dito e não o fez, deixa sua condição humana atravessada pelo discurso do outro. Se

pudéssemos acudir à unidade entre os personagens seria em relação ao sentimento de

iminência do naufrágio a que estão sujeitos.

O lente de História cuja vida se faz à maneira de portas fechadas, não se entreabre por

meio de um processo de libertação do labor ou mesmo do trabalho, nem ainda da ação. O

discurso, a palavra é o fator predominante em se tratando de sua condição de homem, mesmo

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sendo um duplicado. Todavia, esta não se refere a um contexto de trabalho, amor ou no

aspecto social. A palavra dele ou seus interstícios, a sós consigo, é atormentadora porque não

leva à ação, antes à dúvida de como chegar ao si mesmo, como fugir da forma plural!? Como

se desvencilhar deste consenso (?) (duplicação) que o achata enquanto ser humano!? Ciente

mas não convencido, a contemplação toma conta do personagem. Meios, restrições, harmonia

desacompanhada passam a ocupar a mente fechada para a realidade e ocupada exclusivamente

com sua condição humana sob debate. Assim, faz sentido que na visão do professor a

qualidade de ensinar a História de frente para trás, acarrete “manter sempre a corda tensa, sem

quebra” (SARAMAGO, 2002, p. 80), metáfora consistente à experiência de cunho privado.

Ser objeto, uma coisa perto do outro com sua pessoalidade garantida? Como fugir da

sensação de ser reificado? É compreensível Tertuliano se sentir deslocado, indeciso quanto às

palavras a usar, com o agravante de não poder criar alternativa nova como o fez com o que lhe

perturbava no ensino de História. A situação de impasse é ele, dele, se encontra nele

compondo a espera.

A referência feita por Hannah Arendt sobre a arte tomada por espaço possível de o

homem exercer a capacidade criativa, uma vez que o trabalho na era moderna está destituído

desta, também pode ser visto no romance. O personagem principal da trama descobre-se

duplicado. O homem de quem ele é duplicado é um ator; a arte de fingir passa de um ao outro

quando eles precisam da sinceridade para se encontrar enquanto seres humanos. A

criatividade em questão é fazer da realidade que os comprime, a arte de viver, portanto, sem

regras nem modelos de orientação. Não se trata de querer ser igual ao outro, ser o outro, mas

ter uma identidade intransferível. Isto compreendemos, não se realiza dentro de um processo

tranqüilo, como neste trecho que o duplicado vê nos recursos do ator, a própria imagem:

“Durante uns minutos esteve imerso numa espécie de sopor, ausentado de si mesmo,”

(SARAMAGO, 2002, p. 157).

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No caso, a ação levada a propósito pelo discurso do fingidor, se revela inócua. O

embaraço aumenta na medida em que não se estabelece um sentido para a vida de nenhum

dos dois em conflito. Ressaltemos, este não ocorre só no plano das palavras. Há ameaças do

uso da força física por parte de António e do uso da pistola por Tertuliano. Mesmo não

havendo bala no revólver no primeiro encontro, no segundo ela simboliza que a palavra, se

perder seu poder de convencimento já não ficará vazia enquanto resultado para o desejável de

imediato: se livrar de uma imagem feito à sua semelhança.

Ao invocarmos a distinção e a singularidade entre seres iguais, a palavra criativa desta

vez perde terreno, senão vejamos. O duplicado decide inicialmente romper com a namorada

porque não encontra sentidos para continuar na relação. Com uma desculpa e outra protela o

compromisso porque isto lhe convém, no intuito de obter as informações sobre o ator.

Surpreende-se com o discurso de Maria da Paz, sucumbe inclusive diante das observações

desta. Em relação à Carolina Máximo não é diferente. A mãe com a experiência e o

conhecimento a respeito do filho, o faz ver que as palavras usadas para conduzir a vida tinham

mais incoerência do que ele imaginava. Acerca de António, aí sim o discurso de Tertuliano se

apequena. As palavras parecem lhe fugir, não têm mais a importância suspeita, tenta se vingar

embasado no gesto do rival. Outra vez perde a eloqüência diante de Helena, se acovarda em

partir depois de consumada a primeira intenção. Quando por fim conta-lhe a verdade, revela

também não saber o que fazer de si, não há meios nem palavras capazes de lhe definir. Diante

da postura inesperada de Helena, de sua proposição para ser o marido que ela perdera, as

palavras não lhe vêm auxiliar. Para ela, o gesto de colocar a aliança no dedo esquerdo de

Tertuliano significava uma outra primeira vez. Para ele, embora quase abraçados, não

entendemos como um caso de aceitação definitiva e sim um retorno à difícil decisão de

escolher entre duas mentiras equivalentes a uma vida. Portanto, a palavra no romance não é

índice da distinção entre dois seres coevos e coiguais.

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A ação desencadeada pelo discurso do duplicado, ao invés da criação de uma história

cuja singularidade seja explícita, leva-o ao contrário, ao enredamento de supressão. De um

interior insatisfeito a um exterior refletido, a ânsia é apagar a imagem do espelho, a

reprodução da fotografia, dar um sumiço nos artefatos que escondem o rosto intercambiado e

pôr fim na voz cuja igualdade ameaça ser transposta ao corpo e a vida de supostos gêmeos

indistintos ao final do romance. No que interpretamos como a humanidade em destaque na

narrativa, seja em simplicidade ou complexidade, prepondera os personagens se fazerem

justamente por isso, humanos, sem ser em demasia.

À possibilidade de leitura de O homem duplicado junto a O mundo como vontade e

representação, faz pensar no quanto o homem é ignorante acerca de si não se situando no

mundo. Apesar de no romance não podermos traçar o roteiro de uma identidade e sim debater

sobre o tornar público tal façanha, o personagem não se constitui enquanto ser único

diferenciado dos demais, em se tratando de eu. Ser indubitável prevalece naquele que se dá

em relação a um outro, reconhecendo desse modo a alteridade, algo bastante precário no

desenrolar da narrativa. A representação discutida no nível humano e, sobretudo, a dotação de

um espírito filosófico que signifique tomar consciência de si, perfaz o mundo de observação

desse homem em estado de duplicação. A vontade indutora do homem se esboroa à medida

que falta sentido para a vida, decomposta por motivos e interesses alheios no que toca o nada.

Por isso discordamos veementemente de Amle Amorim (2005, p.23) na afirmação de que

Tertuliano começa a assumir um caráter decisivo crescente, pois inicia a saber realmente o

que quer. Ao ver a vontade como algo que nunca havia duvidado realmente de si mesma, não

significa ter adotado-a de maneira peremptória, é por outro lado mais um refém desta. Isto

pode ser comprovado na atitude do personagem cultivada durante boa parte da narrativa no

quesito abandonar tudo, a si, ser outro, ser muitos. Resultado de uma busca intermitente pelo

conhecer. Aliado ao desejo de humanidade, este se esbarra na incompletude, combustível ao

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pensamento do duplicado. Correlata a tal manifestação, há a existência de vários Tertulianos

dentro de um só, vários os nomes, as identidades esgarçadas enquanto possibilidade de

existência no presente do que foi relegado no passado. Resguardados os mais densos efeitos, o

caráter impessoal da identidade de Tertuliano acomete-o daquela afasia tornando-o o ser

específico do universo onde habita. Somados, homem, mundo, vontade e representação temos

paralelo às palavras, a provisoriedade em destaque.

Com Humano, demasiado humano confirmamos essa hipótese, uma vez que o espírito

livre apontado como ideal de homem foge à regra da aparência. Rebelar-se contra a própria

inaptidão em existir, contrariar o pensamentar alheio tem a ofertar a escuta e o silêncio. Não

seguir os passos de qualquer absoluto, ser grande, ser humano aparadas as arestas da

semelhança é ser condizente à profundeza de si. O homem especificado com o poder criador o

qual traz dentro de si o bem e o mal – as duas facetas – confere por isso um sentido às coisas e

ao eu. A angústia no decorrer do caminho propicia a suspensão da vontade porquanto se torne

o juiz e vingador dos acontecimentos que em si esse homem permite. Nietzsche é da opinião

segundo a qual o humano acontece na medida em que reconhece em si não o elevado e sim o

mais baixo, ressaltando o pior inimigo, o próprio eu. Nesse pensamento destaca-se a

capacidade de se questionar: quando há a vitória, se vencedor de si mesmo, dominar os

sentidos, assenhorear-se das virtudes. Sendo a maior de todas as qualidades a habilidade em

eleger a si mesmo em meio à ignorância e descaminho, bem-vindos a partir disso. Porque “os

homens não são iguais.” (NIETZSCHE, 2005, p. 131) e a vida sempre a superar a si mesma, é

lícito o desdobrar-se em sofrimentos e transformações. Enquanto para o personagem, estar

duplicado indica a condição da qual necessariamente tem de se fazer exigente com uma

escolha não feita, acostumar-se com a imagem criada e, ao se ver em multidão, retrair-se na

insignificância descoberta. O protagonista ao se colocar como problema, torna-se um vir a ser,

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sem marca inconfundível a não ser aquela de ser reconhecido como um ser humano com toda

a ambigüidade do termo.

Na leitura crítica do romance português, junto com a vontade e a representação para se

chegar à humanidade inconclusa do protagonista, ressaltamos com o livro A condição humana

o fato do duplicado se dar conta do que é estar no mundo. Vivendo entre os homens, a

pluralidade ao invés de assegurar sua condição, o diminui porque mesmo expondo de forma

razoável o pensamento aliado à ação no caso do estudo inverso de História, não vemos os

efeitos dessa atividade. Tal acontece por causa do relevo sobre a condição do duplicado que,

ao expor sua vontade deseja simplesmente ser humano. Sem palavras distintivas, o homem

desse contexto não pode ser reconhecido pelo discurso. Ser professor sem mais nada para

ensinar e viver algo indecifrável faz o personagem refletir acerca da índole que se quer ímpar.

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6. CAPÍTULO 05:

O homem que você é, que você era, não vai poder ser nunca mais.

Autran Dourado

SER E AGIR EM PROCESSO

O desenrolar do enredo de O homem duplicado cria expectativas quanto ao

amadurecimento e mesmo da desenvoltura existencial, principalmente do protagonista. Para

assegurar nossa hipótese interpretativa, temos que o homem na narrativa se abre a questões

concernentes ao ser que se faz mediante e no tempo. Destaca-se no livro o fato de que o

personagem principal é identificado por todo o livro pelo nome de Tertuliano Máximo

Afonso. A insistência no nome completo vem a ser a marca de uma aparente clareza, domínio

de si mesmo, bem ao contrário de outros romances do escritor, como Ensaio sobre a cegueira

(1995) em que os personagens são conhecidos não por seus nomes, mas pela função ou algum

atributo: o médico, o policial, o velho da venda preta, a rapariga dos óculos escuros, etc. Já

em O homem duplicado, o que parece ser a inteireza do personagem se desfaz quando o nome

completo não leva ao conhecimento do homem. Tertuliano no dicionário latino-português

vem de TERTULLIANUS,I, s. pr. M. lact..: Tertulliano (155-220 d. C.), natural de Carthago,

escriptor ecclesiastico e MAXIMUS, I, s. Cic. Virg. Maximo, por appelido cunctador, que fez

parar as victorias de Annibal. Do homem histórico Tertuliano, pouco se sabe além de ser uma

figura enigmática cuja personalidade escapa aos pesquisadores; sua presença é marcante por

outro lado enquanto referência para a consolidação do Cristianismo como instituição e

sistema de crenças entre os séculos II e III. Apologista, polemista e defensor apaixonado das

idéias conservadoras a ponto de se transformar num orador veemente e jurisconsulto de

grande renome; introdutor da teologia da língua latina, Tertuliano tem sua obra centrada na

defesa da fé e da moral cristã. Percebemos que José Saramago ao criar seu personagem

fazendo a junção do nome de dois vultos históricos, pretende enfatizar o oposto no seu

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Tertuliano. Não há nele nenhuma espécie de exortação à moral, sua conduta é questionável e a

incompletude que o esmaga despista qualquer ensejo relativo a ações meritórias, de destaque

ao longo do texto. A faceta enigmática do professor de História surge dele combater a

aparência, estigma de nulidade. Algo a que seu homônimo histórico se dedica no intuito de

reprimir o excesso capaz de impedir a entrada no paraíso. Quanto ao aspecto polêmico deste

no campo literário, fica por conta do efeitos de Quem Porfia Mata a Caça. No romance,

primeiro ele observa as piadas com seu nome, as ironias, depois se enxerga um homem que

está em busca de algo, o que se configura a inquietação interior. Ele, um professor de História

ignorado em suas opiniões na escola, pára com seus afazeres, retira-se do tempo pré-

determinado das convenções e passa a ouvir o que diz respeito a si. Daí podemos retirar o

específico do personagem se observarmos quanto ele repercute o pensamento de Martin

Heidegger.

Em Ser e tempo (2001), há uma busca por respostas para o sentido do ser, a escuta

necessária quando se lança à procura. Neste texto, homem e realidade adquirem aquela

substância com a qual se trata o impensado, subtraindo-se às qualificações. Algo que afina a

Literatura e a Filosofia em debate é justamente a paixão pelo sentido que notamos nos dois

textos. Embora, temos que salvaguardar linguagem, contexto histórico e a especificidade de

cada escrita em particular, o ser de que tratamos resvala na indeterminação que compete ao

homem. Seu modo de ser em Ser e tempo atenta para a dinâmica que lhe diz respeito, escutar

é o principal sentido e o silêncio é a abertura à temporalidade da existência. Assim, o ser-no-

mundo empenha-se por livrar-se da determinação e ser presença no mundo. No livro O

homem duplicado, o tempo da procura que marca a trajetória do personagem é cíclico, como a

mostrar que a procura do homem por si mesmo não tem fim. Marcado pela solidão que só é

driblada pela leitura interminável de um “estudo das antigas civilizações mesopotâmicas”

(SARAMAGO, 2002, p. 18) isto que é repetido com insistência no romance, faz pensar nas

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intermitências aí instaladas. Tal leitura que não termina, versa sobre povos de uma cultura

milenar, atualmente situa-se no Iraque, só por isso vale toda uma discussão que não é nosso

propósito neste momento. As civilizações mesopotâmicas, compostas basicamente por povos

como os babilônicos, assírios, sumérios, caldeus, amoritas e acádios foram povos politeístas,

na política portavam-se pela centralização do poder e economicamente eram reforçados pela

agricultura e pelo comércio nômade. Mas como isso tudo pode importar no trajeto de vida do

protagonista do romance de Saramago? Considerando apenas os sumérios, os babilônicos e os

assírios há neles toda uma cultura iniciática seja de escrita, código de comportamento,

sujeição de outros povos através da violência, fato que gerou revoltas populares. O alcance de

nossa leitura de O homem duplicado está em que encontramos neste romance uma iniciação

do homem em se tratando de viver. A existência para ele está sendo posta sob suspeita pela

primeira vez. Também fica em suspenso tudo aquilo que ele aprendeu e fez de acordo com

uma moralidade que lhe foi imposta e não apresentada como opção desse ou daquele

comportamento. No instante específico de sua vida – a duplicação – a opção de vida inclui a

violência que passou, primeiro pelo choque do conhecimento, depois pela ameaça física de

António; mas a revolta pressagiada resulta num inesperado. Há a vingança de cunho

mesquinho, a esconder outra visão até como necessária, reação à altura, espécie de

demarcação existencial junto a quem se impôs como único e não aceita ser contestado.

Tertuliano oferece a compreensão do homem em busca do que lhe é destinado e se mostra

vacilante, por vezes omisso, como constata o narrador: “Tanto é o que precisamos de lançar

culpas a algo distante quando o que nos faltou foi a coragem de encarar o que estava na nossa

frente.” (SARAMAGO, 2002, p. 11). Neste argumento, vemos uma aproximação com o

objetivo de Heidegger no que diz respeito ao chamamento que o homem se faz em elaborar,

colocar a questão do sentido do ser em geral. Encarar o que está à frente é muito mais que

olhar o espelho, é olhá-lo e não se encontrar, ter a dessintonia por ângulo de observação.

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A presença humana no romance O homem duplicado abre espaço para uma

interpretação permeada pela tensão da identidade de diferenças. Isto se notarmos que entre

Tertuliano e António, o mesmo, a igualdade presente na aparência, entreabre-se para a

diferença no modo de ser e agir. Dito isto, os questionamentos de ambos dão origem ao

“fundamento unificador de sua possibilidade existencial.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p.

150). O que o filósofo chama de presença, vem a ser aquilo que somos, ou seja, o que possui

em seu ser a possibilidade de questionar; ora, não é outro o intento do homem duplicado que

se debate com a questão da existência ou não desse fundamento unificador: de onde provém,

por quem, quais as justificativas? Vemos, no entanto, que essa possibilidade às vezes não se

realiza, engolido pelas respostas que não acontecem ou mesmo pelas questões que o professor

não efetiva. Há retraimento, um confessar da própria impotência em ser. Quando a capacidade

de questionar é posta em prática, as perguntas são geralmente dirigidas a um interior incapaz

de elaborar sentenças, as decisões acabam num estranhamento, tais como: não sei quem sou,

sou um erro, não gosto de mim, entre outras.

É certo que o professor foi atingido por uma dúvida – a duplicação – nisso, ele é a

presença tocada pelo questionado, realiza neste sentido, a questão do ser. Pensar e

experienciar o homem como ser e não-ser, propenso ao agir e não-agir leva-nos por vezes à

perplexidade, já que na de-mora junto às coisas, no silêncio e vazio de sua vida, percebemos

contradições: Tertuliano vive à beira da depressão, quer encontrar o seu duplo, mas tem medo

de se identificar; quer enfrentar o desconhecido, mas receia o resultado. Em pequenas coisas

como o dilema entre sair ou comer, joga a sorte ao acaso. A exemplo, temos: “como as coisas

sempre estão, todas elas, a isso não podem escapar, é a fatalidade que as governa, parece que

faz parte da sua invencível natureza das coisas.” (SARAMAGO, 2002, p. 18). Se as coisas

estão dadas à fatalidade, porque querer saber seu desfecho antes da hora? Controlar os passos

do outro ajudará a conhecer o eu? Da vida rotineira de um professor do ensino secundário e de

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um ator coadjuvante, que interesse pode haver em se notar qual dos dois é o duplicado? Ao

escutarmos quem são Tertuliano e António, estas e outras dúvidas surgem quando estamos na

expectativa de um sentido que se faz em cada passo da busca. Na diversidade da vida em que

os dois são apresentados no livro, o choque do mesmo é inevitável: “Sou eu, disse, e outra vez

sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo, o que ali estava não era verdade, não podia ser

verdade, qualquer pessoa equilibrada por acaso ali presente o tranqüilizaria.” (SARAMAGO,

2002, p. 23). Por que o espanto se o que busca é a si mesmo? Não quererá ver a si como o

outro? Entendemos neste instante, uma vontade de abafamento daquilo que se convertia numa

verdade indesejável. Se o equilíbrio está distante, a tranqüilidade atende por outro nome.

O protagonista de O homem duplicado reflete a imagem de um pensamento aberto que

num descuidar/cuidar de si mesmo completo pelo outro – António Claro – é aquele que é no

modo humano. Em que condições este ser de liminaridade abre espaço para o Senso Comum

agir? Por que ao tratar do homem duplicado, Tertuliano não vai buscar resposta na ciência, na

engenharia genética? Por que ele quer encontrar o homem, razão de sua inquietação e não a

explicação para o fato inusitado? Qual a razão do protagonista insistir num diálogo, num jogo

de se mostrar/esconder com António Claro? A barba e o bigode postiços trocados entre ambos

em ocasiões diferentes, será a máscara que esconde o homem e revela uma plenitude de

ousadia em querer saber, descobrir e perceber a incompletude disto. Desta forma temos:

“Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio.” (SARAMAGO, 2002, p. 157). Há

alguma coisa não vivida, a troca de experiências entre Tertuliano e António, leva o primeiro a

sair da cautela aconselhada pelo Senso Comum e a arriscar algo por si próprio, demonstrando

com isso que o homem se faz na medida em que adquire consciência de trazer em si o seu ser.

Neste aspecto, ele está sendo e por isso pode estabelecer uma relação de ser consigo. Disfarce

e nitidez da imagem se misturam até o embate do homem com a mentira que é a sua vida.

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À semelhança da distância separadora existente entre aquilo que somos e a

proximidade caracterizadora das coisas, para Tertuliano Máximo Afonso, se encontrar com

António Claro é juntar na igualdade a diferença. É o momento em que ele não quer acreditar

no que vê. Que diferença é esta se se trata de duplicados? É presunção, é orgulho,

superioridade ou medo, a vontade de saber quem nasceu primeiro? Este “algo que, por si

mesmo toca e atinge o homem.” (SARAMAGO, 2002, p. 153) se revela no encontro dos

personagens que pode vir a ser a reunião, o recolher, numa unidade as diferenças, já que

estamos tratando do homem duplicado. O que toca e atinge o homem com tamanha

profundidade? Tal questão nos move a erigir um discurso particular acerca do homem na

literatura pós-moderna, procurar saber o que diz respeito à existência deste ao se decidir a

partir de cada questionamento, a base de si.

O romance de José Saramago não nos confidencia quem é o homem duplicado; o

mistério já no título permanece durante a narrativa por mais insistente que seja o

aparecimento do nome completo de Tertuliano Máximo Afonso. Ao contrário, fica sempre em

suspenso a pergunta, o que o próprio ser designa? Em Heidegger, lemos: “a presença tem a

tendência de compreender seu próprio ser a partir daquele ente com quem ela se relaciona e se

comporta de modo essencial, primeira e continuamente, a saber, a partir do mundo.” (2001,

vol. 1, p. 43). Acontece que a presença em O homem duplicado, não se dá via mundo. Ao

invés disto, ele se afasta do convívio para mergulhar no que não sabia, tateando uma

compreensão. Já no que diz respeito ao acesso e interpretação deste ser, há uma coincidência

quando o filósofo é convicto em relação a mostrar-se em si mesmo e por si mesmo do ente em

meio ao questionamento definidor. O duplicado nas diversas circunstâncias durante sua

história, procura agir mesmo de forma tímida, de acordo com um pensamentar

individualizado. Embora isto dê ocasião à duplicação dos modos de ser do homem.

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Por mínima que seja a experienciação da diferença presente em Tertuliano e António,

faz de cada um ser homem na abertura para o extraordinário da vida porque eles são “este

estranhíssimo, singular, assombroso e nunca antes visto caso do homem duplicado, o

inimaginável convertido em realidade, o absurdo conciliado com a razão”, (SARAMAGO,

2002, p. 167). Pela vida, vivência de ambos encontramos a dimensão com que se medem e

são. Por isso o mistério? O que vem ao encontro deles a fim de ser tomado como medida? É o

desconhecido? A estranheza de seu caso? Desta, pode-se entrever a proximidade que os

explica? A narrativa deixa um rastro de interrogações e o homem jogado entre marasmo e

ousadia, constrói-se a passos frouxos ou entusiasmados, dependendo da ocasião, por saber

quem seja. Isto é característico da produção literária de José Saramago ao colocar na mão do

homem a decisão do seu destino. Temos um exemplo disto já observando o título de algumas

obras: O evangelho segundo Jesus Cristo, O ano da morte de Ricardo Reis, O homem

duplicado, etc. Neste, além do anonimato, o homem encontra-se nos interstícios, suscita

curiosidade como na observação de Maria da Paz: “o que te cerra a boca é outra coisa, Quê,

Uma dúvida, uma angústia, um temor,(...)” (2002, p. 169) do quê, não se sabe. Entretanto,

observamos pela ambigüidade do comportamento do homem duplicado, o agir na perspectiva

que representa sua coloração, algo dele e de seu duplo está sempre a escapar de nossa

compreensão. Já que foi ele, Tertuliano Máximo Afonso quem descobriu o fato insólito da

duplicidade, o mais provável é ser ele o “original” e o outro a cópia. No entanto, o inverso

gera preocupação, desassossego. É o homem no limiar da inquietação sobre sua origem o que

torna indispensável para o debate a referência ao tempo. Segundo Heidegger, “é o ponto de

partida do qual a presença sempre compreende e interpreta implicitamente o ser.” (2001, vol.

1, p. 45). Se atentarmos à gradação do homem na narrativa, vemos que surge um quarto

elemento na história do duplicado que não é António nem Tertuliano nem Daniel. É esse que

não sabe quem é, tão sem nome quanto sem destino, variado pelo tempo.

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À semelhança de imagem vertida em miragem, dá-se o encontro de Tertuliano e

António numa atmosfera de dúvida entre a “imagem virtual daquele que se olha ao espelho, A

imagem real daquele que do espelho o olha” (SARAMAGO, 2002, p. 182) e se pergunta:

quem sou? Tertuliano levanta a questão de que sendo ambos iguais, o mais provável é

morrerem no mesmo instante. Então as dúvidas surgem: será que realmente viveram? O que

nos remete ao mito de Narciso quando lembramos que ele era filho da ninfa Liríope e de

Céfiso, rio da Fócida. O adivinho Tirésias predissera a seus pais que Narciso viveria enquanto

não se visse. Um dia em que passeava no bosque, deteve-se à beira de uma fonte onde

percebeu sua imagem. Enamorou-se por sua aparência e, não se cansando de contemplar seu

rosto na água límpida, consumiu-se de amor à beira dessa fonte. Insensivelmente, enraizou-se

na relva banhada por ela e toda a sua pessoa transformou-se na flor que tem seu nome. No

romance, a embriaguez pela imagem mais que egoísmo deflagrou a vida tortuosa de

Tertuliano com a descoberta do duplicado. O que não atenta para as questões da existência,

está perdido entre o nada e o vazio de sua rotina. Quando se vê na imagem do outro, a

obsessão não se coaduna com o restante, mas por saber-se original. Decepcionado diante do

horizonte descortinado pelo tempo, o sentido do ser para ele adquire uma nota de dissonância.

Que rosto mostrar? O que se revela com isso? Como ultrapassar o que se vê à frente? É de

especial interesse notar que o homem da especulação é um professor de História. Não por

menos ele está a fazer a sua história, cheia de repiques, mal entendidos, enevoada por uma

legitimidade requisitada; ao que conduz à questão do ser cuja característica é a historicidade.

Por conseqüência, há a “manifestação enquanto manifestação de alguma coisa não diz um

mostrar-se a si mesmo, mas um anunciar-se de algo que não se mostra.” (HEIDEGGER,

2001, vol. 1, p. 59). Anunciar, mostrar sem ter o sentido exato do termo, faz do homem um

ser propenso à iminência de si, como temos no romance. Também é importante avaliarmos

que, indiferente às intervenções do Senso Comum ou de outros personagens em torno do

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duplicado, prepondera em seu discurso e mesmo na falta dele, o deixar e fazer ver com os

quais pode ser considerado um homem por definição.

Na narrativa, vemos que a morada do homem indica mais que seu espaço próprio é a

aventura ética ao construir a imagem personalizada. O habitar do duplicado dá indícios para

que pensemos sobre seu caráter: um apartamento pequeno, apertado, pouco visitado, refúgio

das incertezas do dono. Lá fora, o ambiente requisita os modos de ser específicos que não lhe

permite deter-se como seria preciso caso estivesse em casa. O fato desta de-mora começa com

Tertuliano, ao descobrir ser o duplicado e se aprofunda com António, o provável original.

Este não se abala de início com o telefonema, entretanto, aquilo o incomoda a ponto de

afirmar sobre o outro: “(...) apenas exprimiu uma dúvida, uma suposição, como se estivesse a

interrogar-se a si mesmo, (...) Quem é este homem, (...) nada [sei], nem do que é, nem do que

quer,(...)” (SARAMAGO, 2002, p. 181). Neste contexto fica explícito que os

questionamentos são repassados de um personagem a outro como a demonstrar que é um

comportamento comum no ser humano quando está em vias de descobrir quem é. Sendo

assim, ocorre o encontro dos dois numa casa estranha, longe do ambiente conhecido e

dominado por Tertuliano. O que para António funciona como uma espécie de pressentimento,

à maneira de “uma porta fechada, atrás de outra porta fechada,” (SARAMAGO, 2002, p. 182)

a anunciar o desencobrimento possível em meio a um velamento provável. Mistério encoberto

por outro, a morada abriga os homens embaraçados por causa da efemeridade do que pensam

e são. De tal forma que não podemos interpretar a presença do homem no livro por meio da

diferença solicitada sobre um modo determinado de existir. Cada personagem em seu

exprimir, corrobora na interpretação já que cada um se mostra à medida que é e age em

função do que pensa.

Daniel Santa-Clara/António Claro casado com Helena traz no nome uma possibilidade

de entender o homem, pois prenuncia clareza, claridade, luz. Perspectiva ofuscada pelo seu

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comportamento vingativo, mesquinho e ambicioso em relação a Tertuliano Máximo Afonso.

Este, cujo nome apresenta indícios de grandeza, conquistas, valentia e, contudo, se mostra

fraco, covarde, sem iniciativa. Feitas tais constatações, somos levados a investigar sobre o

porquê ser ele o duplicado? A História da civilização que ele ensina e quer fazê-lo de forma

invertida, seria a história do homem que se faz tateando sentidos possíveis? Se ele é o

duplicado, que importância terá sua vida após esta descoberta se é o outro quem ocupa a

evidência? Ao longo do romance a cópia se mostra pior que o original em termos de ação, por

sua vez através do pensamento, suplanta o outro em termos de questões rascunhadas a fim de

se compreender.

A relação entre os homens, este ininterrupto estar errante e a caminho, faz da produção

romanesca de José Saramago uma abertura para pensarmos o homem em controvérsia, suas

contradições, enfim, tentar novas interpretações, pois a proximidade de uma provável resposta

encaminha à permanência do que muda. Com isso, nas pegadas de Tertuliano Máximo

Afonso, percebemos que o indagar sobre o sentido do ser passa pela angústia, esta advém

quando ele se abre à autoconsciência. Por esse motivo, no romance, à medida que o professor

descobre a existência de António, passa a se ocupar dele, do encontro, das expectativas.

Efetivamente por meio das pesquisas na lista telefônica, das ligações frustradas, da carta

escrita, dos disfarces usados para saber da rotina de quem muito se parece consigo. Isto

também ocorre com o ator quando não o vemos mais falar, agir em torno de seus filmes,

outrossim, buscar a cópia da carta que levaria à cópia dele mesmo. A ação significa planejar

um encontro com Maria da Paz e realizá-lo, dessa forma, ambos saem daquilo que Heidegger

chama de “mundo das ocupações” a fim de se voltarem para “aquilo com que a angústia se

angustia [,] é o ser-no-mundo como tal.” (2001, vol. 1, p. 249). Enquanto António Claro a

princípio pensa tirar proveito da semelhança com Tertuliano, ao se encontrarem fica na

incerteza de como agir, alguém muito parecido pode ser alguém muito perigoso. Considerado

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por angulação diversa, ver o outro como aquilo que ele mesmo não é, significa debater-se na

discussão do eu, usar subterfúgios com intuito de “ser-livre para a liberdade de assumir e

escolher a si mesmo.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 252). Porém, não se trata de escolha

simples, as aparências não só enganam como falam de alguém que tem o fulcro da vida

surrupiada. Assumi-la é negar-se. De todo modo, o que mais contribui ao sentimento de

inferioridade do duplicado (vejamos que neste exato momento da narrativa, ser duplicado diz

respeito tanto a Tertuliano quanto a António) é o quase ser-livre cada vez mais afastado de si.

Há a figura, a imagem inescapável do eu incompreendido a se impor. Este não se sentir à

vontade consigo mesmo que observamos em O homem duplicado, sintetiza a ânsia na

tentativa de ser por inteiro, como aquele que nunca o foi. Embora os encontros aconteçam, a

decisão de que um deles não pode continuar a existir, lança fundamentos a serem demarcados

em torno de quem será o escolhido.

É notório em Tertuliano suas atitudes temerosas, não assumir a noiva Maria da Paz,

depois fazê-lo; não protestar contra a decisão de António em dormir com ela, por intimidação

física; por vingança ir dormir com Helena. Diante disto e pelas revelações ao longo da

narrativa, sabemos que ele é o duplicado, o esperado seria ele desaparecer, mas não é o que

ocorre. A singularidade do personagem, o retirar-se que seria decadência, revela traços de

propriedade e impropriedade de seu ser, uma vez que o homem se faz na incompletude.

Desaparecendo o original fica a cópia, qual a importância de ser cópia quando não se tem o

original para conferir? Numa encruzilhada – saber da existência de outro igual a si –

Tertuliano Máximo Afonso admite que “o próprio dele inclina-se mais para o lado da

melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de

uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações

humanas.” (SARAMAGO, 2002, p. 203-204). Descontente com o que fez de si mesmo até

aquela altura da vida, encontra-se mais perdido ainda por saber-se o duplicado. A estatura do

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nome não corresponde à pessoa; o desafio de saber de si equivale a não sair das divisões

incorporadas sem Ariadne que lhe ajude. O pesadelo perdura: quem é o original? O limbo em

que se vê lançado, o cuidado com a vida assumido depois do conhecimento fatal de sua

existência, o faz ser em condições e limites que ele experimenta em cada passo rumo ao

desconhecido. Razão para afirmar: “Estive com ele, e agora não sei quem sou.” (2002, p.

210). Surge o medo, o silêncio, uma verdade que se anuncia no futuro completada pelo nada;

existências incertas, quando no encontro decisivo, Tertuliano sobe os “quatro degraus da

escada de acesso, [de uma casa que não era a sua] parou no limiar” (2002, p. 213). O que

consideramos como o limite intransponível, pois depende do passo do outro, do abrir-se

dando margem a interpretações várias. Também do agir alheio – o processo – a fim de marcar

a cadência explicativa de sua existência, sendo ele a reprodução e António, o original. Se ele

era a cópia por toda a vida, o que fez de seu até então? Quando no rosto de António Claro

desenha-se a estupefação, anuncia-se a busca de si, daquele que deu origem sem ser o genitor

do duplicado. A franqueza, a maldade, a inocência e descaro caem por terra, desdobrando-se

com “o que se mostra em si mesmo” (SARAMAGO, 2002, p. 281) numa proximidade que

carrega as diferenças. Para António, o autoconhecimento passa por uma descoberta que

realiza seu ser e este desvela e vela simultaneamente, porque não se enxerga na sombra que

Tertuliano é.

Entre os dois a questão passa a ser: “o que irá acontecer depois disto?” (2002, p. 214)

quando os olhares se cruzam e no mesmo instante se desviam, temos a imagem que se recusa

identificação, tão insuportável a probabilidade de reconhecimento. Os sentimentos agora se

misturam entre humilhação e perda como se um “tivesse roubado alguma coisa à identidade

própria do outro.” (SARAMAGO, 2002, p. 217). O que mais incomoda a ambos é não saber

sobre esta alguma coisa, por isso a narrativa se estende por um entendimento da existência em

ambos os personagens “como um poder-ser que compreende, e onde está em jogo seu próprio

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ser.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p. 11). Mesmo na constatação de que um homem igual a

outro, o homem sem atributos, desprovido de mídia e do poder de interferência sobre o

destino dos demais homens, nenhuma relevância tem para a humanidade; provoca Tertuliano

a perceber seu fim com identidade pessoal, absoluta e exclusiva sem a projeção de António

Claro. Já que este nasceu primeiro, o lógico é também morrer primeiro. Contudo, entendemos

que a lógica não resolve o problema dos duplicados, sendo que o romance trabalha por conta

dessa falta de lógica como peculiaridade das relações humanas. As limitações e

particularidades sim, dão o sabor da narrativa. Ora é o sujeito que se move dentro do previsto

em dada situação, ora se rebaixa enquanto ser humano em detrimento de outro igual.

No horizonte do tempo em que se inscreve o projeto de um sentido do ser tanto para

Tertuliano quanto para António e o caso do homem duplicado, há experienciações cuja

totalidade fica pendente. Pelo fato de conviverem no mesmo mundo, de saída temos duas

visões: conhecer e/ou “abandonar qualquer coisa” (SARAMAGO, 2002, p. 83), abandono

este que se relaciona a modos, maneiras, enfim, qualquer tipo de atitude que pudesse explicar

o homem de outrora e quem sabe proporcionar o reconhecimento do homem atual. Como se

nota no livro, Tertuliano Máximo Afonso sempre teve muito cuidado com a vida (2002, p.

86), rotineira, usual, comum, após o conhecimento do caso dos dois homens iguais de que ele

é parte interessada, se percebe portador da energia paradoxal própria da alma humana a fim de

se entender. Energia oriunda das palavras tão desencontradas quanto o efeito delas nos

personagens em debate. O coadjuvante da vida que é personagem principal da história que o

leitor acompanha, tem consciência disso e, no entanto, ou talvez por isso mesmo, não age no

sentido de eliminar o concorrente a um lugar existencial. No trato com a duplicação, a

reflexividade acontece de forma intranqüila porque ele reconhece a incapacidade de descartar

algo que é tão enraizado e à procura constante de legitimação. Podemos denominar este

reconhecimento de um voltar-se para si que engloba o outro. A conseqüente diversidade que

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brota da situação, faz Tertuliano saber “que o novelo do espírito humano tem muitas e

variadas pontas,” (2002, p. 96) sozinho, resta-lhe acertar o lado, a direção que possa tomar

como correta; se há uma ou se é preciso inventar. Preparado para as diversas opiniões a

encontrar bem como o variado modo de ser que o ator sem dúvida apresentará, contudo, se

revela chocado porque afinal trata-se de sua visão de mundo, pelo menos na aparência.

Buscar a constituição existencial de alguma forma tem o modo de ser daquilo que está

aí – ele próprio e seu cuidado com a vida, agora primordial – e aquilo que está por vir:

António e sua existência incógnita. Que sentido eclode desta percepção já que a vida lhe abre

a partir de uma indefinição? Até se descobrir duplicado, Tertuliano não atribuía muita

importância à constituição das coisas e pessoas, era mais um dentre eles. Ser homem num

duplo sentido, porém, fez-lhe lembrar que sua vida era mais do que ele temia: “alvo das

partidas de mau gosto” (2002, p. 120). Esta sensação que apresenta de que as coisas sempre

davam errado, com a duplicação, reforça à primeira vista o lado negativo do personagem,

alguém que é jogado ao invés de jogar com a vida. E a confusão de sentimentos que ele

experimenta expressa o mistério em que está imerso, com o agravante de que tem para si o se

sentir inferior, seja na fala, na aparência, em importância no e para o mundo. Ao pensar nas

contradições da vida, o professor de História, entretanto, constata que o “homem não havia

mudado, o homem era o mesmo.” (2002, p. 43) O gênero universal com iguais ambições,

tristezas, conquistas; porque ele, definitivamente passava por um processo de mudança.

Apesar de que observamos em Tertuliano é o modo de colocação de sua problemática

existencial, semelhante ao desarranjo doméstico que toda semana sua secretária ajusta. O

professor que se julgava inabalável em suas certezas cotidianas, perfeitamente controláveis, é

tocado em plena efervescência da metamorfose em que se converteu. Ciente desta

possibilidade por si, sobre si, o duplicado se encontra na angústia, lançado na vida para ser-

no-mundo sufocado pela cotidianidade.

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As imagens da estrada, portanto, com retas e curvas acentuadas ou não; do Abismo –

sempre grafado com maiúsculo – são muito presentes na trajetória de vida do protagonista de

O homem duplicado, recorrente em ambos os sentidos, ele é “confuso, enredador de labirintos

e perdido neles” (...) que por vezes fala “de um caminho que deixara de ter princípio” (2002,

p. 290) se move a revelar as razões do destino humano que lhe são pertinentes. A estrada

como a vida referida que não tem começo, em plena atividade de viver se bifurca, se duplica

marcando com isso o revés da falta de opção, o que leva ao Abismo: expoente maior de quem

se encontra num dilema. Preso a razões e motivos desassociados, permanece somente o sem

fim, o eco rotundo do que pode acontecer e não acontece. Convém destacar neste momento

que o narrador exalta a facilidade com que o personagem tem de formular problemas,

absorvê-los, (vi o outro e agora não sei quem sou; não gosto de mim; o que é ser um erro?

Quem sou eu?) sem, contudo, ter a mesma facilidade para desentranhar as respostas (o que irá

acontecer?). Por isso vale o instante, o momento em que a duplicação se instala em sua vida e

a absoluta falta de encaminhamento para tal questão. Assim entendido, o personagem mostra

a faceta humana ao não encontrar ou encontrar com dificuldades, soluções aos problemas que

a cada momento surge em sua vida. Tais como conseguir escrever com sentido a carta em

busca do paradeiro do ator; deliberar sobre o encontro de ambos; se impor como um problema

na vida de António. O cuidado que antes era nítido e simples passa a reclamar uma

compreensão determinada por disposições. Dessa forma, podemos afirmar que Tertuliano

passa a existir, pois “projeta-se para poder se compreender no ser de um ente assim

desentranhado” como demonstra Martin Heidegger (2001, vol. 2, p. 46). O protagonista é este

ente esmiuçado, espicaçado pelas dúvidas. Extraído dos filmes, arrancado do espelho,

demonstra interesse premente pelas perguntas inadiáveis quando se trata de viver uma vida

única: lança-se em reflexividade, pois já não conta o que o espelho reflete, nem a aceitação

daquilo que diz referente aos alunos. Por agir assim, arriscando algo por conta própria,

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Tertuliano de repente encontra-se num mar de questionamentos, arrasta ou sendo arrastado

por eles, não sabe o que é, quem é, só sabe da durabilidade da vida independente de sua

existência. Fora isso, o resto é sempre precário, instável e fugidio, motivo para que seus

passos, o caminhar seja trôpego. A vida cuja permanência reclama uma palavra, um gesto que

interfira naquilo que ele em si não sabe proclamar soma-se o fato de viver e ter de fazê-lo

enquanto em conjunto e mais ainda sozinho no mundo.

O protagonista identificado por todo o livro com nome e sobrenome que se sabia único

e exclusivo no mundo até os trinta e oito anos de idade, num olhar atento ao vídeo, se vê

distinto do que era antes. No disfarce de António Claro, ele aparece diferente, mas é como “se

tivesse tornado mais ele mesmo” (SARAMAGO, 2002, p. 164) tal a sensação de força,

desinibição que surge ao portar a barba e o bigode. Alguém que não tem de se comportar de

acordo com norma estabelecida nem ser responsabilizado civilmente pelos atos de

espionagem e cerceamento da liberdade de outro. O homem novo é alguém que não se

preocupa em adotar esta ou aquela opinião, agradar, ser claro, expansivo, é simplesmente,

mesmo porque é desconhecido de seus pares. Então a solidão, o sossego e o recolhimento da

vida anterior tomarão outro rumo. A imagem nova, clandestina, que possivelmente o fará

acordar de uma letargia existencial para ser ele mesmo, provocará do mesmo jeito,

perturbações sobre António Claro que também é Daniel Santa-Clara e depois António Claro,

o original. Com o agravante de que o último toma consciência de que este é um papel para o

qual não está à altura, não há roteiro a seguir, cenário a decidir, diálogos a decorar. Este que

vive do fingimento, é uma mentira na vida pessoal. O ator, para evitar curiosidades

desnecessárias, no encontro de ambos, também se disfarçará de Tertuliano. A imagem

dobrada aprofunda a distância entre o que sabem e o desconhecimento que os personagens

demonstram. O subterfúgio representa muito mais que despiste, há a clara alusão às noções

distorcidas adquiridas no próprio rosto, certa vergonha por isso e a acomodação na imagem

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que não lhes pertence. Num jogo de trocas de identidade, cópia e original se misturam como a

retratar que ninguém está isento de si mesmo na busca de um “ponto de equilíbrio que exista

entre ter sido e continuar a ser,” (2002, p. 299). No caso específico deste não se enquadrar em

nenhum dos dois, como encontramos no homem duplicado, a implicação se faz ainda maior.

Não há vanglória em se dizer conhecido, há, porém, o desalojar do que antes era nítido,

também fica suspenso a possibilidade de se apontar quem é quem quando nenhum dos dois

personagens se conhece profundamente. Por causa desta característica, o romance toca numa

questão muito presente nos nossos tempos pós-modernos: como saber de si numa era de

cópias? Se não há valores a medir, então a identidade fica indeterminada posto que não é por

comparatismo que se define o homem, ainda mais o homem enredado a saber de si.

Daniel Santa Clara, o ator que finge ser Tertuliano Máximo Afonso com o propósito

de se encontrar com Maria da Paz, bem como Tertuliano que por despique toma o lugar de

António Claro e passa a noite com sua esposa Helena, perfazem o percurso existencial em que

a abertura para o ser só pode ocorrer quando eles se dão a possibilidade. Sem dúvida neste

momento são livres, longe das amarras, convenções que impedem o ser a agir por conta

própria. Estas atitudes nos fazem ampliar a questões como o do livre arbítrio. Até que ponto

pode-se ser segundo uma singularidade? Quando nos tornamos nós mesmos? Sendo o outro,

chega-se a ser propriamente dito? Quem origina quem? A segurança de um, a incerteza do

outro, completam uma vida, a vida do homem feita de indefinições que beira o limiar da

existência. O homem perdido entre a insignificância do presente e a impossibilidade de ser no

futuro, é alguém que vislumbra apenas uma saída em meio ao labirinto no qual se encontra:

saber quem é. Mas qual se são tantas as saídas e ao mesmo tempo não são? O presente tem o

ímpeto da passagem que fica, prevalece a necessidade de agir e, no entanto, nada acontece

sem a disponibilidade do homem duplicado. Vigora a estranheza nos personagens. “O

inimaginável convertido em realidade,” (2002, p. 167) predomina junto à proposição

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existencial em que se debatem os protagonistas de O homem duplicado. O estranho que

poderia ser o natural é a expressão do não saber por que, como, de que modo entrar ou sair

que intriga tanto o protagonista do romance. Algo chamativo neste texto literário é que o

professor de História a princípio acha um absurdo o acontecido, procura de forma sôfrega o

outro de sua aparência e finaliza sem tomar uma iniciativa que represente algo passível de

habitar a realidade em termos de não conformação: apenas sai ao encontro de. Os personagens

absortos na e pela duplicação, adquirem consciência que o mais difícil ainda estava por vir

quando uma decisão era inevitável. Assumir um lugar na vida? Qual seria? Continuar a ser o

que eram mesmo depois de saberem do duplicado, vimos, está fora de cogitação.

Na gigantesca metrópole onde os personagens vivem, numa espécie de duplicação

tanto horizontal quanto vertical de um labirinto, eles não habitam no sentido essencial do ser,

de produzir deixando aparecer aquilo que são. O duplo novamente invade o personagem pelo

espaço já que o tempo paralisou na informação e constatação de que estava duplicado. O que

faz lembrar o anônimo sr. José, perdido no labirinto da Conservatória Geral em meio a Todos

os nomes. Quer um motivo para viver, busca-o entre os mortos e os vivos que passam pelo

seu controle. Neste intuito o sr. José e Tertuliano têm em comum o agir no anonimato.

Inferimos disso o sentido para que os dois encontros decisivos no caso dos duplicados sejam

fora da cidade, num deserto, no campo. O descampado denota a princípio que os personagens

já tivessem alcançado a saída e pudessem por isso, visualizar o horizonte desanuviador que

eles têm pela frente. No entanto, a descrição do narrador crítico pressagia a continuação do

que não se mostra. A casa envolta por castanheiros antigos tem um ar de abandono, é descrita

como um sítio solitário, ideal para pessoas contemplativas. Nos encontros, estão sempre

abertas a cancela e a porta, mas fechadas as janelas como a anunciar um dizer que se cala,

provocado pelo interesse maior no escondido que no visível. A contrariedade manifesta vem

ao encontro num ambiente preparado para um desenlace que não ocorre. Separados, a vida

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dos personagens deixa de ser duplicada, entretanto, o ser que se busca fica por conhecer

estando António morto e Tertuliano com a vida deste.

Tertuliano Máximo Afonso ao entrar na vida de António Claro e Helena, em suas

cabeças, o faz à semelhança de uma interrogação que não se explica, levando-os a fugir da

“normalidade”, pois começam a se questionar. É importante dizermos que o perguntar aqui

não é um simples amontoado de porquês, é algo de profundidade, toque em terreno movediço

pelo fato insultuoso de ser engolido por ele. O ator que sonha em ser de primeira fila passa a

se disfarçar no outro que não é na vida encarada como “real”; do estrelato procurado ao

anonimato resulta na chance única que tem de saber quem é o homem que perturba seus

planos pessoais e profissionais. Bem diferentes são os planos do duplicado cujos anseios são

por saber quem ele mesmo é. Quando António morre com a identidade de Tertuliano (e sua

atitude irresoluta perante a vida?), deixa ao professor seu nome, sua existência, porém, este

“continua a ser a mesma pessoa” (...) (2002, p. 300) que não aceita seus defeitos, se

escondendo (mesmo que provisoriamente) na vida do outro. Assume ser quem não é naquele

curto período entre a notícia da morte e a revelação à mãe e à Helena até onde nos é permitido

saber, embora externe que terá de descobrir outra vida para si, não o faz. As duas e ele são as

únicas testemunhas de que o professor ainda existe embora não seja a mesma pessoa

conhecida por todos. Fica no ar o desenho da ação não empreendida justamente porque o

professor precisa fingir mais que o habitual na nova profissão à qual não tem a habilidade

necessária. Este algo a internalizar implica entendimento, vontade e sentir do homem

Tertuliano que fica encoberto pela nova vida do ator cujo fingimento continua, ficando o mal

estar redobrado. A possibilidade de se colocar em ação na escuta de quem é, leva o

personagem mais uma vez à angústia, porque o ser-no-mundo agora se reconhece como um

eu que nem sempre está sendo, como distingue Heidegger. O fato de a possibilidade existir,

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faz do homem destituído de individualidade um ser inerte, propenso mais à retirada do que à

inserção no mundo que desconhece, portanto, não pode ser ele mesmo.

Isto demonstra que o homem e sua existência, estando a caminho numa estrada que

desaparecera, pode muitas vezes encontrar pela frente o Abismo quando se vê que “há coisas

que nunca se poderão explicar por palavras.” (SARAMAGO, 2002, p. 60), com isso, a

compreensão de si está projetada em função de um ser aberto. Seriam as palavras insuficientes

para darem conta da vastidão do que vai por dentro do personagem? Singularidade perdida em

meio ao nada? Por isso o homem é duplicado como escreve José Saramago? A posse delas

também diz muito do sujeito que pretende se tomar como ponto de partida para estar no

mundo. Quais coisas e quais designações? Certamente àquelas que pertencem ao universo

deste homem marcado com a insígnia da duplicidade. Envolvido por ela, sob a negação da

existência por parte de António, o professor é enleado pela História que não sabe explicar. Os

tempos se misturam e o que era passado – simbolizado pelo estudo contínuo das antigas

civilizações mesopotâmicas é repartido com a miragem que se torna a imagem pessoal – se

incrusta no presente. Este nega a chance do futuro acontecer, pelo menos não de forma

integral a Tertuliano e António simultaneamente. Fato que nos leva a seguinte hipótese: o

tempo atual do duplicado (do homem nesse tempo de tecnologia abrangente e alto isolamento

que é a contemporaneidade) pode ser explicado? Explicado por quem se nem o maior

interessado consegue um vislumbre?

Diante de tudo o que foi exposto, nossa pergunta persiste: afinal, quem é, como está

representado o homem contemporâneo na literatura pós-moderna? O texto de Martin

Heidegger servirá de entrada para pensarmos a questão em O homem duplicado. A definição

do filósofo é tácita: “O homem é aquele que é à medida que constantemente não é o que é”

(HEIDEGGER, 2002, p. 382). Ora, se o intrincamento se dá pela saída da evidência, um

reformular de pontos de vista, logo o modo de ser não pode ser reduzido àquilo que somos.

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Sem dúvida, é um avanço que o homem faz na direção de se conhecer, se passar de uma visão

descompromissada a uma penetrante sobre a questão do ser para além de simples

visualização. Essa perspectiva é aberta como possibilidade daquilo que o homem é; ver cada

vez com mais acuidade sua constituição se fazer por meio da interferência, sendo ser no

mundo. No entanto, não se pode declarar uma justaposição entre o homem que assim é e age

em processo com o mundo. Cada um tem um ritmo e espacialidade próprios. Heidegger

constantemente aborda o homem como um ser no mundo guiado pelas ocupações: é o fazer,

tratar, impor, empreender, discutir, determinar... coisas; nisso, considera que o ser no mundo,

enquanto ocupação, tem a primazia. Mas a singularidade começa – o ser que não é o que é –

quando se dá o reconhecimento do mundo, interpela, discute sobre, mas não se trata de uma

relação sujeito-objeto. Desse modo o extrapolar ocorre no fato do homem sendo presença no

mundo pela maneira de interpelar e discutir algo como algo, tem por efeito adquirir nova

posição ontológica. Ser-no-mundo quer dizer, requer interpretação sempre nova do mundo

descoberto, por isso constantemente não é o que é. Esta interpretação disponibilizada para

lermos O homem duplicado amplia o olhar ao que o protagonista se depara e de repente

pergunta o que é, quem é e qual sua significância num mundo desimportante em se tratando

dele mesmo, ocupante do universo que não é mais seu em termos absolutos. Há todo um

desmoronar de atitudes vistas inclusive no perfil que ele passa a exibir depois de saber do

filme: sempre desconfiado, cabeça baixa, parecendo esconder algo muito maior que a própria

imagem – a falta dela. Orientando-nos pelas estruturas que compõem o ser do homem, a idéia

de transcendência estará sempre presente: “o homem é algo que se lança para além de si

mesmo.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 85) O problema do personagem que estudamos se

localiza na quase completa incompetência para sair de si quando a questão é vista pelo lado da

duplicação. Outro aspecto é a perda total em se entender por conta própria devido a aparência

que não é mais sua, tomado que está pela vida do homem que não é ele, por seu turno ainda é.

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Aqui cabe dizer, o projeto de ir além do mundo das ocupações que alienam, apequenam o

homem, foi iniciado. Por se tratar de algo nunca dantes visto – a duplicação –, indagamos:

como o lançar-se além de si acontece? Para começar, o processo não pode ser visto à moda de

uma receita, conhecimento pré-determinado que consultamos e logo encontramos satisfação.

Vem daí o elemento complicador para o duplicado. O ir além está proporcionalmente ligado

ao fato de encontrar-se na próxima indagação que se soma a anterior com a subseqüente sem

chegar a auto-definição pensada.

A concepção de homem que pesquisamos se dá em seu existir cujo “pensamento que

compreende e que pensa a relação de ser e pensar, é a própria questão do ser como tal.”

(HEIDEGGER, 1999, p. 281). Pois bem, fica claro que os limites não se dão por um exterior

pautado por regras e definições pré-concebidas. Portanto, a aparência nada pode nos oferecer

para deslindar a complicação que o professor de História vive. O que podemos entender com

o homem do livro é a abertura que ele dá para “as tensões, os limites e as características

diferenciais das situações e modos de ser”. (HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 314). Assim

planificado, trata-se de um conhecimento por se fazer, não é algo para determinado fim mas,

uma realização pessoal e intransferível da qual o duplicado não consegue fugir. As tensões e

os limites do personagem são exemplarmente explorados pelo narrador na cena em que ele

está com Helena à espera de António que nunca chegará. A espera cadenciada pelas dúvidas

de Tertuliano causa uma inércia que incomoda o leitor, o tempo passando, a expectativa da

chegada e o que dizer no encontro. Contudo, a espera é sufocada pela imobilidade que o

impede de ser homem igual a todos quando assume ou nega seus atos, seu maior desejo. No

meio tempo há: o ciúme do lugar cedido, da primogenitura às avessas, os sinais de nascença,

os números do documento de identificação todos iguais, são em conjunto o que prende

Tertuliano ao chão, impedem-no de dar a volta, tapam-lhe a visão à distância. Há por isso e

muito mais do que as palavras possam definir, um nervosismo com causa e conseqüência já

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antecipados. A atitude que o homem toma, o modo de lidar cotidiano revelam o quanto ele é

presença no mundo. Tanto é verdade que o gesto de se deter diretamente nas coisas em si, já é

índice de participação diferenciada junto ao mundo das ocupações. O professor de História

que não fala mais de sua disciplina, porquanto a vive e o ator de cinema que deixou de

representar e experimenta a “vida real”, são uma medida nessa participação por se fazer.

Sobre o homem e a relação que estabelece consigo ou com o mundo, como podemos

nos cercar das perguntas consideradas pertinentes e sair do comum, da evidência? Nesse

estágio há a passagem para a perturbação da referência. Com tal propósito, as questões

utilizadas nessa fase têm caráter de uma particularidade a iniciar na circunvisão anunciadora

do mundo. O despertar tem a ver com a desimportância dada ao que é ser específico em

detrimento do ser em sentido lato. Significa mais, é o empenho não temático cujas referências

constitutivas se dão em cada parte de um conjunto numa outra familiaridade com o mundo a

se estabelecer. Fugir da duplicidade degradante requer arcar com as devidas conseqüências da

perda de referência. Se os contatos beiram ao devaneio, o homem tem a chance de escolher

qual deles adotar, lembremos que Helena fez uma oferta em tom de súplica, de ameaça: seja

meu marido que já não existe, porque no fundo você foi o responsável pelo desaparecimento.

Ao que ele não se predispõe. Mais um vácuo, mais uma indefinição do homem latejante de

negação.

Ser e tempo traduz um pensamento acerca do homem como um ser-no-mundo capaz

de sair do imediato que o reduz. Não podemos deixar de mencionar que a discussão acontece

num nível de pressuposição ontológica: “Do ponto de vista ôntico, deixar e fazer em conjunto

significa: no âmbito de uma ocupação de fato, deixar e fazer de tal modo que o manual seja

como ele agora é e com o que ele é assim.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 129).

Transcendendo ao homem, equivale a desentranhar o ente que ele é a fim de deixar e fazer vir

ao encontro o ente desse modo de ser. Ao descobrir sua substância como uma não

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necessidade, o ente pode ser no sentido de que não necessita de nenhum outro ente. Agora,

como isto se relaciona ao livro O homem duplicado é uma questão de sutileza. O deixar e

fazer vir ao encontro se referem a alguém que é e ao mesmo tempo não é conhecido; de tal

forma que é imprevisível que um seja o dobro do que é, pois ele nem sabe se é de uma

maneira ou outra. Fica explícito ao longo do romance que o personagem sendo ator ou

professor apresenta a característica da contenção, primeiro de modos depois em relação a

tentar manipular a existência que foge ao seu controle. Isto se manifesta quando o deixar e

fazer com que eles se deparam tem ressonância direta com o outro que querem evitar e no

entanto, lhes escapa.

Para Heidegger, Descartes deixou sem discussão o sentido do ser em geral por tomá-lo

como evidente. Toda a arquitetura de Ser e tempo visa entrar no mérito da questão por

considerá-la uma problemática originária voltada para as coisas elas mesmas. Enquanto o

segundo valoriza o conhecimento partindo de sua permanência, é o caráter de mudança que

extrapola a visão dos entes como coisas, o argumento defendido pelo primeiro. O homem –

como presença – desperta para aquilo que vem ao encontro, sendo, cada vez que está em jogo

seu próprio ser. Quando isto se efetiva, podemos dizer que ele abriu-se à instalação de espaço

no tocante a seu ser-no-mundo: reivindica, demarca território com a possibilidade de

distanciar num significado ativo e transitivo, fazer desaparecer o distante. Portanto, a

proximidade expressa desta maneira, é a tendência essencial instalada na presença. Porém, é

importante que se diga, proximidade não significa tomar o lugar, é antes, o ver e ouvir mais

próximo peculiares ao direcionamento cuja circunvisão ocupa. A conseqüência disto é que o

deixar e fazer vir ao encontro funcionam como dar-espaço, arrumar ou ser-no-mundo

entendido como existencial, acessível ao conhecimento. Neste âmago, a espacialidade torna-

se vital para que o homem – o sujeito em termos ontológicos – se torne presença em sentido

originário. Tais colocações induzem-nos a visualizar o protagonista de Saramago em uma

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espécie de desconcerto. Ele encontra-se na sensação de quem está errado num lugar

inoportuno; a impostação de voz é a mais inadequada, não se tolera enquanto conseqüência

por ceder espaço. Embora a distância seja mínima, o abrir-se da presença nesta Literatura,

ocorre como algo iniciado sem a possibilidade da transição, uma vez que é de vida que o texto

ocupa-se, de vida transbordante. Na rotina que apaga possibilidades, o duplicado se espreme,

se incomoda, transmitindo o mesmo ao seu igual. Daí extraímos que a distância entre os

personagens quanto menor, maior a estranheza, maior o sentimento de impotência em

entender com o qual são vistos.

Ora, no cotidiano quem podemos dizer que é presença? O ser é meu ou um específico?

Se sou empenhado no mundo, como chegar ao ser da presença? Heidegger ensina que todo ser

é sempre ser-com, independente se na solidão e isolamento; por conseguinte, a presença é o

ente que sempre eu mesmo sou. O ser é sempre meu. O que caracteriza o diferencial é a

possibilidade que eu mesmo me dou de chegar ao modo cotidiano de ser-próprio. Por causa

disso, um sujeito qualquer não é e nunca é dado sem mundo; não que o mundo o faça, mas é

com ele que o sujeito se entende no comum das horas, dos momentos que o homem é ele sem

interferência da cotidianidade que o rotula. Quando o universo humano apresenta-se

desarranjado como no romance que estudamos, o que permanece é a instabilidade do

posicionamento existencial. Não são somente as coisas vistas fora do lugar, o homem perdeu

a ordem, não sabe do fim muito menos do princípio a adotar num momento especial da vida: a

hora em que ele começa a viver de acordo com o mundo que se estabelece, tenha este o nome

de cegueira, duplicação ou lucidez.

Em tais elaborações, vimos que a substância do homem é a existência. Ao chegarmos

à conclusão de que a presença se dá existindo, conduz nossa questão central (o que é o

homem na contemporaneidade traduzido pela Literatura) à caracterização do encontro com os

outros, no caso, o encontro com o outro eu tão desconhecido quanto se fosse único no mundo.

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Se o sujeito é permeado pela espacialidade, esta tem por atributo a proximidade, por gradação,

o respeito ao modo de ser alheio; portanto, quem são os outros afinal? O filósofo de Ser e

tempo responde que são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia

propriamente, incluindo aí eu mesmo. Logo, ser-com possui uma barreira tênue de

determinação existencial para a presença a um outro que muitas vezes passa despercebido.

Nessa difícil convivência situamos o duplicado, a univocidade tão discutida no romance abre

janelas para uma diferença que se requisita, se indispõe com o outro sem, no entanto, colocar-

se enquanto determinação auto-imposta. As inquietações do personagem na narrativa

tomando por base estas colocações são do seguinte caráter: as opiniões muito particulares

foram rareadas e já não são exclusivas? O compasso em que se movem diz alguma coisa

significativa entre os dois?

É a convivência que contempla realização e abrigo no próprio homem. Relacionando,

os personagens apresentam um comportamento introspectivo, fecham-se à compreensão da

rotina que tinham anterior a duplicação. O que subjaz ao sujeito e é a essência volitiva

peculiar ao ser segundo Heidegger, é a “re-presentação que apresenta tudo para si e se

apresenta como o que domina todo o subsistente, o permanente, a armação.” (2002, p. 391).

Sendo assim, como chegar ao que domina o subsistente? O que vem a ser o permanente, a

armação? Eu determino ou sou determinado a pensar desta e não de outra maneira? De acordo

com o que trabalhamos até agora, importa a proposição existencial referendada por uma

mundanidade sem a qual não se distingue o ser do ser-em-função-de. Ao perder o sentido da

totalidade de si, o personagem fica desnorteado porque não sabe fazer a distinção. No

momento em que o duplicado se lança numa empreitada muito particular, tem por missão

conhecer-se. Conhecer-se diz respeito à convivência com um mundo que perdeu o estereótipo

que o homem-presença tinha absorvido e passa à compreensão ligada ao original. Neste

sentido, qual seja, a relação ontológica instalada com os outros, o ser-próprio para si mesmo é

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um outro. Então o outro é um duplo do próprio. Portanto, a provisoriedade das conclusões a

que chega o duplicado, requisita o parecer do original embora isto aconteça muitas vezes em

tom de suposição. Do contrário, seria a mais absurda conivência de aniquilação da própria

personalidade.

Longe de compor um contingente numérico, o homem que é presença possui o modo

de ser da convivência sem ser visto como apenas mais um. Sobretudo, a presença no mundo

das ocupações não se deixa esvair nas definições específicas, num rumo prosseguido

conforme vontades não brotadas de seu interior, antes a presença também é o que ela mesma

não é. Entendemos que o filósofo pretende firmar o homem da autenticidade na e pela

convivência convertida numa inquietação. Inquietar-se é não se conformar, é garantir um

espaçamento entre o impessoal em que se vive e a pessoalidade pretendida. Outra é a

possibilidade no tocante ao nivelamento de ser. A inconsistência por sua vez, refere-se ao

próprio enquanto impropriedade, isto é, o outro que não passa de ninguém sendo si próprio.

Está certo que isto não acontece de uma hora para outra, mas é como pontuamos, um

processo. Porque de início a presença é impessoal, se descobre inativa em termos do saber de

si, só depois, com a convivência frutífera do despertar/deter-se nas coisas, nos homens ao

redor, inicia a liberação do ente que vem ao encontro nos limites traçados pela medianidade.

Pela modificação existenciária adotada, o homem começa a agir dentro de um existencial

constitutivo.

Se, de um lado a proposta existenciária de Heidegger requer o sujeito solitário, imerso

em pensamentos que o engrandeçam, levem-no a ser o diferencial, por outro, destaca a

importância do ser-em. De que forma isso acontece, podemos entrever com: “o que se

constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o ‘pre’ da presença.”

(HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 186) todavia, não fica especificado o modo, a maneira de se

chegar a esse pre. O que é anterior no entendimento de si? Fazer a ultrapassagem entre um

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modo e outro requer preparo ou a simples necessidade apresentada? Trata-se mais de

deslocamento além das referências espaciais e temporais de um aqui e agora, é abertura à

interpretação sempre requisitada. Diríamos também, inovadora, uma vez que é preciso

interpretar e reconduzir a questão do modo de ser que a presença é no mundo. A leitura de

Heidegger confere caráter de especulação ao que vínhamos discutindo. O sujeito que está

duplicado, vê essa condição como irremediável, incontornável. Destituído de um passado,

sem um presente que o assegure perante a solidão que adotou como forma de vida, tem como

resultado a suspensão de ser-em. O centro de interesse que ele é parte, ocupa e não pode se

abster, diz respeito a antecipações nos modos de ser dele e conseqüentemente de quem com

ele existe sem, contudo, se diferenciar seja pelo espaço, seja pelo tempo. A dissonância do

personagem se dá mais no nível do não saber fazer a abordagem do outro porque o outro

acaba sendo ele e reconhecer isto é afirmar o ínfimo de si.

À possibilidade que o ser se dá, qual seja, ser para si mesmo, referencia os modos

caracterizados de ocupação junto ao mundo. Já vimos que não se trata de um simples ocupar

sem ter alternativa. Como existencial, a oportunidade que a presença adquire refere-se a ser

livre com intuito de poder-ser mais próprio. O que é o poder-ser só podemos lançar

conjectura, pois sendo é que se compreende o sentido da existência. Por isso se diz que o

“saber” pertence ao ser do “pre” da presença, por outras palavras, é na compreensão de seu

“pre” que a presença pode-se perder e desconhecer. Assim, quando nos propomos a busca por

respostas acerca do que o homem é, quem é, como as relações que estabelece podem influir

no seu modo de ser, preliminarmente chegamos ao sem saída. O personagem conflui num

reconhecimento de que o que sabia ou o saber adquirido conduz ao desconhecido. Como o

duplicado tem sua liberdade atrelada ao querer do outro, as relações ficam bruscas, se

interrompem manchando a nitidez provável deste ser em construção (demolição?). Convertido

na fórmula ser-no-mundo, esta gera significado diverso: poder-ser-no-mundo que nem sempre

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é. Tal é o embaraço que visualizamos no homem da duplicação, alguém que não é ele mesmo,

não é o outro do vídeo nem ao menos é aquilo que seus olhos contemplam. Não está no

fingimento do ator sequer na construção do conhecimento que tenta todos os dias nas aulas de

História. Tem para si a necessidade do deslocamento. O que o leva a sair de casa, sai de

férias, põe em prática a idéia do abandono, vai até a casa da mãe, pensa, pondera e decide

agir.

Tais considerações preparam uma compreensão do homem que se faz presença

enquanto existir – podendo ser – o faz à maneira de ainda não ser coisa alguma. De certa

forma, é um estar suspenso diante da propriedade e totalidade com as quais o duplicado se

entretinha, acreditava manusear no seu dia-a-dia. Vale referendar que o projeto do sentido do

ser no qual o personagem está imerso, só ganha respaldo se a presença existir, a cada vez, em

função de si.

Assunto que ocupa boa parte de Ser e tempo, especialmente o segundo volume, é a

morte e suas implicações. Ao ente ela significa o fim enquanto presença; em contrapartida, é o

início como mero ser simplesmente dado, como consta em (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p.

18). Findar equivale ao fim da presença. É o encerramento da capacidade de se entender na

existência, por meio da perquirição, no ponto zero sempre iniciado a cada vez que uma

questão do existir se coloque. Tal é a diferença com relação aos demais seres vivos, pois o fim

deles pode ser resumido pela palavra finar. A constituição existencial da presença envolve a

pendência necessária ao ser que anda às voltas com seu sentido; a dimensão do ainda-não,

produz e mesmo exige interpretação ontológica da morte sendo ser-para-o-fim. A angústia

haurida neste processo esclarece o ser lançado para o poder-ser em sentido singular.

Se acompanhamos bem o pensamento de Martin Heidegger, primeiro há a consciência

do e pelo homem que ele não existe – em termos ontológicos – conformado com as

disposições que lhe são impostas de fora, do mundo das circunstâncias, em seguida,

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“descobre-se” como ocupante de um lugar no mundo. Pára, depara-se a cada vez com os

motivos salteadores de sua temporalidade específica. Vê-se diminuído perante as ocupações

que lhe tiram a possibilidade da existência, nisso trava diálogo com o mundo que muito e

amiúde tenta lhe convencer da inexatidão do que faz e pensa. Com a certeza da morte, o

homem que se abriu às possibilidades de ser e agir em processo certifica-se de que seu poder-

ser irremissível finda. De modo que a questão se instala na determinação de onde cada etapa

ocorre.

Na certeza da morte, o homem que atingiu o estágio de amadurecimento solicitado nas

linhas de Ser e tempo, reage “enquanto poder-ser, a presença que eu mesmo sou só pode ser

propriamente na antecipação.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p. 49) Logo, cabe distinguir o

que a antecipação prevê. Fica evidente não se tratar exclusivamente da morte em termos

biológicos. Também não se pode banalizar apontando para reações de outrem na aniquilação

da presença que consegui ser; é, sobretudo antecipação do próprio homem em cada

possibilidade que ele tem de poder-ser um si mesmo, este sim sempre negado pelo entorno.

Marcado pela angústia de nem sequer poder ser, o modo de existir tem implicações com a

escolha; escolhendo a escolha o homem tem a chance de chegar ao poder-ser. Já vimos que a

morte se aproxima quando este ato está completamente desvigorado.

Voltemos ao passo anterior para que possamos maturar o pensamento a respeito do

processo desencadeado pelo homem no seu projeto de ser. Afirmamos com um grau maior de

convicção que na compreensão, a presença também não está isenta de perder-se bem como

desconhecer-se; aliás, isto já está previsto em sua apreensão existencial. Se ainda não é,

existencialmente é. Em seu caráter projetivo, o homem arrancado do mundo das ocupações “é

tanto o que será quanto o que não será (...) ao se compreender, pode dizer: ‘sê o que tu és!’”

(HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 201) bem entendido, enquanto ele mesmo ainda não é. Mas se

essa captação compreensiva refere-se ao desconhecimento do mundo que a cada vez se

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apresenta, por conseguinte a sensatez no modo de tratar as coisas e o mundo é a maior das

qualidades. O tom usado como reta final por este homem, pressupomos, mais ciente de si, soa

a um conselho. Se a experiência ainda não se pode dizer que é inteiramente sua, como ser o

que já está previsto? Se é de ironia o tom desta passagem, então temos um quê de lamento

porque aquele que é não é exatamente aquele que queria ser, perfazendo com isso a amargura

indisfarçada. Não é preciso muita energia para fazer um paralelo deste assunto com O homem

duplicado. A morte ali encontrada, de forma particular como solução e de forma geral como

iniciação de um novo modo de ser, capta implicações junto a um poder-ser que sequer teve

iniciativa por conta própria. É o fato da conclusão ensaiada no intuito de informar o fim da

duplicação: “Foi uma infelicidade, não me dá nenhuma alegria, pelo contrário, mas ao menos

serviu para acabar com a confusão.” (SARAMAGO, 2002, p. 310). Como nódoa retirada, o

tecido não é mais o mesmo, o homem absorve a confusão e a infelicidade de ser sozinho no

mundo. A morte que acontece de forma inesperada, embora antecipada por outro viés, é algo

que denota uma oportunidade de ser. Se a morte do original era algo pretendido no mais

íntimo do duplicado, quando ela acontece fica sem saber o que fazer de si. O entendimento

que Tertuliano tem à frente é algo só dele, sem intermediações, as ameaças presentes agora

brotam do seu interior; isto é tão forte nas sendas ficcionais que ele assume o tom agressivo

de eliminar o interlocutor que se projeta à frente se dizendo igual a si. A morte de Maria da

Paz e António, também podemos afirmar, é um pouco sua morte, funciona como uma abertura

ampla para o duplicado poder se constituir. Então observamos o ápice da indecisão, o dilema

de quem pretende entender a existência trazendo a escuridão por dentro, devido o temor que

isto representa por não ter mais nenhum nível comparativo com o qual se medir. Peculiar

nesse terceiro homem que surge da duplicação é a iniciativa de prever os passos do outro:

como encontramos no final do romance com o verbo – voltarei – demonstrando certeza.

Convicção de quem previu acertadamente os lances do outro que intimida, embora não tenha

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mais a força de supressão. Como o duplicado ainda não é por si, está numa espécie de

transição, se coloca enquanto desconhecido que não pretende deixar de sê-lo. Interessante que

ele não assina o bilhete deixado, isto nos permite considerar enquanto disposição bem

fundamentada de que o homem está num processo de conhecimento amparado pelo potencial

humano. Portanto, sem uma explicação racionalizante; destino; sina; presente ou futuro pré-

estabelecido. É, igualmente, algo pendente do pensamento, do que fazer de si e do mundo que

recebeu ao nascer por duas vezes. Saramago dispõe em sua Literatura do poder que o homem

tem não apenas da razão, mas da imaginação como fonte criadora de si.

A indicação do para-quê colocado em questão numa posição prévia estabelecida pelo

mundo, suscita questões alheias à possibilidade do conhecimento mais originário. Acontece

que o estar concentrado junto ao para-quê influi a presença a ser no mundo das ocupações, é

exatamente disso que vemos o personagem lutar para sair. Ele quer algo mais profundo, algo

que lhe diga respeito, que o explique enfim. Conseqüentemente, o para-quê deve corresponder

a uma compreensão que interpreta, cuja proposição neste aspecto demonstra o que se

requisita, vale dizer, o logos em sentido originário: “deixar e fazer ver o ente a partir dele

mesmo e por si mesmo.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 1, p. 212). O ente então desenraizado

pode configurar insatisfação, constringência, por fim, o resultado pode não levar a resolução e

sim a outra questão com a qual o portador do logos convive. Agindo junto à escuta e o

silêncio, o homem se mostra capaz da linguagem num discurso que se anuncia e, se tem algo

a dizer é porque soube silenciar. Na atual fase de maturação, o homem transpõe o

conhecimento radicado no sentido do ver, presta atenção à existência do outro que Heidegger

denomina de cura. Se certo ou errado, o duplicado põe em prática o silêncio a que foi

reduzido; deixar e fazer ver o ente a partir dele mesmo e por si mesmo adquire a substância da

voz clara e do gesto firme que ele, não mais duplicado tem a empreender. O limite fica por

conta do protagonista não se lançar com o mesmo ímpeto para conhecer, bem como agir de

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acordo com a vida que se apresenta após a morte do original. Imita da mesma forma a

violência deste na condução do que poderia ser a explicação maior de seu estar no mundo: a

voz ao telefone dizendo-se muito parecido a ele. É oportuno observarmos que até chegar a

este estágio dos acontecimentos, o duplicado se anulava diante do outro; era a palavra deste

que tinha o valor decisivo, tanto é que a procura por António foi durante boa parte da

narrativa o motivo de viver para Tertuliano.

A consciência aberta oferece inúmeros pontos de vista, nessa abertura há a chance de

ser que o ente não teve; não há o privilégio de um, mas a mistura que a consciência internaliza

entre entendimento, vontade e sentimento a compor o homem. Deste entrelaçamento

retiramos que nasce um clamor pela singularidade de ser-no-mundo; assumir esta hipótese diz

muito do homem atravessado pelo problema ontológico disponibilizado pela liberdade, o que

“implica suportar não ter escolhido e não poder escolher.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p.

73). Se e somente se, bem entendido, não houve a abertura necessária ao clamor da cura.

Como não é este o caso do homem duplicado, a questão que floresce é não ter escolhido ser

dessa forma, viver com esse impingimento, ter a oportunidade de dar um basta na situação e

não o fazer. Por isso nos perguntamos por que o personagem se coloca dessa maneira já que

aquilo que o fazia calar e ser em subtração já não existe; se falta a coragem de ser por conta

própria, como não esboçar reação pode lhe trazer tranqüilidade? Por que o homem que é

preparado diante do mundo, forma opiniões, não se mostra capaz de criar-se enquanto

portador de possibilidades?

Vejamos a cura como ser da presença. Já chegamos ao denominador comum de que a

presença, sendo, está aberta para si mesma em seu ser. A dimensão disto envolve o solo

originário arranjado em torno da angústia quando da apreensão originária do homem em

processo. Trata-se de algo a mais do que é dado ou se acha simplesmente no mundo, é o nada

que, contudo, não se revela em nenhum lugar. Neste momento, cabe perguntar: se o homem

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se faz sozinho a fim de ser a diferença no mundo, como a angústia pode se dar com relação ao

nada que não se mostra? Se a angústia se angustia por ser-no-mundo, o mais provável é não

ser abalada por acontecimentos e pessoas das quais não se pode dizer que signifique para o

homem, determinado a compreender-se no e pelo mundo. Ao distinguirmos a possibilidade de

ser aquilo que já sempre é, ou seja, o desconhecido, entendemos tratar-se da compreensão

sempre necessária do modo existencial de não se sentir à vontade com a própria disposição.

Ao se dar a oportunidade, a presença assume a propriedade bem como a impropriedade como

possíveis de seu ser. Colocado nestes termos, o personagem estigmatizado pelo duplo se

acalma diante da obrigatoriedade desfeita em ser original e começa a pensar, a ser em

processo com a ação maturada pela falta. Indisponível ao que conta, existir sem projeção no

espelho implica mais que suportar não ter escolhido e não poder escolher. No instante em que

a morte executou sua parte, a escolha se mostra inteira, à disposição do homem nascido dela.

Ocupar-se está além das obrigações diárias, significa se deter naquilo que realmente

vale para o homem se entender como tal. Dessa maneira podemos afirmar que ele vive, se

mistura aos outros, pressupõe uma transformação junto ao ser-no-mundo. É relevante que se

diga que este fator dispensa a comprovação que o mundo exige; o homem é, e disso ninguém

pode removê-lo. Na compreensão introjetada do ser há vida; por isso se deter nessa

problemática, exige orientação pela existencialidade regada pelo modo de ser específico.

Como vimos, não se restringe a um exterior forçado. Identificamos tais colocações com o

estágio final do homem duplicado, final enquanto narrativa, texto, aglutinador de

transformações mas, inicial quando se pensa no homem pré-disposto a ser.

A ação desencadeada pelo ouvir com propriedade o clamor vindo da constituição

existenciária, convém à estranheza de si observada na presença, entendida na nossa

interpretação com base na duplicação do homem. A incompletude detectada neste ínterim

reforça o seguinte: “o clamor apresenta o contínuo ser e estar em débito, retirando, assim, o

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si-mesmo da algazarra da compreensão impessoal.” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p. 86). Sem

dúvida que a compreensão voltada à constituição ontológica exige um estar aberto da

consciência. Esta, alerta ao que não se alcança, ao nada presente enquanto abertura de um ente

na verdade da existência. Na narrativa temos a restrição, a falta que o professor sente em si

como algo a sanar. A verdade assim entendida, a da presença, reiteramos, reforça o ineditismo

a que estamos sujeitos pela e na interpretação do texto filosófico que nos guia à compreensão

maior do texto literário. Desarraigado, o ente que se torna ser diante da facticidade da

presença revelada pelo ator que Tertuliano não era, se posta entre dois caminhos: do

descobrimento e velamento, pois descobrir António significaria seu apagamento enquanto

pessoa. O homem nessa encruzilhada está sujeito à decadência quando não tomar posse do

que se descobriu contra a aparência e a distorção. Ao invés disso sempre se reassegura da

descoberta dos limites, da veracidade das informações obtidas e/ou forjadas; motivo para a

destruição das fotos, da carta. Desbravador, o homem pode se inventar principalmente por

meio do discurso que lhe é peculiar; naquilo sobre o que se pronuncia temos atitude,

desprendimento para o se fazer. O homem duplicado é dotado de um discurso abafado pelo

silêncio uma vez que a tormenta pela duplicação não o deixa à vontade com as palavras, ele

um profissional que sabia manipulá-las. Ao manejar o logos o homem sabedor da duplicação

mas reticente à duplicidade, se revela de um comportamento que também pode encobrir;

razão para que o mistério perdure: a inconclusividade como lugar existencial mais originário

daquilo que Heidegger chama de verdade.

Ao trabalharmos com a presença enquanto abertura, pelo entendimento chegamos a

compreender o ser mediante a conexão ontológica possível. Entretanto, o sentido do ser fica

por se atender quando a investigação ainda não pode responder acerca do todo da presença

com a qual identificamos o homem em Ser e tempo. Justamente é a falta do sentido de

totalidade o item de maior inquietação para o protagonista de O homem duplicado que se

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recusa a ela do início ao fim da narrativa; não sabe ser em conjunto com o ator porque não

poderia se distinguir, nem admite que outro o ameace a ser quem ele ainda não é.

É determinante naquela obra que a liberdade caracterizadora do homem demarque o

poder-ser que se escolhe; é igualmente originário que ele permaneça na verdade e na não-

verdade com as quais tem que se debater até mesmo para sentir, tocar, experimentar seu lugar

na existência. É exatamente este pressuposto o que faz o teor “(...) diverso de todo ser

simplesmente dado” (HEIDEGGER, 2001, vol. 2, p. 95) que a cada passo está a se formar,

formar opiniões e com isso interferir de modo decisivo na vida seja rotineira ou não. O

professor de História que experimenta ser de forma inédita, tem atrás de si uma história que

não é pessoal. Requisita a verdade quando está na não-verdade sem saber onde uma, onde

outra. Se fazer diverso estando duplicado é uma tarefa que o personagem tem como missão

sem poder transferir a outro. É a ocasião em que não há chance para se interpretar nem passar

a limpo as idéias em gestação. A consciência do homem neste particular é de ser capaz de

originar algo posto na interface dos acontecimentos condizentes a seu agir. Pela novidade da

situação tem fundamento a insegurança, dado que o professor não está em sala de aula, muito

menos alojado no conforto de seu apartamento. Não houve planejamento nem exposição oral

pautada pelos anos de ensino que lhe asseguraram lecionar muitas vezes sem o preparo

adequado. A lição não mais a ensinar e sim a aprender é acerca do viver, como, quando, onde

e por quê.

Se, de um lado o homem adotar o assumir existenciário com todas as conseqüências

daí advindas, por outro o querer-ter-consciência aplica-se em ser e estar em débito. Como

avaliar, tomar a atitude coerente entre o que se faz e o que se pensa se os dados para que isso

ocorra estão sempre por acontecer? Nesse debate Heidegger se prolonga a fim de encaminhar

o que ele chama de decisão. Cabe esclarecer que decisão neste contexto não é uma simples

tomada de posicionamento, é uma performance com a qual está em risco a capacidade de ser

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ao mesmo tempo em que o poder-ser se anuncia. O maior risco deste processo é o homem se

anular pelo coletivo; mas se a decisão estiver tomada, o que pode acontecer é decidir-se com

personalidade pela repetição. Vale reforçar que a repetição nesta fase da existência, tem

relação direta na persistência que a presença mostra em estar na não-verdade, com a carga de

antecipação solicitada. Como podemos ver, o texto de Heidegger corrobora nas reflexões

acerca do livro O homem duplicado, cujo personagem central apresenta toda uma carga

semântica de consciência ou pelo menos a vontade de tê-la. Também mostrar decisão,

desempenho anunciantes de uma personalidade sonhada junto da presença. A repetição na

narrativa é mais que sintomática, é um alardear de si estampado em outrem. Repetição que é

ignorada a princípio, depois internalizada em função do que ele se anula; no desempenho e

em seguida pela negação do que foi e do que é com a máscara, sem ela, descarta prosseguir

para que possamos cercá-lo de forma conclusiva.

O sentido próximo ou o distante interpenetrado com as ocupações imediatas do

mundo, geram insatisfação e faz pensar nas condições de possibilidade hauridas pelo homem

enquanto realiza seu ser. Com este eu que nem sempre está sendo no mundo, posso tender a

uma interpretação ignominiosa, irrefletida. Ao contrário, o estudo ontológico do eu exige que

o ser delineie, mostre ou pelo menos procure desenvolver o questionamento que lhe absorve.

Neste aspecto, é possível falar de consistência porque a clareza que se exige de argumentos

tais refere-se a um silêncio que se atingiu, quem o usa decidiu pela questão sobre o ser do eu.

Todo o altercar com o Senso Comum ao longo da narrativa, o debate com António Claro

mesmo em desvantagem, serviram a Tertuliano como uma espécie de preparação às

indagações que prosseguem junto à indecisão que o aflige. Esta não o diminui porque já não

há mais o termo de comparação. Só sabemos que ele sai, pratica um ato que não significa a

decisão tomada, mas uma ação mesmo que esta não tenha por finalidade um propósito

elevado.

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A decisão fundada numa antecipação do que pode advir ao homem refrega-o, o porvir

adquire por isso, a solidez da existencialidade. Estão de parelha, o porvir e o vigor de ter sido

sendo que a atualidade é o terceiro elemento para se falar de uma temporalidade específica.

De nada adianta incluir o poder-ser se não houver o possibilitar da compreensão existenciária

e decidida do nada. Contudo, vejamos. Quando o inusitado da hora, (no caso que estudamos, a

duplicação) o que já sei e este aqui que sou, misturam-se, onde o nada age? Faz sentido uma

temporalidade específica ou ela deve ser reconhecida no entrementes? Estruturas constitutivas

da presença – compreensão, decadência e discurso – podem se não esclarecer, dar mais

segurança num trabalho de interpretação. O ser ao projetar-se num poder ser faz com que a

precedência encaminhe questões ligadas ao complexo modo de existencialidade adotado

como referência, se houver uma. O duplicado ao se colocar na posição de um poder ser

pratica a compreensão; com isso atrai as perguntas sem respostas, as pontes que não se ligam

da defesa aberta. Na difícil decisão de contar à Helena quem ele realmente era, põe em prática

o uso do discurso que lhe fazia deferência; as horas passam são poucos minutos para as oito,

nove, vai dizer a palavra que “(...) ainda falta para que a incrível história dos homens

duplicados se acabe de uma vez e a normalidade da vida retome seu curso, deixando as

vítimas atrás de si, (...)” (SARAMAGO, 2002, p. 308) vai dizer mas ainda não o faz. Há

fadiga, há receios e quando percebe que não pode mais adiar as palavras porque isso resultaria

em calar-se para sempre, falou de forma abrupta, ininterrupta e objetivamente: “O homem que

morreu não era Tertuliano Máximo Afonso.” (SARAMAGO, 2002, p. 310) o que inaugura

novas dúvidas, desesperos e o choro diante do que ele chama, o que não tem remédio.

Aumenta o número de vítimas, aumenta o efeito da duplicação e os interessados começam a

sofrer em decorrência da inércia existencial do homem que julgavam conhecer. Num

crescendo, António/Tertuliano, Carolina e Helena formam na visão que o narrador oferece o

quadro de uma existência que arrasta os implicados à mesma indefinição.

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É fato que o temor do novo ronda o mundo das ocupações diárias, o conhecido é mais

tranqüilo; prevenido, não posso ser acusado de despreparo. Mas o encaminhamento ao sentido

singularizador que trabalhamos, diz exatamente o contrário: o temor aliado à angústia é

propenso à conturbação para o homem que se sente no mundo afundado por insignificâncias.

Na luta a fim de não se tornar mais uma, o despreparo deixa de ser deficiência, é, antes, etapa

a se cumprir. Tocado, o homem modifica a atenção junto a um “com quê” e “pelo quê” na

intenção de lidar com o que já não lhe diz nada: a estampa do instantâneo capturado pela

fotografia. Tem para si que é necessário buscar os sentidos, investir na angústia capaz de

recolocar a possibilidade da repetição do ser por tabela. Vendo com mais apuro e

principalmente escutando com todos os sentidos, a característica de deixar tudo ser como é,

está associada ao homem que sabe de seus impedimentos; diante do que podemos dizer – a

dissidência – favorece a que cheguemos ao ritmo existencial de conduzir a vida pelo trato das

ocupações como momentâneas.

O alcance dessas observações visa entender porque o homem se angustia se já tem

para si que o desconhecido é algo iminente. Corporalmente isto é até previsível, mas as

reações são de outra natureza; atender à atualização, fazer-se dispersão beira à alienação da

qual se pretende fugir. Ora, não podemos perder de vista que a presença pelo fato de estar

lançada no mundo é sujeita a se esgarçar junto às ocupações que o mundo oferece. Resistir

aqui significa aliar o porvir com o vigor de ter sido. Isto só pode tomar forma se o

enraizamento de toda questão em torno da presença, estiver firmado na temporalidade

asseguradora do ser-no-mundo. Atarefar-se é mais do que gastar tempo numa circunvisão do

que está à mão; se ocupar com o realmente interessante, está além do que nos é imposto de

fora, e por nós mesmos enquanto não transcendemos sobre aquilo formatado nas ocupações.

Todo o trajeto do homem duplicado se acerca de uma preparação que aos poucos ele pratica

conscientemente, almeja algo cada vez mais nítido à medida que avança na compreensão.

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Afinal não se atormenta tanto com as limitações. Embora a voz ao telefone se revele igual a

sua e quer o resto da igualdade, deixar ser neste momento é viver de forma independente e só

o passo seguinte pode revelar se isso se confirmará. Deixar tudo ser como é, para o duplicado,

é encarar os acontecimentos como eles são: momentâneos.

Na esteira desse pensamento computamos: quem determina o que realmente interessa?

Qual discurso usar para ser-no-mundo? Quando sou ultrapassado em meu ser por uma

ocupação que me retira esta condição? Parar-escutando é mais significativo do que retroceder

ao primeiro estágio do vigor de ter sido? Se cada ser é limitado por si mesmo, porque a

angústia e o temor causam tanto estrago se eles são previsíveis? Essas lacunas que

observamos no texto de Heidegger não convocam uma interpretação do tipo estruturalmente

acabada mas, desejam tão somente ampliar o quadro das questões que o ser próprio exige e

tanto o filósofo discute. O leitor de Ser e tempo, aquele que insistiu, brigou com o tempo por

uma clareira aonde se aportar, mediu-se como ser apesar de todas as deficiências, descobre

que o modo de lidar no manuseio diz muito daquilo que pretendíamos. Por meio da unidade

no reter, o ser que deixa e faz em conjunto é solícito com o que no mundo nunca domina; pela

temporalidade, o que é trivial se inverte de acordo com a fronteira ontológica à vista. Embora

as coisas, elas mesmas causam conhecimento relacionado a um objeto, o fato de nos darmos

conta delas restringe a ocupação resultante. Ignorar, já vimos não significa neste contexto;

tampouco usar de uma aproximação que sucumbe o elemento observado. Chegar perto

específico que vem ao caso é um modo de compreensão do instrumento, algo sugestivo da

referencialidade do para quê isto é como é. Desta forma, o reter atende a circunvisão dada em

conjunto.

O olhar percuciente que Heidegger valoriza junto às coisas, acrescenta, repercute no

sujeito que se faz junto ao mundo. O deparar de que tratamos anteriormente, resulta numa

legitimidade de constituição – se assim podemos nos expressar – pois a proeminência vista no

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ser desta feita desincumbido, não fecha com um ideado, mas, se abre para o que se orquestra.

Vamos dizer, o atestado de nascimento do ser-no-mundo passa pelo crivo da transcendência.

Compreender que e como a tematização ocupa a presença se configura no ser e estar em

processo. Pois bem, alinhados nesta proposição atualizante, somente podemos interferir

(questionando) na medida em que o sujeito age. Abrir-se para si mesmo, estar em função de si

revela embora, estreitamento com o mundo mais conseqüente. À primeira vista há um

retrocesso, espécie de alheamento, contudo, isto informa o porvir cuja contundência não se

pode dimensionar. Nesse pormenor, é possível apontar certo anseio que o homem apresenta

ante a possibilidade de poder-ser, retirada a desvantagem se a espera resulta em não

confirmação. Em contrapartida, o horizonte que se anuncia, qual seja, o da fundamentação

existencial, está vinculado à junção espacialidade/temporalidade para a qual a presença se

volta. Visto assim, a decadência que muitas vezes tem a face do esquecimento que atende a

atualidade, não é nada mais que um recurso passível de localização do ser que se dispõe a ser

no mundo. Logo, o que parecia a história banal de um professor secundarista torna-se a

História de todo homem que não se acomoda com um mundo recebido. Debate-se,

intranqüiliza-se com o que lhe parece a decadência, a sua e a do mundo destapado a sua

frente. A transcendência do duplicado se dá desde o momento da descoberta do original, se

enovela com os inúmeros casos que esta implica e continua na indecisão, por fim na certeza

imediata do que fazer com a ameaça que lhe bate à porta. A fundamentação existencial é

buscada de uma forma alheia aos caracteres que fixam o homem numa determinação; é a

abertura que junta recursos desconhecidos. Com a morte do original, o despreparo frente à

vida é uma vantagem; os valores atribuídos às coisas e pessoas não prescindem de

materialidade, tem no transcender da aparência seu objetivo último.

A decadência que oferece oportunidade ímpar para que a presença se efetive, merece

aprofundamento já que é parte do processo importante na história do duplicado. A região, o

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para onde ela conduz onera a interpretação de modo a que, caso volte às ocupações diárias

sem se deter na manualidade do ofício, transforma-se na própria decadência. Longe de ser um

pensamento cheio de gravidade, é semelhante ao passar de olhos num livro ou numa obra de

arte; olhar no espelho e encontrar apenas o que todo mundo vê; cumprir horários; executar

tarefas. Enfim, algo de fastio que pensa em consonância, ao contrário da discrepância que o

sentido do ser enseja. De volta do esquecimento do ser, a horizontalidade é responsável pela

irrupção da presença, destacada diante dos modos aludidos em torno da cotidianidade que a

retém na maior parte das vezes. Para o fazer e o empreender do homem no entanto, o modo de

existir delimitado estreita relação ao estender-se temporal. Depois de termos acentuado este

detalhe, extraímos que o homem não sai ileso sendo, há de se questionar durante a extensão

do existir. O acontecimento singular na vida do professor de História nos seus trinta e oito

anos, (é importante que destaquemos este período da vida do personagem, porque o livro não

tem a pretensão de contar uma vida por inteiro, ao contrário, se concentra no momento em

que o personagem se descobre enquanto pessoa capaz de alterar limites, perspectivas) alicia

sua vontade junto a uma aproximação da qual se esquivava. Aproximação sem se reduzir é a

porta de entrada para que o homem duplicado se eleja como o estreitamento necessário junto

ao mundo, transformado por ele com visão e atitudes que possam lhe fazer diverso como é de

seu agrado.

Sendo a temporalidade a condição originária da presença, não se desvencilha o ser-

todo da analítica existencial. Por um lado temos o homem imbuído de um porvir – Heidegger

precisa bem o termo “tema” – ao existir, por outro, sabe que é um ser-para-o-fim. A questão

se coloca quando da localização de um e outro. O fim pode ser o princípio do existente; o

impróprio aferido sim, pode e deve ser o derradeiro estágio. Contudo, não se caracteriza o ser

entre nascimento e morte simplesmente como algo dado no tempo sem maiores

conseqüências. É preciso antes de tudo levar em consideração a extensão, movimentação e

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permanência típicas da presença. Extensão ou o desdobrar, pôr para fora aquilo com o que se

angustia, produz a movimentação necessária para a reflexão: sair da restrição da aparência

para se ater junto ao mundo com o qual possa se inteirar. Também a permanência corresponde

ao ser que está nesta premência em significar por via única. O instante então encorpa, ganha

vulto fazendo a compreensão ontológica da historicidade liberar a estrutura do acontecer.

Porém, não é de um acontecer qualquer, deve ser algo de relevância sem o qual as condições

existenciais ficam amorfas, inertes para o sentido específico que se busca. No caso específico

que estudamos, a duplicação é a garantia para a condição existencial dos personagens

envolvidos ser colocada sob questionamento.

O fio condutor para uma interpretação existencial da historicidade com que a presença

lida e é em seguida, junta temporalidade e poder-ser único. Sendo história, o ser é temporal,

por ser e estar no tempo, amplia-se a visão de conjunto entre o homem e o mundo inseridos

num devir. As transformações esperadas se referem ao homem como sujeito dos

acontecimentos. Então, deduzimos que para se chegar a “dominar” o que lhe acontece, o vigor

de ter sido entra em questão enquanto conhecimento prévio, interpretante, a fim de direcionar

o que vem depois. Com isso fica por responder qual conhecimento é válido, o do passado com

o qual possa ter falhado em determinada decisão e tem a chance de mudar o ponto de vista, ou

é aquele que tem sabor ignorado, de experimento que tanto pode acarretar no positivo quanto

na deficiência do que se acreditava.

O horizonte que não se perde de vista é o poder-ser-no-mundo dependente da ação em

si do homem. Agir, interferir com o que é imposto, sugestionado embora dourado como

opcional é uma característica daquele que circunda, adentra e permanece no mundo sob

questão. Com base nessa premissa, ser histórico é mais que pertencer a determinado marco, é

ter a pertinência no mundo conquistada por esforço pessoal e não doada como prêmio seja de

consolação, seja de manipulação. Heidegger esclarece: “a decisão como o projetar-se

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silencioso e prestes a angustiar-se para o ser e estar em débito em sentido próprio.” (2001,

vol. 2, p. 188) O que entendemos como um pensamento que matura para em seguida agir no

coeficiente cujo resultado é sempre para mais, a soma de reflexão e ação consciente do que é

importante. É por isso, a responsabilidade de si o que está sob suspeita. Até que ponto a

interferência de fora é bem-vinda? Porque meios, subterfúgios, recantos de alma se consegue

atingir esta meta? Vimos que não há um roteiro quando se está lançado no mundo mas, o

comportar pode ser previsto tendo de antemão o problema existencial instalado. A escolha

dentro do âmbito da decisão, quanto mais se compreende sem ambigüidades, mais precisa

pode ser.

Há uma movimentação indispensável seja do corpo ou da idéia no que se refere ao

assumir-se enquanto ser no mundo. Esta movimentação é que decide o caráter do cotidiano

em meio à multiplicidade de coisas; entre o que se passa e o que passa simplesmente é

possível pensar na abrangência que o homem quer atingir. Muito se insiste em Ser e tempo na

constituição ontológica da presença, para o quê abstraímos a importância da unidade

envolvente reivindicada no projeto do homem e mundo se fazendo por instantes. O

asseguramento desta perspectiva tem em vista um comprometer-se sem o qual não há garantia

de realização tanto de um possível quanto de um provável extraídos ambos do passado – do

vigor de ter sido – com evidente intenção de projetar-se no porvir, incluindo no trajeto a

angústia da decisão.

A vida do homem, ela mesma como ponto de partida de uma hermenêutica se depara

com tantos métodos, doutrinas, modos de interpretação pretensos em responder, saber por ele

sem lhe confiar a palavra. Em conseqüência, o homem retirou-se como que acanhado de estar

tão longe de si que é incapaz de se ver sem uma lente amplificadora. Com Heidegger

aprendemos que a vida do homem só pode ser dita por ele, nenhum filosofar pode ser levado

em consideração se não partir desse ponto. A manifestação da vida começa por um silêncio,

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escuta, somente assim encaminha à expressão verbal; nisto caracteriza a individualidade em

ver e perceber, não concedidos ao homem, mas sim, respeitados enquanto sua legítima

possibilidade. Por esse motivo, é tão imprescindível o respeito ao tempo de maturação de cada

um. Aqui cabe ressaltar que não se trata de tempo cronológico, mas de um tempo muito

particular no qual a escuta, em seguida, o agir em processo pode render frutos em favor de

uma interpretação iniciada e pensada pelo próprio homem.

É notório o fato de que a presença leva em consideração o tempo, no entanto, não

compreende a temporalidade como fator existência. A partir do momento em que o tempo

passa a contar como decisivo para o ser em questão, a temporalidade tem outra importância: a

do interpretar e discutir que incorpora. Neste contexto a duração significa o avaliar que a

temporalidade dá de si. Uma coisa é ocupar-se, outra é ocupar-se de si que é o mais

recomendado, segundo Heidegger; em função disso não tem sentido falar em perder tempo,

na decisão sempre há tempo. Seja de abertura, seja da atualidade cujo caráter é o instante, o

homem entretido consigo existe de fato no modo de ser-com os outros. A sensibilidade fica

mais rica, o olhar tem a agudeza necessária de se entender junto ao mundo, portanto de uma

expressividade nunca dantes experimentada. O fator significância ou não pertence ao campo

do agora, também importa mencionar a quem se atribui tal perspectiva; o que é relevante, o

que realmente conta na conjuntura existencial do homem é ele se ver, se postar no tempo cujo

compasso é ser.

Diante do pensamento mais cotado para fazer do homem o ser que age em processo,

vemos aberta a possibilidade do instante, do incompreensível vir ao encontro. A reação em

contrapartida, não é um virar as costas, ou tratar determinada situação como banal e

corriqueira demais para tomar tempo. Na contramão temos um resgate da existência própria

quando a decisão antecipadora usa o tempo a seu favor. Nessa compreensão do ser em sua

abertura, não importa eleger certa analogia capaz de “dar conta” do desconhecido; o

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aprendizado, o sentido como meta somente é considerável se o chamado e a ressonância

partirem do homem.

Diante da acuidade no trato com o ser humano, Ser e tempo se revela uma referência

indispensável quando nos dispomos ao objetivo de escrever sobre o homem contemporâneo

representado na atual Literatura. Embora seja inegável a distância de publicação entre O

homem duplicado e a obra de Martin Heidegger, entendemos que subsiste na Literatura essa

vontade de deixar o homem se exprimir, desdobrado em quantas simetrias ou lacunas puder

extrapolar. A visão comum que o romance pretende combater é a do homem enquanto

contingente numérico. Um exemplo para localizar tal afirmação encontramos quando o

personagem principal da narrativa citada, teve medo que a namorada descobrisse o motivo

real dele se mostrar tão preocupado. Houve o medo sim dela chegar à verdade, mas o medo

maior foi dele mesmo por desconhecer qual atitude tomar, que reação esboçar com a

duplicação lhe tomando todo o tempo.

O fato do homem no romance ser apresentado como duplicado, já por si configura

uma subtração de qualificações, tendo em vista que o ser que se mostra no texto não tem

tarefa a cumprir cujo alcance modifique a vida de uma parcela considerável de pessoas. É a

própria vida que modificou e ela se mostra em cada dimensão sem a qualidade especificada de

quem pretende servir a qualquer propósito. O sentido por ser é algo não aquilatado, se mostra

informe porque o homem duplicado não tem forças para especificar qual significado, o do

outro, se pode salvaguardar de encontrar algum posto que não vive, está duplicado.

Ao contrário de Ser e tempo em O homem duplicado, o personagem atenta muito para

o que, primeiro, o filme fala e mostra, depois, à opinião do Senso Comum e outros

personagens secundários. Em seguida, passa a ouvir o que realmente importa no que concerne

a ser de acordo com o tempo de sua maturação. Determinado pelo mundo, o espelho ganha

retoques com a máscara, há reveses por causa disso e aí se abre para ser presença. A minúcia

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fica por conta de que o romance se concentra no estar preparado para agir e fazer a partir de

uma escuta mostrada pelos personagens. Encontram-se nesse intervalo, registra as dúvidas,

impasses, o ir e vir da possibilidade própria do homem. Instalado o processo de incertezas,

agir de acordo com metas estipuladas cujo objetivo seja bem claro ou por outra, não agir e

ficar na conjectura, é um comportamento demonstrado por um homem irrequieto com sua

condição. Não sabe mais de si, já não consegue significar no mundo em que pensava

conhecer: refém do medo; é valente para o Senso Comum mas covarde na presença do ator; é

empreendedor na visão do diretor da escola; é desprovido de consciência crítica para o corpo

docente onde leciona; para Carolina Máximo é vítima da inércia. Ao reconhecer todas essas

visões dos outros sobre si, Tertuliano Máximo Afonso não tem alternativa a não ser buscar as

possibilidades capazes de fazê-lo ser humano: acatar o sentimento e não se envergonhar em

mostrar ignorância do que lhe acontece.

Num primeiro momento podemos afirmar que neste contexto, as aparências têm forte

influência sobre a decisão do homem em debate com sua condição; impressão contínua

quando da descoberta do vídeo. Quem Porfia Mata a Caça é um título que conta muito das

atitudes a tomar pelo duplicado; porém é na iniciativa do original que há um reverso de

resultados misturando o elemento ativo e o passivo da existência, mesquinhamente disputada.

Na tentativa de discussão com a imagem afrontante, a perda no nível do discurso, pela força

física, revela a moral sob suspeita. Caça e caçador invertem os papéis, no entanto, ambos

saem perdendo quando levados a agir em função da extinção do que desagrada: a aparência

pessoal roubada. Como escapar disso é uma questão de ordem em O homem duplicado.

Outra obra seminal para entendermos a filosofia de Martin Heidegger é Heráclito

(2002) a qual ampliará nossa interpretação da narrativa de Saramago. Naquela, o pensamento

é assumido como provocação, destituído da idéia da lógica imperante no Ocidente. Dentre os

pensadores originários, Anaximandro, Parmênides e Heráclito, o último serve de guia ao que

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o filósofo alemão trata enquanto decisivo para seu argumento. Heráclito é estudado pela

dimensão humana, a observação empreendida por ele em meio ao cotidiano, das coisas

simples que levam à reflexão vem da luta entre elementos naturais. O fogo, aquilo que parece

contrapor e excluir, atrai. O pensamento originário não formatado a um saber sabido, fascina

Heidegger. O a-se-pensar como modo constitutivo deste pressuposto, longe de ter a

obscuridade atribuída a Heráclito é o diferencial com o qual é possível perceber aquilo que se

mostra num além que ao mesmo tempo é próximo, apenas não valorizado.

Os poucos fragmentos de textos deixados por Heráclito, servem a Heidegger para

exprimir uma reflexão que se abre para o saber não dominado pela clareza: a racionalidade de

ter tudo bem estipulado, manipulado por fórmulas de certeza e convicção alicerçada numa

verdade específica. Há um mostrar não premeditado que se esconde, parte do jogo incessante

de vida e morte a que o homem é submetido. Fazer a experiência do pensamento à maneira de

Heráclito é tomar a palavra que se recolhe na origem do dizer; a afinidade ocorre quando

predomina o a-se-pensar.

Com o pensador originário sabemos que o homem mantém uma relação com o que

nunca declina. Desta feita, o questionamento surge com urgência indisfarçável pois, o mais

comum é termos a falsa convicção de que já sabemos quem é o homem. Assim se expressa

Heidegger: “o homem como homem, o homem segundo sua essência, o homem como núcleo

essencial de seu ser-homem, encontra-se a descoberto a ponto de ser o que não pode se

encobrir numa relação e por meio do que nunca declina.” (2002, p. 66). Ora, Heráclito pensa

originariamente com o verbo declinar do qual vem a conotação de entrar num encobrimento.

Heidegger leu o pensador grego e entendeu o desmerecimento que este faz ao que o homem

pensa saber de si, do já conhecido, do que merece menção. É taxativo ao sustentar a

necessidade de nossa existência ser feita sem modelos.

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O homem cuja palavra entende o declínio das coisas, pessoas, animais, enfim todo o

universo que lhe cerca é atraído por um questionamento incessante. Sobretudo, por observar o

ente sendo, bem entendido, o estar-sendo, o processo, o jogo de se metamorfosear. Como

resultado temos o amadurecimento pessoal de cada coisa ou pessoa correlato ao homem e sem

o qual este não se faz. Ter a palavra é mais do que ter a percepção sobre o universo

circundante; para Heidegger em consonância com Heráclito, ter a palavra significa que ainda

não se chegou a ela, pelo menos não de forma definitiva. Há ambigüidades no trajeto; isto não

é visto de forma negativa mas, com um valor incomparável já que portar a palavra

confidencia muito daquele que a usa. Deste modo, declinar que é uma forma de entrar num

encobrimento, traduz a sede de conhecer da qual o homem não pode se esquivar.

O surgimento incessante daquilo que se pretende conhecer enriquece o sentido que

está porvir, visão similar ao nascer do sol, metáfora para o homem se ver emergindo para si.

O nascimento que é enquanto surge, tem a força da extensão do viver, do que sempre vive. Na

interpretação que arriscamos, importa perceber que o surgimento incessante é conforme muito

e particularmente ao homem e sua natureza. O que é e aparece, que se transforma de acordo

com o máximo de proximidade proporcionada pelo ser, prepara a relação cuja permanência é

o que muda: o questionamento em aberto. O pensamento que aflora ao homem imiscuído no

a-se-saber, coloca-o de prontidão ao significado do sempre surgir, do qual é parte, do qual é

responsável. Isto que constitui o homem enquanto presença, a vontade aliada ao interesse de

ser sempre e renovadamente de forma diferente, associada ao sentimento e racionalidade faz o

homem mais verdadeiro enquanto se entrega à ausência, à não-presença. Reforçando, tal

aspecto o faz mais condizente com a natureza que surge sempre e a cada vez com maior

ímpeto.

Heráclito é um livro voltado à compreensão que o homem se permite com base na

experiência, na visão mais longínqua do que se passa em volta. Atentar às particularidades,

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formar idéia diferenciada do cotidiano de maneira mais profunda é algo encontrado nas linhas

de Ser e tempo, sendo o enfoque principal deste segundo livro. Destaca-se o fato de que o

mundo e o homem em Heráclito são desobrigados do posto de decisão; a livre emergência

notada pelo pensador grego é a linha condutora da argumentação proposta pelo filósofo

alemão. Ou seja, a de que as palavras junto aos atos de homem e mundo produzem o pensar e

acontecer de forma harmoniosa. Surgir e fechar-se é o que enriquece o significado de

prontidão para o entendimento do homem. É indiscutível que isto não ocorre de forma

tranqüila, ainda mais num tempo cujas respostas são acima de tudo requisitadas, exigidas até.

Justamente o fator perturbação é esperado, a angústia tão comentada na primeira grande obra

de Heidegger agora se alia à intranqüilidade prevista por quem se põe a saber de si, entretanto,

com mais apuro nas exigências.

O favorecimento ao estilo grego de pensar inclui o acolher, reunir e compor o que

deixa aparecer partindo-se da unidade, a qual implica se fazer junto a; portanto, há

recolhimento com o que aparece. De início afigura ser o encobrimento do que deveria se

mostrar em plenitude, no entanto, dá mostras de um surgimento oriundo do que encobre.

Junção é a palavra-chave desse processo no qual brilho e trevas, fogo e sombras se

completam; o que se assemelha a paradoxo, acaba por ser a parte complementar e não seu

oposto. O objetivo disposto em Heráclito de parelha aos fragmentos do pensador grego, é

algo cabível ao homem, o que o faz, o que lhe é próprio condizente ao ser do qual é medida.

Em função disso tem tamanha importância o imediato que se mostra e o oculto não

desmerecido. O movimento, a harmonia das esferas se transforma no arranjo originário ao

qual Heidegger se rende na compreensão espacial ativa do ser. Nisto, a amplitude da

competência cognitiva tem a mesma proporção daquilo que o homem é capaz de fazer quando

se lança em perspectiva, no uso de suas possibilidades existenciárias.

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A verdade disponibilizada, a aletheia, requisita de homem e natureza a posição de

alerta, de prontidão para o aberto, pois, sendo, não há como manterem-se encobertos. Desafio

encarado a cada instante numa nova aferição de tempo e espaço onde o não-dito tem idêntica

carga significativa do que é esclarecido, confiável. Os fragmentos de Heráclito conduzem à

interpretação de que o homem ao se colocar a pensar em si, a compor-se, opõe neste processo

a si mesmo. Aquele que acolhe, recolhe-se, constitui daí em diante no traço fundamental do

qual a palavra/logos tem força expressiva. Pensar o verdadeiro é atribuir ao não-dito o dizer

de forma comedida e rigorosa para o que é a essência do homem histórico. Tal colocação que

Heidegger faz questão de estampar como apelo para que o homem comece a pensar de forma

essencial, sem as imposições do que denomina malefícios da razão Ocidental. Segundo ele,

porque preocupada em tudo destrinchar sem oportunidade ao que não se define. Quanto à

lógica, é vista atrelada às coisas o que nos faz pensar a partir delas, bem ao contrário de seu

significado original que retira da episthéme o sentido de entender-se-com-alguma-coisa. Em

decorrência disso, o saber abre-se enquanto o “[...] caminho mais seguro para aprender a

pensar é a lida pensante com as coisas.” (HEIDEGGER, 2002, p. 210). O contato direto, sem

intermediários, enfrentar-se frente à frente, olhos nos olhos referenda bastante a recondução

da compreensão do que vem a ser lógica no modo grego de pensar.

Assim pensada, a lógica ao dizer a relação do entender-se com alguma coisa e ao

reconhecer-se em alguma coisa, instaura um processo de entendimento mais proporcional à

natureza da qual o homem é parte. Para isso acontecer, faz-se necessário que a relação antes

apontada inicie com a nova maneira de lidar com o logos. Entender-se com alguma coisa

exige do homem vê-la enquanto se veja pertencentes à natureza, observada como aquela

portadora do que surge e ao mesmo tempo declina. Na concórdia, o homem pode mostrar

comportamento diferenciado, um porte frente à totalidade dos entes com a qual familiariza-se,

se atém e demora já que a vida assim estruturada não passa pelo crivo da pressa ou de

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cobrança por resultados. A lógica por sua vez serve de instrumento, utensílio de pensamento e

não ao contrário do que impera no reino da razão absoluta. Esta, ao fazer reflexão da

subjetividade, por exemplo, coloca o homem como sujeito e todo ente é tão somente o objeto,

portanto simples objetivo. Heráclito se esforça em mostrar que quando aprendemos a pensar,

o fazemos ao colocar-mo-nos a caminho do que ao pensamento vem a ser o a-se-pensar. Esse

modo de se entender com as coisas envolve uma ética a qual consiste em como o homem se

atém, se detém em si e se contém no que Heidegger chama de morada.

O logos vindo à luz, torna-se manifesto, não tem estreitamento imediato com o que

comumente entendemos acerca de linguagem e discurso. Primeiro há o reconhecer-se naquilo

que pertence ao enunciado, depois vemos qual a postura do homem em meio aos outros

homens, aquilo que só se refere a ele. Em sua essência, é o “ser-vivo que tem o dizer e a

enunciação como seu caráter próprio e distintivo.” (2002, p. 228) Então, se o logos é o bem

mais precioso do homem, a pergunta a se fazer ininterruptamente é: o que diz o logos? O

voltar-se a si do logos faz do homem aquele que está sempre a se construir com aquilo que se

questiona. Os desdobramentos daí retirados não se resumem a perspectiva única, onipotente,

ao contrário, dizer e ouvir perfazem a conjunção necessária para haver totalidade pensante.

A palavra, o discurso, o dizer referentes ao logos antes de se tornar manifesto, passa

pelo crivo do obscurecimento. Não que tenha por obrigação ser manipulado pelo homem no

propósito de planificar o entendimento; o necessário é ser visto enquanto a-se-pensar, ser

colocado em dúvida, temeroso inclusive de haver chegado à compreensão quando isto ainda

está nublado. A pronúncia neste aspecto solicita escuta, aliás, a ausculta da percepção que nos

toca; no silêncio há o alcance do nada que se faz audiência. Como é esperado, o homem por

sua própria natureza nem sempre se encontra concentrado, na desatenção foge-lhe a

característica de estar aberto e na abertura ter a prerrogativa de mostrar-se ao que se fecha.

Com isso restringe-se a tomar o que lhe vem ao encontro como objeto, sem demorar-se nele a

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fim de trancafiá-lo em cálculos e medidas. Se a escuta em si é singular a todo ser humano,

prestar atenção é para poucos. O descabimento acontece quando o portador dessa

singularidade deixa de escutar a si e passa atribuir valor, juízo ao barulho circundante que

nada ou quase nada pode interessar se o assunto é saber de si.

No desenvolvimento das idéias que se misturam ao legado de Heráclito, Heidegger o

coloca como interlocutor na fase de discernimento do que o homem pode fazer – sendo –

numa diretriz acordada com o logos. O saber então não está sujeito à ação do homem nem

mesmo se restringe ao instituído por ele mas, chega-lhe através da obediência à palavra. Em

nosso estudo, a igualdade é discutida em tantos matizes quantos se apresentem. No livro que

ora nos ocupa, a consciência do processo passa por: “Toda igualdade (...) funda-se numa

diferença. Só o diverso pode ser igual. O diverso só é igual em virtude de sua referência ao

mesmo.” (HEIDEGGER, 2002, p. 262). Fica entendido por isso que ser igual é ser retirado de

uma diferença que não se anula. O anunciado por esta via, extrapola a visão da aparência em

busca de determinações mais universais, sendo que em todo enunciado vigora ainda o

privilegiado; o compreendemos como aquele a-se-saber reconhecido entre o homem e aquilo

que se dá a conhecer.

A maneira como trabalhamos com a palavra responde aos anseios do que nos move a

propor um pensamento diferenciado relativo às questões vitais ao homem. Vimos desde o

início do livro de Heidegger que o logos para os gregos e para o que ele pretende ao discorrer

sobre a Lógica, há referência direta com o dizer e o discorrer. Vimos também que o dizer e o

discorrer não têm os atributos corriqueiros com os quais lidamos; antes tem o vigor de se

referendar no que está sendo dito, discorrido. Por outras palavras, dizer e discorrer são de tal

forma que se diz o mesmo diversificadamente. O que parece confuso e cheio de meandros é

ao contrário, radicado na simplicidade de deixar o outro falar. Por causa disso, o fato de haver

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concordância entre falar e ouvir equivalentes, podemos estabelecer a reunião, união entre o

mesmo e o diferente, traço primordial quando se presta atenção ao logos.

A palavra pensada originariamente enquanto coleta, colheita para em si modificar o

anunciado, proporciona ao homem a possibilidade de transformação ao redor partindo de si. A

pergunta que se faz pelo ser é concomitante ao não-ser e nada. Nesse desafio há a relutância

em se acreditar rapidamente naquilo que os olhos divisam, o indispensável paira no focar o

não-conhecimento, nas reentrâncias do que ainda não está dito muito menos subentendido. O

homem ao se pôr na ausculta do logos é quem realiza a coleta, a colheita no sentido de juntar

o igual se fazendo semelhante ao que é arregimentado. No processo, há vida entendida como

um surgimento partindo de si, está em aberto tornando-se a essência daquela e da sensação de

estar vivo que se experimenta. A mudança, o contínuo modificar das coisas a que o homem é

sujeito faz profundo o sentido das palavras que usa, pois traz em si aquilo que muda. Com

base numa outra perspectiva que não a razão, entendida como a capacidade de julgar e

formular idéias, o homem que se exprime por meio do logos vê que este é denso; portanto,

seu desenvolver enquanto ser humano também deve ser.

O que a doutrina do logos extraída de Heráclito registra e é seu traço definidor é ser

uno, reunidor daquilo que origina sentidos para seu usuário. Definido nestes termos,

transcende o significado comumente aceito de razão cuja ênfase recai no “enunciado”,

“dizer”, “discurso”, “palavra”, “juízo”. A ação de unir, reunir pressupõe daquele que assim

age, se integrar no que discute; abrir-se à coletividade sem no entanto, proceder à troca de

lugares existenciais. O resguardo se faz necessário uma vez que a relevância da colocação é

encontrada nos dois lados em foco. Suspeitas e interesses expostos, proporcionam ocasião ao

aparecimento das questões e é exatamente este o comportamento que Heidegger almeja.

A referência ao ser do homem em Heráclito não tem a intenção de apreendê-lo como

objeto ou coisa, mesmo porque o próprio ser se recusa a tal. A atividade assim empreendida

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firma-se numa relação entre homens e coisas marcada pela reciprocidade na qual

encontramos, tanto a colheita quanto o recolhimento na coletividade. Quando isso ocorre

somente vem à tona na medida em que há questionamento e, se for significativo. A

pertinência é detectada pela extensão do que se pergunta e da possibilidade apresentadas

através da iniciativa humana. Atravessar a fronteira de surgimento e fechamento não significa

optar por um dos lados todavia, saber que o retorno a si mesmo tem maior conseqüência.

Diante do que realmente conta como indicativo do amplo à alma humana, há prudência. A

mobilidade observada não se limita à simples troca de lugar entre as palavras, é sim indicativo

de extensão: o estranho e enigmático é internalizado pelo homem como sendo-lhe não só

típico mas, sobretudo inadiável.

Ao conceber como essência aquilo que ainda será encontrado, o homem vive de forma

a se desdobrar em desmedida, a ponto de misturarem em seu entendimento o claro, o quieto, a

medida e o obscuro. Nossa interpretação que se nutre da preparação auditiva do pensamento

assim arranjado, não tem por princípio a determinação. Em virtude do logos humano, o

homem pode se entender porque se faz através das relações que não foram tematizadas e,

portanto, tem a parcela de contribuição a oferecer. A maneira isolada de compreender é

deixada de lado em função do conjunto e não mais por respeito à separação de sujeito-objeto,

o humano sobrepuja na soma daquilo que o rodeia.

Os fragmentos de Heráclito ocasionam ao pensamento de Heidegger a visagem de um

saber do ser pelo homem. Isto se efetiva por intermédio do desmembramento chamado duplo;

este, pensado em sentido de fissura abre-se à essência do homem dividido enquanto recolhe

por um lado e por outro se dispersa acarretando a diferença. A caminho, existe a oportunidade

do ser da essência humana buscar e questionar acerca de seu lugar existencial. Improrrogável,

essa relação originária é o que marca a espontaneidade do desdobramento discrepante, o qual

deve constituir a intimidade do duplo humano. Isto no entanto, não significa que o sujeito

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deva agir sempre e ininterruptamente da mesma maneira. Há a modificação de acordo com a

experiência e a concepção de mundo agora não mais alienada porém, ajustada à múltiplas

observações.

O texto do pensador alemão seguindo de perto o pensamento grego originário, ambos

contrários a lógica restrita à aceitação tácita de resultados comprováveis, forma a enervância

na qual o homem se compõe. O a-se-saber é outra vertente do vir-ao-encontro, caráter único

quando se pensa a essência do que originariamente significa o logos com o qual identificamos

o homem. A hermenêutica é extraída dessa relação tomando-se como princípio a sensibilidade

que o anima. Assim se expressa Heidegger a este respeito: “A sentença de Heráclito diz que

em sua essência o homem pertence ao ser, determina-se como o que nele se recolhe, dele

recebendo as suas próprias possibilidades.” (2002, p. 364). Portanto, trata-se de uma relação

da qual ele não pode se abster, há, sobretudo de ater-se ao recolhimento e a compenetração

para que as possibilidades aconteçam. Na intenção do ser si-mesmo ter alguma chance de se

realizar, deixa-se interpelar pelo logos; presença e ausência deste situam o que Heráclito

denomina de lógica com a qual o autor de Ser e tempo se entretém.

A exigência expressa em cada linha do texto de Heráclito é fazer o pensar de modo

grego enquanto pensamento originário capaz de nos proporcionar o conhecimento mais

afinado com o que se refere ao homem. À semelhança do que a arte poética revela sempre a

cada leitura: mundos novos de compreensão, a produção realizada pelo homem tem como

ponto de partida o que surge de si mesmo. Ao se governar pela palavra, ele adquire a noção de

produção sob medida marcada pelo descobrir. Tal comportamento humano denota um saber

acerca do ser admitindo-o sem a idéia de algo feito. Em cada caminho, em cada escolha o

recolhimento no ser que o conduz ao desencobrimento, faz o trajeto do que surge por si

mesmo. Tudo bem especificado, chegamos ao grau de significância do dizer; a palavra como

força de verdade, escuta passível de resultados engendrados, formam o uno coroado com

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distinções. Conclusões prévias ao que já desenvolvemos na leitura crítica d’O homem

duplicado.

A diferença solicitada, pretendida, deflagra um cuidado com o pensamento. Heidegger

chama de nobreza da alma humana o fato de haver meditação sobre o sentido, o buscar o

sentido de alguma coisa. O esmero segundo ele deve estar presente em cada ação assim

iniciada para que o efeito seja maior; o cuidado pensante se junta ao ser cuja juntura é

relacionada diretamente entre os homens. Por isso é tão importante para o filósofo o fato de

nada nem ninguém ser tomado como algo feito e acabado. Em face disso, a idéia de processo

surge novamente com autoridade para nossa discussão.

Perante os argumentos desprendidos no texto, observamos que o homem verdadeiro é

o que começa a si e se esconde no ser. Isto permite extrair a validade da espera, enquanto

acena juntamente silencia e fala de algo que lhe toca. Resguardo e permanência formam a

díade da qual transluz o acessível e perceptível; sendo possível graças à idéia de colheita,o

abrigo mantenedor e desencobridor que volta a si. Com esta desenvoltura, é importante para o

pensamento de Heidegger a forma de re-pensar no âmbito de nossa essência humana, por tal

capacidade nos fazemos homens históricos. Exprimir e agir têm a mesma potência de

persuasão, quanto maior for a densidade das palavras e ações, partindo sempre daquele que

pronuncia, se isto o modificar já é uma boa medida para que aconteça o mesmo ao seu redor.

A conduta humana demonstra o quanto há de assimilação da palavra e seus efeitos. A

presença do homem se faz notar por meio do acontecimento-apropriador que sua figura passa

a representar, enquanto trabalha a forma do re-pensar originário. O silenciar que abriga,

também atrai a palavra preparadora; a verdade esperada se abriga na quietude de já ter sido,

quando tudo se acalma surge a oportunidade à essência do humano praticar seu papel criador.

Com relação à vontade que está inserida em todos estes passos, Heidegger faz uma

comparação com outros filósofos que se debruçaram sobre o tema e fecha com o ser, vigente

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na escolha; o esquecimento de si está entregue ao próprio ser. Vontade e querer conjugam-se

à quietude que não se satisfaz com a claridade, o manifesto, pretende por sua vez assegurar a

dignidade específica ao se tornar o abrigo da verdade do ser que se busca.

De Heráclito, Heidegger pôde aglutinar o pensamento com relação à importância do

inabitual com o qual o homem deve conviver sempre e em cada momento, adotando-o como

prosaico para não se fazer igual aos desatentos com a palavra. Motivo vital ao surgimento

incessante em que localizamos o homem, ao qual se associa, enfim se faz. Com a ressalva da

dispersão que sempre ronda as atitudes humanas, sendo estável apenas o modo de lidar com a

palavra acolhedora. As muitas coisas com as quais o homem se ocupa, as muitas coisas

pensadas, tiram sua atenção, erigem barreiras, as estreitezas construídas devem no entanto,

serem obstruídas para chegar à originalidade de si. Esta é possível na medida em que o a-se-

saber move o comportamento humano, tal distinção equilibra o livre pensar em meio às

ocupações diárias.

Nessa obra teórica, o mapeamento do logos, seu alcance e originalidade traduzem o

saber tão procurado pelo homem. A face oculta, o recolhimento engrandecedor é tratado pelo

dignatário da palavra com a sobriedade que a experienciação lhe oferece; a atitude contrária a

tudo ter uma explicação voltada à lógica, admite, encoraja a escuta necessária, frutífera.

Amplificada, a experiência humana faz do dizer, anunciar, o sentido de co-responder ao que é

questionado, trocado, enquanto momento único de vida. A obra veio desenvolvendo tal

enfoque até definir explicitamente sua defesa maior de oposição entre fazer e dizer. Na época

cujo fazer, o resultado é o mais desejável ou mesmo aplaudido, o que é dito assume como

conseqüência o projeto de colher, recolher numa unidade visando pronunciamento mais

elevado.

Dentre as muitas questões que a obra de Heidegger suscita, o modo de utilizar o logos

é constante: seria este uma coleta, recolher que igualmente nos recolhe, nos leva a isto?

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Diante das preleções encaminhadas, tomar a iniciativa, adotar o gesto de introdução requer o

modo de colher combinado ao de salvar. Mas colher e salvar o quê? O que precisa ser salvo,

colhido? Para os pensadores gregos originários, o pensamento é a salvação do que se mostra,

embora tenhamos por pressuposto o escondido com maior valor referindo-se à busca do dizer

que toca o essencial. Aí vemos radicado o saber propriamente dito, aquele gestado no

processo por meio do pensamento, originário se oculta mais do que mostra. Ao favorecer o

retorno a si, amplia o que é único, aglomerador. A introdução por esta via, salva o lugar aonde

chegou. A palavra sempre em jogo quando o homem se compreende, já está aí embora ele

nem mesmo se detém para isso; ouvir fisicamente falando não é garantia de haver

transformação, a não ser que a escuta revele uma obediência de recolhimento.

Essa longa digressão ao texto de Martin Heidegger favorece a que tenhamos em

relação ao romance O homem duplicado uma atitude interrogativa com o desenrolar dos

acontecimentos. Se o pensamento é válido todas as vezes que levar às questões mais

intrínsecas do homem, personagens e narrador estão em pleno direito de uso da palavra, como

consta em: “(...) para ilustração dos leitores mais interessados no que se esconde do que

naquilo que se mostra.” (SARAMAGO, 2002, p. 198). Além da ironia contida no trecho,

podemos entrever o encontro prestes a acontecer do homem duplicado com sua provável

origem, há uma revelação que não conta tanto quanto o esperado. É o caso instaurado na visão

de igualdade absoluta entre os personagens, oculta o que mais o duplicado procura. Por

enquanto não se pode dizer quem ganha o jogo entre mostrar e esconder.

O homem simples cuja rotina é desfeita se põe numa espera que longe de ser frutífera

como propõe o pensamento de Heidegger, produz ansiedade e reviravolta referindo-se à

existência começada. Não nos cabe discriminar se se trata de Tertuliano ou de António, o fato

é que está em foco o a-se-saber do homem no processo de iniciação com base num

questionamento oriundo da multiplicidade de ser. A duplicação esbarra, empurra o homem a

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amadurecer. Ambos os personagens não suportam a ambigüidade do que dizem ou fazem e,

contrariamente ao que interpretamos em Heidegger, eles não têm estrutura para encarar a

permanência da mudança. Enquanto não solicitarmos um comportamento plano, enquadrado

dos personagens, encontramos a figura humana desenhada por José Saramago em termos mais

verdadeiros porque pautada pela ausência. Há descontentamento consigo mesmo na narrativa,

tanto maior quanto recheada de angústia e/ou intranqüilidade; os protagonistas se põem a

perguntar sobre o que está por se saber, qual a estratégia a adotar. O homem ciente se coloca

em marcha junto da imaginação já que é descartada qualquer possibilidade de união com seu

igual, há ao invés, recolhimento por parte dos duplicados. Parar, meditar e não ter atitude a

tomar, eis o dilema do homem duplicado.

Quanto ao fato de que o saber se apresenta num emaranhado entre mostrar e ocultar, o

romance abriga o mistério ao exibir ampla e efusivamente o personagem supostamente

inteirado sobre tudo de si, o que acaba afinal por ter sua convicção descartada. O rosto, o

nome, as palavras usadas denunciam o homem, o professor, o ator, o namorado, o marido,

comprovam contudo, aquilo que eles não são. Desencadeado o mistério, a oposição de tudo

isso vem à tona com tamanha força de expressão que as palavras se tornam sorrateiras,

análogas ao comportamento dos dois que são um. Como o narrador destacou a complexidade

das poucas palavras das mulheres do professor e do ator, o alcance das muitas outras usadas

pelos dois tem correlação ao texto de Heráclito. Isto se considerarmos ponto de referência a

lida pensante com as coisas. À certa altura do processo da duplicação, quando Helena e

António debatem sobre as conseqüências da presença de outra pessoa com a mesma imagem,

ele adverte: “(...) Imagina, decidir pelo que está fora e não pelo que está dentro, (...)”

(SARAMAGO, 2002, p. 181) o que fornece indícios para a interpretação de que a imagem

não ajudará na decisão que Tertuliano e António têm pela frente. O desconhecido de dentro

deles é o fator de debate, introspecção, aquilo que os faz pensar o ainda não pensado, tão

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confuso. O egoísmo, a mesquinhez dos gestos, palavras no verso e reverso dos personagens,

abrem-se para que possamos colocar em dúvida o quanto o contato ininterrupto com o

problema sublinha a idéia de conjunto. O fato de expô-los produz a identificação conforme

Heidegger. Pois bem, encontramos um professor que não sabe mais ensinar ou não deseja

fazê-lo de forma tradicional; um ator coadjuvante que deseja ter brilho próprio mas, é

sublimado pela própria imagem.

O elemento destoante do romance com a filosofia que estudamos vem de uma

dissociação entre o dizer e ouvir juntos: de forma geral dos personagens entre si, em particular

do protagonista que deve dividir a imagem, a personalidade? Com outro. Se o destaque for os

homens a se digladiarem interiormente com a duplicação, o universo é diferenciado. O dizer

deles não traduz o que lhes vai por dentro, há um esconderijo secreto só freqüentado por eles;

ali há incerteza, ressentimentos, impotência e uma apatia a lhes acabrunhar. Por onde

começar? Como sair desta espécie de encantamento? Se sou eu o reduzido, como proceder

para haver engrandecimento, reconhecimento por méritos singulares? Estas são questões

retumbantes na mente do homem duplo. O conjunto só é possível divisar se o ângulo de

observação for o personagem margeado com a condição de duplicado.

O mundo ao redor perde em importância para o sentimento de inferioridade que

atravessa o homem duplicado. O professor de Matemática não entende o de História como

sendo outra pessoa; a namorada incapaz de sentir com a mesma veemência o quanto há de

perturbação no companheiro; o outro lado do espelho que não corresponde; Carolina Máximo

espera uma ação do filho sem poder interferir, todos juntos formam o barulho circundante

capaz de tirar o homem da concentração em saber de si. Quando a narrativa se detém no

homem preocupado com este objetivo, a palavra mais importante é a que ele expressa apesar

de ser em pensamentos transmitidos pelo narrador.

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O maior problema que sempre volta ao personagem central do romance é a igualdade;

o diverso se faz o mesmo e não se vislumbra saída do processo. Nos termos de Heidegger a

diferença não anula, a questão porém em O homem duplicado é que ela se torna muito sutil e

se apresenta aos personagens com um desejo secreto de aniquilação. Além de ser diferente,

sobressai a idéia de exclusividade. Se o centro de interesse for o distinto com relação à

palavra, então os personagens têm quase nada de seu; a profissão de ambos requer pleno

domínio daquilo que se diz. É a palavra proferida por outros o elemento repetido; se sair

deles, temos uma confusão de sentimentos, busca frenética de abrigo no silêncio. A exemplo

podemos citar o fato de que o professor adquire consciência de trazer em si um erro, inclusive

se converte nele. Entretanto, não sabe como se corrigir; ao guardar as palavras para si entra

conjuntamente as perguntas sobre o significado, as conseqüências de um ser humano saber-se

errado. Se o certo é António e com ele está a verdade, porque este exibe a imagem do

professor tão nitidamente?

Tertuliano acostumado a lidar com as grandes verdades da História, também as

grandes mentiras misturadas àquelas, a sensação de vida que em seu presente experimenta é

idêntica ao trato com a disciplina lecionada: “(...) com o tempo tudo se vai tornando trivial,

(...)” (SARAMAGO, 2002, p. 82) para o comum das gentes não para ele ao trazer o desejo de

mudança, repensar seu contexto com base numa mutação de vida. Transformado na

trivialidade de um rosto conhecido, há uma espécie de rebelião silenciosa por parte do

professor. Pelos encontros, as conversas mantidas entre ator e professor, avaliamos não existir

possibilidade de convívio maduro, há por sua vez a chance da troca de lugares existenciais. A

convergência apenas pode ser notada no trecho onde ambos sabem que não podem dispor do

presente comum, o passado diferenciado também não é garantia de futuro dispersado nas

múltiplas observações que cada um é capaz de fazer.

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A introspecção dos personagens titulares do livro O homem duplicado, forma o saber

do ser na perspectiva do homem duplo. O desmanchar do simples, o dissipar do modo de

compreensão e o conseqüente tempo de crescimento é o momento em que eles se deixam

interpelar pela palavra; não mais dos demais personagens ao seu redor, mas de si mesmos. O

recolhimento (da crisálida) explica ou mesmo busca pertinência ainda não atingida, nisto há

aspectos de semelhança com a filosofia de Heidegger. O romance, no entanto, não é feito para

demonstração desta ou daquela essência de quaisquer personagens, porém de uma luta em se

deixar interpelar pelo logos crescente, todas as vezes que é o humano quem ganha o foco das

atenções. Se o homem se move nesta direção deixa claro o abatimento, depressão ou forte

tensão psicológica em relação ao vivido, motivo para que não se ache à altura de explicação

sobre tudo. Sabe de antemão, as coisas não serão mais as mesmas e ele em si também não é.

À parte a unidimensionalização dos personagens de O homem duplicado, o detentor do

rótulo de duplicado, disputa e vence o Senso Comum. Todavia não é capaz – no uso da

palavra – de vencer os argumentos de seu adversário maior: o homem de quem ele é o duplo.

Há nisso um jogo com a palavra no qual o professor em busca de perfeição é derrotado,

exatamente naquilo que mais pensava fazer melhor, ou seja, ensinar com a palavra inconteste.

Por outro lado, o ator embora não sendo astro, tinha para si o uso certo da entonação, a hora

exata de exprimir ou se calar para o sentido acontecer e o público se convencer. Enquanto nos

diálogos dos dois, a impressão da vitória do último fique no ar, o dizer do professor tem

ressonâncias na vida do ator que este não gostaria. Passa a viver da dúvida, do medo, das

incertezas transmitidas pelo duplicado. Um e outro, comportamento igual em relação ao modo

de lidar com a palavra! No momento em que cada um a guarda, a vontade e dignidade do

gesto expressam a resolução por um saber. Próximo, em frente, não se deixa apreender,

mostra-se ausente, necessitando de um passo a mais, reflexão? Processo em plenitude?

Escolha entre palavra e silêncio?

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O homem instalado nessas contigüidades se vê surgindo de forma incessante, tenta

abafar o emergir impondo-se restrições quanto a tomar a decisão que o defina. Protelar resulta

em sofrimento, há inquietude em se saber inacabado portando vida alheia. A síntese das idéias

presentes em Heráclito é a oposição entre fazer e dizer acompanhantes do homem ao longo de

sua vida. No romance em especial, o silêncio acerca do fazer exponencial do personagem,

especificamente ao final da narrativa, dá mostras do quanto os atos ou a omissão deles reluz o

dizer a ser proferido pelo protagonista desencorajado. É o momento em que possui um nome,

mas não é o dele, tem uma mãe que não pode apresentar, a esposa de prontidão para assumir

seu papel, enfim, dispõe da vida pela qual não opta. Entretanto, se retrocedermos ao início da

narrativa encontramos um homem insatisfeito com seu presente; só o fato dele não se resolver

a terminar definitivamente com a namorada é índice do quanto podemos esperar do

personagem. Ao passo que tudo é rotina e fastio, não há pensar resoluto na direção do

entendimento de si; foi preciso haver a duplicação para que as vítimas se conscientizassem do

lugar ocupado no mundo. Inseguros por isso, surpresos e julgando-se insuficientes, os

personagens desse acontecimento insólito, estudam cada ação a fazer no objetivo de não

divergirem do que realmente pensam ou dizem em cada situação.

Portanto, não podemos reivindicar uma interpretação dos integrantes da duplicação

como um compreender imediato daquilo que os personagens são. Durante o enredo ao qual o

duplicado nos guia rumo aos contornos do que vem a ser o homem desenhado na atual

Literatura, há defasagem visível entre aquilo que diz e faz. O aparecer daí oriundo é o do novo

receio; características das quais desconhecia, vividas e experienciadas na pele do idêntico;

resta acertar o método adequado para sair do erro entranhado. Tertuliano ao internalizar que

ele não era quem julgava ser, a urgência de ver, saber do outro, provoca com a sua a

curiosidade do original; resultado, investigador e investigado trocam os papéis pela segunda

vez desde a imagem chocante na tela do vídeo.

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Já no início o narrador centra atenção no professor. O ator comparece também como

coadjuvante na história de sua vida somente após sabermos de Tertuliano, da carreira, hábitos,

personagens componentes do enredo singular que será colocado em discussão por todo o

livro. Depois de iniciar o leitor nesta existência cujo relato beira à sensaboria, o narrador dá a

impressão de se divertir mostrando que aquela não era uma vida da qual podíamos estar

esclarecidos do principal: de quem a vive. O homem descrito revela-se inseguro, inconstante,

não atribui as qualidades ou a falta delas a um contexto, ao exterior no qual poderia se

refugiar. Procura-se, entretanto, nas fitas de filme alugadas e onde ele se faz presente sem

nunca ter representado, é às vezes caixa de banco, recepcionista de hotel, auxiliar de

enfermagem, porteiro de cabaré, fotógrafo de polícia e o empresário teatral, o personagem que

o levou a conhecer Daniel Santa-Clara. Profissões subalternas a esconder a vida do homem

sem brilho.

Em capítulos anteriores registramos o fato especial de o protagonista ser identificado o

tempo todo no livro pelo nome completo: Tertuliano Máximo Afonso. Depois, descobrimos

que ele não era o protagonista onde mais interessava, isto é, na sua vida. Ao estudar a obra de

José Saramago concluímos a predileção do artista pela vida dos anônimos, dos homens sem

representatividade desde os livros iniciais como acontece em Levantado do chão. Já com o

livro em dois volumes, espécie de diário do escritor, Cadernos de Lanzarote (1997) narra a

trajetória do homem, do escritor no trato com a literatura amalgamada à vida. No dia

dezenove de dezembro de 1994 ele critica um jornalista do local onde mora por detalhar a

acareação que seria feita entre pessoas renomadas no cotidiano espanhol. Servirão de

testemunhas um procurador, um advogado todos até então nomeados e classificados, por

último a secretária que teve quase por comiseração seu primeiro nome escrito. Em seguida

arremata: “E se em vez de secretária fosse secretário, se em vez de mulher fosse homem?

Teria o autor do artigo escrito, por exemplo, Alfonso, o secretário? Ou acrescentar-lhe-ia os

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apelidos todos, como a homem se deve?...” (SARAMAGO, 1997, vol. 01, p. 428). Ao nomear

o personagem Tertuliano Máximo Afonso, o escritor mais uma vez procura investi-lo da

quota de humanidade em falta no nosso tempo. Em obras nas quais os nomes desaparecem

por completo como é o caso de Ensaio sobre a cegueira, a humanidade chega à brutalização

das relações.

Além de mostrar o protagonista sem glória, o personagem de O homem duplicado é

um professor de ensino secundário; é um ator sem renome, é por fim ambos sem ser nenhum.

Contudo, o fato de maior importância é o homem que recusa mesmo interiormente a

igualdade; solicita embora sem força de expressão o direito ao pensamento. Afinal, o

resultado é ver-se a sombra do outro e na solidão suportar a presença incômoda nas horas de

reflexão. No plano que nos ocupa, qual seja, o da equiparação do texto de Martin Heidegger

com o livro de José Saramago, observamos no primeiro a aridez por arredondar a presença do

homem apontando a necessidade de se ouvir o outro. Porém, somente ouvimos o tom de sua

fala durante a manutenção de uma verdade irredutível. O diálogo tão solicitado se faz

monólogo e o homem, naquela visão teórica, na obrigação de surgir sempre e incessantemente

fica abandonado ao peso da convicção isolada. Já no romance, o homem inventado fala e age

às apalpadelas de acordo com o que acredita sem nenhuma convicção por trás. Aprende muito

mais que ensina, sendo o aprendizado com base no erro e não no acerto.

No instante em que a duplicação ocupa mente e corpo dos personagens,

transcendemos rumo à atitude a qual o homem desse tempo se vê reduzido pela imagem.

Lucidez, imaginação formam um círculo em torno do sujeito no intuito dele poder transpassar

o véu de delírio envolvente, dado o inusitado da situação. Logo, a pergunta mais insistente

não é mais como ser e sim como aparecer. Agitados dias nos quais passar à frente significa

muito mais que ser o primeiro a ser ouvido, visto. O registro ou comentário servirão de

alicerce para o sentimento, o fato real de ser duplicado possa pelo menos ocupar os homens, é

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o caso desta passagem na narrativa: “Entrou no carro a pensar que ia passar ao ataque. Só não

sabia para quê.” (SARAMAGO, 2002, p. 235). Dela podemos haurir duas conclusões. Entre o

pensamento e a ação do personagem em discussão há uma distância muito maior a ser

detectada; a ação mecânica relativa ao fato de se encontrar, entender o resultado da duplicação

implica um não saber que se anuncia pelo simples fato dele se colocar em posição de ataque.

A passividade de antes dessa resolução com aparência de defesa se transforma, mas a

justificativa não acompanha o personagem no mesmo ritmo. Permanece a impotência diante

do inevitável: para que mudar se a igualdade insiste na afronta? Na visão conjunta do

romance, o personagem transmite a sensação de que os encontros e desencontros narrados

dizem respeito somente a si; é o seu mundo, o seu problema a parte intrigante na leitura de um

eu discutível. No entanto, há cortes contrários a esta idéia, como o preparo do estudo feito por

encomenda do diretor da escola para melhorar o ensino de História no segundo grau. Embora

o leitor não saiba se o estudo foi aceito e aplicado, o considerável é o protagonista colocar em

prática aquilo que era alvo de suas críticas na intenção de melhorá-las.

Em compensação, muito criticado, o pensamento filosófico de Martin Heidegger é

atacado principalmente ao retirar o homem do plano das relações humanas. É como se o

sujeito se fizesse sozinho em suas dúvidas, chegasse à plenitude sem interferência externa;

tudo possível e encadeado de acordo com a palavra capaz de pronunciar e, se estiver maduro o

bastante, se calar. Ouvir sim o barulho de fora, mas, está no silêncio a fonte do crescimento a

qual é destinado. Para Christian Delacampagne (1997), Heidegger ao se concentrar no tema

do homem enquanto ente, deixa sem resposta a questão do Ser, pois este é inapreensível.

História da filosofia no século XX traça um quadro por demais sombrio da figura humana de

Heidegger, ele é descrito como omisso em relação ao contexto em que vive, acusado de

ignorar a existência da Shoah, além de fazer vistas grossas à arbitrariedade do nacional-

socialismo. O filósofo é tratado como o último grande representante de uma autoridade

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filosófica discutível. Seu pensamento é visto como apenas mais um modismo adotado sem

muita reflexão na França, oriundo da Alemanha fechada em si e espalhado por todo o

Ocidente como a fala retransmissora dos ideais totalitários que o mundo não aceita mais. As

ironias são tantas que o leitor de Heidegger se vê subestimado na capacidade de compreensão

do filósofo em detrimento ao que Delacampagne deduz de qual seja o papel da filosofia no

século XX. Se este estudioso conclui pelo uso da ética sobre bases autônomas do pensamento,

a redefinição da razão, o ambiente onde isto é possível é o texto filosófico. Ora, se a filosofia

de Heidegger não se assenta no âmbito de compreensão do humano, porque a ética e a razão

devem ser excluídas de seu texto? Ser e tempo classificado como um livro inacabado e

Heráclito, um texto de muita pretensão e pouco resultado, são ambos de qualquer maneira

amplo espaço da argumentação reivindicada pelo crítico Delacampagne. Este se tivesse lido

com propriedade as duas obras, veria ali o humano sobressaindo de maneira a que a filosofia

de Heidegger se abre ao acolhimento das diferenças do Ser. É por tal motivo que nosso estudo

adotou-o como contra-argumentação para desenvolvermos visão particular do homem na

contemporaneidade presente na Literatura.

Com esta postura, haurimos dos acontecimentos em O homem duplicado que eles

ocorrem num mês de agosto qualquer, localização de um tempo sem bons presságios. O

narrador esmiúça a rotina desse homem na troca de identidades com António Claro através da

barba e do bigode postiço. Ações simples inexplicáveis como levar o livro das antigas

civilizações mesopotâmicas num encontro onde ambos ficarão frente a frente, sem disfarces

pela primeira vez. Então conclui: “(...) na verdade não há quem perceba o espírito humano,

(...)” (SARAMAGO, 2002, p. 284) o que nos mune de argumentos a favor do retrato feito

pelo escritor sobre o homem neste livro. Imagem em construção, um prédio demolido desde o

alicerce, mas, junta o restolho na configuração de si. Em face disso, o espírito humano não se

deixa apreender, interrompe definições prontas; se não há quem perceba isto não significa que

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não há quem procure. A reviravolta na narrativa cujo nome é duplicação, esboça o momento

no qual o homem inevitavelmente depara-se com o desconhecimento de si. A fala do narrador

em tom profético apenas confirma a vivência dos personagens: a caoticidade de não

encontrarem resposta para o que são. Os descaminhos acentuados são mais chamativos

porque partem sempre do princípio da duplicação; cada ação, pensamento, fala e silêncio só

tomam forma com a prerrogativa de não serem únicos e por isso o homem se sente à mercê de

uma reação que não é a sua.

Apesar de estar acompanhado por semitas, amorreus e assírios e de ter certeza sobre o

espírito humano não se deixar apreender, Tertuliano sabe de certeza também: já “(...) não

poderá escapar a si mesmo.” (SARAMAGO, 2002, p. 284). Aí dobra a inquietação

concomitante às palavras devem ser certeiras; os atos milimetricamente estudados num

encontro cujos resultados são imprevisíveis. Pelo fato de ser duplicado o personagem

apresenta resignação ao acatar o que o ator lhe faz, fala, como se no fundo fosse o outro

sempre o detentor da razão e ele não pudesse exprimir o real sentimento de ser homem. O

protagonista fica em suspenso com o pensamento iniciático oferecido pela companhia

escolhida, por sua reação diante da imagem conhecida ao contrário do continuísmo do qual o

professor queria fugir. Se houve aceitação tácita no abaixar a cabeça para os planos de

António, houve também continuidade no episódio onde Tertuliano faz o mesmo que seu sósia

ao dormir com Helena. Nova ocasião na qual não há como apontar quem é duplicado de

quem.

O homem da duplicação admite a fuga de si mesmo, admite por outro tanto a

impossibilidade disso perdurar. A apreensão resultante é de não mais poder contar com os

conselhos do Senso Comum, nem os da mãe, da namorada, do professor de Matemática. O

confrontar-se é isolamento das opiniões sobre si para construir as próprias. Com isso há o

medo de não acertar; não ser conveniente; ser rejeitado; incompreendido; não se fazer ouvir,

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de não ter força o suficiente na disposição da fala. O círculo se fecha e não há mais como se

esconder, o reflexo traduz um equivalente de entraves sem testemunha.

Durante o período em que Tertuliano Máximo Afonso está sozinho no mundo, ele já

não é mais quem gostaria de ser. O corpo é de outra pessoa, mas seu interior é do angustiado

de antes, inclusive sem a coragem de se assumir dessa maneira. Na presença de Helena, ele

ainda é António Claro disfarçado de Tertuliano; ao querer enganar-se, pensava que o

verdadeiro marido dela fosse aparecer a qualquer momento. Isto não acontece. Em

decorrência, há o retorno ao momento iniciado na ocasião quando o professor assiste ao filme

Quem Porfia Mata a Caça. Qual seja, a pergunta: afinal, o que é ser duplicado? É alguma

espécie de nódoa? Quem sou eu, se eu sou ele? Do muito ler o modo de vida das antigas

civilizações mesopotâmicas, o magistério invade o ser do homem e ele de professor passa a

aluno no aprendizado de vida. Duplicado, na idade da razão, de poucas qualidades e muitos

defeitos, estes suplantam aquelas considerado o plano de discussão: o homem absorvido pelo

erro.

As pistas que Carolina Máximo deixa em cada frase interrompida, as sugestões só

insinuadas não são o bastante para o homem duplicado se sentir confortável. Justamente

porque ele como a mãe temia não acontecer, acordou de um sono profundo; o atordoamento

tem razão de ser, pois as manobras de viver devem agora ser feitas exclusivamente por ele. O

adjetivo a especificar o homem no romance, longe de ser uma qualidade moral,

engrandecimento da pessoa protagonista na narrativa, se configura num chamamento.

Entendemos como vontade do escritor em nos transmitir a idéia de que o ser humano é

conforme a observação feita: não sabe de si, quer esconder a ignorância numa mistura de

adentramento em si com a imagem supostamente glorificada por outros. O fato de o duplicado

abafar a verdade do mundo e revolvê-la, não significa o esclarecimento almejado pelo

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simples, porque depende apenas de uma pessoa. Descobre para seu padecimento: o alvo não

só precisa do outro como está nele boa parte das perguntas e respostas atormentadoras.

Retirados os atributos corpóreos para se identificar o homem duplicado e os morais

sendo incompletos, resta-nos dirigir nossa atenção às sutilezas e complexidades na noção

possível de se articular. Na dúvida de que a lógica dos pesos e medidas é realmente coisa

humana, este personagem chega à conclusão de que nenhum ser humano vive sem ilusão. Tal

resultado aparece no processo de ensinar História, o professor se vê um arcabouço

interpretativo. Enquanto os alunos entendem uma coisa, ele enquadra a duplicação como

miragem, pretende até se convencer disso. Como não são inventadas as vidas de António e

Helena e as mortes dele e de Maria da Paz, não há muitas opções ao personagem, principal em

virtude das circunstâncias. Para quem se ressentia de que apenas nos últimos instantes da vida

poderia se gabar da primogenitura, não se mostra tão animado por estar finalmente sozinho no

mundo; não há mais ação a imitar ou o mimetismo do espelho, prevalece em contrapartida a

escuridão do nome, do ser humano em repetição.

Notamos no desenvolvimento do romance que o homem protagoniza uma história

cujos precedentes imaginava dominar. Destacamos ainda a confusão e por vezes a falta de

sentimentos: o amor visto como serventia; a amizade desclassificada; auto-depreciação. Com

o agravante da duplicação, o homem se torna mais arredio e os dilemas de outrora ganham

estatura maior, a ponto de questionar: o que significo? O que é a verdade em se tratando de

mim? Estas são as novas inquietações do duplicado. Não sem surpresa encontramos o

causador e a causa desse processo em situação bem parecida: o que farei com esse sujeito ou

simplesmente eu? Livrar-me dele significa mudar minha existência? Homens em estado de

contemplação, estes personagens resumem a esterilidade do “sentimento verdadeiro” ao qual

a Literatura se viu muitas vezes reduzida, ao invés temos o da inadequação. A hora errada, o

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local impróprio, a palavra fugidia, o desacerto com a imagem tudo somado para a

compartimentação regida pelo homem com seu igual na literatura contemporânea.

Abre-se como horizonte para o duplicado: esconder-se sempre que o outro apareça,

recolher-se na própria insignificância ou ser o outro. Ao experimentar a prepotência do

homem cinematográfico, as ações pouco louváveis deste a fim de conseguir objetivos

igualmente discutíveis, o duplicado tem razão em se sentir desconfortável por causa da opção

já praticada. Ele arredio em ser notícia, é extensão de uma vida sem começo. Esta é

proporcional à ignorância da palavra amor em qualquer sentido destacada; as verdades são

deslocadas; os interesses no viver beiram à sobrevivência de corpo e mente em caos.

Combater o inimigo é lutar com a própria imagem muito vista e pouco conhecida, é o homem

da contemporaneidade embora se sabendo iludido com a visão de si feita por terceiros, não

tem clareza correspondente para construir uma satisfatória. A literatura ao dar voz, corpo a

este homem o coloca na própria incapacidade de viver por si: é um ponto de vista levado em

consideração; a imobilidade como resposta ao observado que não se olha. Por conseqüência, o

duplicado transforma-se no ponto de ebulição das intrincadas parábolas inventadas, sem o

realce pretendido ao desvendar o segredo do filme, o qual lhe abriu nova relação com a vida.

Ao fazê-lo, fecha-se uma etapa de obscuridade enquanto o decifrar a que se lança é mais

obnubilado ainda do que quando julgava saber de si. Tocado pela emulação, o mundo do

duplicado se faz homogêneo em razão disso, encontramos um homem desconfigurado,

irresoluto, desatento com os sentidos feitos à sua revelia.

José Saramago em Cadernos de Lanzarote (1997) expõe o processo de composição de

suas obras, as viagens, participações em eventos literários capazes de favorecer em nosso

entendimento, a compreensão especialmente do romance O homem duplicado de 2002.

Escrito em forma de diário aquele livro desenha pontos de vista, opiniões acerca do mundo

atual, a política, a miséria de existir num tempo inebriado pela inacessibilidade do ser.

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Podemos acompanhar toda a gênese de composição de um dos livros mais discutidos de sua

obra, o Ensaio sobre a cegueira que contempla muitas destas preocupações do escritor. Como

nossa tese se baseia no estudo de O homem duplicado, vamos buscar nos Cadernos motivos

condutores, pensamentos, estilo com os quais possamos nos certificar da gradação ou mesmo

degradação com que o personagem representa o ser humano na escrita do romancista.

Com os cegos do Ensaio o homem parece ter saído exaurido da convivência forçada e

busca algo de mais intrínseco, a pessoalidade tampada pela cegueira; sozinho, mas duplicado,

o homem se investe das grandes questões que segundo Saramago, “continuam a roer a alma,

ou o espírito, ou a inteligência” (1997, p. 16). É manifesto o fato da continuidade acentuada

nesta frase, inclusive porque ela se intensifica até o homem se duplicar em causas, efeitos e

conseqüências preparados pelos vários personagens cegos, sem nome e sensibilidade para

com o sentimento dos outros. Ainda dentro da questão de agir para ser ou de ser para agir com

personalidade, o escritor cita o conto “Centauro” no qual ao falar alternadamente do homem e

do cavalo, tratava-se afinal de um único ser; já no “Conto Burocrático”, o outro e o mesmo

eram indistintos. Se por um lado o mundo é visto pela grandiosidade das culturas e crenças, a

globalização o torna pequeno, sendo que o ofício do escritor se encarrega da pluralidade das

histórias por colher e porque não, convencer. Dentro do que ele chama de o espetáculo do

mundo onde reina a irracionalidade humana, há muitos e variados matizes a esmiuçar. Disto

aproveitamos que as idéias se encaminham, gestam o romance de 2002 depois dos livros

iniciais marcarem a luta entre duas paciências: a do povo e a do poder.

As perturbações, a vontade de opinar em questões que a humanidade se enovela fazem

das narrativas em geral e de O homem duplicado em particular, um chamado para o homem

perceber a mudança a sentir, efetuar na maneira de ser e pensar. Pelos gestos,

comportamentos de figurante, protagonista, homem comum sem grandes habilidades,

depreendemos o conhecimento pela imaginação ou vice-versa. Ponderado, isto repercute no

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homem anônimo, interesse maior do escritor português por causa das emoções; a

incapacidade de se colocar no lugar do outro, de reagir ao alheamento, algo fragmentador

equivalente à bipartição do homem, ou no caso, a repetição das mesmas ausências de sentir.

O imprescindível a viver é o que desperta o homem duplicado durante a perda da

tranqüilidade característica, não é sem explicação que o protagonista é um professor de

História: alguém cujo ofício é lidar com a repetição de outros. Se a repetição de si não é

convincente, o fato gera a inércia para a compreensão do viver. O que as páginas iniciais de

Cadernos de Lanzarote demarcam com firmeza é a necessidade de viver balizado pelo

pensamento distinguível do homem, transplantado para as páginas da narrativa. O fato mais

peculiar, o ponto nevrálgico que vimos tentando compreender em O homem duplicado não é a

intenção do escritor ao criar dois personagens, no fim o mesmo homem, é antes, o fato dele

ser movido por uma pergunta presente também no livro-diário e em muitas das entrevistas de

José Saramago: quem sou eu? (grifo nosso) Ao deliberar pelo homem de um tempo único,

esse romance tem muito do garoto Saramago que se vê na pele do artista de cinema Ronald

Colman, “deixando-me com ar de ser inacabado, surpreendido de existir, ainda à espera dos

primeiros safanões da vida para começar a ganhar algum sentido de homem.” (SARAMAGO,

1997, p. 103).

O sentido satisfatório para a existência procurado por Tertuliano Máximo Afonso após

saber da duplicação é aquilo que o escritor investe seus personagens até como forma de

chamamento para o homem se situar; buscar e fazer a diferença. Desempenhar o papel ao qual

a vida obriga todo ser humano passa ser uma espécie de obsessão do personagem cumpridor

de seus deveres. O problema se coloca quando ele não sabe qual é este papel, se o de

professor, se o de ator ou de um terceiro ausente.

A cabeça do homem, o lugar das avarias, do sentir em retrocesso faz os giros sem os

quais as amenidades são vencidas. É dessa forma nossa observação sobre o escritor entre

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entrevistas, inaugurações de peças, recebimento de prêmios, participações em eventos de

diversas universidades a defender a Língua e a Literatura Portuguesa. Pontuando o fazer

literário às voltas com as possibilidades humanas, os personagens se encarregam de viver na

consonância das muitas opiniões demonstradas pelo romancista. Uma delas é a

impossibilidade de contar histórias no nosso tempo porque a televisão e o cinema se

encarregam de contá-las; fica para o romance e a quem o cultiva regressar as quatro grandes

questões humanas, reduzidas a vida e morte, o escritor prefere a questão crucial “quem

somos” (SARAMAGO, 1997, p. 169). A desenvoltura que o romance apresenta na atualidade

tem relação direta com a sumarização do conhecimento do qual se sustenta. Da variante,

quem sou eu para as pessoas? Para outra não menos importante, quem são elas para mim?

Temos o dilema maior encontrado n’O homem duplicado a cada página do texto,

independente se ele interage com o Senso Comum, com o outro de quem é parte, das pessoas

cujo estreitamento afetivo mantém. De repente ele perde a noção de seu significado; perde

delimitações para agir e pensar independentes. É nesse de repente, no curto-circuito do

pensamento que esta narrativa se concentra a repassar ao leitor semelhantes estranhamentos.

As questões acima mencionadas são ensaiadas em livros anteriores como a Jangada de

pedra ou, por exemplo, no Evangelho segundo Jesus Cristo cujos comentários ocupam boa

parte dos Cadernos de Lanzarote tanto no primeiro quanto no segundo volume. Nesses

romances os personagens se movimentam em função de um objetivo repleto de humanidade.

Homens em fuga de uma catástrofe mais interior do que exteriormente e outro homem cuja

vontade é ser apenas homem sem servir de exemplo para nada. Repletos de questionamentos

acerca do que lhes acontecem, nas duas narrativas as existências são consumidas a tentar uma

resposta mesmo sendo de caráter provisório. Em seguida será substituída por outra mais

intrigante ou mais desnorteante: o que é ser homem?

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Estes livros dos quais comentam os Cadernos fazem em conjunto a preparação para o

que vemos acontecer em O homem duplicado. Notamos neste, tentativas de apreender a vida

por etapas, o conhecer, o situar, o demarcar limites e o aprisionamento neles. A mentalidade

de quem pergunta sem esperar respostas, daquele que toca no ponto fraco do outro e sabe da

gravidade da situação, tudo isso encontramos delineado na narrativa já propugnado no diário

do escritor. Ser a projeção, ser a imagem da irresolução eis o fastio do homem de duas vidas

sem viver nenhuma, não é apenas mais uma ficção, é a preocupação com a realidade cada vez

mais difícil de apreender. Se acostumar? Enfim, experienciar. Ao prosseguir, os muitos dias

que o diário tenta resumir são insuficientes para falar de um personagem tão antigo quanto a

tomada de consciência de sua existência: o homem.

Em vinte e um de janeiro de 1994 Saramago registra nos Cadernos: “Será que é

preciso, afinal, saber muito menos para compreender um pouco mais?” ao refletir sobre um

comentário a respeito da importância da História na vida do homem, temos com as palavras

do fazedor de personagens, o rascunho do ser fictício que é professor daquela disciplina.

Alguém desconhecedor daquilo em que acreditava, duvida da capacidade de convencimento e

se mostra tão perdido quanto o domínio dos fatos. A fim de sanar a ignorância para viver, agir

demonstrando alguma coerência, o personagem do romance em estudo se faz múltiplo das

opiniões de quem vive sustentado por um fingimento. Da vida observada como se estivesse

num laboratório. Há a vontade sojigada em discrepância com o desejo de libertação, de criar

consciência, não sendo cativa, possa defini-lo como ser humano.

O fato de não haver explicação, do escritor colocar isto em seus romances, enfim de

demonstrar preocupações semelhantes com cada personagem criado, amplia o poder das

interrogações. A meditação sobre o erro, por exemplo, o homem transformado nele, o

romancista se empenha por tê-lo como verdade muito além do que pretender expô-lo como

absoluto. O estilo, a técnica narrativa a que se dispõe o narrador de Saramago se move no

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compasso de música; entre o caráter inorganizado e fragmentário do discurso falado e a

música contemporânea, temos uma maneira de escrever convocadora, prende, retoma e reflete

o homem. Com um grito preso cujo sentido explora o silêncio da incompreensão. A isto se

presta o romance, máscara a qual segundo o escritor oculta enquanto revela os traços do

romancista; em cada história inventada ou em cada personagem, encontramos novas tentativas

de definição do ser humano a fazer a história da humanidade. Na posse do arbitrário, os seres

de palavras são o objetivo do escritor cujo trabalho é desvendar nas narrativas o que muitas

vezes não viveu.

Cadernos de Lanzarote funciona como testamento no qual José Saramago deixa traços

de sua personalidade, algo transferido para a escrita de seus romances, algo valioso para

somarmos no trabalho hermenêutico de um dos seus livros mais intrigantes. Na

impossibilidade de saber acerca da realidade, as leituras feitas sobre ela através da Arte e da

Literatura, dão sentido à vida e explorá-la como o faz Blimunda, a mulher do médico, o sr.

José, o homem duplicado é a maior grandeza dos romances discutidos ao longo do diário.

Num tempo em que muito se fala de liberdade, retomamos a prisão dos homens simples na

construção do convento cujo nome fornece o título ao Memorial; a prisão também no

confinamento daqueles homens da cegueira branca; a prisão dentro da conservatória do

registro civil a procurar gente famosa e depois a mulher desconhecida e, ainda, a prisão em

ser igual e não encontrar a diferença. São sentimentos, enlaces e desenlaces com prisões e

libertações possíveis, às quais os personagens são sujeitos conforme a disponibilidade de ser

em processo de cada um.

Embevece o escritor e o instiga a produzir: as pessoas com seus modos de viver, feito

casa cujo interior é preciso se familiarizar. Porque para ele “vivemos para dizer quem somos.”

(SARAMAGO, 1997, p. 282) consoante ao encontrado nos Cadernos de seis de maio de

1994. Tal compromisso é assumido à medida que se tem ou se pretende a consciência clara e

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não raro dolorosa, da enorme responsabilidade de cada ser humano perante si e a sociedade na

qual se há de interferir. Em vinte e dois de junho do mesmo ano, lemos sobre o provável

embrião da história do homem duplicado. É a sensação de viver uma experiência não

particular, viver uma vida destinada a outro, ou ser o outro dessa vida; a conclusão segundo a

qual a Literatura havia levado o escritor a outra dimensão, foi responsável também por ele

carregar com isso um sério problema ontológico a resolver. As emoções, sentimentos

integrais da experiência servem de expectativas, conquistas a que os prêmios dão testemunho.

Elas geram pensamentos como o de colocar em dúvida ser quem era, se reconhecer no

espelho, ser reconhecido pelos outros e, contudo, sem saber o motivo, num curto espaço de

tempo começar a pensar acerca da vida, sendo exclusiva, não deveria sê-lo na perspectiva

lógica dos fatos. Tudo isto aparece nos romances, particularmente naquele eleito para nosso

estudo como alerta à insensibilidade reinante dentro da estupidez e maldade humana.

Com a frase, “a gente habitua-se a tudo inclusive a não existir” (1997, p. 339) temos

referência das possibilidades a desentranhar; ver o que ainda não foi visto, provocar as

reações ainda não afloradas, principalmente perseguir a sombra, o duplo do homem. O algo

errado neste, trabalhado pelo romancista em seus livros, surge de antemão provocando a

quase certeza de que não poderá encontrar o lado certo. Porque se trata de algo intrínseco a

cada pessoa sem poder reduzi-lo a nenhuma fórmula, nenhuma lógica por mais razoável na

aparência. Tarefa cuja enormidade é a de inventariar o mundo e colocar nele o homem, depois

sair atribuindo nomes é o trabalho do criador de personagens ao qual Saramago se dedica. Em

outra frase igualmente de efeito: “penso que nunca acabamos de viver a nossa vida.” (1997, p.

415) podemos definir motivos desencadeadores repercutidos nas contradições e mesmo nas

irresoluções dos personagens. Vidas contornadas por mistérios, desencontros entre

consciências e essências não tipificadas, há o trabalho do artista comprometido com seu

ofício.

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Ao escolher um professor que não consegue mentir sobre si mesmo e retirá-lo da

imagem de um ator ignorante na arte de fingir em O homem duplicado, concluímos como a

farsa vista de forma infame na visão do romancista. Na medida em que opta por ações e

sentimentos nesta sua ficção, almeja, sobretudo a manutenção da coerência por parte dos

personagens ao tentarem se conhecer. O faz sem querer chegar à verdade definitiva, mas, da

verdade de cada um. Sem revelações bombásticas, apenas com surpresas comedidas, os

personagens em geral e esse livro em especial, acrescentam ao ser humano uma visão

imediata sobre a fluidez do pensamento, a fluência da vida a se mover de acordo com aquilo

que o homem faz dela.

As idéias acerca da vida e como se tornar mais humano de acordo com a memória

acumulada das experiências, são a matéria-prima dos romances discutidos nos diários

componentes dos Cadernos. Na imaginação, na repercussão delas o rosto que ali se mostra

pergunta sem esperar resposta: sabeis quem eu sou? Porque eu mesmo não posso dizê-lo,

muito menos confiar na audição. São prognósticos com os quais o escritor reafirma a força da

imaginação com suas virtudes e malícias na composição das narrativas. O tempo e o mundo

mesclados transformam-se em visão única aos olhos do escritor que se coloca na expectativa

de um sentido, por se encontrar e reconhecer-se nele. E de tanto reforçar sua idéia sobre a

História, o romancista acaba declarando ampla e formalmente que as histórias contadas são

sempre a história do seu tempo; da contemporaneidade cheia de desacertos, encontros

esperados e quase nunca concretizados, dos sentimentos à beira da extinção e do homem

colocado à meia distância disto.

Ao fugir da escrita e do assunto atraentes à generalidade humana, seus textos não

visam um modelo de narrativa, mesmo porque o escritor não se vale disso muito menos

acredita se há um. Por isso o inusitado dos enredos, certa visão trágica do mundo em

semelhantes condições e o grito incontido da absurda dor do mundo se fazem presentes na

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ficção, plena de vida em constante elaboração. Similar ao homem desse tempo incerto, a

procura pelo sossego do espírito não liberta o escritor bem como as paixões, combustível para

que os romances adquiram personalidade. Por outro lado temos recorrência muito presente

enquanto transitoriedade, acompanhada do segmento relativo delineadores da condição

humana nos livros. Opinião logo transformada em outra, sentimentos então muito mudados de

acordo com conveniências ou ambientações humanas, fazem dos personagens seres

cambiantes, seres mais humanos conforme amadurecem nos erros cometidos como é o caso

do livro de 2002.

A transformação de valores experimentados pela humanidade, entre eles inclui a

capacidade de tolerância para com o outro, ao implicar reconhecer a igualdade em todos os

seres humanos é algo que emperra o crescimento humano. Isto é muito latente até no tema

escolhido para discutir a igualdade rejeitada no Homem duplicado. Igualdade que nega o

reconhecimento, sequer por meio dos defeitos, dos quais a apreciação da própria imagem

observada em ambos os personagens. Bem como nas qualidades muito frágeis em destaque.

Perpassa nos últimos romances do artista e este não poderia ser diferente, a melancolia do

homem se saber fugaz, pequeno num mundo análogo ao sentido do ser: em processo.

O homem com sua absurda existência no tom pessimista das falas de Saramago seja na

discussão de suas obras ou em assuntos condizentes às condições atuais de se viver,

encontram receptáculo na ficção. Ambiente propício ao tema ao qual os seres de palavras

tomam forma pensam por si, amadurecem com a consciência da inércia inócua se são as

idéias, as propulsoras das mudanças exigidas pelo mundo. Enfim, a vida que não se mostra,

ao invés requer a investidura do homem, arregimenta os personagens para a função de serem

eles mesmos com ou sem a permissão do mundo. São dessa forma os cegos a enxergar a

leitosidade da vida; os integrantes do memorial movidos por uma idéia tresloucada para o

mundo: o desejo do homem de voar; a busca e o encontro de uma ilha desconhecida.

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Formatam acima de tudo o magnetismo do homem preso à sua imagem sem conseguir se

desvencilhar resultam no maior dos motivos para ele querer o encontro mais profundo com o

espelho evitado.

Juntar o escrito ao falado, no caso do romance isto é visível pela performance através

da oralidade do ator, com a retórica utilizada pelo professor nas aulas, traduz o homem que de

repente se convence da incapacidade em dominar o ofício cujo sentido, no caso, é a vida.

Graças à habilidade do romancista, a narrativa estabelece, mostra nexos – as profissões muito

parecidas pelo poder de convencimento do público – as relações profissionais e pessoais

bastante deterioradas com o tempo. O desentendimento e as associações entre a vontade

manifesta com personalidade pouco visível de um dos personagens formam a atração de uma

narrativa na opinião do escritor. Ainda mais atiçar a curiosidade sempre a mover o ser

humano desde que se percebeu como tal. As grandes questões a surpreender José Saramago

nesta linha de percepção formam campo de trabalho propício, dentre elas citamos: as

chamadas zonas obscuras nas quais o homem deseja transitar, entender, pelo fato ou por si;

outra qualquer tradução com o que vai lhe acontecendo vida à fora.

O tempo parece paralisar na narrativa de O homem duplicado, é outra vertente da

substância mental, espiritual e ideológica a compor o ser humano que todos nós somos e

tentamos nos aperceber. Qual o valor do pensamento ainda não materializado? A vontade por

se expressar, pelo contrário, sempre se adia; do espírito vacilante chegando a sossegar pela

rotina e informe com a força da oposição, constroem um homem convertido em personagem

de si mesmo.

Algo do discurso saramaguiano transplantado ao texto ao qual faz questão de deixar

bem claro é essa vontade de “viver com aquela suprema dignidade humana por que ansiamos

e que constantemente nos foge.” (SARAMAGO, 1997, vol. II, p. 31). Contudo, os

personagens estão incansavelmente à procura, como forma de expressão do ser humano se

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colocado entre a vontade e a possibilidade de realização, consegue autonomia. A qualidade

humana de cada ser ficcional é ressaltada, às vezes subtraída por seus atos, porém, fica

explícito a faceta da envergadura com a qual o homem pode ser visto. Numa outra

abordagem, há sempre de enfatizar a ausência, o silêncio, a solidão experimentados pelos

personagens no processo de metamorfose. Sem se prenderem a aspectos psicológicos, temos a

mistura de acontecimentos singulares ou não de acordo com a complexidade anunciada, à

maneira do fato incomum – a duplicação.

Desprovido de luz a iluminar a existência, os personagens muitas vezes se vêem no

desamparo. Estão perdidos, absortos em algo que possa lhes explicar, algo como uma espécie

de libertação a ser conquistada. Ao longo das narrativas, cada máscara adotada incumbe por

sua vez os personagens de viver a crise responsável pelo tormento e os fazem por isso mesmo

mais humanos. Seres de crise, de irresponsabilidade com o passo seguinte a ser dado, eles

oferecem ao leitor um espetáculo cujo sentimento de inquietude é transmitido seja em ações,

seja na escuridão. Esta empurra personagens e narradores a tatear o delineamento. Homens do

presente, homens a trabalhar seu presente, buscam além do mais entendimento em si e nos

outros. Por causa disso liberam a sensibilidade perdida para a objetividade circundante, algo

muitas vezes a nos fazer menos homens do que pensamos.

Desqualificados o Mal e o Demônio do mundo para o homem inventivo, confessa

fraquezas e se rejubila no sucesso, perde contudo, na/pela aparência irreconhecível.

Semelhante ao desmentido n’O evangelho segundo Jesus Cristo, O ensaio sobre a cegueira,

Todos os nomes, a visão de mundo justificada pelos personagens ali configurados, destoa e

prova o quanto ignoram seu significado num mundo em transformação. Tanto quanto eles são

capazes de fazer e porque não, sentir.

A vida labiríntica cuja profundidade preenche cada narrativa de Saramago se arquiteta

em função do que há de grande no ser humano; através do engenho do escritor fazê-lo caber

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em palavras definidoras e nas figuras de si mesmo povoar um passado múltiplo. Explicação

ao termo escorregadio em relação a propor o significado definitivo; algo escapa sempre se há

a tentativa de isolá-lo ou isolar-se nele. Daí a importância dos romances ao experimentar

apreender a magnitude do ser humano em cada personagem criado; todos seja do protagonista

ao mero figurante estão sempre insatisfeitos com o presente que lhes caiu nas mãos. O fator

discrepante é não saberem o desenrolar dos acontecimentos ao longo da vida, a movimentação

em torno dela significa além do destino pré-meditado, estar alerta às misérias da vida – a

perda da identidade, por exemplo –.

O romance para o escritor português é o “lugar capaz de acolher toda a experiência

humana, um oceano (...) onde se confluem as águas da poesia, do drama, da filosofia, das

artes, das ciências...” (SARAMAGO, 1997, vol. II, p. 212) nesta colocação podemos

confirmar como os Cadernos de Lanzarote tanto no primeiro quanto no segundo volumes

trazem um modo de entender, visão teórica das histórias narradas, comprovando a

preocupação do romancista em avaliar criticamente sua produção. Ele vê indissociados a

razão e o respeito humanos, propôs em livros anteriores uma visão sombria sobre o destino do

ser humano como em Ensaio sobre a cegueira no qual ao recorrer à alegoria tenta mostrar a

vida atual. Pelo excesso de racionalidade, a existência configurada dessa forma depõe contra

si. Essa perspectiva segue fechada no romance A caverna e se condensa n’O homem

duplicado; narrativa cuja visão é para além de sombria ou pessimista, trata-se da tentativa de

saída do labirinto criado pelo próprio homem ao fazer uso de sua razão em potencial.

A distância, o sentimento de não estar em lugar nenhum contribui como matéria do

que somos é a disposição repassada por Saramago a seus personagens. Os duplos, por

exemplo, apenas sentem densamente quando o isolamento os colocam a avaliar a existência; o

fazer falta, a emoção do aniquilamento os alicia em sensibilidade e esta cresce à medida que

demonstram incompletude.

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O diário enumerado como V de vinte e quatro de fevereiro de 1997 é o testemunho

mais cabal da gênese do romance de 2002, O homem duplicado. Neste dia, Saramago escreve

que ao lembrar-se de Robert Louis Stevenson e o livro O médico e o monstro põe-se a pensar

em como seria esta história em caso de duplicação genética. Das várias reflexões suscitadas,

aparecem aquelas questões intermitentes em seu romance: “como saber quem era um e quem

tinha sido o outro? Seria o assassino o ‘original’? Seria ele o ‘duplicado’? Ficasse quem

ficasse, Hyde ou Jekill, a velha pergunta repetir-se-ia: quem sou eu?” (SARAMAGO, 1997, p.

319). Dessa idéia inicial, vemos como a versão final é diferenciada do romance de Stevenson

uma vez que naquele não temos no enredo nenhuma alusão ao caso de duplicação genética,

não há explicação racional para o caso dos personagens nascerem no mesmo dia, ter tamanha

semelhança e, no entanto, serem pessoas com histórias de vida diferenciadas. O que nos

autoriza a afirmar sobre a contemporaneidade do tema em relação à sensação do homem ao

estar só, enquanto depositário da imagem humanizadora.

A morte no romance português não foi um caso de assassinato e sim acidente, contudo

permanece a pergunta, quem sou eu? Retransmitida sob a forma unificada do personagem

embora apresente interiormente a intermitência da imagem autoral por se firmar. Como

podemos constatar, houve uma fonte de inspiração muito grande para a imaginação criadora

do romance O homem duplicado, inclusive no fato do escritor interpretar os protagonistas de

Stevenson: “é Hyde quem morre na morte de Jekill, ou é Jekill quem na morte de Hyde

morre?” (SARAMAGO, 1997, p. 319). Tal dúvida também é possível destacar naquela

narrativa. O leitor acompanha a morte física, objetiva do ator António Claro, entretanto, é a

imagem conhecida de Tertuliano Máximo Afonso quem morreu para o mundo. Embora vivo

com a identidade de António não a assume nem tem coragem o bastante para renegá-la.

Ao transportar para os personagens sua visão sensível, Saramago acredita dar maior

credibilidade a estes seres ficcionais até mesmo com o propósito deles próprios se

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melhorarem, pois trazem em si a representação do homem. As perplexidades e indagações que

os personagens descobrem ser capazes de fazer tem muito do aprendizado adquirido em sua

trajetória existencial. Dar a volta completa às coisas enquanto forma única de chegar a saber

em probabilidade o que são, é um dos exemplos aonde os questionamentos podem conduzir.

Volta cujo significado é o saber, olhar aguçado com a percepção de acontecimentos, da

maturidade a qual levam os seres ficcionais a serem mais do que são. O meio do escritor

adentrar nas emoções dos personagens é a visada performativa conquistada após a escrita do

Evangelho segundo Jesus Cristo, como testemunha nos Cadernos. Depois desse romance o

autor não se preocupa mais em descrever a pedra que se transforma na estátua, antes quer a

agudeza encontrada no interior da pedra; algo muitas vezes demonstrativo da precariedade da

existência humana, todavia, sempre presente nas obras seguintes do português.

Cidadão adotado por Lanzarote, o escritor está na fase da vida transbordante de

questionamentos e procurar o sentido dos lugares equivale a fazer o mesmo com os

habitantes. A indagação suscitada parte principalmente de quem a origina: “que sentido tenho

eu?” (SARAMAGO, 1997, vol. II, p. 404), que sentido faço para o mundo, também é outra

pergunta comumente encontrada em seus personagens de imaginação certeira, habitual do

gênero humano agraciado com a Literatura. A cada obra na qual é o personagem quem

escreve sua vida, aprende a ver acompanhado da maior sutileza se o escritor o investe da vida

a ser desenrolada por meio da palavra, vista por trás. Portanto, na conjunção de criador e

criatura temos a metáfora infinitamente válida do casulo, tão presente em O homem

duplicado; a partir do instante no qual os personagens entram na fase da metamorfose vista

como impossível ignorar. Não há meios de um ser superior ao outro porque é recíproco o fato

de chegar ao estágio de representação; alguém tocado pelos acontecimentos, os testemunha

através da capacidade ainda inerente ao ser humano de indignar-se.

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Em primeiro de dezembro de 1997 os Cadernos de Lanzarote expressam a reflexão

feita por Saramago acerca da elasticidade da Literatura em se envolver com o que há de mais

profundo no ser humano: as emoções, o paroxismo ao qual os personagens encarnam ao longo

da Literatura em diferentes autores e épocas. Até Jorge Luís Borges, o romancista chega a

seguinte conclusão: “o exemplo mostra que qualquer repetição exacta é impossível (...),

identidade reconhecível [não se filia] a alteridade coincidente” (1997, p. 479). Algo que

somente o “tempo poético” pode tomar sem suspeita de propriedade. O romance conforme o

escritor o concebe tem por missão restituir ao leitor a vertigem suprema, atingir o alto e

extático canto da humanidade onde ainda não foi capaz de se conciliar à própria face. Por

isso, escondido, impedido de ver, duplicado, o homem ainda seja o principal elemento de

discussão na narrativa de nosso tempo. Este homem num mundo de homens iguais, ordeiro

porquanto em caos é investido do poder de ser diferente, da capacidade de ser e agir no

processo opcional.

Saramago ao nutrir seus personagens da vocação de se questionarem e o mundo ao seu

redor, muitas vezes mostra a incoerência dos modos de pensar e agir no encalço dos objetivos

visíveis. É o caso de In nomine Dei (2000) no qual transitam interesses de ordem privada a se

transformarem em coletivos. A causa a que se lançam anabaptistas e católicos é desprovida do

sentido humano da tolerância, o respeito às diferenças, havendo antes em ambos os lados a

imposição da vontade; a submissão às idéias de quem se auto-intitula representante de um

Deus superior. A disparidade entre as palavras e as ações para chegarmos ao que o homem é

passa pelo crivo da distinção a qual os personagens não estão preparados para efetivar. A

aquiescência é outro tanto a discutir considerados os rumos da vida em Münster, os habitantes

estão entre os desejos megalomaníacos do bispo Waldeck e a ambição de Jan Van Leiden. A

força de persuasão dos dois representantes do poder na cidade é tamanha a ponto dos

moradores não se questionarem a respeito. Ponto crucial à crítica do escritor, o homem

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popular é levado a perceber os desmandos, a lutar contra o autoritarismo, como na fala da

mulher: “ao dizer palavras que nunca tinha dito antes, aprendi o que antes não sabia.”

(SARAMAGO, 2000, p. 41), não sabia que também podia expressar vontades e reivindicar

direitos. Do aprendizado em meio à religiosidade de aparências, vemos sujeitos massacrados,

mortos muitas vezes por ir contra o determinado por leis humanamente inventadas, cuja

autoridade não pode ser reconhecida de imediato.

Na divisão entre católicos e protestantes, os moradores de Münster fazem eco da

humanidade assolada pela intolerância. Tal divisão é percebida por Knipperdollinck, mas

enquanto integrante do círculo poderoso anabaptista, não registra indignação, sendo ao final

trucidado porque externa as opiniões de forma clara ao representante maior do governo. A

confiança cega posta em Deus e não por acaso ser o título do livro, em nome de Deus praticar

toda e qualquer ação, revela o quanto o homem se deixa seduzir pelas promessas de um

mundo vindouro, ao passo que o palpável se desfaz sem a interferência direta da vontade

livre. Perdura no livro o apagamento das ações pensadas, iniciativa humana desfeita se este se

intitula representante de Deus na Terra. Se questionado nas proximidades, o líder se arroga

como o ser que é quando lhe apetece ser; em face disso, a mente, a sedução do poder atinge

patamares indescritíveis.

Renúncia é outra atitude solicitada ao povo para maior credibilidade das palavras

transformadas em ações na concepção dos poderosos. Visar a riqueza do céu e da Terra só é

possível naquela cidade tempestuosa, na interpretação de quem ocupa o poder. Se os

anabaptistas são os que ditam as regras do certo e do errado, os católicos expulsos e de

prontidão a retornar, também não fazem outra coisa. A ação do livro se centra no governo dos

anabaptistas revoltosos, a cidade é disputada por eles tendo crédito apenas as palavras que

reforçam este sentido, sendo inclusive queimados os livros destoantes de tal prescrição.

Enquanto isso, os homens comuns são levados de um lado a outro na conformidade dos

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interesses de quem ocupa o poder. São os juízos de Deus, sua vontade convocados nas

ocasiões cuja manipulação das opiniões expressa o desejo de se conseguir determinado fim.

Neste item é imbatível o discurso do rei de Münster no episódio onde se proclama

representante da vontade de Deus, portanto com direitos sobre a vida e a morte dos seus

súditos. Enquanto os fatos não se encaixam nessa vontade, o argumento é a falta de habilidade

em interpretar os sinais, deixando claro a manipulação das pessoas.

A indeterminação no tocante ao homem como resultado da busca intrínseca de

sentidos tem em In nomine Dei um agravante. As pessoas são levadas a ter certas reações por

medo, por desconhecimento perfazendo aparentemente algo contrário na obra do escritor. O

fato do discurso de Jan Van Leiden ser tão enfático no quesito dominação já mostra

discordância, descontentamento e inicia o processo de ser colocado em discussão pelos

personagens representantes da grande maioria populacional. A começar pela esposa Gertrud

Von Utrecht, inicialmente aprova a ascensão do marido depois percebe os excessos e por fim

a questioná-lo. A afronta se dá inclusive diretamente ao dizer para o rei sobre seu

desconhecimento acerca do povo. Personagem decisiva no livro, Divara é a voz questionadora

até do poder divino a mover os homens de Münster, com alguma variante: Senhor será que é

preciso tudo isto (a guerra) para mostrar sua grandeza? Senhor, por que foi que nos criaste?

Por que nos abandona? O questionamento de Divara cresce a ponto de enfrentar o bispo

Waldeck quando é ele quem ocupa o poder ao derrotar Leiden. Diz ao bispo que ambos

prestarão contas no dia do Juízo Final, mas ela perguntará a Deus porque ele permite tanta

mortandade, ódios de crença, vingança de povos numa interminável dor do mundo, se só a

morte natural não bastaria. Ela morre ao se recusar a negar sua fé porque acredita no ser

humano somente se tiver algo para crer. Mostra-se dessa maneira, uma voz capaz de elaborar

a questão do sentido vital ao colocar em dúvida a determinação redutora, tanto dela quanto do

povo em geral a meros cumpridores de vontades alheias.

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Um dos argumentos de Leiden para se manter no poder é a poligamia resgatada,

promove-a como força de lei, reforçando a idéia de eles serem o povo eleito de Deus.

Interrogado por Rothmann o pregador anabaptista, acerca de contrariar a condenação

praticada a respeito de temas como a promiscuidade e o adultério, o rei afirma continuar a

vontade de Deus em: “frutificai e multiplicai-vos”. O tom e a convicção das palavras

pronunciadas atingem as pessoas fazendo-as cômodas como Rothmann cuja falta de

iniciativa, é a explicação para não explorarem o jogo de justiça declarado pelo rei. O rei auto-

proclamado a voz, o braço, o representante de Deus na Terra não admite contestação; a ponto

de determinar a seus colaboradores a não pensarem porque isto desmereceria a confiança

depositada. Deus em Münster fala apenas a Jan Van Leiden. Decisões na mão, povo

submisso, eis as armas anunciadoras da salvação bem como a perdição de quem entra em

disputa com este homem, cuja sede de poder faz abjurar erros, crença, mudando facilmente de

posição conforme lhe apraz.

A iniciação à vida que acompanhamos na leitura de In nomine Dei se acerca dos

paradoxos religiosos enquanto manipuladores de seus adeptos. A vida dos personagens é

restrita aos modos de interpretação da palavra de Deus pela autoridade não constituída por

eles. O manejo da palavra bíblica é quem determina os passos, a aceitação ou rejeição de

conceitos, preconceitos presentes em Münster, mas, poderia ser localizado em nosso contexto,

tal a atualidade do tema. A capacidade de elaborar questões de sentido é claramente ínfima

por parte dos personagens da peça teatral. Somente a confiança cega é motivo de

questionamento pelo leitor ao acompanhar estarrecido tanta aceitação. No quadro da

existência feita frágil por anabaptistas e católicos, o saldo é a alienação combatida pelo

escritor em toda sua literatura. A indeterminação própria do homem é colocada às avessas no

livro como forma de chamado, outra vertente de como não se conduzir a vida. Embora não se

prime por receitas, o lado frágil da existência é ressaltado uma vez que a incoerência dos dois

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lados religiosos de pregar a vida e se manter pela morte, faz os sentidos serem inscritos por

meio do paradoxo.

Nossa interpretação, marcada pela inconclusividade do homem na Literatura afim com

a vida, registra no livro In nomine Dei a quota necessária do indiscernível para compor a cena

futura. Sejam em atitudes a serem tomadas referindo-se ao homem se colocar como ponto de

discórdia, seja a quanto ele pode crescer ou ser rebaixado de acordo com as vezes que assim

se comportar. Contudo, percebemos na iniciação à vida deste livro, restrita ao âmbito

religioso bem como a possibilidade existencial, restrita na ação de um só homem. Cuidar de si

significa ouvir a voz de Deus cujo representante determina quando o homem se faz, age, é

com a consciência sempre voltada para atender a escolha divina e com isso alcançar a vitória

sobre os católicos, estes, o mal a combater. Cumprir a vontade de Deus é eliminar as vozes

contrárias; por isso não importa matar ou morrer, disposição da personagem Hille Feiken, não

por acaso representante do povo na história de In nomine Dei.

Cabe-nos perguntar então o que toca e atinge o homem comum, o sem oportunidade

de dizer o pensamento livre e espontaneamente? O medo e a ignorância são respostas

prováveis quando o mergulho no desconhecido é feito com a visão única de encontrar outro

mundo de delícias, de paz duradoura, na confiança de perdão. Isto acontece no livro porque a

vida dos personagens está suspensa (na revolta por não aceitar uma dominação, mas acatam

servilmente a outra de maior persuasão) em função da disputa não para demonstrar aquilo que

são, mas para mostrar maior dependência. Portanto, não é a inquietação pela origem o móbil

dos seres desta ficção, é por outro tanto o desejo de ratificar a leitura da vida da qual não

ajudaram a elaborar. Ao provar lealdade ao Pai celestial o povo de Münster espera ser guiado

pela decisão do rei, acatada como a melhor opção, a ponto de se lançar sem nenhuma defesa

ao enfrentamento dos soldados de Waldeck. Tudo isto acontece por capricho de Jan Van

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Leiden, ao testar o sacrifício do povo mostra-lhes a aprovação do Pai sobre seus atos. O povo

é incapaz de questionar.

Decidir em nome de Deus, intervir no destino da cidade são ações empreendidas pelo

rei ao cúmulo de, ao final não se distinguir loucura, desfaçatez, vanglória e covardia quando

muda de lado e passa a apoiar os católicos para não morrer. Porém, nem tudo é servidão e

assentimento no livro. Na ação decorrida em Münster, Alemanha entre maio de 1532 e junho

de 1535, outros personagens compõem o reinado de Leiden e ensaiam contestações numa

busca de sentidos em torno dos atos e omissões observados. Como foi citado, Berndt

Knipperdollinck, chefe da oposição anticlerical em Münster, anabaptista, é alguém que está

sempre por perto nas decisões do rei. Faz uso do discurso bíblico para solidificar o império

sobre o povo, como em: “Os homens só começam a saber o que Deus quer, quando trocam a

palavra pelas ações.” (SARAMAGO, 2000, p. 22) Ações representativas do poder soberano.

Movido pela euforia da Reforma em outros países da Europa, ele expressa sua vontade de

escutar e fazer escutar, segundo o próprio entendimento, a nova palavra de Deus. Não menos

manipulador que o rei, o chefe da oposição faz uso inclusive do erro se este for o preço para

se chegar à verdade de acordo com seu pensamento. Ao questionar o rei aonde ele quer

chegar, o segundo homem na hierarquia de Münster tem por resposta o cumprimento da

vontade divina. Igualmente no instante no qual vai contra o edito imperial em proclamar a

poligamia, de protestar contra o rei sobre nenhuma mulher ser obrigada a entregar-se a um

homem indesejado, contudo, se cala, fica inerte diante do que Rothmann impõe como vontade

do Senhor. Knipperdollinck usa de evasivas, indiretas no intuito de criticar o rei acerca do

abuso de poder. Ao manifestar o desejo de ser escolhido a escolher e com isso ser destacado

por méritos impensados, demonstra juízo crítico também ao convocar a igualdade como povo

eleito de Deus. Na intenção de frear a ambição de Jean Van Leiden, a este ponto chamado

pelo nome e não pelo título de nobreza, é, contudo, retrucado pelo rei. Proibido de se

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manifestar, revela, no entanto, que ambos morrerão juntos, forma enviesada de mostrar o

quanto cada um a seu modo é culpado de vilania na dominação do povo.

No trecho onde a cidade está quase retomada pelos católicos, Leiden ainda tenta uma

última incitação do povo a fazer sua vontade dizendo que Deus, de guarda, anuncia a chegada

de muitos irmãos para auxiliar a defesa da cidade. Desmentido prontamente por

Knipperdollinck, este vai contra o mandado do rei e se indigna de ver o povo sendo

desrespeitado em sua fé. Para ele, respeitar a fé em Deus significa reciprocidade no que

concerne também aos ocupantes do poder terreno. Tal personagem se diz movido pela

consciência a qual de acordo com o interpretado na palavra de Deus, proporciona julgamento

dos atos reais, sejam eles de hipocrisia ou fanatismo. Estágio ao qual o povo foi levado, ao

contrário do chefe oposicionista anticlerical, não negou sua fé nem na hora da morte.

O pregador anabaptista Berndt Rothmann com seus posicionamentos ilustra bem como

o poder religioso sedimenta as vontades do chefe de governo. Com o discurso, Deus é perdão,

elabora para e pelo povo as questões da existência fadada a ser completa após a morte. Ao

ordenar o fim das controvérsias, ele anuncia como revelação algo escondido, no entanto, com

a prática da fé é perfeitamente visível. Pois, prova de obediência e solicitude diante dos

questionamentos abafados do povo. A gente comum é levada a descobrir única e

exclusivamente quem são no intuito de saber a quem servir. Este é o pensamento

pretensamente duradouro em Münster em meio à intolerância do diferente; por isso a Reforma

se torna igual ao estado anterior dominado pelos católicos. Tanto é que os anabaptistas para

fazerem valer seu pensamento usam da força para eliminar posições contrárias, inclusive de

aliados protestantes. O nome de Cristo é usado sempre pelo pregador cujo intuito é se manter

superior ao tratar com as pessoas. No contexto da narrativa, o homem, ser criado por Deus

desconhece sua força, assim se expressa: “Porque a força do homem é de Deus que lhe vem, e

só Deus sabe quando, como e para quê dará ao homem forças que ele antes não sonhava ter.”

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(SARAMAGO, 2000, p. 33). Dessa maneira acontece o destino do homem comum, saber-se

errante e em direção a uma vida melhor cuja abundância não pôde desfrutar. Porque não

integra o círculo dos privilegiados e seus ditames acerca do certo, o bem, o viável, o

desejável, enfim, ditam como ser e viver sem contestação.

Enquanto o deixar e fazer ver de In nomine Dei condiz a um jogo de poder, o existente

fica à deriva. A angústia perceptível no drama do livro é a adequação da palavra de Deus às

vontades de dominação/alienação sobre a maioria da população que, não se percebe peça de

manobra. Os interesses de cada um, o mundo das ocupações cotidianas são deixadas de lado

não em função de se envolverem numa pesquisa por saber de si, porém, do domínio religioso

acatado por todos como forma de explicação da existência. Neste momento não se diferencia

católicos e protestantes na ambição de ter o maior número de adeptos na formação da

hegemonia. Logo, não tem importância alguma se a Reforma protestante resultou num

fracasso como descreve o livro; o sem-sentido da vitória numa guerra unilateral desmascara

qualquer tentativa de liberdade. A credulidade dilacerante dos homens importa na medida em

que é vista com olhos críticos por José Saramago, condenatório daquela sob todos os aspectos

apresentados na história.

Ao contrário do romance O homem duplicado, os personagens de In nomine Dei não

se colocam no lugar uns dos outros. Tirar proveito é a lei imperante no sentido de ser e agir

para atingir a meta. A incerteza de como agir, qual estratégia utilizar logo é superada pela

dinâmica do exercício de poder, empunhado como um espetáculo a mais de violência. Por

outro lado ver o outro como aquilo que não é, significa suprimir a discussão do eu em prol da

liberdade assumida com ares de ilusões, variante ao nome do fanatismo quando não se pode

escolher a si mesmo.

A vida surrupiada dos personagens é a denúncia mais forte desta peça teatral. O

sentimento de inferioridade embora não seja externado, é encenado a cada comando, a cada

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leitura da palavra de Deus como forma de afastar qualquer tentativa de se colocar questões.

Não havendo um à vontade consigo mesmo, acata-se as ordens supostamente vindas de Deus,

tal conotação transpira humor divino em seres terrenos. Dessa forma é ser por inteiro nesta

Alemanha devastada pela suposta maneira inovadora de entender o mundo. Este universo

enfaticamente exposto como representante do reino divino, comprova a desrazão de um

mundo sem Deus dadas a tolerância, a igualdade apregoadas serem ignoradas.

Dentro da linha teatral José Saramago lança em 2005, Don Giovanni cujo subtítulo já

prenuncia o destino do protagonista: o dissoluto absolvido. Isto reitera nossa hipótese de que

o escritor tem predileção em destacar o elemento humano na sua escrita narrativa em

detrimento das situações. Seguindo a característica de busca pela compreensão do humano,

outra vez temos uma história versando sobre os modos de ser, as ações de um homem

conhecido por suas conquistas amorosas. Fora do universo religioso da peça anterior, nesta

encontramos personagens preocupados com a satisfação de seus desejos, com a aparência

discutida e, sobretudo, em prevalecer ou não certa visão moralista do mundo. Já no prólogo

começamos a conhecê-lo pela descrição feita por personagens próximos, como Leporello, seu

serviçal: “É um homem, nasceu com defeitos de homem e gostou deles.” (SARAMAGO,

2005, p. 20). Ao responder à dona Elvira as acusações desta de traição, vaidade, leviandade e

indiscrição atiradas contra o patrão, Leporello confirma uma interpretação da vida segundo a

qual o comportamento de Don Giovanni é visto como natural. Os defeitos de homem para ele

se dão enquanto o agir é em função de confirmá-lo; a desenvoltura não importa a quem

agrave, demonstra personalidade, a marca pessoal que o próprio Leporello gostaria de ter e

não tem, confirmado também quando ele mesmo confessa ser um cão de guarda fiel,

descarado, medroso e covarde. A existência do livro registro constando o nome das mulheres

seduzidas por Don Giovanni que dona Elvira solicita e Leporello nega, é em princípio algo

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além de vaidade expressa. Confirma para o autor do livro sua existência por meio da iniciação

amorosa de muitas das mulheres cujos nomes constam na lista.

Ao iniciar a ação da cena I, há a conseqüência de uma das conquistas de Don

Giovanni. Ao folhear o livro, ele está dividido entre o prazer da recordação e a melancolia do

passado. Por isso Don Giovanni não pode ser classificado como personagem de emoção

única, o lado humano aflora na necessidade de discutir com a estátua do comendador,

assassinado por ele na ocasião do duelo por causa da filha disputada. Duas mil e sessenta e

cinco mulheres não foram suficientes para o deleite amoroso; na soma delas destaca o

número, a quantidade não as sensações. É como se o lado humano se completasse

exclusivamente pelo poder da palavra sedutora, do título, da beleza que certamente encantava

as mulheres e invejava os homens. É significativo a entrada do comendador na casa de Don

Giovanni, ele deixa seu espírito lá fora. Anuncia então a conversa, algo de franco, sincero,

sem interferências a não ser a da consciência de ambos, devidamente situada conforme as

ações de cada um seja de vingança ou de defesa da honra discutível.

Ao exigir o arrependimento de Don Giovanni, o comendador quer se valer de seu

direito, pois se acredita injustiçado por causa da desonra da filha e da morte sofrida. O

conquistador admite ter usado de sedução em relação a dona Ana, mas descarta ter se deitado

com ela. A voz do comendador neste momento é a representação da visão convencional

acerca do “homem de bem”, exigente, não admite contrariedade, é, enfim, o que Saramago

coloca em Don Giovanni: a enformação da hipocrisia, diga-se de passagem, da hipocrisia de

todos os tempos. De um lado, o comendador a exigir distinção, arrependimento por parte de

seu algoz, de outro, o personagem retilíneo em relação a assumir o dizer e fazer em processo.

A ironia do escritor para esta nova versão de Don Giovanni se faz notar quando a

despe de todo e qualquer vestígio de religiosidade a conduzir o destino do protagonista.

Renegado, amaldiçoado, esconjurado das virtudes e benesses divinas pelo comendador, Don

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Giovanni usa de sarcasmo com a estátua e a incita a convocar o demônio para que suas juras

se tornem realidade. Com a risada do assassino, a estátua se transforma num monumento de

desamparo, mais ainda o desmanche da impostura moral, virtuose perdida. Até este momento

da peça, Don Giovanni está pleno da situação, senhor de suas palavras e atos, inabalável na

destreza em conduzir o que acontece a sua volta. Ridiculariza o comendador, maltrata

Leporello pela curta compreensão do contexto. Ele encarna o fator humano em destaque por

José Saramago. Do pleno domínio sobre atos e pensamentos, Don Giovanni passa a amargar

com a possibilidade de não ser reconhecido pelo seu maior trunfo: a sedução. Na incerteza,

instalada a dúvida, sofre, mas em nenhum momento lança mão de argumentos redentores

passíveis de planificar uma salvação não requisitada. É na Terra, no ato de ser livre o ajuste

denominado por outros personagens de pecado a ser depurado.

Don Giovanni na visão dos demais personagens é o sujeito capaz de tudo a fim de

conseguir seus objetivos mesquinhos. Masetto por exemplo, vive entre a desconfiança de ser

traído por Zerlina e a odiosa superioridade de seu rival, se mostra tão pequeno diante deste

quanto a imagem do mundo e das pessoas. O personagem-título vê nas mulheres a poesia da

vida, as estrelas e o satélite capaz de movê-lo no propósito de alcançá-las. Nisso sobrepõe a

figura do meramente ajuntador de nomes cujo livro comprova-se. É preciso dizer ainda sobre

o fato dele ignorar conceitos, ridicularizar formas religiosas de compreensão dos

acontecimentos, corresponde ao homem que toma sobre si a responsabilidade dos atos; seu

senso de justiça é bem outro, à mão se assim lhe aprouver.

Quanto às personagens mulheres atuarem com maior firmeza na peça é no sentido de

desconfigurar a imagem viril de Don Giovanni; assim o atinge na hombridade. Por isso

acreditamos nelas, não enquanto um número entre os dois mil e sessenta e cinco inscritos no

livro, porém, enquanto voz de contestação; elas retiram o rótulo infalível de conquistador e

vêem apenas o homem de ambições gigantescas. Dona Ana, a filha do comendador tem

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função especial. Ela ao contrário das demais e apesar da morte do pai resistiu às investidas de

Don Giovanni, não por excesso de zelo ou de sentido religioso, entretanto, por ser apaixonada

pelo noivo Don Otávio. Mais um motivo a exaltar do fator humanidade nos personagens de

José Saramago. Junto à dona Elvira elas formam o quadro de desenlevo do homem

aparentemente irresistível. Aqui se invertem os papéis. Dona Elvira se faz passar por

enamorada, faz juras de amor na intenção de envolver a vítima, entretanto, antes de se deixar

levar pelas palavras femininas, o personagem age com desconfiança. Armada a situação, as

mulheres se fazem acompanhar de Don Otávio e na presença do comendador e de Leporello

põem em descrédito tudo o que Don Giovanni fez para ser reconhecido como sedutor. O

comendador se fixa na sala com a intenção de fazer valer suas maldições, mas, nada pode

fazer além de escutar ou retrucar quando é fustigado. Dona Ana anuncia ao pai o momento no

qual fará o inferno se abrir para Don Giovanni, não o reino dos mortos castigados, porém, o

reino dos vivos jogados na depreciação.

No instante de maior tensão dramática do livro, os personagens estão absortos numa

humanidade crescente, o poder da fala, de persuasão passa de um a outro enquanto os

argumentos são construídos. Dona Elvira que consta no livro como uma das seduzidas por

Don Giovanni declara a todos os presentes nunca ter acontecido tal fato, ressalta ainda não tê-

lo amado embora não faça muito tempo tenha saído da casa deste implorando seu amor. Faz

isso quando questionada por Dona Ana. Esta por sua vez solicitada a contar sua versão dos

fatos por Dona Elvira relata em alto e bom som ter sido realmente assediada por Don

Giovanni. Então, acostumada a praticar os jogos amorosos com Don Otávio seu noivo,

pensava se tratar deste quando se viu nos braços de Don Giovanni, no entanto, no seu ponto

de vista não chegou a ser levada ao paraíso, para desespero do declarado conquistador. Na

troca de acusações, a mentira serve a todos os lados na intenção de rebaixar quem falou por

último. No clímax da tensão entre os personagens, o livro comprovador é solicitado, no

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entanto aparece em branco para desolação de seu autor. Como vingança Don Giovanni pratica

o segundo crime, em sua opinião simplesmente a defesa da honra ultrajada, sem se importar

se tenha feito o mesmo a quem lhe ofendeu.

Na confusão onde tudo leva a crer nas coisas se encaminhando para o final, entra

Zerlina, a personagem procurada pelo marido por duas vezes na casa de Don Giovanni. Na

conversa baixa entre os dois, ficamos sabendo que Zerlina quase cedeu aos encantos dele,

resistindo afinal. Também, ela foi lá por causa do livro das conquistas, fala sobre a troca feita

por dona Elvira e, principalmente, por sabê-lo humilhado, sozinho, finalmente um homem, ela

se interessou por ele. Sem discussão quanto aos sentimentos de Masetto, Zerlina propõe aos

dois se conhecerem mais profundamente enquanto um Don Giovanni entre encabulado e sem

saber o que fazer se deixa conduzir pelas mãos dessa mulher, ao mesmo tempo se desfaz a

estátua do comendador. Com um personagem a demonstrar receio nas atitudes e avaliá-las

com saldo menor em seu favor, nos deparamos com o sentido de humanidade sublinhado no

texto. A singularidade do protagonista deixa ver a incompletude desencadeada pela falta do

livro-diário. Agora, sem mais motivos para se vangloriar sobra apenas aquilo que ele é, não há

mais tempo para revisar ou passar a limpo manobras de sedução, ele é o seduzido, precisa da

ação da mulher para saber como se portar, agir em função de manter o mito Don Giovanni se,

ainda possa existir.

A mestria de José Saramago em retomar o mito do conquistador inabalável e torná-lo

humano pelas ações e a falta delas, aumenta em importância humana o personagem que perde

as definições dos outros para arriscar uma por conta própria. Abalado pelo pensamento dos

outros a seu respeito, só consegue agir movido pelo ódio, ao se descobrir enganado e de ter

agido por impulso, abunda em desamparo. Então lhe resta apenas ser levado pela firmeza do

sentimento de Zerlina, agora apaixonada pelo homem e não mais pelo mito. Com a

desintegração da estátua do comendador, temos mais uma alusão de que é o homem o

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responsável das coisas acontecerem. Não há castigo nem salvação no fim da trajetória. Os

personagens saem ao final de mãos dadas, numa clara referência às questões suscitadas ou por

suscitar inteiramente elaboradas por eles e, mesmo, através das situações originadas em cada

escolha feita. A começar daí onde ele se enxerga com tantos defeitos quantas qualidades

capazes de soerguer. O vazio do personagem em relação a sua imagem aos olhos de terceiros,

significa o desfazer da própria figura, o não se encontrar na autoria nem do livro muito menos

de si. O cuidado com a vida é de outra natureza depois do conhecimento de sua existência

feito através do ludíbrio, não o rotineiro, porém o sofrido.

Don Giovanni é outra face de Tertuliano Máximo Afonso que precisa ser convencido

pelo espelho de quem é. Tem necessidade de saber as condições e limites a experimentar em

cada passo rumo ao desconhecido. Por isso, vemos na cedência do personagem em ir com

Zerlina o abrir-se a novas interpretações, do agir alheio (o processo) com o qual encontramos

o ritmo cadenciado de sua existência. Se ele não era o Don Giovanni temido e respeitado por

todos, foi preciso alguém lhe dizer quem era para só assim tomar ciência de quem ele poderia

ser. Com a estupefação de se ver no nada anuncia a busca de si, embora amparado, está

sozinho, sem a imagem inventada, apenas e tão somente Giovanni, como poderia ser Masetto,

Leporello, se estes tivessem assumido perante toda a vida a posição de quem manda sem ser

contestado. A empáfia, a nobreza, a autoridade caem por terra em função do conhecer-se

numa proximidade que traz consigo as diferenças.

Os sentimentos tomam o primeiro plano, não aqueles condutores da ironia, algo mais

pleno de satisfação como é o caso a se conhecer. O inoportuno de não saber o que fazer de si

dá fôlego à peça porque incomoda, se estende por um entendimento da existência a se buscar,

por isso o pano se fecha sem mais comentários. O abrir-se, ao contrário, é a observação de um

homem sem atributos, desprovido da imagem vencedora e do poder de interferência sobre o

destino das pessoas ao seu redor, tão importante quanto o desmascaramento de quem assim se

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comporta. Isto pode ser, ainda não garanta a identidade pessoal, absoluta e exclusiva, contudo,

vemos desfeita com a estátua do comendador toda uma lógica de entendimento da vida. Algo

a reforçar nossa interpretação da figura humana no texto do escritor português quanto à falta

de lógica distinta como peculiaridade das relações humanas. Sendo o sujeito movente dos atos

existenciais, é normal tentar prevê-los, entretanto, mais normal ainda é ir ao encontro da ação

para cada caso como percebemos na peça de teatro Don Giovanni. A elevação ou o

rebaixamento do personagem enquanto ser humano se dá na medida em que não se guia por

um modelo. Neste ponto, algo bem próximo às investidas de Saramago em O homem

duplicado cujo protagonista fica às vésperas de se encontrar.

O tempo de Don Giovanni e o de Tertuliano sem nenhum título ou conceito de

nobreza distintivo, funciona no instante ao qual se inscreve o projeto de um sentido do ser;

experimentar a vida de forma diferenciada significa para ambos, oportunidade de ir além do

conhecido pelo mundo. Nisto entendemos que tanto o romance quanto a peça mais recente do

escritor, ao invés de tentar explicar o homem situando-o em tempos e espaços diferentes,

prefere dar-lhe a liberdade de ser. Pouco importa se o comportamento ao qual observamos não

atraia condescendência, provoca por outro lado, outras formas de pensar em comum com o

homem atual no tocante a estar aberto ao que foge à regra. Se situar na exceção, o invariável

desconforto por isso forma o cuidado com a vida possível de ser apontado nos livros de José

Saramago.

O poder sugerido pela palavra, a ordem ou a obediência é outra faceta dos personagens

nos dois livros comentados. Os homens iguais em relação ao uso da fala se diferenciam no

manejo, a imposição de pontos de vista capaz de extrair e mesmo soterrar a energia pronta

para fazer de cada um, ser mais ou menos humano de acordo com a circunstância. Ser

coadjuvante da vida é algo que nem Don Giovanni nem Tertuliano imaginaram e de repente

se enxergam dessa maneira. Algo a se pensar: por que foi preciso um atalho, opinião de

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terceiros para tomar a iniciativa e retroceder nos pareceres sobre si mesmos? Por que não

fazê-lo por iniciativa pessoal? É bem verdade que a história dos dois se parece mesmo de

forma enviesada. O desenvolvimento pela intranqüilidade é mais forte no duplicado porque

presente desde o início, enquanto com o protagonista da peça acontece mais ao final quando

se humaniza. Intranqüilos, espera-os a incapacidade de legitimação. Outra vez nos facilita

perguntar se a imagem do homem atual se faz sem uma opinião balizada, se o fato do

reconhecimento de méritos, beleza, realização profissional esclarece ou escamoteia a auto-

imagem. A clara diversidade nos modos de ser e agir em processo dos personagens denota

assimilação do ritmo existencial captado pelo escritor cuja busca em cada situação é o lado

humano, crível de se entender.

O espreitar de cada personagem os faz manterem existência incógnita. Daí

reconhecermos como emblemática do homem situado no século XXI a Literatura produzida

por Saramago; embora localizando algumas de suas narrativas em tempos remotos, as

dúvidas, as ponderações continuam atuais visto não terem respostas exclusivas, esgotadas. A

pesquisa pelos sentidos inspira o leitor diante dessa percepção, ficar atento à próxima

indefinição a encontrar, seja em atitudes, nas palavras soltas ou mesmo no comportamento

incisivo por parte dos personagens. A vida deles, o descortinar do apelo íntimo em ser homem

aprofunda a idéia confusa de sentimentos por causa do mistério que isso significa; sobretudo

por se obrigar a escolher a direção da fuga ou da explicação, ambas equivalentes em

dificuldade. A necessidade acima da ambição em se conhecer faz os personagens iguais em

sentimentos, absolvidos pela tentativa, vazios no desencontro, nulos pela resposta, contudo,

mais profundos em humanidade.

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7. CAPÍTULO 06:

Não faltam, em toda parte, abismos, fossos, não faltam, e quando faltam, se faltam, achamos dentro de nós um vão onde cairmos.

Osman Lins HOMEM ESCARMENTO

De acordo com a proposta de estudo acerca do homem na atual Literatura, chegamos a

uma visão mais detalhada com base na perspectiva adotada por Michel Foucault (1926-1984),

especificamente no livro A hermenêutica do sujeito (2004). Neste, temos um ciclo de

palestras que Foucault ministra fazendo uma releitura de Platão, Marco Aurélio, Epicuro e

Sêneca, desenvolvendo assim o modo precário de subjetivação moderna.

A noção de “cuidado de si” com base na prescrição délfica do “conhece-te a ti

mesmo” permeia todo o livro como forma de aproximação no conhecimento do homem. Não

esquecendo, neste sentido o entrecruzar com a problemática política amplia o quadro de

relação do sujeito consigo constituindo a ética a partir de si. Juntamente com a noção citada, a

hermenêutica estudada diz respeito às determinações materiais, sentidos concretos produzidos

conforme atribuído a esse cuidado. Também temos desconfigurado o esquema idealista para

se falar de sujeito uma vez que há o desenvolvimento histórico onde ele existe. Assim, a

subjetividade se dá com resistências abertas por meio de mecanismos incontíveis porque o

homem é propenso à emancipação. Descobrir, apontar quais são estes mecanismos é a tarefa

auto-imposta em A hermenêutica do sujeito e será também nosso auxiliar numa visão mais

ampla do personagem principal de O homem duplicado. Que homem é esse que nem mesmo

ao se ver em dobro ainda não consegue distinção?

Das relações entre subjetividade e verdade o filósofo extrai o debate orientado para a

questão do conhecimento do sujeito por ele mesmo. O cuidado de si desenvolvido por

Foucault com base no “conhece-te a ti mesmo”, toma como fator principal colocar o homem

no centro das ocupações, ataviar a memória acerca do principal para os cuidados necessários.

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Dessa forma, o cuidado de si será considerado como desperto quando se torna indispensável à

vida do homem. Sócrates, sem dúvida é o paradigma para esta noção ser desenvolvida pelo

escritor. O procedimento em ambos fica às voltas de uma agitação, movimento permanente de

inquietude no curso da existência, por outras palavras, a constante insatisfação com as

respostas prontas, as explicações fechadas sobre a vida. De Epicuro, Foucault extrai o

princípio segundo o qual todo homem ao longo de sua vida deve se ocupar da alma, então se

isto era marca de moralidade passa a ser um fenômeno cultural na sociedade helenística e

romana; algo de que o sujeito moderno irá se apropriar enquanto se trata dos modos de ser.

Fato a nos autorizar a pergunta: como falar na atualidade do cuidado de si se o homem está

imerso em inúmeras ocupações o retirando do âmbito da necessidade maior? De que modo

falar em atitude geral se é o individualismo o registro de nosso tempo? Há formas de encarar

as coisas, o estar no mundo e se fazer perante as relações? Converter o olhar do exterior para

dentro exige, sobretudo disciplina interior, uma mudança de pensamento.

A história da subjetividade a qual se dedica A hermenêutica do sujeito pretende

desenvolver o corpus de uma maneira de ser, atitude, formas de reflexão, enfim de práticas

voltadas a alguma espécie de fenômeno a desvelar pelo cuidado de si. A outra faceta é a

verdade. Alvo da perseguição do sujeito ao saber de si concerne a uma transformação ou a

completude passível de dizer quem ele é. Por este viés, o ato do conhecimento implica o

sujeito sofrer modificação em seu ser partindo da espiritualidade até a verdade a ser revelada

com a matéria. Dessa forma o acesso à verdade só é possível por meio do conhecimento; de

seu interior são desenvolvidas as condições de acesso à verdade. Assim, é cabível perguntar

qual conhecimento valorizar? Mais ainda, o sujeito sendo capaz da verdade, como ela pode

transfigurá-lo se não pode salvá-lo?

O cuidado de si na Antiguidade era privilégio da elite, especialmente da classe

política, tem em Alcibíades o exemplo que Foucault vai buscar para desenvolver sua tese a

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respeito do tema. Cuidar dos outros como forma de fazer política equivalia a cuidar de si; o

como ocupar-se, passa a ser a preocupação de quem toma para si o encargo do cuidar, sem,

contudo, já não identificar o eu neste processo. Então a pergunta a elaborar é o que é o sujeito

em causa ou o que é o eu do qual se trata? Qual é o eu que o sujeito deve preferir a fim de

poder se ocupar dos outros como convém em se tratando de governo? Ocupar-se consigo

como maneira de melhor se ocupar dos governados exige longa aprendizagem, de uma cultura

de si, enfim, segundo o escritor a formação de si. Portanto, conhecer-se exige acima de tudo

refletir seriamente sobre si como o fez Alcibíades. Conforme o encaminhamento de Foucault

é preciso saber o que é o eu. Referindo-se a Platão, é uma necessidade de ocupar-se com a

própria alma, conclusão de Alcibíades quando a questão apontada é o sujeito em si. É, então,

a alma quem fornece os elementos não só do corpo, das partes do corpo, dos órgãos e

formatando tudo, a linguagem.

Na leitura de Foucault, o cuidado de si deve consistir no conhecimento de si. Nessa

intenção, é necessário dobrar-se sobre si, isto gera desvelo, desprendimento se o sujeito se

ocupar em se conhecer. Não podemos esquecer a estrita relação entre as palavras e as coisas

sem a qual não se pode ostentar a ambiência cognitiva retratada em ponto de tangência a ser

examinado no romance. Ainda nesta perspectiva podemos perguntar com o filósofo, como é

possível conhecer ou em que consiste tal conhecimento alinhavando a história da

subjetividade a que se dedica o filósofo. Nesse decurso, há uma expectativa sobre o “eu”

quanto à verdade a ser revelada pelo sujeito. O desenrolar desta argumentação arregimenta o

princípio segundo o qual há identidade de natureza no fato do sujeito procurar saber de si. Se

Alcibíades tem na alma o liame para saber de si, este se atrela ao conhecimento do divino;

partindo deste, chega-se ao conhecimento do sujeito empreendido por ele mesmo.

Concluindo, conhecer-se introduzido pelo conhecer o divino ou, em outras palavras,

reconhecer o divino em si é uma retomada da visão platônica ou neoplatônica do cuidado de

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si. Consideramos como algo insatisfatório para o intuito identificado n’A hermenêutica do

sujeito.

Para além da espiritualidade, a pretensão do cuidado de si é espalhar o propósito não

se restringindo apenas ao circuito do exercício de poder como o texto do Alcibíades faz crer.

Chama atenção o fato de que o cuidado em questão não se limita a uma forma única do

conhecimento de si. Ao contrário, podia parecer, mas não é algo passivo, de uma quietude

absoluta; é atividade e vigilante, exige postura de sobreaviso, contínua, aplicada e regrada.

Aqui a pedagogia de Foucault busca em Sêneca e Lucílio os exemplos requeridos pelo

cuidado de si para surtir os efeitos esperados. Detectado o momento específico da existência

imperioso para o cuidado de si acontecer, o conjunto de práticas baseado nele é alguma coisa

ligada a margem de maturidade atingida pelo sujeito do conhecimento. O que e como fazer

depende de cada nível alcançado no processo de se cuidar do eu. O mais importante em todo o

desenvolvimento consiste em, quanto mais cedo o sujeito se abrir à esta necessidade

impreterível, mais fortemente se dará o eixo temporal privilegiado na prática de si, algo a ser

encorajado da juventude à velhice.

O lado formador da prática de si, o cuidado a empreender para o indivíduo fazer frente

aos acontecimentos condizentes a si é algo de uma exigente autocrítica constante. Façamos

um parênteses para lembrar o personagem duplicado e seu sentimento de pertinência. Alguém

que se recusa à repetição, seja a do corpo ou a do modo vivencial, em meio a discursos

também repetidos deseja renovar o antigo e criar um novo. Porque não transferir essa vontade

no retirar os laivos do ator em sua existência? O prestar culto a si mesmo de Foucault é o

outro nome para a tomada de consciência do estar no mundo. O referido cuidado permanente

envolve junto o ocupar-se da alma e do corpo, pois, indissociados e, sendo práticas

ininterruptas da juventude à velhice, desperta o ato de viver a vida de forma mais densa, com

a intensidade própria de quem não sabe se terá outra oportunidade de fazê-lo. De modo

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vertiginoso, o homem duplicado ao fazer uso do discurso professoral dispõe da interrogativa

imbuída da divisão histórica presente na imagem emanada. Se, da Antigüidade o filósofo

retira que o cuidado de si é ponto de partida para cuidar dos outros, o primordial na sua visão

é ocupar-se consigo sem outra necessidade imediata; se isso antes era privilégio para poucos,

na modernidade é alguma coisa elaborada com convicção sem, contudo, se apontar a um

resultado específico.

Como acompanhamos na leitura d’A hermenêutica do sujeito, o processo de avaliação

de si relaciona-se ao ocupar-se consigo oriundo de um apelo, no entanto, nem todos estão

aptos a escutar. A grande maioria envolta num movimento dispersivo não atenta ao cuidado

necessário para viver sendo, executando o passo contrário, ou seja, o de ter para ser. Então, o

apelo sendo universal está diametralmente oposto à raridade da escuta na concretização do

sujeito conforme observamos no processo das aulas – origem do livro – como forma de

efetivação do cuidado lançado desde o início. Ao estudar os pensadores do passado, Foucault

aprende a prática de si enquanto momento privilegiado da existência, o auge vem na velhice;

outro ponto é o cuidado de si ser formulado como princípio incondicionado baseado na

convivência com outrem. Isto parte do princípio da descoberta da ignorância: do viver, ser,

elaborar. A questão colocada nestes termos é: como sair da ignorância para ser sujeito? Como

ligá-la à agitação do pensamento enquanto algo solto, que não se apraz e não se satisfaz a

nada? Desta maneira, o estado de stultitia necessariamente invocado para se falar de sujeito se

atrela a uma vontade ainda presa. Isto faz o stultus se ver no dilema de querer muitas coisas

ao mesmo tempo percebe nelas a divergência não sendo, entretanto, contraditórias. De acordo

com o grau de maturidade atingida pelo sujeito, o que ele quer de maneira tão impendente,

livre, é o eu. Nesse específico, a realização da subjetividade dentro da compartimentalização

do homem requer o novo do discurso, ou melhor, o acontecimento de seu retorno. O modo, a

ocasião, para quem e quando o discurso é proferido articula essa realização aludida.

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A ação da qual se trata de sair do cuidado do mundo e entrar no cuidado de si exige

uma espécie de operação a qual o filósofo atribui o nome modo de vida, de ser do sujeito

capaz de distingui-lo entre os muitos. Xenofonte, Catão, Frontão e Marco Aurélio servem de

modelo ao desenvolvimento do cuidado de si, este se ligava ao corpo, os familiares e a casa, o

amor, prática da qual foi se transformando até chegar aquilo concernente exclusivamente ao

sujeito. Embora se ressalte a importância do convívio com os outros na sedimentação do

indivíduo enquanto tal. Por este fio de Ariadne chegamos à condição do conhecimento de nós

mesmos como a chave para se começar a filosofar, conforme o faz o Alcibíades. Firmado o

vínculo de implicação essencial, qual seja, a convivência com os outros, o eu é o objetivo

maior quando se fala do cuidado de si já desenhado nos séculos I-II (D. C.), período ao qual

se fixa o estudo d’A hermenêutica do sujeito. Sem dúvida é um chamamento para o olhar

mais apurado do homem cujo tempo Foucault compartilha.

Se, desde os cínicos a Filosofia busca na arte explicação para a existência, a arte de si

abre caminho para que o próprio eu comece a se questionar como ser capaz de ascender à

verdade. Por este motivo encontramos para a interpretação do sujeito, a cultura de si

equiparada à época helenística e romana. A história da subjetividade desde aquela época se

imiscui com os objetivos cristãos quando a idéia de salvação adquire contornos dramáticos de

acontecimento próximo. No intuito de ser salvo é preciso se posicionar, ficar alerta e ao

mesmo tempo estar sereno dada a garantia de quem se põe a caminho, ou seja, depende

unicamente do sujeito. No século XX Foucault buscará subsídios em Heidegger a fim de se

apoiar na expedição em torno do cuidado de si; o acesso à verdade se transforma na atitude

centrada da necessidade em se mudar o nosso modo de ser. Com isso, o homem cujos

objetivos são sólidos em relação a si próprio, desencadeia a relação de esforço em direção a si

mesmo sem a qual não é possível se suster. O índice da reflexão sobre o comportamento do

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homem na condução da narrativa em Saramago é parte primordial em cada personagem a

partir do momento escolhido pelo escritor para encarar a realidade presente.

A arte de viver enquanto prática de si levada pela vida inteira, denota a maneira

segundo a qual a relação com os outros se torna um reflexo daquela relação maior,

estabelecida de si para consigo. Sendo assim, aplicar-se a si mesmo implica o desvio das

coisas circundantes com a finalidade de tomar toda a atenção, voltar os olhos, o espírito, o ser

por inteiro na direção de si. Num movimento de equiparação, conhecimento e liberdade

assumem a adequação de si para consigo tão fundamental ao ponto de mutação; ora a

conversão no sentido cristão, ora a do próprio sujeito ao seu eu desconhecido, enfim a ruptura.

No período helenístico e romano a ruptura dizia respeito a tudo em torno do sujeito, mas, não

no eu como pregava a doutrina cristã, daí a necessidade de se colocar o eu como meta. Isto fez

da conversão o processo de auto-subjetivação, ato contínuo de perquirição no modo de

estabelecer a relação adequada e plena de si para consigo. Sem descurar do romance O

homem duplicado, temos: o sujeito recém-saído da “disciplina” adentra na consciência de sua

relatividade, vive o erro sem se propor trocá-lo por uma verdade gratuita. A bem notar, o

verdadeiro ainda pode ser dito, experimentado em cada discurso/vida possível de se reativar

como é o caso do personagem no vulto de formular o erro disciplinado.

A mudança da perspectiva do olhar, conseqüentemente das imagens e representações

capazes de dizer ao sujeito quem ele é, exige acima de tudo concentração em si mesmo. A

consciência, construída partindo deste princípio, arregimenta o vazio em torno para se atingir

a meta na trajetória da subjetividade. Ao invés de ser visto como o movimento a fim se se

preencher qualquer lacuna, o vazio responde pela incerteza. Em face à angústia, vale a

experiência de solidão, recolhimento e perda de referências; não sendo mais nem isto nem

aquilo, o homem efetiva o contato com o poder ser. Das relações do sujeito com tudo o mais

depreendemos a distinção necessária nos modos de saber-se no mundo. Portanto, o

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conhecimento aprofundado da existência humana não se efetiva se não estiver em questão a

fim de produzir alteração no modo de ser do sujeito, independente da época apontada como o

faz Foucault. A par da liberdade irmanada no processo de busca de um eu desconhecido, o

saber aí inserido envolve sem dúvida o mundo ao redor, porém, o objetivo maior é a

transformação a que se submete o ser do sujeito.

O cuidado de si em vista de acordo com a regra coextensiva à vida, tomando como

movimento real o sujeito frente à frente consigo, tem no deslocamento aquilo que se deve

reter na idéia de conversão a si. Esta idéia para o filósofo tem sempre algo de odisséico,

proporciona além do mais o autocontrole sem o qual não é possível falar de subjetividade,

independente do período pesquisado. Para a narrativa literária, o caminho soprando sentidos

interpretativos é recurso alegórico em favor da transformação pela qual passa os protagonistas

localizados numa aura de repetição versus renovação. Detalhe, os seres ficcionais em pleno

hibridismo são potencialmente deflagradores de tensões sob o ponto de vista de personagens-

errantes. Duplicados, eles se lançam à estrada sendo a própria estrada a ser descoberta. Não

importa se ambos não convergem para a chegada, o fim do caminho, o importante é a

experiência de estarem no percurso. Pelo desfiar da argumentação de A hermenêutica do

sujeito, a prática de si se assemelha à trajetória incerta e por vezes circular, pois, se trata da

trajetória da vida. A inquietação de Foucault a respeito de ser possível constituir, reconstituir

a estética e ética do eu, nos impulsiona a outra questão, esta acerca da verdade. Por outras

palavras, ignorância e descoberta da ignorância da ignorância é o motor do cuidado de si

conforme aduz o escritor. O círculo é visível justamente por conferir reciprocidade entre

conhecimento de si, conhecimento da verdade e cuidado de si; formatado com a reminiscência

e a exegese, ambas relacionadas à ação do sujeito.

Onde a cultura helenística e romana, mais tarde a cristã servem de exemplo em se

tratando do cuidar de si, os olhos da serenidade oferecem o triunfo sobre os vícios sendo que

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o almejar maior é o auto-conhecer. Assim especificado, o homem por meio da firmeza nas

adversidades luta contra o prazer sobre todas as formas prejudiciais; não se fixa na aquisição

de bens passageiros, contudo, é na liberdade o espaço de refúgio propício para o encontro de

si. A identidade do sujeito, a singularidade e o ser estável aos quais o cuidado denuncia

modaliza o saber sobre as coisas fazendo do deslocamento do sujeito, a condição de

percepção da verdade de seu ser. Embora tenhamos no saber espiritual do século XVII até o

final do XVIII a fonte para se ascender ao saber de conhecimento significativo aos valores e

efeitos a se adquirir, a inquietação do processo perdura considerado o conhecimento do

mundo parte do exercício de si.

Os períodos grego, helenístico e romano têm a nos oferecer para a reflexão sobre o

sujeito a questão de como podemos conhecê-lo, como agir na medida em que a verdade não é

tão somente uma vertente da experiência espiritual do sujeito. A ascese indicada não só

equipa e dota, mas, prepara, abre e finaliza o indivíduo para os acontecimentos da vida. É

fundamental observarmos de acordo com Foucault, a ascese definida pela renúncia final a si

mesmo não pode constituir o ser do sujeito; enquanto o dizer-verdadeiro lhe é peculiar porque

se alicerça numa Palavra verdadeira pronunciada por Outro. Lembremos, o estudioso baseia

seu pensamento na liberdade sob todos os aspectos, transformada em ação reflexiva leva o

sujeito a se constituir. Por isso, o sentido desentranhado do cuidado de si durante todo o livro

tem na hermenêutica o significado máximo.

Portanto, a ascese filosófica não pode se vincular à renúncia a si; se o princípio é ligar

o sujeito à verdade, a subjetivação do discurso verdadeiro passa pelo crivo da enunciação

proferida pelo sujeito. Uma das atitudes mais recorrentes do livro é quanto ao silêncio, à

escuta a empreender concomitante a posição de tranqüilidade a fim de se atingir o

crescimento ideal, tratando-se da subjetividade à frente. Escutar e vigiar para dizer a palavra

certa no momento propício, marca de forma peremptória o caráter do sujeito na prática de si.

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Diferentemente da diatribe estóico-cínica em que se localiza no discurso do mestre a verdade

por inteiro, Foucault enseja com essa retomada salientar a verdade como algo a se buscar em

qualquer discurso, independente de quem o profira. Deste modo, o sujeito capaz da verdade

está atento às técnicas e a ética de subjetivação do discurso verdadeiro: o silêncio, a escuta,

leitura e escrita juntos dão a medida do quanto podemos falar da perspectiva individual. A

liberdade é outro requisito sem o qual não é possível atentar à franqueza e à abertura aos

discursos em torno.

Um dos pontos cruciais atingidos n’A hermenêutica do sujeito com a retomada feita é

quanto à adequação do discurso ao sujeito pleno de liberdade: “dizer o que se pensa, pensar o

que se diz” (FOUCAULT, 2004, p. 491). Logo, se o cuidado de si prima pelo conhecimento

de si, o sujeito não pode ser guiado por nenhum tipo de observação a não ser a sua. Neste

intuito, descarta-se qualquer elemento divino passível de ser apontado como possibilidade de

se nomear o sujeito. Ao invés, temos a coragem e o domínio como princípios norteadores,

juntos à abstinência formam o conjunto que dará o aspecto mais real, convincente quanto ao

cuidado necessário para se alcançar o patamar de sujeito da enunciação de si.

Na história da subjetividade ocidental não é mais o caso de provas a serem vencidas na

relação entre Deus e eu, mas, este eu se põe em movimento sozinho; depurá-lo significa

entendê-lo enquanto aquele sobre o qual se exerce vigilância guarda, proteção e domínio.

Levar a vida como prova significa fundamentalmente manter a relação consigo de forma a

preservá-la através do exercício do pensamento. Planejada, a prática de si não se deixa

conduzir pela preocupação com o porvir, algo essencial para a visão de Foucault. Admitido o

porvir como nada, está em jogo poder dominar o sentido do presente, em face do ser atual ou

de passagem. Ainda outra vez o tema do domínio de si, os desejos independente da extensão,

do barulho contextual; enfim o movimento exterior propenso a impedir a subjetividade de se

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desenvolver. Preparar-se para os males é, de posse desse conhecimento, estar pleno da

serenidade sem a qual não é adequado falar de sujeito com suas nuances características.

Se, de um lado a meditação sobre a vida exige tolerância, reflexão, por outro a

contemplação sobre a morte é algo facilitador de certa maneira da autoconsciência. É o

momento no qual o cuidado de si se mostra com a intensidade dedicada pelo sujeito ao longo

da existência. Por conseqüência, o pensamento sobre a morte proporciona a retrospecção e a

memorização daquilo que adquiriu valor durante a vida à subjetividade colocada até ali em

questionamento. Quando o cuidado de si se nutre de uma série de acontecimentos

imprevistos, isto significa o grau de experiência adquirida; perante os quais é possível divisar

a resposta mais adequada a cada tipo de situação a exigir do sujeito participação

fundamentada, por outras vias, ser escarmento.

A história da subjetividade ocidental deixa transparecer a vida sem ser o correlato

grego de tékhne para tornar-se a forma de uma prova de si; o mundo, palco da experiência de

nós mesmos proporciona o autoconhecimento, por causa disso nos descobrimos. Estipulada as

relações nestes termos, intriga Foucault como o mundo pode ser ao mesmo tempo palco para

o conhecimento e espaço de prova para o sujeito, bem como se há possibilidade de haver

sujeito do conhecimento.

A hermenêutica do sujeito deixa claro que a possibilidade do sujeito se pensar, de

ocupar-se consigo longe de ser privilégio de poucos pode e deve ser um elemento norteador,

não apenas vinculado a situações momentâneas da vida, mas, algo a tomar forma de vida. Não

menos importante é desaprender aquilo assimilado como verdade absoluta em qualquer setor

da vida, sendo substituído por um equipamento de discursos verdadeiros empreendidos pelo

sujeito iniciante ao se colocar num plano irresoluto. Percebemos o uso deste equipamento na

medida em que notamos no comportamento do sujeito, atitudes cujo tom é a segurança para

ouvir mais e falar somente o adequado com reflexão e sensibilidade sobre os acontecimentos

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da vida. Assim como a leitura ampla da época clássica proporciona a compreensão do sujeito

moderno, somente podemos tratar de sujeito da verdade no início e no final de uma sujeição

ao Outro. O sujeito a se colocar sob os auspícios da libertação mais profunda quanto maior o

poder do questionamento demonstrado se constitui tema de interrogação. O cuidado de si

emparelhado ao conhecimento de si, fornece elementos para o sujeito da ação reta na

Antiguidade seja substituído no Ocidente moderno pelo sujeito do conhecimento verdadeiro.

Em Heidegger, Foucault entende que a tékhne proporciona ao mundo sua forma de

objetividade, a contribuição deste último no entendimento do sujeito diz respeito ao cuidado

de si, especificamente às práticas estóicas de prova. Isto faz do mundo a ocasião do

conhecimento e transformação encaradas pelo sujeito como indispensável para haver

desenvolvimento de si e, portanto, o ambiente de emergência da subjetividade. O sujeito

emergente do cruzamento entre a técnica de dominação e a de si é mais condizente com a

subjetividade a qual a época moderna pretende abarcar. A preocupação histórica concomitante

à ética faz do cuidado de si, a possibilidade de haver um discurso verdadeiro de acordo com

os acontecimentos externos e as paixões interiores propícias do sujeito realizar.

Foucault busca na Antiguidade a idéia de inserção a uma ordem na vida, a condizer

com as aspirações empreendidas pelo sujeito a fim de saber de si. Para isso, surge a

necessidade dos princípios da ética voltada à imanência, vigilância e distância daquilo que o

afugenta de saber mais de si mesmo. Se a escolha pessoal da existência esbarra numa

inquietação moral, o respaldo não se encontra no cuidado de si sem o qual não pode haver

subjetividade, no sentido moderno inscrito na hermenêutica. A realização imanente e

contraída do eu se dá por meio da transcendência autêntica, aquela com base na concepção

ética do cuidado de si; implica na emergência da natureza própria, o cuidado de si atravessado

pela presença do Outro. Por esta perspectiva, o sujeito descoberto no cuidado é cidadão do

mundo, pode e deve interferir naquilo que lhe diz respeito: o autoconhecimento. Quanto à

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faceta política do pensamento de Foucault, a ética está no interior do sujeito ao fazer de si o

não coincidente com seu papel cuja desenvoltura define a emancipação. Ao fugir da

identidade imposta, o sujeito adota a lei de verdade absorvida como forma de poder

transformador, se esta foi auto-traçada. Portanto, as novas formas de subjetividade afloradas

com a modernidade é algo possível graças às práticas de si relacionais e transversais.

O conhecimento do eu indica a experiência da humanidade inserida numa estrutura

social criada pelas forças culturais em constante transformação, a qual A hermenêutica do

sujeito se empenha por entender. Não poderia ficar fora deste livro a concepção do escritor de

que as transformações do poder surtem efeito imediato com as modificações do

conhecimento; ora, se o ocupar-se consigo exige autodomínio, o saber haurido informa muito

sobre o sujeito. Quando sua liberdade é efetivada, quando ser si mesmo e não os efeitos de

Outro que solicita para depois excluir? Com efeito, o pensamento ao trocar a semelhança pela

distinção está às voltas com a precisão do ser humano sem qualquer espécie de paradigma.

Por meio das relações sociais, a produção e o uso do saber de si implica a verdade a se

configurar; diante disto, o poder de saber de si típico do sujeito ultrapassa as limitações

criadas ou impostas. A cultura do eu da qual discorre Foucault, esboça o crescimento da

subjetividade desenvolvida por uma atitude, um modo de se comportar denunciante dos

procedimentos apenas internalizados; porém, ações e modos a se refletir, desenvolvidos,

ensinados enquanto proposta do cuidar de si.

Onde o pensamento de Michel Foucault se encaixa no estudo do homem escarmento

que encontramos no romance O homem duplicado até o presente ponto? Eu: ponto de

reflexão, o cuidado de si anunciado pelo filósofo tem relação direta com o protagonista da

narrativa, porque este deixa de lado o mundo circundante e passa a se ocupar com a sua

imagem, a representação de si para as pessoas. Por causa disto, a subjetividade ao ocupar o

primeiro plano do livro não ocorre sem resistências, sejam aquelas advindas do interior dos

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personagens – descobrem-se com a mesma aparência –, sejam as outras aliadas à provável

emancipação demonstrada. Em quais aspectos pinçar a distinção é o elemento principal na

atividade de se ocuparem de si mesmos, dos dois seres ficcionais doadores de vida ao homem

duplicado.

O eu de Tertuliano e António está imerso na problemática do que vem a ser a verdade

e qual adotar. Na ocasião, o primeiro descobre a existência do segundo e se põe como

prioridade o desejo de conhecer, se move pela necessidade do conhecimento do sujeito por ele

mesmo anunciado com a A hermenêutica. O cuidado de si proposto por Foucault se revela a

propósito tanto para o Professor de História quanto para o ator de cinema, vivendo outras

vidas sem colocar a deles sob discussão. Para além de ativar a memória das situações vividas,

o fator decisivo é como criar situação própria; o cuidado de si se torna tão indispensável a

ambos os personagens que podemos considerá-los despertos para a vida de plenitude, qual

seja tentar fazer/ser a diferença no mundo de igualdades. A agitação momentânea do homem

duplicado se resume à preparação do movimento maior de sua subjetividade, tomada pela

inquietude reinante no curso da existência daqueles personagens. Sabem, não há mais como

prever ou improvisar as aulas; ler e memorizar o roteiro dos filmes, as explicações devem ser

buscadas sem respostas à vista.

Despertos para a moral consigo mesmos, no sentido de se conhecerem, os personagens

ficam no impasse, mas, procuram manter a ética do comportamento ao almejarem o próprio

panorama existencial. Superior à questão de se acusar como individualismo extremo, a

subjetividade em O homem duplicado indica probabilidades de mudar o pensamento e como

resultante, produzir formas de estar no mundo sendo igual ou diferente do quadro de apatia

encontrado. A propósito, ao converter o olhar exterior para a interioridade desenvolta, temos

no romance a interrogação acerca da maneira de ser, atitude, formas de reflexão capazes de

compreender as práticas de si as quais o cuidado se encarrega de desvelar. Outro debate

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acoplado a esta interrogação não menos importante é a revelação da verdade. Procurá-la e ao

mesmo tempo escondê-la, faz do homem duplicado o depositário de uma transformação em

vias de se efetivar. Sobrepõe a questão ética para com o mundo, a descoberta bem como a

apropriação da verdade por cada personagem em particular, revela o modo de ser em que a

aprendizagem é uma constante.

Digamos com maior proveito, a formação de si dos personagens é algo desmerecido

no passado, pois não tem muito a contribuir, o presente deles tão ignorado quanto o futuro é a

matéria com a qual têm a oportunidade de se lançar ao cuidado específico da imagem interior.

Não se trata de prática mantida ao longo da vida, porém, a partir daquele instante de

descoberta da duplicação, procurar o fio condutor ao qual o presente desconhecido deles tome

significação. Como vimos, em Foucault o cuidado de si deve consistir no conhecimento de si.

Encontramos ao longo da experiência do duplicado o dobrar-se sobre si, o desvelo,

desprendimento oriundos do processo de imersão na própria subjetividade. Não podemos

avaliar como o conhecimento ligado a apenas um dos personagens ou qual deles pode ser

considerado a voz oficial que o duplicado tenta imitar. Durante o repasse da dúvida de

Tertuliano a António, com a clareza no nome apesar de desconhecer quem é, temos um

escambo no projeto de saber de si. Partindo desta idéia, vemos por meio dos dois a imagem

do homem escarmento ao se jogar no conhecimento empreendido por ele mesmo, sem

qualquer espécie de intervenção.

Ao interagirmos com o texto de Foucault, notamos nos personagens doadores de vida

para o homem duplicado o exercício auto-apreciador para além de uma forma exclusiva do

conhecimento. Na vigília, com a postura de sobreaviso adotada, percebemos o quanto estão

atentos à observação transformada na mutação a qual pressentem. Com a duplicação, o

conjunto de práticas adotada por cada personagem sem ser semelhante, denota a maturidade

perseguida sob forma de conhecimento. Apesar de Tertuliano e António terem a mesma idade

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e aparência, a carência da prática de si surge primeiramente a Tertuliano embora no enredo

seja quem traz em si o estigma do duplo. De fato, é ele quem amadurece primeiro, no entanto,

este conhecimento adquirido não é garantia de tranqüilidade. Ao se abrirem à problematização

do estar no mundo, abre-se também a possibilidade a fim de podermos identificar nestes

personagens o homem escarmento em termos da consecução de si. Como assinalamos, o

duplicado ao tomar consciência de si está longe de ser exemplo de alguma coisa é, antes, o ser

propenso a esboçar apelo existencial sem ter ninguém ouvindo.

Descartada a possibilidade de convivência com seu igual, o duplicado tem pela frente

um mundo onde a subjetividade é outra faceta na descoberta da ignorância: de ser, viver e

elaborar circunstâncias com as quais se identifique. Ao ter nas mãos a oportunidade única de

escolher e firmar o eu tão sonhado, o protagonista da sua história se abre a um modo de vida,

de ser do sujeito capaz de distingui-lo entre outros ou se acomodar com a imagem do espelho

não condizente. Ratifiquemos, o romance se centra neste abrir-se sem a efetivação da escolha;

é na tomada de consciência de si o espaço ideal do cuidado ao qual se refere Foucault. Nesta

imagem do homem reproduzido em outro sem encontrar a identidade ansiada, encontramos o

próprio eu a se questionar como é possível ascender à verdade e qual adotar: se a do professor

morto aos olhos do mundo, se a do ator temporariamente efetivada de forma perturbadora. Por

conseguinte, o acesso à verdade correlacionado ao duplicado se transforma na atitude

centrada, necessária para se mudar o modo de ser, mas, sem a coragem para realizá-lo. A

ruptura entre os dois mundos realizou-se; o que não se concretiza no universo da duplicação é

o liame da subjetividade válida no percurso entre original e cópia.

Com certeza há concentração em si intensa por parte do duplicado, sobretudo quando

se vê sozinho sem a reprodução denunciadora. Entretanto, o conhecimento aprofundado da

existência humana que poderíamos esperar de seu comportamento não se efetiva porque a

alteração no modo de ser do sujeito, em determinado momento do romance onde é levado a

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agir é mais uma imitação do original. Especificamente no episódio em que sai armado para

eliminar qualquer vestígio de sua aparência presente noutra pessoa, seu interlocutor. A

trajetória experiencial do homem cuja pretensão é ser sujeito de si, no entrelaçar do

conhecimento daquele eu particularizado bem como da verdade planificadora, exige o

cuidado de si além de configurar uma prova da liberdade. Este patamar alcançado pelo

duplicado o faz inclusive se refugiar na casa materna já proprietário da imagem denunciante

do encontro muito particular. Permanece suspenso: qual a ação a adotar admitida a reflexão

sobre o sujeito se impor enquanto questão a se elaborar; no processo em que a verdade

depende da experiência espiritual pela qual passa quem se ocupa de si.

A palavra a ser proferida, o gestual adotado além de uma encenação ou técnica de

ensino – ambiência dos personagens centrais da trama narrativa – o conhecimento de si

implica práticas das quais não é possível destacar qual a correta, subentendido tratarmos do

sujeito cuja base de sustentação é matéria de descoberta. Sobretudo por causa do discurso

adquirir importância profunda no pensamento de Foucault, não poderia deixar de ser também

n’A hermenêutica do sujeito. O não-dito se revela no desabrochar do comportamento adotado

pelo homem duplicado, por todo o romance é uma forma de compreensão da subjetividade na

qual pesa o cuidado de si. Tal especificidade prima pelo conhecimento de si, também é sem

equivalente num romance despido de demarcação temporal ou espacial. Aqui, nossa exegese é

convicta ao afirmar que José Saramago elabora a trama vivida pelos personagens para tratar

com maior ênfase o homem do nosso tempo. O qual não se presta a nenhum tipo de modelo

ou estereótipo ao contrário, mapeia a saída num labirinto construído por ele mesmo ao viver

sem se ocupar de si.

O futuro no romance é visto como o porvir feito de nada, pois o principal interessado

ainda não domina seu significado atual, em face do ser ou o de passagem, bem nos termos de

Foucault. O grau de experiência exigido pelo próprio duplicado requer participação

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fundamentada nas situações a enfrentar toda vez que a subjetividade reclamar seu lugar de

direito, bem entendido, quando o fator pensar em si, norteia a provável forma de vida adotada.

O cuidado de si presente no livro O homem duplicado adquire um quê de possibilidade do

sujeito ser de acordo com a verdade, se seu comportamento incluir o fim da sujeição pela qual

passa. No caso, aquele que se pretende como sujeito oriundo do cruzamento entre a

dominação imposta pelo mundo e a técnica de si a ser descoberta, por fim deixa entrever a

subjetividade aflorada na narrativa. O sujeito descoberto no cuidado exigido pela duplicação

tenta fugir da identidade imposta; adota por sua vez uma lei de verdade absorvida como forma

de poder transformador e, se esta for traçada por si como tudo indica, o poder de saber de si

do sujeito vai além da aparência flagrante.

No processo de interpretar, por vezes localizar o homem na atualidade tendo por base

o romance O homem duplicado de José Saramago, é recorrente a perspectiva de um

personagem trocar de lugar com o outro devido a proeminência existencial. Também não

deixa de ser um dos usos do poder, de intervir, de não servir, de se apropriar de algo solto: o

eu de transição. Isto nos leva à leitura do livro A troca impossível (2002) no qual Jean

Baudrillard (1929-2007) trata da impossibilidade de haver mudança para um mundo sem

equivalência. Há sim a existência de uma definição ou indefinição, mas não duplo,

representação nem espelho seja qual for o sistema, a esfera econômica ou qualquer espécie de

troca ainda mais tendo por horizonte a globalização tão comentada no mundo atual. E, se

valores, finalidades e as causas dizem respeito unicamente ao universo do pensamento

humano, a realidade moldada pela técnica e competitividade, os dados ambientados nas

ciências humanas e sociais também se deixam envolver pela imagem de seu objeto. O espaço

da diferença se escamoteia com a estabilidade e o movimento dialético do conjunto. Com

isso, a ilusão como regra fundamental de todas as trocas a se fazer dita o rumo dos

acontecimentos, apesar de esbarrar no argumento segundo o qual embora se tente fazer de

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todas as coisas e pessoas peça de troca – dotar de um sentido – ainda há o que Baudrillard

chama de troca impossível.

Enquanto há a ampliação de tudo aquilo que não se troca com valor em vista, chega-se

ao Nada, ao chamado niilismo contemporâneo. Isto é desvendado pelo escritor como aquela

parcela por trás das coisas trocadas, como sendo o Nada cujo sentido toma a forma de

circularidade; o homem leva consigo como culpa perpétua devido o consumismo ao qual se

submete. Tal é o debate acerca de Real e Virtual: “a circulação sem fim do Virtual fará com

que o Real não possa jamais trocar-se por nada.” (BAUDRILLARD, 2002, p. 13). Confunde-

se a parte da miragem e a suposta realidade em meio à incerteza preponderante. Solidificadas

na idéia da morte, ilusão, ausência, negativo, mal, a parte maldita naquelas coisas trocadas, o

Nada é o liame com o qual se dá a continuidade de Algo.

A incerteza está tão enraizada a ponto de até no pensamento não ser possível ficar

sozinho pensando o mundo, mas, o inverso, ou seja, o mundo nos pensar é marca da

descontinuidade na qual vivemos e é nesta o vinco, a superioridade humana conforme atesta

Baudrillard. Os contornos que em última instância buscamos e A troca impossível enfatiza, se

nutre do Nada, medida da incoerência do mundo concernente à improvável aferição por seu

próprio fim e a qual não se mede por meio do Nada. Como na história do pensamento humano

não foi suficiente a morte de Deus para o homem se pensar com mais gravidade, bem como o

destino do mundo, outra estupefação foi a explicação segundo a qual o mundo nos é dado;

dessa forma, o próximo indagar diz respeito a acabar com esse mundo. Apenas dessa maneira

é possível falar de ambiente viável onde impere o duplo artificial, de emoções impensadas e

reproduções em massa de tudo aquilo que possivelmente traria benefícios ao homem. Nos

nossos dias correlaciona-se a eu mesmo ser pensado, por exemplo através da Internet, num

universo pautado pela incerteza e desregulação resultantes da troca impossível.

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No jogo das aparências, as coisas se afastam cada vez mais de seu sentido e resistem à

violência da interpretação num meio em que as relações e os conflitos sociais estão

apaziguados pelo conformismo alienante. Por esta desvitalização das relações de força

juntamente com as sociais, forma-se inclusive a impossibilidade para o objeto ser decifrado. É

exatamente por isso que o pensamento não pode ser reduzido à consciência do sujeito, pelo

menos não o pensamento acerca do objeto porque tomado pela incerteza. Transforma-se por

sua vez no pensamento do mundo que nos pensa.

Enquanto o ser vivo for guiado no sentido de se desarraigar do mesmo por meio do

progresso da ciência, na contrapartida trabalha em prol da desintegração da espécie com a

anulação das diferenças. Denominado por Baudrillard de artificialização do ser vivo, o ser

humano prepondera quando não se pode reduzi-lo pela clonagem, ser programado nem

genética nem neurologicamente controlado. Assim entendido, o homem caminha pari passu

entre evolução e involução se é na conservação do ser orgânico o sentido atribuído à espécie.

Se a salvação está em sair do Mesmo, abre-se no saber e na cultura a saída do labirinto; nas

idéias, no modo de vida, meio e contexto cultural onde possam brotar as diferenças. Aí é

preciso ressalvar que estes também podem ser clonados pelo sistema da escola, mídia, cultura

e informação de massa aparentemente possíveis de nos diferenciar, conforme ensina

Baudrillard. Do Humano Xerox ao pensamento único, não há muita divergência, pois, o

“original é desqualificado pelo seu duplo, fazendo sua revanche sobre seu clone.”

(BAUDRILLARD, 2002, p. 44). Para o pensador, a verdadeira resistência está na recusa de

uma solução final entre todas as formas as quais o homem se vê exposto. Deslegitimado pelo

debate do que seja ou qual sua função, o Real entra na discussão apagada com seu duplo; o

virtual com a força expressiva se expande até os limites onde o próprio homem traça como

verdade inútil.

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Em tempos enovelados com a salvação pessoal a ser conquistada e não ofertada, a

contestação de si também é perpétua junto ao indivíduo moderno, convencionalmente o

sujeito fractal; este supostamente entregue à própria vontade faz com que sejamos forçados a

nos tornar fractais para nós mesmos. Escarmento? Baudrillard entende através do perigo

artificial em voga: cada um apenas suspeita existir assombrado pela Vontade e a Liberdade

imaginada, fazendo-se o sujeito sem a alteridade interior vale-se, entretanto, de uma

identidade sem fim procurada. Nisto não deixa de ser um aspecto da servidão de si mesmo. Se

o outro lado da passividade é desobedecer às leis e às regras morais, saber desobedecer aos

outros é sinal de liberdade, porém o extremo desta é desobedecer a si mesmo conforme lemos

n’A troca impossível.

Ainda no rastro da possível explicação para a troca impossível da vida, é o caso de

substituí-la por uma vida dupla. Nisso o eu se multiplica em intenções, emoções, mas, muito

provavelmente não sejam essas a de um interior satisfeito; possivelmente obedeça a uma

moral, entretanto, não à realidade mutante. De acordo com o pensamento do pesquisador

francês, ao acolhermos o comportamento de contestação, a vida dupla tem a oferecer o

tormento histórico de nos vermos como refugos existenciais. Dessa visão tanto o sexo, os

genes, as redes, desejos quanto os parceiros caem sob o golpe da mudança e da troca, então

cabe perguntar o lugar do homem neste ínterim. O Eterno Retorno se ainda pode ser evocado

é o do fractal, da mudança contra o devir uma vez que é de troca o meio onde vivemos.

Contudo, apesar desta parecer se ramificar até à generalização num movimento de

convergência rumo ao uno e universal, a divergência sobressai sedimentada em dois planos: a

história e o destino. Sendo individuais, formam o plano a que o eu não pode se subtrair.

Para Jean Baudrillard o termo destino em relação ao homem manifesta uma espécie de

linha divisória a qual localiza para si enquanto outro. Nesse momento deflagra-se a alteridade,

por um lado separação, por outro se torna inseparável concernente à existência se fazendo. A

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subjetividade assume a forma dual enquanto consciência de ainda ser livre para existir na

única vertente do eu marcado com o rótulo de nossa identidade; também não o é para o

mundo supostamente real. Por isso, a atmosfera paradoxal se impõe ao termos por

pressuposto o pensamento regulador do mundo, admitindo-o a nos pensar. Originário na

dificuldade de convicção ao considerar a individualidade num ambiente marcado pela troca de

valores, concepções.

A idéia de unicidade desde tempos remotos tratada por filósofos, ainda iniciantes num

sistema de pensamento é retomada no mundo atual porquanto impera a interpretação segundo

a qual diminuindo, reduzindo diferenças e as “imperfeições” é possível chegar à explicação

do mistério de viver. Como a perspectiva de continuidade se esgarça com os acontecimentos

provocados pelo homem, Bem e Mal, Verdadeiro e Falso evidencia a dualidade para além das

aparências; por exemplo, a ilusão e incerteza provocadas pelo Mal, adotada a fórmula

planificadora de nossa existência moral. O emaranhar destes elementos é um sinal de que se o

homem se move pela idéia do Bem, do Verdadeiro, sem dúvida há em seu caminho o

entrelaçamento da idéia contrária, não importa a finalidade para si. Por conseguinte, faz

sentido na discussão entre unicidade e duplicidade haver a “invocação do Outro com

aparência enganadora. É que só há alteridade radical na dualidade.” (BAUDRILLARD, 2002,

p. 104). O fato nos faz pensar em desboroamento do princípio unitário acirrado; retomada a

simetria do mundo e seu duplo, sujeito e o não-sujeito acoplados, a resultante só pode ser a

emersão dessa dualidade fundamental conforme A troca impossível insiste em salientar.

Contrariamente a uma possível solução final da realidade unificada à sombra do princípio

unilateral.

Destronada a idéia clássica do mimetismo, não apenas as pessoas não querem mais ser

representadas, também recusam a liberação ofertada. A liberdade adquire sentido

diversificado, sem outro equivalente para o direito de representação político por exemplo,

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desacreditado atualmente. Todavia, se por um lado essa perda de representação abre portas

para a liberdade ser criada, há por outro lado, um universo inteiro a ser inventado por quem

duvida da necessidade representativa. No espaço argumentativo da troca impossível, o

homem ainda resiste com o pensamento na medida em que se depara com seu

“funcionamento” superior ao das máquinas, com a ressalva de poder se embriagar no viver,

no prazer, naquilo mais característico e intransferível. Com isto, a sensação, a percepção, o

gozo e o sofrimento garantem a definição mais intrínseca do irreproduzível: a complexidade

do sensível. Embora o Virtual apenas esboce, o homem duplicado pelas emoções irrepetíveis

mantém através do pensamento sua inutilidade radical a qualquer uso ou finalidade redutora.

A ânsia do homem em relação a uma explicação para o mundo o leva muitas vezes a

duvidar acerca do sentido a se atingir e se isso se impõe como obstáculo. Como na pergunta

de Baudrillard, “É preciso, então, que o mundo tenha um sentido?” (2002, p. 131). Tão grave

quanto essa ausência de sentido experimentada é ver o mundo assumindo um definitivo; A

troca impossível procura demonstrá-lo ao optar por não escolher entre o sentido e o não-

sentido e achar acordo universal de reserva. No meio-termo, o homem como ser próprio se vê

inexistente, sem apelação. Se a singularidade se atrela ao vir a ser, em si mesma não é nada.

Exatamente em torno dessa definição que a subjetividade tenta sobrevida.

Embora a vida do pensamento ganhe o primeiro plano correlato a qualificar a

individualidade em qualquer tempo convocado, é o desejo de acontecimento o companheiro

nesse processo de descoberta e tessitura de si. Assim se desdobra, no decifrar, pormenorizar

um acontecimento por meio do seu duplo, a troca ou não, o esmiuçar em busca do sentido –

prática na interface – cuja realidade é mais modeladora que libertadora. Oriundos no imenso

ruído dos acontecimentos, os objetos extenuantes estão concomitantes à vontade de sentido,

apesar de esbarrarem na consciência humana referente à impossibilidade da troca. O

pensamento assume o papel de duplo do homem o qual promove sua destinação ainda secreta,

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ainda obscura. Ele é a face oculta a qual a individualidade não consegue se distanciar ao se

convencer dupla, vida paralela instada a adquirir outra tonalidade. Ao duplicar o mundo

através do pensamento, o homem tenta responder-lhe abstendo-se do significado com uma

teoria que igualmente não encontra semelhante. Nesse universo, não sendo nada também não

pode ser trocado por nada, mostra com isso não poder ser como é sem haver troca com a

teoria.

Nestes termos, pela forma de abordagem a escrita persegue a lógica e, ao fazê-lo segue

a ordem intrínseca do mundo quando então o reduplica, considerando-se não existir sem haver

tal característica. O pensamento vertido em palavra escrita por sua vez elabora o mundo; o

homem responsável por esta ação, com a radicalidade do pensar está no entre o sentido e o

não-sentido, na verdade e não-verdade, na continuidade do mundo e do nada. É o momento

em que recorre à ilusão; a linguagem, a maior delas corrobora ao pensamento colocado frente

a frente com o mundo como forma de se deparar com o Outro. Isto não significa para o

homem a obrigatoriedade em decifrar o mundo ou fazê-lo inteligível através da capacidade de

pensar; esta ao contrário vai ao encontro do enigmático e do ininteligível atendendo à

disposição do próprio ato de pensar. O delírio de saber atende ao estado de coisas impalpáveis

recobridor do universo onde o homem resiste com sua expressão; sem grandeza equivalente, o

ser humano, a teoria e o próprio mundo entram em harmonia na medida em que o espaço de

cada um não sobressai aos demais, conforme nossa compreensão de A troca impossível.

O texto insurgente de Baudrillard contra a alienação do consumo, massificação do

pensamento faz da figura humana algo por ser compreendido com sua expressiva fisionomia

do mundo contemporâneo, tendo em vista os imensos paradoxos em torno. A fragilidade com

que a realidade é exposta na sua argumentação desperta a “ilusão fundamental”, com isso abre

defesa inconteste do inerente a ordem do humano. As idéias e emoções ainda resistem ao

cataclisma provocado pela velocidade sem par da informação, a vertigem dos acontecimentos,

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depoentes contra a individualidade tão esquecida, tão procurada. Ao resgatar o incerto do

mundo e do homem, Baudrillard procura com a incerteza do pensamento discutir verdade e

realidade para além de conceitos referentes ao Virtual.

Da leitura de A troca impossível aproveitamos para o estudo de O homem duplicado a

impossibilidade da troca existencial entre os dois personagens principais da obra. A chance

deles saberem o que são começa com o pensamento desencadeado pela duplicação, mostrando

como a troca entre eles é inócua. A duplicidade não perdura nas ocasiões quando um deles

está em busca de resposta, muitas vezes sem saber se irá encontrá-la; portanto, dessa maneira

os personagens são únicos na peculiaridade apresentada, sem representação ao fundo nem

espelho clareador da verdade particularizada. Discussão bastante acirrada no decorrer da

história do homem duplicado é quanto aos valores adotados, à moral cambiante para

finalidades e causas pouco usuais. O espaço aberto à diferença se dilui quando a

individualidade é posta em risco. Tertuliano, António ou vice-versa se angustiam por não

aceitarem o meio-termo, a vida dupla, embora negada assumem-na através do pensamento.

A arte de Daniel Santa-Clara lembremos, fora das telas é António Claro, não forneceu

o suporte adequado para ele viver a sua vida interposta com a de Tertuliano Máximo Afonso.

Este surge como a outra face real das vidas encenadas anteriormente. Nisto, a ilusão das

trocas de papéis não foi garantia para o homem duplicado se conhecer, desse a conhecer tanto

a alunos quanto a espectadores dos filmes, localizados ambos num ambiente singular. Não há

unicidade de sentidos e é isso que vimos acompanhando na Literatura, ambígua por sua

natureza, se expande ainda mais nos atuais romances de José Saramago. O Nada

experimentado pelos seus personagens na duplicação, tem relação direta com o sentimento do

niilismo contemporâneo. A imagem trocada entre o professor e ator é mero subterfúgio para a

subjetividade da qual não prescindem; além do mais, entre a miragem real e a realidade

prenhe de expectativa, inclusive a incerteza como atitude de prevenção contra a perda de lugar

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existencial, inebria o pensamento com a idéia da morte. Também a ilusão, ausência, mal, a

parte maldita necessária para se ignorar embora saibam ambos da impossibilidade negativa. O

Nada é o liame entre os personagens para além da aparência, proporciona-lhes a continuidade

necessária para a prática de si daí em diante.

O pacato professor de História, certo sobre o conteúdo a ensinar a seus alunos e o

próspero ator de cinema, seguro nos papéis a encarnar são tomados pela incerteza. Esta,

fincada em seus pensamentos, os fazem duplicados e sozinhos a um só tempo pensando o

mundo, sobretudo, pensando a si enquanto a descontinuidade observada. É como se

chegassem à mesma opinião acerca da vida não poder continuar daquele momento para frente

se não passá-la por uma intensa revisão. Por isso a falta de sentido também pode atender ao

solicitado diante da incoerência do mundo, abrigo do homem duplicado. De fato, a morte no

romance não é o fim da história desse homem singular, mas, a continuidade da incerteza. O

pensamento humano presente na obra literária procura não a explicação para o mundo dado,

mas, absorver o espanto por causa da ausência de questionamento. Com isso, ao incitar as

perguntas sem resposta, o universo do duplo artificial longe de descartar emoções

impensadas, mostra o duplo experimentando novas inquietações capazes de fazer do homem

um ser único. Não é o caso de original ou cópia pensar um sobre o outro, entretanto, cada qual

se pensa no duplo que não pretende ser.

No permutar das aparências, o homem duplicado se afasta de um possível sentido em

se ver repetido; prosseguindo, resiste à violência da interpretação da qual poderia ser acusado

pela estranha aparição ou sua consciência. O pensamento não ronda o outro enquanto objeto a

ser descoberto, é a incerteza de ser o mais preocupante para o personagem. Se a anulação das

diferenças foi o leitmotiv para o homem firmar sua individualidade, quando elas se

sobressaem da igualdade negada, abre-se o processo de artificialização do ser vivo. Nisso o

homem duplicado resiste ao não se entregar à busca do que poderia reduzi-lo ainda mais

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como ser humano. Não existe salvação em sair do Mesmo, confirmado no romance ao

desenvolver-se em torno desse Mesmo – a capacidade de altercar, querer manifesto – sempre

no retorno por mais que isto seja contrário à vontade humana. Cabe recordar neste momento o

título do filme produtor de toda a inquietação devido ao duplo: Quem Porfia Mata Caça. Nos

modos de ser de Tertuliano e António encontramos não a solução para o que eles vivem, mas,

a expressão do limítrofe, admitem, os fazem ser melhores ou imaginam. Próximo ao

pensamento de Baudrillard, o desfecho para o homem duplicado está de acordo com a recusa

de uma solução final entre os dilemas a que se vê exposto.

O sujeito fractal observado n’A troca impossível pode ser apontado no romance de

Saramago. De vontade própria duvidosa, se joga em sua história como o responsável direto

dos acontecimentos. Ao tentar o levante começando pelo espelho, chega a pensar que não

sabe quem seja, teme o retrato, uma visita, o duplo, sombra perseguidora. Valendo-se da

alteridade interior a acatar, tem por fim a identidade ilimitada por satisfazer; neste instante,

podemos dizer acerca do duplicado preso à imagem de si mesmo. Servindo a esta, procura

com a suposta passividade interior compensar a impressão ordeira notada pelo original. O

primeiro sinal da desordem sentida encontra-se naquela desobediência de sentar e esperar o

ator transformado em professor voltar da noite passada com Maria da Paz. Também não foi

desobediência maior ao não aceitar o pedido de Helena, nem as sugestões de Carolina

Máximo. O extremo da contrariedade foi desobedecer a si mesmo e não fechar com o

pensamento de nenhum dos personagens que queriam adotar um modo de vida para esse

homem sem imagem fixa.

Como não foi o caso de trocar uma vida por outra, sequer admitir a vida dupla, o

homem desse romance multiplica-se em intenções, emoções comprobatórias de um interior

insatisfeito. A realidade da duplicação o transforma a ponto dele não suportar a idéia do

desconhecido e ir ao seu encalço. Nisto ele pratica a contestação de acordo com Baudrillard,

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porque a vida dupla cuja consciência o homem adquire oferece o tormento inevitável ao se ver

refugo existencial. Fracionado, o homem do enredo tem na mudança contra o devir ignorado,

a troca iminente. Em toda a narrativa não há sequer ensejo de que António e Tertuliano

entrem em convergência de pensamento a fim de se transformar em algo parecido ao uno e

universal. É requisitada, ao contrário, a forma dual até como chance da divergência nos

modos de ser. Propondo-se enquanto indivíduos, almejam o plano ao qual o eu não pode se

subtrair.

Conforme os acontecimentos na história do homem duplicado, quando ele consegue

desprender sua figura do original até se ver como o outro a se conhecer, consideramos tal

período tempo da maturação da consciência. Só assim faz sentido haver, dentro dos

pressupostos de Baudrillard, o irromper da alteridade paralela à separação. Depois vista como

inseparável do pensamento de ser outro, isto é, ser si mesmo porque se coloca em dúvida. A

identidade procurada ao assumir a forma dual nesse romance, corrobora na ciência dos

personagens sobre a probabilidade de serem livres para existir na única vertente do eu,

também ignorada para o mundo, sujeito desse pensar. Ser único, inconteste enquanto

pensamento a se aprofundar é a hipótese de interpretação assumida pelos dois seres cujas

diferenças e “imperfeições” podem dar a medida de explicação do mistério de viver.

À semelhança do exposto no livro A troca impossível, os personagens duplicados são

tipificados de forma a mostrar suas deficiências morais. A alteridade pensada enquanto

necessária na forma de duplicidade, como estudamos na teoria e a ficção acasala, demonstra o

quanto nossa visão do homem na contemporaneidade se aproxima ao desmantelar do

princípio unitário para ler o romance de Saramago. Sem simetria possível, segue-se na nossa

compreensão de O homem duplicado: o protagonista é um ser sem quadratura a nenhuma

possível solução final, pois a realidade unificada se amplia com a ameaça de outro princípio

único surgir.

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Quando a vida do pensamento ocupa o tempo dos personagens envolvidos com a

duplicação, a individualidade no nível dos acontecimentos perde em importância no processo

de descoberta e feitura de si. Notamos naquele homem não mais duplicado (para as poucas

pessoas sabedoras do acontecido) após a morte de António Claro, o emaranhado de dúvidas

ao ter em mente a impossibilidade da troca existencial. O duplo nesse momento específico do

romance é o homem com seu pensamento enredado sobre o que fazer de si. A face oculta da

individualidade não se distancia da vida paralela, consciente de protagonizar, ao não se impor

ao mundo.

Trocado pelas circunstâncias, o homem ainda persegue um sentido embora sabendo

pouco provável encontrar, mesmo sozinho sem a incômoda nódoa incrustada. Submete-se ao

pensamento segundo o qual o coloca a elaborar o mundo partindo de seu foco existencial,

ainda no tempo em que a situação embrenhava-se rumo à duplicação. Bifurcado este, a

radicalidade do pensar recai no entre - lugar onde se especifica a continuidade do mundo e a

do nada, daí se vê retirado. Nesta visão dos acontecimentos, não é mais a imagem do outro

que é preciso apagar do espelho, é sim ativar a capacidade de pensar para formar o enigmático

do qual não consegue se desmembrar, não provoque espanto. Ao contrário do anunciado por

Baudrillard, o delírio de saber que se apodera de Tertuliano no corpo de António atende à

necessidade de expressão típica do ser humano, cuja procura é de se sobressair a quem possa

ameaçar com a imagem parecida. Entretanto, não podemos deixar de encontrar paralelo com o

texto teórico ao fazer da figura humana ali estampada algo por ser compreendido; alguém cuja

expressiva fisionomia é a do mundo contemporâneo, por apresentar em si imensos paradoxos.

Esse homem escarmento, concentrado em si, busca o vazio para se encontrar vê a

transformação de seu ser dentro de uma inquietação. Ao se deparar com a imagem de algo não

convertido em palavras, a inação o desarticula e, frente ao abismo da total falta de sentido

vislumbra a liberdade; podemos dizer que encontra a verdade ao regressar para si, para o

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agora. O silêncio envolvente sinaliza não haver nenhuma preocupação com o porvir como

Foucault apregoa; nisso se prende a uma realidade questionável a fim de detectar seu papel no

mundo, conforme estabelece Baudrillard. Diante do inextinguível assolapador e por

avaliarmos que não há permanência a rigor, sequer evidência por demais segura a fim de

podermos nos tranqüilizar sobre aquele homem, nossa leitura do texto de José Saramago se

volta neste momento para o que Jacques Derrida (1930-2004) faz ler e ver projetar-se como

acesso. A considerar a vigilância crítica adotada, tal perspectiva se faz necessária respeitada a

importância de apurar o olhar menos experimentado ao que A escritura e a diferença (2005)

favorece enquanto gesto inquiridor.

Obra seminal do pensamento filosófico de Derrida, ali estão a acuidade na aventura do

olhar bem como a conversão na maneira de questionar todo o objeto, no caso específico, o

literário. Percebemos como uma de suas maiores preocupações a reflexão voltada para a

liberdade de se apontar um sentido. A saída do mundo das explicações arredondadas em

direção ao lugar, não exatamente um não-lugar nem outro mundo, pretende encarar a vacância

como perfeitamente possível de se determinar, muitas vezes ao perder-se. Referindo-se à

escritura, Derrida mostra a relevância do aspecto inaugural que a conversão e a aventura do

sentido integram. Ao se apoiar no poder revelador da linguagem literária, ele localiza no

processo de escrever a oportunidade de se livrar da finitude, da vontade de se atingir o ser fora

do sendo. Seu gesto filosófico diz mais acerca da liberdade de alternativa, da não redução ao

sistema de oposição metafísica na qual se firma nossa forma de elaborar a vida. Aqui se

salienta a não preocupação com um sentido, ao equilíbrio das explicações; escondido sob o

ato de procurá-lo, o significado se abre ao devir, na sua perda há a vantagem. O nada dizer

ascende à maneira de força propulsora ao movimento, ao desejo de expressão que a literatura

é fundamentalmente, como pensa Jacques Derrida.

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Quanto à diferença, o filósofo a aproxima de Dionísio para quem a força do impulso é

arma para se arrancar do estabelecido. Tanto a diferença encontrada nos textos literários

quanto àquela pesquisada pela escritura, reverbera no “momento desse Vale originário do

outro no ser. Momento da profundidade também como decadência. Instância e insistência do

grave.” (DERRIDA, 2005, p. 52). Posicionamento favorável a entendermos como o

incontornável, do originário a produzir o descabido, o inconcepto.

De acordo com a filosofia empreendida por Derrida, vemos na concepção de

desconstruir a noção binária, o movimento aduzido de incluir o que a lógica e a clareza

procuravam excluir. O princípio segundo o qual o francês se norteia é o de questionar o modo

de usarmos o conhecimento, a maneira de expressar sem pilares interventivos é a grande

questão. Portanto, na indecisão entre as diferenças há tanto conhecimento quanto a verdade

absoluta cuja imposição a metafísica pretendia. Sem resvalar na aparente gratuidade do

questionar, compreendemos no discurso deste estudioso, a importância maior de se saber

como um texto produz significado ao invés de focar num sentido específico. Na complexidade

de configuração do sujeito, a errância concorda com a ausência do categórico sem daí retirar o

específico de uma topologia. Nesse contexto falamos da experiência da não identidade,

também o lugar de passagem.

Aproveitamos do texto em estudo: o homem escarmento surge a título de aliado do

ainda por vir, é o caso da escritura, da autonomia poética servindo de baliza para o

enredamento das interpretações. Ora, se o “livro do homem é um livro de questão”

(DERRIDA, 2005, p. 57), o homem se faz, se deixa entrever por meio da provável ruptura.

Enquanto origem e repetição são a tônica da possibilidade da pergunta, a duplicidade inerente

ao homem o torna viável em se tratando de separá-lo do convencional. Faz sentido não a

junção das palavras agregadoras, mas, o sentido insólito capaz de ser atingido com a perda, a

promessa, enfim com a falta indispensável de se valorar. Diante da ausência, o homem se

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incumbe da distância não mais como uma miragem ou a errância a serem vencidas, elas

compõem o Nada com o qual pode Ser conquanto se cale, se esconda para o encontro

acontecer, ou não. No não-lugar, na não-solução a palavra dá a medida do percurso:

“inventando, sozinha, um caminho inencontrável e não-assinalado, cuja linha reta e cuja saída

nenhuma resolução cartesiana pode assegurar-nos.” (DERRIDA, 2005, p. 60). É a ocasião

para destacarmos o fato nada gratuito do professor e o ator viverem a história do homem

duplicado. Eles são insignes no uso da palavra, não apenas como recurso profissional, porém,

no sentido apropriado para si mesmos a se alcançar. O retirar-se enfatizado pelo filósofo,

sinônimo de encetar a escritura – como não deixar de associar à vida? – parte da vontade de

abandonar a palavra carcomida pelo uso, pelo apreciar convencido em busca de tudo que não

se fez e do nada deixado solto ao longo da existência.

A ausência adquire tamanho vulto por ser ela a ligação da descontinuidade, então

artifício, agora fundamental aos silêncios subentendidos a formar o lapso produtor de

significados. O pasmo anterior relativo à falta de lógica cede espaço à iniciativa de ruptura

com a totalidade, ainda mais correlato ao homem e sua linguagem. Na liberdade de sentir, a

vacância igualmente o acompanha pelo indiciar de caminhos prescritos, deixados de lado em

função do que está fora de alcance; na direção de um céu fugidio, mas sempre possível de

atingi-lo. Surge disto a inquietação inevitável, recurso antecessor do movimento graças à

iniciativa de ir mais longe porque não há ponto final demarcado. Na oscilação, a singularidade

diferente se associa à possibilidade de se questionar o “quem” – concepção do sujeito – se for

visto como o ser submetido a transformações de sua época.

Onde e quando a escritura (vida/homem) começa é a prioridade da pesquisa filosófica

denominada desconstrução com a qual Jacques Derrida trabalha e nos orienta para ampliar

nossa compreensão do homem na mais recente literatura de José Saramago. O que escapa à

classificação e a suposta obrigatoriedade de se configurar a origem de qualquer dado;

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complexidade de sistemas, os níveis de assunção referente à nossa pesquisa, encaminham à

mudança provocada pela diferença. Outro nome do adiamento ao que possa ainda haver de

fixidez relacionada, caso o objetivo seja o estudo do homem. A escritura considerada o

parâmetro caracteriza-se por ser dual. Co-implica e continua o diferente, o fugidio às

oposições binárias a fim de propor leitura do homem mais condizente – o que por ora

acreditamos mais apropriado chamar de escarmento – sem a pureza do logicismo nem a

fantasia de ser integralmente autoconsciente. Instância coaduna melhor com o movimento

cuja pretensão é saber da existência de um sujeito capaz de fazer perguntas sobre si. Num

segundo momento, prevalece o sujeito em relação consigo antes de se tornar um sujeito

perante a lei.

Da fluidez de seus textos, chegamos à diferença de linguagem harmoniosa aos

aspectos mais apropriados para tratar da figura humana assente na Literatura. Semelhante a

Derrida que duvidava do fato de podermos algum dia nos livrar da constante presença

humanística nos modos de pensar criticamente, também produzia no intuito de extrapolar o

sentido fixo ao mundo em geral e ao homem em particular. Provocando surpresa no leitor

comum ao aguardar o jogo da verdade, a desconstrução ataca as sensibilidades e expectativas

por localizar a diferença, repetida onde não é esperada nem desejada. O encontro

correlacionado à separação equivale a acolher o outro bem como a diferença no que poderia

ser chamado de origem do sentido. O sujeito não mais se reconhecendo pelo nome (muito

próximo do que encontramos em O homem duplicado), privado de sua identidade, se faz

singular na medida em que se divide para responder ao outro já no ponto axial de

identificação consigo.

A consciência de trazer em si o nada antes de ser algo desanimador é um vestígio para

o homem saber quem é, contando com a especulação superior ao sofrimento e vigília propícia

ao inacabamento. Inclusive, ao ser o portador do dilaceramento consigna o idêntico na medida

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em que se descobre no liminar. A única ameaça capaz de atingi-lo são os efeitos do nada, do

não-ser, o não-sentido congelarem o interminável da pergunta. Por conseguinte, temos em

Derrida: “o ser que se anuncia no ilegível está para além destas categorias, para além do seu

próprio nome ao escrever-se” (2005, p. 71). O ato de escrever se impõe não como

obrigatoriedade de clareza ou objetividade, é, entretanto, encontrar o legível na nervura, na

enervação das astúcias da vida. Com efeito, ser incapaz é tanto válido quanto admitirmos a

pergunta ser sublinhada por traços intermitentes: o que é o homem? Quando a vida do

pensamento escalona a harmonia? Há coagulação? É bom frisar, por este ângulo

interpretativo, o sujeito compõe-se com o não sujeito.

No momento da errância, do arriscar, enfim da retirada como ensina Derrida, o homem

segue o rasto substituto de qualquer possibilidade original com a qual possa se identificar. No

tocante a sua vida aprende sobre – o livro – se repete e a identidade acolhe em si a diferença

sem a qual deixa de ser si mesmo. Sem a diferença, fica restrito ao fechamento, o outro nome

circular de decisões tomadas, certezas anunciadas que juntas impedem a existência de se

desdobrar. Deste ponto é possível anunciar o gesto humano inquiridor por meio da

ultrapassagem do significado para além de um lugar ou de uma função. A repetição é a

alteridade igualmente desconhecida, o idêntico a se incorporar enquanto não há

“esclarecimento”, não há pressupostos anunciadores do que seja a distância e/ou a

proximidade. Nesta reflexão, a não-identidade é tão válida quanto o esforço por desvendá-la,

seja a do outro ou a de si na confluência do jogo e da diferença. Em proveito das inquietudes

aqui expostas, ao remetermos à duplicação o fazemos por avaliarmo-na ligada a “um discurso

sobre o sujeito que, liberto das turbulências de categorias que ainda o cercam, se [institui]

como sujeito responsável pelo outro.” (BORBA, 2006, p. 09). Não à toa, a troca de identidade

é ponto de ebulição na narrativa de Saramago.

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Porque toda a filosofia de Derrida prima por deslocar a questão, perde sentido

igualmente o anúncio de um centro para onde devam convergir as unidades receptoras, quais

sejam, as perguntas concernentes a quem o homem seja. É nossa conclusão parcial sobre o

seguinte trecho de A escritura e a diferença: “O centro era o nome de um buraco; e o nome

do homem, como o de Deus, diz a força daquilo que se erigiu para nele fazer obra em forma

de livro.” (DERRIDA, 2005, p. 78). Neste particular é forçoso fazermos uma pausa e lembrar

a importância do nome próprio em O homem duplicado. Tertuliano Máximo Afonso e

António Claro são as duas faces do homem na ânsia de se erguer enquanto a história de uma

existência. Nela, consta a serenidade paradoxal, desesperada por causa da repetição paralela à

consciência de habitar o abismo ao colaborar com o “buraco”. O nome se encolhe junto ao

proprietário, despido da grandiosidade, o neon de fachada, pode ser um caminho contendo em

si muitos outros para fora. Nisto atinamos que os personagens são responsáveis pelas próprias

saídas, abrindo as portas sobre si – aquelas portas hermeticamente fechadas em destaque pelo

narrador – fecham-se no instante de pensar as próprias viabilidades.

A morte no início da repetição mostra o duplo não se acrescentando somente ao

simples. A morte é o divisor. A origem também palmilha a repetição se a diferença é o foco

maior a visualizar. O texto teórico nosso auxiliar, lê o diferente de si enquanto jogo cuja

junção significa quebra. Se a escritura não segue a linha traçada no compasso dos presentes

significados, a outra redação requer a retomada talvez evitada, mas, sem a qual não se

estabelece o além do visto e ouvido. Outrossim, a sombra da qual não se passa ao largo, o

terceiro excluído por não se adequar, a diferença depositada no agora, a distância entre

homem e homem sem a qual não há reflexibilidade. Respeitados estes pressupostos, podemos

ler com Derrida a iminência das questões concernentes ao homem. Estar à beira, o apanhar

dos resquícios e o embaraçar no labirinto humano dão testemunho do quanto o percurso

interpretativo deve considerar.

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Dentro do universo de indagações em que se situa o homem, análogo ao pensamento

de Jacques Derrida, a escuta atenta é assumida enquanto risco e atitude positiva. A seqüência

interpretativa embora não sendo fácil, garante a continuidade da explicação tendo por meta o

dissipamento da escolha. O inusual disto, sem ser estratagema de superficialidade é ao invés,

a experiência promovida pelo inacabamento. Segurança para nossa pergunta sobre os meios

ou modos da Filosofia ombrear com a Literatura, sabendo que esta ao abrigar as questões,

atinge maior alcance no plano do imaginário. Voltando ao esgarçamento provocado pelas

questões teóricas, A escritura e a diferença tem a nos ensinar quanto a noção de abertura, a

solicitude para com o ato de compreender. Seja este o da escritura ou o da diferença, a

vivência de quem pratica ambas as atividades é o foco segundo o qual podemos reviver

intenções bem como despertar para um sentido inusitado. Com esta colocação queremos

ressaltar o despropósito referente ao convencionalismo do provável valor atribuído ao dado

humano.

Entender o homem – insistimos – pulveriza os discursos acerca do fechamento e

enceta noções de subjetividade aglutinadoras do não-sentido. Da interioridade desvalida posta

no mundo ou algo desse jaez, rumo à consciência do sujeito disposto a se auto-desvendar,

chegamos ao ápice do homem redigir a própria presença na irrupção do diferente. No

intervalo, indisposto à redução para depois explicar, multiplica-se os traços de onde extrair

definição, à parte os conceitos de matéria e forma bastante inadequados para o caso.

Conseqüentemente, creditar sentidos onde a origem acena ao nada com relação à totalidade do

significado ou vice-versa, nos obriga a refutar a crítica de que nossos argumentos resvalem no

processo de tergiversar. Evasivas descartadas, o espaço cujo aspecto de abandono por causa

do incompreensível adquire a substância formadora da terceira via: o homem e seus labirintos.

Como explica Derrida: “O logos nada é fora da história e do ser, uma vez que é discurso,

discursividade infinita e não infinidade atual; e uma vez que é sentido. (2005, p. 103)”.

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O senso futuro é desdobrado em tantas ocasiões de interrogação que a possibilidade da

pergunta já é a abertura, o vão por onde se escancara esse eu convocado a interrogar sobre

tudo de si, inclusive sobre a possibilidade do não-sentido. Cerceado pelas questões padrão da

origem a destacar e mesmo em relação à exeqüibilidade do ato de indagar, o fato é já ter

ocorrido transformação. Por isso é válido dizer, começou o pensamento. Ainda dentro do

encontrável na Filosofia, a tarefa de questionar e contestar os pressupostos cotejados como

verdades adstritas, funciona à parte a representação. Com artifício e a ausência responsáveis

pelo significado, ensaia através da fala e/ou silêncio do homem que se pensa.

O já, tempo principal à confecção da escritura tem por destaque a diferença à vista,

onde caiba o que difere de si: do homem absorto em se ver desfamiliarizado. Entendemos

nesse movimento dual, a fórmula sempre por se estabelecer tendo por critérios avaliativos o

residual, retém embora, impulsiona a continuidade humana em se entender. Em Derrida

vimos, a desconstrução tem por objetivo deslocar ausência e presença; essencial e

contingente; primário e auxiliar acrescentamos ainda a destruição de origem ou cópia

conforme temos debatido ao longo de nossa tese. Entrepostos, estes binarismos servem à

visão insuficiente para o problema posto. O erro, a impossibilidade de pensar também sobe à

superfície da procura, da rasura empreendida junto do nada, no cume perturbador de sofrer

pela verdade escorregadia. Inaudita, ela evade-se à alternativa dos dois discursos aludidos;

para além da unicidade, a diferença que se avista se torna falta. O homem ao entoar o discurso

se abre à sua verdade, sequer é o exemplo a ser seguido nem o ser imune à contradição. Ao

proteger a existência subjetiva, ele vai ao encalço daquilo gerado com o protesto: a destruição

do conceito.

Para o autor d’A escritura e a diferença, ao exercer a humanidade o homem se

aproxima da perda em relação a exigir de si o melhor. Se isto for identificado à perda

originária da existência, então o fator preponderante a considerar se liga a erosão de não se ter

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nada para falar. Nada que se feche sobre si ou, pelo contrário, aliena-se no mundo das

ocupações. A suspensão longe de ser um subterfúgio é a garantia ao homem de se ouvir,

conseqüentemente, poder interferir na sensibilidade rateadora. No pensamento sobretudo,

acampa-se a linguagem com que pode ser identificado na busca de um lugar sempre por se

encontrar; se isto beira à impossibilidade não é a questão instaurada. O fato a se considerar é o

do pensamento separado, do homem em estado de reflexão conduzido pela angústia de não se

saber, da impropriedade de si, do tumulto interior experimentado.

Observemos o aproveitamento de um discurso de Antonin Artaud no qual Derrida

retira muitas de suas ponderações: “Sou um homem que perdeu a vida e que procura por todos

os meios fazer-lhe retomar o seu lugar.” (DERRIDA, 2005, p. 123), depois acresce, tem um

corpo, não o reconhece não sendo-o. Isto faz de Artaud – na concepção do filósofo – o doador

de questões com as quais pode elaborar o princípio da escritura, reticente às regras e da

diferença entalhada na imperfeição. O corpo e o ser dentro deste corpo adquire com o

exacerbar do sensível a efemeridade da existência. Tão absurdo quanto o significado para o

outro; o lado ignorado da consciência perdida soma-se ao despojo – como o homem é visto –

sem ser exemplo de nada é o escarmento. A face escondida do duplo ganha contornos nítidos

ao retirar o eu de si mesmo, afastando-o, rompe a proximidade prometida provocando a

separação do peculiar ao homem. Justamente nesta fase podemos enxergar seu

assenhoreamento daquilo que ainda não é. A característica, a diferença disposta por Derrida

em relação ao privilégio da escritura, combativa e combatente localiza-se na transformação de

seu estimulador.

A vida perdida tenta retomar seu lugar, no entanto, não tem distinção de qual seja esse,

há convicção apenas em ser guiada pela recusa. Estampada por um modo de ser, olhar de

perplexidade, o onde encontrar passa ao primeiro plano da verificação. A subjetividade se

nota com a postura de encaminhar protesto embora pareça alheamento, faz o trajeto

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subseqüente o qual as palavras-definições não abarcam. Repete-se o formato do devir,

todavia, as diferenças multíplices entre mim e eu mesmo são sem equiparação; no vácuo, a

retidão é esquecida pelas ondas que cravam a escritura no corpo buscando a diferença furtiva

onde a vida se faz marginalizada, cansada dos discursos consagrados. Inferior ao destempero

esperado, o poder transitório de se colocar no limite faz do homem o amplificador das

questões, de outra forma estas o subsumiriam.

A diferença tantas vezes ansiada toma o encargo de depositária dos discursos

destruidores, da aliança com o inesperado, enfim, do conjunto vida e morte. No pensar crítico

de Jacques Derrida, o alto valor do vazio, do lugar vazio sobretudo, advém de uma maneira

diferenciada de olhar a humanidade. A vida em desenvolvimento não é necessariamente nem

deve ser conhecida de antemão. O ir além significa desde sempre se firmar pela negação de

onde se extrai a vitalidade a fim de continuar a escavação do universo humano, abalado com a

não-representatividade. Ainda outra vez, assegurar o movimento atípico é afrontamento ao

novo sentido por inaugurar. Se a existência não persistir é mais uma ocasião para o

distanciamento ocorrer; à distância, o que se repete. O inaugural tem a força do verdadeiro,

este sim pode e deve ser repetido conquanto estremeça o ser do homem. Este, abalado em

suas convicções apresenta mais de si conforme se convença como aquele ser da dificuldade,

também do duplo: matéria e idéia pretensamente espessas.

Trabalhar com a não-origem é um esforço ininterrupto da escrita de Derrida. Nela o

fechamento compactuado com a continuidade revela as múltiplas faces da vida como um

traço; por esta percepção abriga-se o recorrente assim como o diferente. Por períodos, por

curtos espaços-tempo, encontramos o entalhamento da figura humana junto da receptividade

do mutável. A escritura/vida, no espaçamento adequado avança na medida em que surpreende

pelo tom de dúvida sobre as condições de sua magnitude. Descritos os esforços, a prova

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verificável do autor equivale à diretriz da denominada “profundidade sem fundo”, “reenvio

infinito” das probabilidades de se estudar a subjetividade cambiante.

Dentro dos pressupostos de A escritura e a diferença podemos encetar sobre a

complexidade de qualquer discurso correlato ao homem – especificamente do tempo presente

– tem a responsabilidade de tomar a representação de si mesmo como parâmetro maior a

seguir. O matiz dessa empresa se liga por via direta às metáforas relativas ao caminho; do

pontilhado deixado pelo traço; da exploração e da marcha que atravessa os sentidos sem

deixar rastro. O acontecimento de existir é assim visualizado porque se nutre da sustentação

cujo centro se perdeu, o outro nome para o impensável. Não o proibido. Pois, o fundamento

auto-estipulado pela ruptura encara a estruturalidade da estrutura como a ser pensado e não

aceite sem contestação. Vista assim, é repetida sob todas as formas em que haja tal disrupção.

Perdido o centro para o não-lugar, resta nesta ausência a referência ao discurso.

Quanto a isto, o sistema de diferenças corrobora para haver a produção desse sentido ao qual

em última instância se persegue. Tenha este o nome de destruição da metafísica ou da

história, o fato é o homem se sobressair com a diferença da identidade de si resvalada por

outro pensar. E, é exatamente isto o fator positivo, conforme acompanhamos a leitura do texto

de Derrida. Fora da oposição como fio condutor, o homem tem a oferecer enquanto proposta

de interpretação o aspecto de se colocar sem referência de centro, ser sujeito, sem nenhuma

espécie de hegemonia com a qual pudesse se impor a modo de explicação derradeira.

Seguindo este raciocínio, o homem/texto provoca a escritura, manifesta intenções e estas tem

a vantagem de mostrar o eu à vista, não como miragem, mas gesto concreto. Na solicitude, os

problemas cruciais à vida vão além do capturável pela consciência. O mantenedor dos

segredos da existência se vale de um conhecimento que ele mesmo ainda não reteve; daí a

importância de se reafirmar na diferença.

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A desconstrução de Derrida faz o elogio sobre a real possibilidade do homem em

interrogar todo e qualquer pressuposto a título de base acerca de si. Além disso, a verdade

entendida como construção, tem seus limites traçados de acordo com o que se pode ser e

conhecer. A experiência em si, separada, também não baliza o status do ser de questões. O

movimento de suplementariedade é, na tese defendida por esta filosofia, o passo a mais para

acaso e descontinuidade entrarem no processo de entendimento descartada com a lógica

ocidental. O homem dentre as várias manifestações por horizonte, o deslocamento do

problema converge num ponto de articulação a ser desvendado entre a escritura e a diferença.

Diante do inevitável confronto entre o eu e a indecidibilidade, o significado como é produzido

entra na cadeia de ambigüidade da diferença a fim de auxiliar o homem na abordagem

começada.

Nesse jogo onde não há obrigatoriedade de escolha, a resultante chamada de

inominável se anuncia pela repetição; bem vinda quando o contato não se restringe, ao

contrário, determina o não-centro com base no qual é possível interpretação mais convincente.

Na tensão devido à ausência referencial, o duplo tem por trás de si a evidência de não poder

mais voltar a entender como antes. Sem ser catastrófico, o dilema o empurra a angariar a nova

pergunta entre a ansiedade provocada com a diferença; nisto, se alija um caráter embora não

se acomode em outro. Avaliar, distinguir, jogar o jogo no qual a identidade é o prêmio, diz

muito do perfil a se traçar por vontade própria: o homem presente na Literatura.

Ao optarmos pelo homem escarmento e discuti-lo sob diferentes pontos de vista,

vemos na interpretação a respeito do sujeito, o necessário olhar para o cuidado que ele dedica

a si. No conhecimento gerado, a prática cujo movimento o leva a se emancipar envolve

escutar e falar mais apropriado de acordo com cada circunstância limítrofe. Este homem

habitante de um mundo sem equivalência toma consciência do Nada circundante infiltrado;

colocado na descontinuidade, seu caráter é modificado uma vez que personifica a recusa de

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solução final relevante para si. Ponderando, a vida dupla resultante chega sem alarde à

atmosfera paradoxal, possível graças ao pensamento em ação. No vácuo, a indecidibilidade

marca um valor positivo sendo ruptura, um atrativo para o sentido insólito se instalar. Ao se

configurar como falta, comporta a diferença repetida a ponto de deslocar questões

estratificadas, se coloca ao encalço do informe; instalando dessa forma outro pensar.

Como isto toma forma literária em José Saramago uma vez compreendida sua

narrativa de caráter filosófico? Em quais momentos os personagens experimentam esse

cuidado mais acurado? Quem deles podemos pinçar como nada? Que pensamento destrutivo

produz o vazio perceptível, enquanto o incomum se reveste da ausência sempre à procura?

Com essas questões já encaminhadas no estudo do livro norteador desde o início da tese,

chegamos ao romance As intermitências da morte (2005) no qual o escritor trabalha movido

dessas indagações. Do que se trata então? Como é típico do texto desse manuseador das

palavras, o enredo se nutre de um acontecimento nunca dantes visto. Em determinada cidade,

num dia trinta e um de dezembro qualquer ninguém morreu.

O que poderia ser mais um fato sem importância, aos poucos a história se espalha e as

pessoas da cidade começam a lançar hipóteses sobre o acontecido. A palavra de preocupação

chega até os políticos, o governo supostamente preparado para quaisquer eventualidades no

campo político, econômico, social e moral passível de abalar a população, começa a se

inquietar. Na audiência entre o cardeal e o primeiro-ministro, temos a dimensão dos fatos

provocados pela retirada da morte do convívio geral. A igreja se ressente de seu papel junto

ao povo e o governo prefere escamotear o “problema” segundo o qual nas fronteiras do país a

morte foi adiada. O ângulo da narração se volta ao que pensa os anônimos e de um primeiro

momento de apreensão, a retirada da morte passa a ser vista como um fator de beleza para a

vida nova inaugurada com aquele ano. O belo no entanto, traz consigo o lado prático da

situação e entrementes, setores profissionais começam a demonstrar descontentamento. Os

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primeiros a se manifestarem é óbvio, foram os do serviço funerário. Em seguida foram

acompanhados no mesmo ritmo de protesto por diretores e administradores de hospitais que

sem terem lugar para abrigar tanta gente estão à beira do caos. Outro setor também sofre os

efeitos do súbito desaparecimento da morte: os lares da terceira e quarta idade. De todo o

colapso instalado, a morte chega ao ponto de ser desejada e não acessível; as pessoas não

suportavam saber que não poderiam mais morrer mesmo se o quisessem.

Diálogos são travados, conjecturas são feitas sobre a paralisação da morte até o enredo

focar uma família decidida a encerrar o sofrimento de seu patriarca junto de uma criança sem

perspectiva de vida, a experimentar o corte da respiração. A solução foi a saída da cidade, lá

fora onde transcorria tudo dentro da normalidade. Assim foi feito e aqueles camponeses

pobres inauguram um novo olhar sobre a tragédia instaurada. A burocracia se acomoda em

novas formas de sobreviver até a chegada ao governo de uma fita cassete contendo ameaças a

respeito dos lucros sobre as novas atividades advindas com o fim da morte. O morrer e o não

morrer, a diferença entre eles é passada entre um desatino, uma indiferença pelos personagens

sem nome. Ponto decisivo no romance é a chegada de uma carta ao diretor geral da televisão

que a leva ao conhecimento do primeiro-ministro, ambos sem saber ao certo qual atitude

tomar diante do impasse. A morte ao anunciar seu retorno provoca nova comoção entre as

pessoas crentes em poder viver eternamente. Sessenta e duas mil e quinhentas e oitenta

pessoas fecharam os olhos ao mesmo tempo.

A morte prossegue enviando suas cartas até chegar a um homem cujo prazo para

expirar está vencido; ele vive quando na verdade a morte esqueceu-se de levá-lo e a questão

maior era executar o mais depressa possível sua tarefa sob pena de perder a reputação. A

morte é comparada a uma mulher de trinta e seis anos e formosa mantenedora do

compromisso com a humanidade. O homem é um violoncelista, estava marcado para morrer

aos quarenta e nove anos, havia então completado os cinqüenta e nada da morte chegar com

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sua carta violeta. Ela então é quem sofre por não encontrar a estratégia certa para não cair em

descrédito. Nesta fase teve que “rebaixar a sua capacidade perceptiva à altura dos seres

humanos” (SARAMAGO, 2005, p. 148) concentra-se naquele homem taciturno, sozinho, um

homem qualquer. Assim, ela não entende porque o violoncelista ainda não havia expirado,

não havia nenhum atrativo nem designativo capaz de explicar como ainda estava vivo; a não

ser o acaso que fez desse homem um sobrevivente de si mesmo. Era a ocasião, a imagem

inusitada enformada com o desespero da morte por não se fazer valer. De que forma o homem

desqualificado para viver representa uma afronta contra as leis naturais? A morte que o olha

enquanto dorme não sabe como irá matá-lo.

O livro da morte também chamado de livro do nada é aberto na intenção de encontrar

a solução para o dilema. Nele não havia nenhum registro possível de explicar porque o

músico vivia a mais de uma semana além do prazo estipulado. As intermitências da morte são

seguidas a começar com a tenaz procura em encontrar explicação de como aquele espécime

do rebanho humano foge da regra do movimento, até a agitação conduzir a todos

inevitavelmente ao mesmo destino. Ainda não sabe o quê fazer. Segue observando o músico

de perto, sua rotina, os hábitos do ofício, o convívio com o cão; Por muito pensar e às vezes

pedir opinião à gadanha, sua companheira na arte de matar as pessoas, a morte decide se

transformar numa mulher a fim de ter êxito em levar o violoncelista. Travestida numa

rapariga de óculos escuros, a morte tem por intuito a princípio seduzir o homem. Com a carta

nas mãos foi ao teatro ouví-lo; depois procurou um hotel próximo e no outro dia volta a

comparecer ao teatro, quando se dá finalmente o encontro com o músico, atraído por aquela

mulher misteriosa, porém com certo receio. Ao que ela o tranqüilizou dizendo-se agradecida e

emocionada pelo prazer do espetáculo. Do encontro nasce uma inquietação a ser acalmada

para o próximo sábado, dia do reencontro. Na mesma noite o telefone toca e a mulher

misteriosa conta sobre uma carta a ser entregue e o homem se surpreende ainda mais. Depois

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disso, a morte se olha no espelho e não sabe quem é. O sábado chega, mas ela não aparece

para desgosto do músico, entretanto, no domingo, no parque onde sempre levara o cão a

passear, no banco de costume havia uma mulher sentada, a do camarote. Ela começa a falar da

carta e ele da paixão que descobre sentir; não há acordo e eles se separam. Às onze horas a

campainha toca na casa do músico, entra a morte ainda de mulher com a carta prometida, ele

quer logo abrir enquanto ela prorroga, deseja ouví-lo ao piano. Em seguida eles se amaram e

por volta da uma da manhã quando o homem adormeceu, a morte se levantou, tirou da bolsa a

carta de cor violeta, foi até a cozinha e queimou-a. Voltou ao quarto abraçou o músico e ainda

sem compreender o que estava a lhe acontecer, sentia um sono suave, depois, no dia seguinte

ninguém morreu.

A interrupção da morte nesse livro, sua personificação e o envolvimento com aquele

homem que por descuido não morreu, destaca um cuidado comparável ao conhecimento. Os

apuros transcorridos à morte por ser a outra vertente da vida, têm relação direta com o homem

sensível à música e perdido acerca do que fazer de si. A morte começando a se pensar, tem o

resumo da existência humana num livro intitulado nada, ao se envolver com o homem já não

sabe mais quem é. Vemos aqui um amálgama não apenas quanto à perturbação causada e

sentida, mas, o país, os homens, o homem em si dividido entre “a vaidade de saber-se único

em todo o planeta e o desassossego de não ser como toda a gente,” (SARAMAGO, 2005, p.

82) por conta da cessação da morte. O que nos remete aos dilemas vividos por aquele homem

duplicado. O vazio captado na vida do homem, representante de toda a humanidade em seu

confronto com a morte, também significa um encontro esperado embora aconteça da forma

mais inusitada possível. Temos no enredo essa procura por um erro incorporado. O

pensamento destruidor de amarras está na proporção daquilo que Ronaldo Lima Lins (2006,

p. 141) suscita entender com relação ao distanciamento da morte na Modernidade. Lá assume

o segundo plano, cá, no romance, protagoniza a angústia do erro.

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O incomum da morte ao retornar à vida a fim de trazer o personagem para seu domínio

acontece em meio aos desejos sentidos, requeridos de uma humanidade que se pensa sem

ângulo privilegiado. Inerente a isto, o expediente usado pelo escritor, qual seja, o de mostrar

as agruras de uma cidade onde não mais se morre; depois as idiossincrasias experimentadas

pela morte afrontada com a vida do músico e, por fim, a existência inócua daquele homem

comum (alheio às coisas do mundo) tudo isso predispõe a emancipação encontrada nesse

homem ainda escarmento.

Junto do som de seu violoncelo, a escuta necessária e do pouco falar que normalmente

o personagem demonstra, segue a linha do comportamento daquele outro personagem,

duplicado, ao se colocar na audição da provável continuidade. No mundo incomparável onde

os personagens transitam, assim como o duplicado não se sente apto a escolher quem vai ser

após a morte de seu igual, a morte nas intermitências, não se resolve a impor seus desígnios.

Prefere antes se juntar ao homem – à humanidade – no quesito mais característico, o

sentimento. Na cisão experimentada pelos personagens de Saramago, bem como a falta

provocada por atos, modos de se fazer entender, afiançam a indecidibilidade com a qual o ser

humano aparece na narrativa. No intuito de melhorar os homens quanto ao reducionismo

causado por estratégias da lógica? Pode não ser intencional, salientamos contudo, o resgate do

relevo perdido para o fechamento transformado em descrença, virou indiferença ao cair no

individualismo, ainda incapaz de dizer quem o homem é.

A identidade procurada de forma intermitente dimensiona os modos de ser livre que o

homem experimenta. Por isso, necessita de explicação o fato de haver liberdade em não mais

morrer, querer morrer, ter outro pensar diante do halo pesado com o abandono e, mesmo de

trazer o encargo de ser quem ainda não sabe. Se o homem passa a ser objeto de estudo para si,

cabe lembrar os esforços despendidos, as máscaras soltas e o improviso a ser feito quando

quiser ser sozinho. Semelhante aos anônimos discutindo os benefícios e as desvantagens da

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extinção do ato de morrer em As intermitências da morte, a vida dupla impõe o paradoxo ao

homem sem o auxílio de expressões para se definir.

Chegado o momento do lado prático da existência reclamar seu direito, o homem

ocupado consigo demonstra alheamento para o que não convoca a saída de si. É o caso do

início e fim da existência se encontrarem para personagens inacessíveis quanto ao lado

pragmático prescindido. Contraditórios uns, duplicados outros, os seres ficcionais

perambulam em meio ao espanto do que não são, a probabilidade de ser, o inalcançável.

Admitidas as hipóteses, os personagens intrigados com a forma humana, fins contrariados por

um ocaso instaurado, não há mais oportunidade de sair, seja da cidade, seja do corpo adotado.

Transcorre sob afronta para a normalidade, desatrela noções, por exemplo, o sujeito pensava

ensinar de repente se descobre ignorante. Em outro romance, o fim da morte causa intrigas,

ameaças, sobretudo desarmou a própria morte quando esta um dia descobre a falha cometida.

O homem situado no entre a morte e a vida atual sem sentido, não faz caso da diferença.

Tanto faz ter o nome pomposo de Tertuliano Máximo Afonso ou ser inominado como o

personagem violoncelista e mesmo ser a encarnação da morte. O desconforto é um só em se

tratando do conhecimento que nenhum deles tem e, no entanto, dão ao leitor a chance do

acesso. Sequer o impasse é o diminuto nessas narrativas convocadas. Duplicação, ação da

morte, importa o retorno como ocasião de reflexão, afiança a emoção por sentir, o abrir-se dos

pontos de vista.

O momento específico no qual a morte deixou de executar suas ações, marca a vida

daquele homem aos quarenta e nove anos. Podemos fazer uma comparação à experiência

vivida pelo personagem duplicado que aos trinta e oito anos descobre não ter vivido, pelo

menos não da forma imaginada. A duplicação por um lado, a morte presente em O homem

duplicado e As intermitências da morte retomam o caminho da identidade a se decifrar.

Vivos, eles não compartilham as mesmas verdades, sequer podem ser vistos como a

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humanidade satisfeita de si. O homem violoncelista e o professor ressentem-se do nada do

qual são feitos. Quando a morte age no primeiro romance, o homem também não está

preparado para o despertar de si. Ali está sozinho sem a imagem desestabilizadora do seu

igual, daquele semelhante que nunca lhe despertou nenhuma simpatia. Apesar disso, a solidão

não significa resolução para o caso. A morte de António Claro disfarçado de Tertuliano

precipitou o último ao abismo da indecisão. A responsabilidade por saber de si nesse

momento aprofunda, pois, acaba sendo um ponto de passagem. Reside aí o motivo de a

duplicação continuar a provocar a diferença desse homem não mais na projeção como o

condutor dos acontecimentos históricos. O personagem dispensado de lutar com o outro por

uma origem compreende que a representação se ainda for plausível é a da ausência. O caráter

disseminativo de sua imagem se for apontado enquanto a sintonia no final daquela história

requerida como particular, tem em conseqüência a instabilidade do pensar. É justamente esta a

sensação do homem duplicado em sua densa trajetória de vida. Já no segundo romance, a

morte é quem age sobre um homem perdido nas sensações despertadas pela música. É um

paralelo a despeito dos efeitos provocados pela morte no homem. Ela tenta se impor como

imprescindível a uma humanidade cética de valores, cega às emoções; só assim a esperada

num tempo indeterminado pára a fim de pensar sobre conseqüências, interditos dos quais

somente o homem experimentara até então.

A outra face da vida – a morte nesse romance equivale ao papel desempenhado por

Tertuliano naquela outra narrativa – em busca das respostas em relação ao homem

momentaneamente imortal se lança ao conhecimento. Se rebaixar para compreender os seres

humanos na fala irônica do narrador, pressupõe se transformar num deles; com atitudes, os

encantos do mistério sondado, a morte também se faz sozinha, se faz desejável aos olhos de

quem procura entender. Na ambiência humana, a reedição de um começo faz sentido quando

não há sentido específico. Por isso, aliado aos estertores da humanidade, a morte personagem

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ou a morte ciclo natural da vida, produz as reticências como fonte da diferença procurada pelo

homem.

No romance de 2002 o narrador congela, trabalha numa espécie de câmara lenta com o

tempo no qual Tertuliano Máximo Afonso é António Claro para Helena, naquela noite onde

trocam de lugar. Se a vida não escolhida por agrado e sim por vingança se arrasta pelo dia, a

notícia da morte de Maria da Paz com António lhe despertou não somente o sentimento de

fraqueza moral, mas o de ódio. Ao pensar do seguinte modo: “só odeia o outro quem a si

mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve ser aquele que leva a não suportar a

igualdade do outro, e provavelmente será ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez

absoluta.” (SARAMAGO, 2002, p. 297). Não explica, entretanto, põe em relevo a

humanidade nas intermitências. Aqui é possível destacar o apreciar de responsabilidade para

com o outro conforme especificado por Derrida, uma vez que retirada a certeza da autoridade,

o homem encara sem volteios sua imagem descompromissada.

Fechados em casa, ambos os personagens em romances distintos não estão livres de

sobreviverem a si mesmos. A companhia do cão embora seja um paliativo não é a válvula de

escape para a prática de si. Sem o violoncelo nem o livro interminável das Antigas

Civilizações Mesopotâmicas, os personagens interpretados enquanto a figura humana nas

narrativas dão ocasião ao desespero: da morte quando se vê paralisada por um homem

destituído de valor; da vida por não encontrar qual opção mais propícia. Sem transcendência

enquanto suporte explicativo, o homem de acordo com o ser para além da substância não pode

mais se explicar pelos dados da estabilidade.

Se o livro da morte é o livro do nada, o livro companheiro do professor de História não

forneceu a lição que ele precisava aprender. Como viver com o remorso de não ter sido ele

mesmo? Como viver se a vida perdeu o sentido da reposição? O desassossego de não ser

como toda a gente junto da sofreguidão por ser igual demais, encontra-se na quebra a se fazer.

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Outra vez é preciso traçar o nome no papel, novamente estão prestes a acontecer as razões

humanas do homem escarmento na errância de se fazer. O esgar de sofrimento também é

experimentado pela morte com a mesma intensidade do homem sem adjacências no horizonte

vivido. Na cena final em que a morte se deita ao lado do homem adormecido, assim como

quando o duplicado sai armado em busca daquela sua voz idêntica do outro lado da linha,

ambas as ações definem o silêncio acompanhado do movimento convicto, com a diferença

indisfarçável a fixar. Deslocamento e convenção lado a lado. Embora a atitude seja n’As

intermitências da morte tomada pela personagem título do livro, é o homem quem sente seus

efeitos. Se é este quem resolve agir, o passo então leva a querer ser único no mundo mesmo se

isso significa anular qualquer entrave.

Ao tomarmos o personagem violoncelista do livro As intermitências da morte

comparado a Tertuliano de O homem duplicado como parâmetro para discutirmos o homem

escarmento presente na atual Literatura, temos em comum uma observação a ser feita, a

indecisão de como e quando adotar o estilo de vida com o qual possa se identificar. A rotina

desfeita por um acontecimento inabitual modifica os hábitos, desfaz o convívio harmonioso

em decorrência do muito pensar sem chegar ao ponto de convencimento. Se a morte opera

para espanto desses personagens isso indica que a vida até então não tinha o sentido

imaginado. Tal fato os leva a quererem um entendimento como forma de se completar,

mesmo se para tanto tenham de experimentar o vazio da existência, o pontilhado sem destino

específico. Expropriado de si o homem tomado por uma desmedida só pode ser reconhecido

quando coloca em prática o chamado interrogativo. Caso isso possa depor contra seu estatuto

de humanidade, o exemplar de sua história também tem muito de inumano; dá margens a

permanecer por vezes na não subjetivação a fim de que a alteridade de si seja protegida.

Além de observar os passos de quem pode trazer alguma orientação para a busca, os

personagens na perspectiva do escarmento, usam recursos como a carta. Em primeiro lugar,

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Tertuliano receia se dar a conhecer ao optar por enviar uma carta no intuito de saber mais

sobre o original. Quando António Claro assume as características de Tertuliano passa então a

ser o duplicado. Como este, pretende saber de sua origem indo atrás da carta e seu

destinatário. No caso da morte paralisar o envio de suas cartas e depois viver o dilema acerca

de como entregar a carta esquecida ao homem, sem excessos, não é fato banal em histórias

inventadas. Demonstra subterfúgios, modos e maneiras dos quais o escarmento busca se

inspirar a fim de sair da indiferença desconhecida.

A maneira do homem escarmento interpretar o desconhecido num mundo desprovido

de sentido, encontra na inquietação o outro lado do espelho. Sem acordo entre um reflexo e

outro, prorroga-se a compreensão; evita-se até porque este homem sem ser o protótipo, a

explicação ansiada, vai além da correção, da emenda antecipada por um modo de vida sem

reedição. Ao contrário, a descontinuidade da qual dão testemunho – retomemos, o duplicado

ao saber da existência do seu igual não sabe mais quem é, tem, entretanto, a convicção de não

ter o ângulo certo da vida; a morte também olhou no espelho e descobriu não saber quem era

– exemplificam contudo, sem ser solução.

A vida dupla tem a ensinar enquanto aprende a interrupção concernente ao homem.

Paralisar o sentido provocado, vivenciar o vácuo de si ou o paradoxo nos modos de sentir e

ser tem efeitos instantâneos, embora não sejam o resultado de uma troca existencial. Ora é o

homem sem surpresas da ambiência doméstica içado pelo paradoxo de si, ora o nada

instigando a vida a dar o passo além do experimentado. Os apuros do escarmento – duplicado

ou marcado para morrer – implicam a perda da notoriedade para a identidade se firmar. Numa

outra composição da vida, o paradoxo tem muito a ensinar ao professor sem conteúdo; a

maturidade na música instiga a maturidade da morte a querer mais do homem por conhecer.

Perdido em pensamentos ou no som da melodia, a sensibilidade denota mais uma vez o traço

característico da falta que o homem procura suprir.

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Na prioridade de se pensar, o homem escarmento não mais dividido entre o

significante para o mundo e para si enxerga para além da divisão, o deslocar necessário a fim

de se apontar a algum sentido. Nessa fase da existência os dilemas vividos não acontecem

entre comer este ou aquele alimento, sair ou ficar em casa, dizem respeito à interioridade

estrangulada ao se descobrir aplacada por uma necessidade externa. Notamos o vazio na vida

do homem aquilatado à representatividade da humanidade desconfortada. Não fazer diferença

sobrepõe experimentar a indiferença, instiga os sentidos na procura do intocado pelo

entendimento. O gesto desenhado, a palavra esboçada asseguram os personagens a

protagonizar os termos do erro sem a necessidade de se apontar para a correção. Na soltura,

na intersecção, o outro modo de pensar se faz mais presente enquanto motiva destruir

impedimentos ou ascender ao concebível.

O retrospecto humano exalado pela Literatura põe em confronto forças insabidas. Os

personagens ao escutar o de dentro absorvem a conveniência de se emancipar dos desejos

insatisfeitos, dando prosseguimento a humanidade começada no pensar mais apropriado com

o em curso. O homem marcado para morrer e aquele que quer matar sua imagem concorrente,

têm a esperar a existência inócua, o fio condutor entre o comum e o mistério de existir. Tão

escarmento quanto inapto em servir de guia, assente com a liberdade de nada dizer por que

não há a palavra ideal num mundo imperfeito. Reticentes, os personagens de O homem

duplicado e As intermitências da morte percorrem a atmosfera onde não há obrigatoriedade

de ser segundo padrões. O tempo é interrompido; as decisões são adiadas; o corpo passa a

ocupar um lugar antes inimaginável e o incomparável é a outra medida de suas aferições. O

começo, a originalidade são tão discutíveis quanto à ação a ser colocada em prática diante da

separação introjetada.

Personagens em estado de exceção, os homens, o homem escarmento acuado pela

diferença a compor, não se sente preparado assim como não se sente à vontade mediante a

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possível definição. Palavras como ausência, falta, inevitabilidade adquirem estatura diante do

nada, o vazio denunciadores do personagem enquanto configuração humana presente no

universo literário. Cindidos, eles não procuram o elemento de ligação, porém, o detalhe na

divisão; o específico capaz de construí-los, daí o motivo de serem imperfeitos conforme a

acepção de humanidade transmitida em suas histórias. No ritmo de cada um, o relevo fica por

conta do quanto podem sentir na efetivação de um ato ou no efeito de escamotear os

acontecimentos. Então, ser duplicado ou ser o motivo da morte parar a fim de pensar no que

faz, são extensões do sentido porvir; salutar se a humanidade se faz notar em ebulição pelo

gesto indubitável de refletir.

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8. CAPÍTULO 07:

Eu sei que devo me anular assim, sem mágoa, para que outro possa vir e ocupar o meu lugar, aqui já não existo, falto.

João Gilberto Noll

O HOMEM LITERÁRIO E O SENSO COMUM

Componente fundamental para o homem duplicado saber quem é, o Senso Comum de

iniciais maiúsculas está presente principalmente na primeira parte do conhecimento que

Tertuliano Máximo Afonso arrisca. Desafiado por este personagem incomum, o duplicado é

instigado a agir mecanicamente em situações cujo critério é a reflexão e, assim se juntar a

opinião corrente. Em outros momentos não menos decisivos é aconselhado a adiar o

enfrentamento dos dilemas vitais ao seu problema, como não querer uma resposta ao caso da

duplicação. Também é típico do Senso Comum incitar desejos de vingança fazendo disso algo

eminentemente humano; aconselhar cautela para se evitar a tragédia final da história do

homem duplicado. Contudo, o equilíbrio ditado pelo Senso Comum se perde em meio à

diversidade da vida forçando Tertuliano a agir, pois, se descobre um ser humano sabendo-se

errado. Como bem destaca Rita Ferreira (2004, p. 70) na inquirição identitária do romance o

Senso Comum pode ser visto como outra forma de duplo cujo objetivo é travar o processo de

desalojamento do personagem. Partindo deste conhecimento, o erro se transforma no traço de

união (a dúvida) entre ele e António, embora a princípio negado por ambos. Ao questionar

acerca do erro e seu entorno, já conota iniciativa tímida ao rompimento com o Senso Comum.

Com isto, o professor demonstra vontade própria e o simples característico ou mesmo

requisitado na história alheia, se transforma na “indecisão, a incerteza, a irresolução, (...)”

(SARAMAGO, 2002, p. 32) constantes na vida do homem marcado pelo duplo. Ao não

recusar-se a desconhecer a crise, prosseguindo na precariedade, busca o desconhecido apenas

com a intuição de que isso poderia modificar sua vida.

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Da presença do senso comum no livro, aproveitamos a idéia segundo a qual os valores

propugnados pela Modernidade (exemplo, autonomia ampla) fracassaram e o resultado foi o

esvaziamento do “eu”, nosso destaque para os protagonistas da narrativa de Saramago. A

razão típica – exigência do senso comum, as advertências no caminho do protagonista se

desmantelam em momentos desse tipo: “não é saudável para o espírito viver o tempo todo

com o senso comum.” (SARAMAGO, 2002, p. 156).

Para podermos entender como o personagem Senso Comum adquire status de

personagem com força argumentativa inclusive, persuadir o protagonista de O homem

duplicado, passamos agora a fazer incursão ao texto de Gilles Deleuze (1925-1995). No livro

Lógica do sentido (2003) compreendemos o sujeito imerso num mundo de dupla direção,

propenso ao paradoxo, “em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único,

mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.” (p.

03). Pois bem, o romance está neste vão onde o bom senso não tem mais lugar cativo devido

ao imponderável da duplicação, igualmente não cede espaço para as identidades serem fixas

tal a solicitude do Senso Comum. Os atributos dialéticos dos acontecimentos ligados à

história do homem duplicado têm a força ou os efeitos propulsores deste homem (in)comum à

subversão do iniciado pelo Senso Comum. Num processo parecido a Deleuze, cujo

pensamento procura nos Estóicos o denominador a respeito do ilimitado, o qual sobe à

superfície num ritmo de devir-inacabado, inevitavelmente se depara com paradoxos e a

inventividade; Saramago no diálogo dos dois personagens mencionados encaminha a leitura

de O homem duplicado ao infinito do ritmo humano.

Deleuze pesquisa no personagem Alice de Lewis Carroll, a descoberta das coisas por

esta situadas na fronteira, por isso libera seu duplo corporal. Ela perde seu nome, não sabe

mais quem é; ao não saber mais de si adquire o senso do acontecimento e em decorrência

libera o duplo incorporal. Alice é o parâmetro para o pesquisador observar nos

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acontecimentos à volta a busca de seu sentido e, localizá-lo sob a forma de designação,

manifestação ou significação requer um sentido pressuposto para se chegar à nomeação.

Porém, se não estiver expresso é recoberto de esplendor ineficaz, impassível e estéril como

ensina Deleuze. Para ele o acontecimento é o próprio sentido (2003, p. 23). Este, identificado

no atributo dos estados de coisas, chama atenção para a dualidade: designação e expressão. O

designado nem sempre está expresso e vice-versa; necessário é passar para dentro do espelho

para nos certificarmos de quem somos, como o faz Alice.

O alcance se identificado com a fronteira, o corte ou a articulação da diferença entre os

dois não é garantia para atingir o significado das palavras pronunciadas. O certo é a acepção

só adquirir importância se abrir novos sentidos por meio de questões renovadas; assim, a

expressão “duplo sentido” exclui o bom sentido possível na relação das proposições

proliferantes. Resultante da dualidade, o significado não é nunca o próprio sentido, é o

conceito. Para Deleuze o Aion, ou seja, o tempo dos acontecimentos-efeitos, algo prestes a

ocorrer, vai se passar, portanto, não é a atualidade, mas, conto, novidade corrobora ao não-

senso em seguida doe sentido. Então, o inefável, impensável, Vazio mental, o Aion entram

como força motriz a fim de que os paradoxos operem a gênese da contradição, por

conseqüência, opõem-se à doxa compreendida enquanto bom senso e senso comum. O bom

senso com sua idéia conciliatória subjacente desempenha papel importante na determinação

da significação, não na doação de sentido. A potência do paradoxo aqui, como propõe Gilles

Deleuze (2003, p. 79) não consiste em seguir a outra direção, mas em mostrar que o sentido

toma sempre os dois sentidos, as duas direções ao mesmo tempo, portanto, abrindo-se ao

problemático da vida.

Se a pergunta angustiante do homem duplicado envolve a busca de um sentido, (como

Alice externa: em que sentido, em que sentido?) a pergunta não tem resposta, porque não se

pode apontar a uma direção, ao “bom sentido”. O pensamento de Deleuze faz saber, no senso

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(sentido) comum, não se fala de direção, mas, de órgão ou a capacidade de identificar a

diversidade com a forma do Mesmo eleito. No caso, o Eu a perceber, imagina, lembra-se e

pratica todos os atos comuns da vida. Dessa forma, chegamos à complementaridade entre o

bom senso e o senso comum dada a submissão da vida indiferente à diversidade envolvente.

Todavia, quando se atenta à diversidade do refratário à “lógica” da vida, atenta-se às funções

e abismos do não-senso, à heterogeneidade das palavras aparentemente longe do amálgama

daqueles inventores e até os usuários. A dualidade faz parelha com a palavra transformada em

acontecimento, este procura a superfície para se impor como força de significação. Mas, se o

mundo é feito com base na ótica do indivíduo e, se isso se expressa por meio das relações

diferenciais e de singularidades adjacentes, resta saber em qual ponto reunir a indeterminação

ao fato. Pelo estudo de Deleuze vemos que para Husserl a Filosofia sempre buscou romper

com o senso comum formado já nesta teoria da constituição; bem como o indivíduo e a

pessoa, o bom senso e senso comum são produzidos pela gênese passiva, equiparado aos

últimos, são enfraquecidos por dentro com a presença do paradoxo. Por isso o sentido sendo

duplamente gerador, problematiza bastante e soluciona bem pouco ou quase nada. Dito isto,

não é trazer à superfície o principal e sim, fazer mergulhar o pensamento na vida de

profundidade. Entretanto, se “tudo o que acontece e tudo o que se diz acontece e se diz na

superfície” (DELEUZE, 2003, p. 136), prevalece o modo duplo ao qual a superfície faz ver.

À pergunta-mestra a nos orientar desde o início da tese: o que é o homem? Tem em

Deleuze a versão inicial de se poder designar um corpo, um objeto com o qual se pode de

alguma forma tocar. Acompanhando seu raciocínio vimos acerca da linguagem a fraqueza em

se fundamentar baseada mais na designação em detrimento da significação. Logo,

entendemos, a pergunta perdura. Como prosseguir? Pela negação das coisas vistas e sentidas,

os puros acontecimentos ou o exprimível com suas duas metades ímpares, é uma

possibilidade sob a qual o vazio seja o lugar do sentido composto com o seu próprio não-

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senso. Porém, se o decifrável já não se encontra na superfície nem num fundo a ser

desbaratado, o vazio, o não-senso recentes na relação de oposição binária ditarão os rumos do

saber-fazer; ao suspender toda significação, designação e manifestação possíveis de se dizer o

homem.

Com relação à ambigüidade da moral ou moralidade das palavras utilizadas em busca

de um sentido, chegamos ao denominador comum incrustado entre as representações e as

expressões, embora somente os acontecimentos incorporais constituirão o sentido expresso.

Apesar de Lógica do sentido ressaltar, o sentido não é nunca objeto de representação possível,

conforme a idéia clássica desta última. Ainda é preciso resgatar: o homem se torna digno de si

na medida em que executa seu querer e procura capturar o acontecimento; fazendo-se renascer

a cada instante, assim compreendido é semelhante à “morte, duplo e impessoal em seu

duplo.” (DELEUZE, 2003, p. 154). Neste prisma, toda vida passa a ser demolida se é o senso

comum quem a orientou até o sentido não fazer sentido ou não ser o esperado. Tal

pressuposto visto na leitura de O homem duplicado traduz a afinidade singular entre modo e

configuração dos personagens na obra literária a qual se firma numa reorientação ao sentido

da vida procurado. São a priori e aceite como condição de ser – o direcionado pelo Senso

Comum – perde a força de sentido por conta de estarem descartados os atributos corpóreos,

encerradas as possibilidades de junção moral entres os seres da duplicação. De certa forma

esse conselheiro já dispensado dos atributos de dar ou emprestar conselhos, sai de cena

porque o personagem passa a ouvir a si mesmo por conta do espanto cotidiano a partir de sua

nova condição.

O denominado por Deleuze de fissura é alternativa ao jogo de superfície, também

impulsiona a descobrir como sair sem ficar à margem, como fazer sentido. Na hipótese da

fissura não se estabelecer, o presente ganha representatividade por ser o tempo das misturas

ou das incorporações. Aion sendo o tempo dos acontecimentos-efeitos, o sentido por

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insistência faz existir o expresso; na abundância, o acontecimento deve ser realizado embora

não aconteça sem haver ruína. Resultante do presente, a expressão condiz com a convergência

bem como a divergência como ingrediente essencial da teoria do sentido. Aqui cabe uma

ligação com os acontecimentos unificados na duplicação do professor de História, porque ele

e seu duplo perfazem aquela “confusão cruzada de becos sem saída” (SARAMAGO, 2002, p.

204) onde continua como antes, sem saber quem é, origem, destinação.

Acontecimento e sentido interligados por meio da linguagem terão sustentabilidade à

medida que passarem pelo domínio do abismo. O vazio, a falta de sentido proporcionarão ao

homem indisposto com o senso comum ou o bom senso para caminhar com passos mais

seguros rumo ao vir a ser. Não significa entretanto, a provável demolição de toda e qualquer

complexidade a sua volta, é, antes, a aceitação desta como forma de pertencimento do sentido.

Seu entrelaçamento é o encaminhar à lógica partindo-se da fulguração do unívoco como

discute Deleuze. Sem o mundo das essências e aparências para se nortear, o homem recém

saído dos ditames do senso comum e bom senso, tenta por sua vez, fazer a diferença contanto

se abstenha do método divisor. Então, se a distinção não pode se dar no nível das cópias pois

se o fizer será admitir o pressuposto segundo o qual há um original a ser imitado, o simulacro,

visto como imagem sem semelhança entra como via de acesso ao sentido procurado. No

simulacro, o homem perde a identidade, a existência moral para adentrar na existência

estética, por isso fica predisposto ao devir-louco, suporte ao rompimento dos limites. É

quando adquire para si a subversão por princípio, avesso ao arremedo do igual, longe de

querer sair da caverna da incompreensão, nela se aprofunda em busca de conceitos

incompatíveis à similitude com os quais possa ser identificado. Também pressupondo desta,

sua falta de aderência ao impulso de apreensão do ilimitado abrindo-se sobre o Ser; se nem

assim o homem pôde sair da dupla exigência do Mesmo e do Semelhante, também o Mesmo

foge ao princípio da razão suficiente. Com isso, a convergência ou a continuidade se mostram

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de igual maneira improváveis em fornecer a imagem solicitada. Tal é a condição do homem

cujas relações com o Senso Comum foram rompidas em busca da disparidade.

No simulacro, a visão consensualista do senso comum cede espaço ao direito à

discordância, antes de ser a exclusão do excêntrico e do divergente, ele se dá como um

chamativo a estes. A experiência do real proporcionada pelo romance O homem duplicado

como uma problematização do viver introduz a constituição do caos por meio da dissimetria

nos modos de pensar e ser dos homens apesar de juntos não fazerem a mesma história.

Acoplando nossa hipótese interpretativa com o ensinamento de Deleuze, temos que a

diferença na narrativa ocorre além de sua inclusão no enredo. Próximo à definição do

simulacro o qual pensa “a similitude e mesmo a identidade como o produto de uma

disparidade de fundo” (DELEUZE, 2003, p. 266), o mundo do duplicado se reveste da

subversão ao negar original e cópia, modelo e reprodução e se inscrever num momento

específico destituído da obrigatoriedade de se proceder a uma seleção. Sem dúvida há um

desabamento no universo pacato do professor de História a princípio, em seguida do ator de

cinema, isto, no entanto, não prefigura haver fundamento de uma experiência a se assegurar.

Da expressão de Deleuze, a subversão do mundo representativo (2003, p. 269) entendemos tal

mudança ocorrer naquele romance quando há a recusa em seguir um determinado tipo de

comportamento, aparência, enfim a experiência não sentida nem incorporada, como uma

máscara que se tira – na narrativa a fotografia – para encontrar outra logo após.

O divergente pontua o descentramento, também não tem mais uma ordem para seguir

e é isso o auto-relevo na literatura de José Saramago. Para além da potência do simulacro na

modernidade, o romance em estudo sobrepuja a apresentação do caos em condições

adequadas ao simulacro se efetivar. Também possa se levantar como um dado a se pensar,

perceber ou imaginar, não se fecha em nenhum destes domínios muito menos pretende servir

a nenhum tipo de representação. Assim, não é o simples fato das fitas dispostas em caos na

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sala de estar de Tertuliano Máximo Afonso o básico no recurso interpretativo da sua história;

é o próprio caos, a “porta sem chave” (SARAMAGO, 2002, p. 200) onde ele se debate por

uma saída na vida de agora e naquela adquirida ao conhecer seu outro eu. Nesse universo a

única ordem é a do caos. Por esta razão lemos o desfecho do personagem sem escolha

efetivada, num dilema em como ser para o mundo à espera da imagem conhecida e longe de

qualquer suspeita. A propósito do elencado por Deleuze ao buscar em Epicuro e Lucrécio a

tese segundo a qual, na Natureza não há combinação de elementos, não havendo mundo único

ou universo total, compreendemos sobre os personagens à procura de sua feitura em

compartimentos. Sendo de maneira a estilhaçar o todo pela convocação e aceitação do vazio

de suas vidas se transformando no tamanho da falta de tudo já sentido e que se revela não

poder preencher.

O fato do duplicado já colocar desde a descoberta de sua situação imprevista, o

problema, inclusive se converter nele: há unidade entre meu corpo e a imagem do televisor?

Já se constitui em abertura à pluralidade a que o humano se preencha com a inquietude dada à

incompreensão do acontecimento no não-lugar e no não-tempo tipificados com a presença do

homem duplicado. Mais uma vez o Senso Comum sai perdendo porque dissolvido o eu desse

romance, a contrariedade dos gestos observados nos personagens indica o pensar e o sentir

deles acima do visto ou expresso. Não está em jogo a repetição da pessoa Tertuliano Máximo

Afonso, pois o duplo, o reflexo, o simulacro produz a diferença junto à semelhança do que

difere. Conforme vimos em Deleuze “é a diferença que dá a ver e que multiplica os corpos;

mas é a repetição que dá a falar e que autentifica o múltiplo, que dele faz acontecimento

espiritual.” (2003, p. 298). A diferença no romance só foi percebida com base na igualdade

aparente, algo de certa forma estimulante à multiplicação dos corpos. A repetição sendo

refutada, foi a oportunidade do duplicado procurar caminhos a sua própria visibilidade como

ser pensante, motivo dele se lançar à vida do pensamento, contrariamente ao recomendado

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pelo Senso Comum. Por isso, as conseqüências da duplicidade lhe tomam o tempo, a rotina,

fazendo-se múltiplo da vida ou a chance real da morte, algo superior a uma faceta de cinema.

É a incógnita sobre o fazer de si, ser sem autenticidade o mais preocupante ao homem desse

romance.

Apesar de a identidade estar revogada na narrativa, o ser se autoprojetando do caos ao

mesmo tempo fala e é falado. Ocupa o espaço a se ver e o falar pensamentado se abre à

diferença a encontrar com base em todas as outras diferenças a se observar no mundo

circundante. Na condensação do visto e sentido, o movimento do pensamento é o guia para a

intensidade de ser efetivar e, principalmente seja notada como a diferença demarcadora da

singularidade perseguida pelo personagem. Dessa forma, se o eterno retorno pode ser evocado

na história do homem duplicado é o retorno do não-senso dentro de um mundo e de si mesmo,

destituídos ambos de um conhecimento original ou escatológico.

O mundo do duplicado inicialmente sendo exclusivo, preenchido por outro é logo

esvaziado com a morte de seu igual. Algo pretensamente revigorante – dentro do princípio

egocêntrico encontrado nos personagens – pois se encontra novamente sozinho para poder

decidir sobre o específico e quem ser, passa a ser motivo de apreensão porque o homem sem

outrem também significa a falta de sentido inesgotável. O outrem sendo a expressão de um

mundo possível faz-se o expresso ainda não constatado fora do exprimível. Logo, se o

possível perdeu a aura de se passar como o real, é o homem sozinho quem deve colher a

identidade requisitada; a presença do outro agindo como fantasma, marca a obstinação não

daquela imagem a ser esquecida, mas, de outra ainda sem personalidade posta de forma

ininterrupta. Mesmo não havendo o outrem para tornar a percepção possível, esta advém da

necessidade imperiosa de se conhecer apresentada por aquele personagem não mais duplicado

pelas circunstâncias, o é, entretanto pela indecisão fustigante.

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O eu de Tertuliano Máximo Afonso estraçalhado com a morte de António Claro

disfarçado naquele, projeta ainda mais a consciência do protagonista a se fundir em mais do

que uma possibilidade de existir para o mundo. Sem ser o marido de Helena, nem o filho

sonhado por Carolina Máximo, sequer o noivo defunto de Maria da Paz, esse homem sem

nome, sem passado para definí-lo não se faz junto às expectativas criadas sobre sua imagem.

É importante notarmos sobre o outrem dessa história: ao envolver os mundos possíveis de

Tertuliano e António, impede, no entanto, os duplos de se ajustarem. Isto, levando-se em

consideração o momento no qual o ator está assumindo um papel incompatível a sua condição

e o professor, o ator nunca visto. Aqui não podemos apontar para uma direção indicativa de

certo ou errado no comportamento destes personagens os quais trazem em si o duplo por

definição. Se instala no protagonista duplicado a vontade da descoberta – outra vez

contrariando seu interlocutor, o Senso Comum – a primeira necessidade de saber quem era o

outro com a sua imagem e semelhança. Agora persiste o desconhecido a se reestruturar

segundo o olhar desse homem sem pilastra onde se escorar: o terceiro sentido a se alcançar

com a perda do provisório.

O duplicado sem oportunidade de retificação, descobrindo-se Outro para um Outrem

inexistente, realiza o deslocamento no qual se destaca o “mundo do perverso”, um “mundo

sem possível” na expressão de Deleuze (2003, p. 329); é exatamente onde o Senso Comum já

não domina, a localização dessa nova imagem de Tertuliano Máximo Afonso. Morto aos

olhos do mundo, contudo, vivo sem poder se mostrar ou saber quem é. Não se trata mais de

reconhecer como verdadeiro, justo e belo aquilo que todos reconhecem como tal ou ainda

identificar o marido de Helena como o futuro astro de cinema, porque foi ele quem morreu no

acidente na pele do professor de História. Algo mais profundo aconteceu advindo da

duplicação. Algo do qual o bom senso não tem lugar e o senso comum se incomoda:

Tertuliano pensar por iniciativa própria. Convém atentar que tal reação inflete num modo

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específico de pensamento com intensidade inédita no ponto em que o espírito se desorganiza,

por onde se vê o mundo rachado do personagem.

A diferença colocada em termos a ser esquecida pelo Senso Comum, ao contrário,

Tertuliano Máximo Afonso pretende salientar destoa do common sense na avaliação das

relações corretas, no olhar adestrado junto da opinião corrente e exercitado no uso do mundo.

Prevalece no homem do paradoxo já livre de dogmas, limitações e teimosias, o modo peculiar

de viver ainda por se firmar. Em tempo: também não garante a estabilidade conforme as

palavras e o gestual podem resolver, sequer haver consenso entre o desejado – ser e o vazio

ainda mais intenso, sem imagem para se espelhar. Podemos nos certificar de que o

protagonista atua homólogo a um vetor, consistindo em duplicar a própria representação em

face da “potência dos traços de expressão emancipados” (RANCIÈRE, 1999, p. 07) ou pelo

menos na cadência de se emancipar, visto o deslocar ser uma constante em seu trajeto

existencial.

Em Diferença e repetição (2006), Gilles Deleuze aprimora a discussão acerca da

identidade enquanto definidora do mundo da representação, da falência desta em se tratando

do mundo moderno norteado pelos simulacros. Ao pretender pensar a diferença em si mesma,

o autor explora a repetição como aquela que disfarça e se desloca num diferencial. Neste

sentido, o livro encaminha-se a uma terceira via cujo acesso é o da coerência em busca de um

tempo presente marcado pela probabilidade de se deslocar, o aqui-agora modificado, sempre

recriado. Então, se houver a possibilidade de uma repetição, a mais exata é aquela cujo

correlato é o máximo da diferença. O livro se concentra nisso, primando pela relação com o

insubstituível, pois tratamos de conduta como ponto de vista e, portanto, de cunho

eminentemente humano.

O homem do senso comum acostumado a procurar a diferença em meio a repetição, se

surpreende quando é ignorado em meio à potência do atordoamento, da embriaguez dos

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acontecimentos, da crueldade e mesmo da morte como aquela fugitiva à repetição inesperada.

Logo, a representação ao recusar o senso comum procura afirmar a divergência e o

descentramento indo ao encontro do obscuro, das diferenças livres contestadoras da noção de

modelo, cópia subjacentes à idéia de representação. Por este motivo, o sujeito pensante

contrariando o senso comum é quem dá ao conceito seus paralelos de subjetividade, memória,

recognição, consciência de si. Tal é a pretensão do senso comum: igualar. A diferença de

pensamento busca representar como sendo a diferença sob a identidade do conceito e do

sujeito pensante; assim que bom senso e senso comum se aliam procurando subordinar a

diferença à semelhança, vem à tona a intensidade como projeto da diversidade.

O negativo negado como limitação sob a forma de oposição projeta o sujeito pensante

de acordo com os argumentos de Deleuze, em direção à multiplicidade problemática sem a

qual não se pode testemunhar sobre diferença sequer da repetição. A representação neste

âmbito requer da identidade do conceito o lugar onde caibam o ser ainda por se efetivar e as

conquistas vindouras. Portanto, extraída a idéia da repetição como conceito mecânico, o

sujeito pensante determina como fundamento o idêntico, enquanto compreende a diferença do

objeto de pensamento. Dessa forma, o sentido procurado – instaurado o mundo da

representação – o fundamento não mais se alicerça no idêntico e, sim faz a representação ser

infinita. Fundar para Gilles Deleuze é próprio do homem cujo pensamento encobre o senso

comum para dobrar, recurvar o absorvido como realidade dada em função de sempre fundar a

representação de acordo com os inúmeros pontos de vistas sempre em divergência.

Diferença e repetição mostra em termos de como o homem pode vencer o senso

comum, se concentra no ponto fulcral onde o mundo do fundamento é minado justamente

aonde ele tenta excluir: com o simulacro a absorver ou evaporar. A multiplicidade vencedora

do mesmo também se cerca da desrazão a fim de compartilhar do princípio segundo o qual

fundar é determinar o indeterminado. Longe da aparente simplicidade, Deleuze contrariando o

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cogito cartesiano vê que a forma pura e vazia do tempo constitui a diferença no pensamento,

mais perspicaz e condizente com a natureza humana. O ainda não pensado, o sem-fundo

contribui para haver a rachadura do Eu, já anteposta pela divisão do bom senso em senso

comum esfarelados ambos pela energia vital dos simulacros. Tal pressuposto disruptivo

encontra solo frutífero na Literatura consoante a população do romance às voltas com

oposições instáveis. Cumpre reiterar, em Deleuze “centrar o texto literário no personagem em

detrimento da ação, fazer do personagem o motor da fábula.” (RANCIÈRE, 1999, p. 10)

Equivale a observar em O homem duplicado as instâncias acima mencionadas.

O simulacro, localização do diferente por intermédio da própria diferença, afirma a

divergência e o descentramento, por isso o senso comum se sente desnorteado por não

suportar o caos atualizador da idéia de multiplicidade, constituidora da singularidade cuja

pretensão é se fixar. Como professa Deleuze, “o problemático é um estado do mundo, uma

dimensão do sistema e até mesmo seu horizonte, seu foco (...)” (2006, p. 387) algo

desvigorante ao senso comum, sempre em busca da unidade, da convergência do pensamento

numa unidimencionalidade capaz de ser objetivada enquanto solução final de um problema,

da vida de forma geral. Ao contrário disto, o sujeito pensante tem no caos o elemento

recolhedor em si do ser dos problemas oferecendo o valor persistente do problemático como

forma de inserção no mundo cujo movimento é o das relações. O recorte da individuação

neste aspecto encontra no mundo perceptivo a estrutura-outrem; é bem verdade que o fator

individuante se faz na intensidade da solidão sem reparo, mas, também, é certo que ao passar

do olhar estruturado por outro para uma percepção mais apurada segundo o próprio ponto de

vista, o sujeito pensante é mais ele mesmo porque consciente da idéia de multiplicidade, sua

construtora. Logo, sujeito por si e não segundo os ditames do senso comum.

O eterno retorno descrito por Nietzsche é retomado por Deleuze para entender a

repetição extraída na diferença. Se a repetição se dá e se o significado repete-se, abolidas suas

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significações como primeira condição, o homem interfere quando o incondicionado volta

enquanto produto do eterno retorno do diferente. Cabe a ele identificar o eterno retorno,

sinônimo de verdade ainda não alcançada e não expressa, sendo exatamente a ocasião na qual

o senso comum deixa de ter força coercitiva em decisões pendentes. O homem conduzido

pela diferença à vista, tomado por ela se torna capaz de se ver como seu semelhante, abre-se à

metamorfose do que é, pensa, sente. A angústia oriunda desse processo define o contorno do

pensamento seletivo e a repetição no eterno retorno como o pretenso ser seleto. Este ser está

acima da calmaria proposta pelo senso comum, da passividade de suas energias restritas ou do

grande homem ativo pronto para os problemas, certo das respostas solicitadas. Algo

inicialmente cogitado por Deleuze, depois afirma com convicção sobre o retorno se fazer

através do Diferente, o Dissimilar, enfim, do excessivo não contestável porque sua

peculiaridade é retornar e ainda mais forte quando ignorado.

A dessemelhança, o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir marcam de forma

peremptória a diferença a qual a repetição persegue e só conquista para a representação

enquanto há subversões; não apenas de conceitos, mas de práticas, das práticas assumidas

pelo sujeito pensante como sendo suas e não de outrem. Só assim o simulacro não passa

despercebido sendo capaz de descentrar o idêntico, desfigurar o semelhante e desviar a

conseqüência prevista. Ao simular o idêntico, o semelhante e o negativo, o simulacro

percebido pelo homem saído do reino das aparências é, faz a diferença digna de repetição,

conforme atesta Gilles Deleuze. A distinção entre os atributos necessários para a irreversível

queda do senso comum ocorre quando na representação, é o próprio ser quem se determina e

não aquilo do qual se diz. Ao contrário, ele se diz nos momentos de ação, é, com a coerência

necessária “segundo formas que não rompem a unidade de seu sentido; (...) aquilo de que ele

se diz é a própria diferença.” (DELEUZE, 2006, p. 417). Esta, tão indispensável para o

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homem pensante que sua vida não se desvincula da busca necessária a se fazer, ser em estado

de excesso.

A obra de Deleuze consolida na repetição a conduta precisa em relação ao

insubstituível, acaba com isso em transgressão. Há perseverança no sentido específico do

movimento capaz, sobretudo de comover o alheio a toda representação; dessa forma, o

homem predisposto a isto experimenta o oco, vive o problema das máscaras tentando

desvendá-las, preencher a falta por meio do absolutamente diferente. A repetição entra como

elemento, primeiro desejado pelo senso comum, depois como fator terrível porque

desconhecido. Seu princípio constitutivo é compreender o Outro enquanto compreende a

diferença que o transporta e o constitui. Isto guarda certa relação a despeito da duplicação. O

original em pauta longe de ser creditado a um dos personagens em questão forma uma figura

emblemática cujo destino da vontade ruma em direção a seu aniquilamento.

Acompanhando o pensamento de Deleuze vemos sobre a repetição o fundo emergindo

à superfície sem deixar de ser fundo, algo a gerar o estabelecido fincado na diferença. O senso

comum ou o bom senso quando vistos como qualidades do juízo são entendidos pelo princípio

de repartição, tipo mais bem partilhado. Ora, se a diferença for requisitada e se o senso

comum determinar onde ela deva aparecer então não tem sentido firmar a partilha

independente do resultado se, guiado pelo bom senso. Extrapoladas as estruturas sedentárias

arquitetadas pela doxa, a representação neste instante amplia-se com os distúrbios subversivos

dada as distribuições nômades tocadas pelo desnaturar das questões fixas.

O ser do devir sempre à frente, este ser sempre propício a se modificar através das

formas extremas é o desencadeador de toda a desigualdade sem a qual não se pode falar de

retorno; o ser repetível na diferença e na seleção desta é o conveniente à representação. Esta,

atenta ao infinito, descobre em si o tumulto, a inquietude e a paixão acima da calmaria

aparente do que é especificado, bem conduzido, organizado. Assim, a dualidade é aceita na

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representação como algo de positivo e não como alguma coisa a ser aniquilada na intenção da

diferença acontecer, dada a pujança imposta frente à repetição. Na insuficiência e por

intermédio da metamorfose bem como do caráter incondicionado, o ser do devir proporciona

ao pensamento a produção do provável diferente.

Para Deleuze, a literatura é lugar privilegiado afim da diferença e repetição

acontecerem porque o (não)-ser é questão persistente, válida no estágio de caos = cosmo onde

se mantém os acontecimentos e os complica por meio do problemático, sempre bem-vindo

neste universo. Através deste esforço, a simultaneidade, a coexistência do idêntico ou daquilo

a se projetar na diferença ou mesmo na repetição observada é o passaporte para conduzir os

personagens nas histórias de vida presentes em cada movimento, em cada modo de ser, sentir.

O tortuoso disso tudo é a pertinência, o agradável na leitura quando se elimina quaisquer

pressupostos e é a vida de cada ser presente o motivo válido para o retorno do problemático,

nutriente da literatura. Disso o autor de Diferença e repetição aproveita e enfatiza sobre a

Filosofia estar atrasada em relação à Literatura posto que a primeira tenta valorar o

pensamento sem conjecturas enquanto a segunda maneja-o procurando novos sentidos tão

válidos quanto não encontrados. Trajeto do senso comum como forma de pensar, uma

elimina-o como se a natureza reta e a boa vontade fossem típicos de quem saiba o significado

de tal ato. A outra não o descarta colocando no devido lugar o paradoxo ou rejeitando o

irresoluto, anima-os, inclusive dando uma personalidade como é o caso do romance O homem

duplicado.

O senso comum como forma de identidade e o bom senso como norma de partilha se

completam na imagem do pensamento enquanto duas metades da doxa conforme deseja

Deleuze. A Filosofia recusa a doxa e a Literatura ao não descartá-la, conclama-a para ser o

amplo espaço da sensibilidade com a qual o sujeito pensante conta para se mostrar, dizer

quem é ou mesmo procurar saber quem seja. O diferencial é quando o senso comum vencido

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no quesito convenção mostra concórdia de faculdades discutidas; com isso perde em poder de

convencimento pela força integradora dos problemas sem semelhança nos quais o homem

vive e é capaz de pensar. Como atesta Deleuze, a destruição se dá na “imagem de um

pensamento que pressupõe a si próprio, gênese do ato de pensar no próprio pensamento.”

(DELEUZE, 2006, p. 203). Nisso podemos afirmar com tranqüilidade: o personagem Senso

Comum esmorece nas oportunidades onde Tertuliano Máximo Afonso se impõe pela

insatisfação dos acontecimentos; sem procurar a origem da duplicação, começa a pensar sem

intermediário e assim vence o comum de sua situação vivencial.

O senso comum intratável se os acontecimentos saírem dos eixos também se arrefece

com a coexistência dos contrários, isto força o pensamento a agir, não mais sob o foco da

opinião e sim na intensidade do futuro sentir. Por isso, o sentido não se vincula ao simples

levantamento do problema – típico do senso comum – importa é o sentido visto no próprio

problema, fato fora de cogitação em se tratando do alcance do bom senso. A diferença,

destaque da obra de Deleuze, se localiza por meio de questões referentes ao quanto, como, em

qual caso e quem, sem elas não pode haver acontecimento, sequer multiplicidade quando há

menção à repetição. Havendo oposição do pensamento a toda forma do senso comum, inicia-

se para o sujeito pensante o exercício de ser, digno de representação porque haurido de um

saber inconteste, dá-se o saber da divergência.

Se no livro de José Saramago os personagens se movem sob o signo de uma origem

entre eles, em Deleuze vemos: “uma origem só é assinalada num mundo que contesta tanto o

original quanto a cópia;” (2006, p. 285) embora Tertuliano e António se detenham por certo

tempo em saber quem nasceu primeiro, na busca de um elemento mesmo ínfimo capaz de

diferenciá-los, o modo de ser de ambos conota a inexistência do original (em termos de se

cristalizar pelo sentido) que a cópia quer imitar. No encontro de dois mundos “o original, a

personagem inimitável e que não imita, é também a singularidade que se opõe ao par

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mimético do modelo e da cópia (...)” (RANCIÈRE, 1999, p. 13). A prevalência de qualquer

deles só pode acontecer se a figura heróica do suposto original mostrar seu sentido em ato.

Podemos assegurar que isso acontece à medida que o personagem se mostra apto a romper os

laços não apenas com o Senso Comum, mas, com todo tipo de modelo ou cópia. O filósofo,

contrário a Descartes e sua busca pelo verdadeiro apontando ao cristalino fora de dúvida,

particularmente na ação do senso comum e do bom senso, nos oportuniza a ler o claro e o

distinto da história do professor vinculada a do artista; mostra o aturdimento provocado na

aparição do obscuro, o efeito é ainda maior se mesclado à aparente claridade dos

acontecimentos. Daí porque o artista Daniel Santa-Clara (grifo meu) não explica nem

justifica a vida do homem António Claro (grifo meu) de quem Tertuliano Máximo (grifo

meu) Afonso não adquire estatura existencial mínima para se falar de um Eu em perspectiva;

até chegar à possibilidade de se mencionar o Eu rachado proposto por Gilles Deleuze. Daí

alçar vôo até chegar a avatar com base no múltiplo instituído pela duplicação.

Conforme discutimos em capítulos precedentes, as interferências do personagem

Senso Comum no romance O homem duplicado induzem a uma interpretação na qual a

diferença e a repetição se desnorteiam como na ocasião onde houve a revelação daquele

“quase seu outro eu” (SARAMAGO, 2002, p. 24), Tertuliano Máximo Afonso entra a discutir

com o Senso Comum – até então presença constante – sobre qual ação adotar. Este reclama

sensatez para tratar o assunto como uma extraordinária coincidência; o melhor a fazer era não

procurar o desconhecido, nessa conversa o Senso Comum sai diminuído afinal é definido no

livro como o mero “capítulo da estatística” (2002, p. 66), justamente por ser comum. Deste

personagem temos como auto-definição: “sou a mais previsível de todas as coisas que há no

mundo” (2002, p. 222). Por que justo o Senso Comum será a companhia mais presente do

duplicado?

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Há uma desmistificação do uso da razão para promover a felicidade do homem já

antecipada pela entrada do senso comum na narrativa com status de personagem; sua atuação

gira em torno da advertência, questionar Tertuliano com a filosofia de deixar as ações para

amanhã; prever na descoberta do “sósia”, uma máquina trituradora; apontar a atitude

vergonhosa do uso do nome e endereço da namorada no intuito de descobrir Santa-Clara;

aconselha a esquecer a história inacreditável de duplicação. Pensa por Tertuliano, para ser

quem é a única possibilidade seria parecer outro. Enfim, o Senso Comum participa da

narrativa, mostra como o espírito humano pode variar e mesmo se debater ao se encontrar

num tumulto interior. Dissociado, o homem fica na iminência do deslocamento para só assim

estipular a performance pela qual deseja ser conhecido.

Propor uma leitura do homem inserido neste contexto é vê-lo desenraizado da idéia de

consenso. Por ser desta forma, refuta ou ignora as colocações do senso comum ao encaminhar

o pensamento a se fazer por iniciativa própria. À consciência criada após se perceber duplo

faz do homem desse romance para além de um ser propenso à repetição, ser aberto ao

diferente, à intensidade da individuação procurada. Se o bom senso enquanto repartidor

desaparece para os personagens na medida em que eles não aceitam dividir a vida, também

desaparece o poder de persuasão característico do senso comum. Ele já não acompanha o

protagonista na definição de sua subjetividade, na suposta identidade entre o jeito de ser de

Tertuliano e aquilo proposto como ideal da consciência moldada por aquela espécie de alter-

ego, o Senso Comum no início da narrativa. Ambos ultrapassados, o bom senso e o senso

comum no processo de individuação do duplicado subsumem ao compasso de alternativa aos

diferentes Eus na nossa observação. Tentativa de equivalência única, o paralelo a se buscar

nas camadas da interioridade desfeita, a se fazer embora sem se identificar. O muro de pedras

livres de Deleuze auxilia na angulação desse personagem instalado na aporia de sua vida.

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O delírio de ser o duplicado, a vida paradoxal em ser um ideal imaginado e ao mesmo

tempo não ser nada do que aparenta faz do homem desse romance alguém na iminência de se

pensar, pensar o diferente, negar o consenso da aparência em seguida denunciar o igual. O

caminho para se escolher longe de ser identificado com a direita ou à esquerda fixadas pelo

Senso Comum do passado, também não serve de antecipação para o desigual em si. No

mundo aonde Tertuliano vive, o fundo é a morte, sua companheira em vida, pois

aparentemente é António Claro. A metamorfose em vista não sendo algo dado ao

transcendental é, ao contrário, predisposto ao tortuoso; o desigual se antecipa como paisagem

da existência a ser descoberta. Tão problemática quanto uma escolha a se fazer, ela procura

atalhos – ora a duplicação comprovada, ora a ameaçada – porque o ser humano nesse romance

não é igual ao outro. Na compreensão de Gilles Deleuze, “é porque nada é igual, é porque

tudo se banha em sua diferença, em sua dessemelhança e em sua desigualdade, mesmo

consigo, que tudo retorna.” (2006, p. 342) Retorna como o diferente a ser apontado, aquele ou

aquilo cuja capacidade é suportar a prova. Assim como o “Claro” de António se confunde

com o “Máximo” de Tertuliano por sua lógica de significado desfeita, o distinto/obscuro os

acompanha em vida e na morte concretizada quando não podemos identificar quem de fato

existe.

O Eu se anulando junto ao Eu da conformidade desfeita, antes exigida pelo bom senso

e o senso comum forma a intensidade da diferença interiorizada pelo homem da narrativa.

Então a individualidade em pauta no momento mais frágil do Senso Comum, o impede de se

manifestar, por sua vez António Claro não existe através de um corpo palpável, é a ocasião

específica da subjetividade periclitante. Homem confuso, obscuro nas palavras não

pronunciadas, inalcançável pelos gestos, manifesta um modo de ser no qual a diferença

pretende se repetir.

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O homem guiado pelo Senso Comum até a descoberta da duplicação almeja

representação num mundo sem identidade fixa. Duplicado, ele tem na repetição o item para a

diferença, a outra face explorada; sem disfarce, visto o rosto ser o mesmo, o sujeito pensante

após a descoberta inusitada não se localiza como ponto de mutação, porém, na terceira opção

imprescindível de recrutar. Isto, contudo, está longe de uma coerência ditada pelo bom senso

observada a situação pelo ângulo da objetividade; vigora então o deslocamento do notório a

exemplo das lições de História, do comportamento a adotar estando numa situação imprevista

(análoga a reação quando o professor de Matemática lhe toca o ombro). Ocasião na qual se

destoa o sorriso, não acontece o acolhimento do amigo, da namorada, da mãe, do diretor da

escola; não tem as palavras adequadas a dizer à Helena. Tal desnorteamento marca a

impotência com que o senso comum passa a ser visto no enredo.

Assim, a diferença palpitante extraída da vida de António e Tertuliano – para nós, a

diferença requisitada pelo homem comum enquanto ocupante de um lugar existencial – caso

haja a possibilidade de uma repetição, a mais certa é aquela correlata ao máximo da diferença

em ser por si mesmo, como tudo indica ao final da narrativa. Insubstituível no modo de se

mostrar ao mundo, o homem não mais sob a influência do senso comum ou do bom sentido a

ser exibido, vem a ser o homem multiplicado de acordo com a indefinição; o lado obscuro já

impossível de abafar. Dessa forma, a representação desaconselhável aos olhos do Senso

Comum se afasta, contraria a noção de modelo, de cópia possivelmente por trás da máscara da

duplicação. O gosto por viver, o modus vivendi mascarado de António assumido por

Tertuliano quando não tem mais vida própria é o motivo condutor desse homem da terceira

via, a não se igualar em alternativas prováveis. Sem dúvida é intenso o momento vivido pelo

falso Tertuliano, sem ser o António conhecido de Helena, a diversidade passa a ser algo tão

inadiável a ponto dele preferir a não opção, por isso adia o quanto pode. A aceitação da vida

pronta oferecida pela esposa de António bem como o encontro se houver, incorre na falta de

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obviedade por causa da recusa na conciliação, o conformismo, a imobilidade característicos

do Senso Comum. Nesse momento é incondicionalmente a postura do homem recém-saído (?)

da duplicação.

O ser pensante cujo rosto não é mais o do artista de cinema Daniel Santa-Clara perdeu

o espelho em quem se mirar, se transforma no ser de multiplicidade uma vez que as questões

primordiais da existência pululam à sua frente sem encontrar projeção. Não é somente a

prática de si, responder às pessoas na expectativa dele continuar uma vida alheia é acima de

tudo sua inaptidão referente à identidade totalmente desfacelada. Assunto discutido por

Deleuze aproveitamos para fazer um paralelo com o romance O homem duplicado. Vejamos.

Podemos pensar a repetição anunciada do início ao fim da narrativa, não em termos

mecânicos de uma vida a gerar outra, mas, a repetição do inexplicável; de algo não imune a

confundir sequer a esclarecer. Perfaz a enormidade dos problemas junto da pequenez humana

em se fechar com as soluções rápidas, certeiras de acordo com o esperado pelo senso comum.

Por isso, vemos no “Máximo” de humanidade estampada no protagonista do romance, o

consenso sobre a percepção do ser humano em se colocar como um problema – na narrativa,

um erro – não a ser consertado, porém, um erro capaz de dizer à subjetividade explícita do

livro qual seu papel. Depois mais desenvolta se propõe, se observa e, muitas vezes é

encarecida por outra subjetividade em busca dos mesmos questionamentos.

O sujeito pensante saído a pouco da duplicação, mas sem fundamento para ampará-lo,

procura compreender, fazer a diferença até do pensamento. Não há igualdade capaz de

arrefecer e se esta pode ser vista enquanto promessa – é o caso da ligação recebida – o sentido

no horizonte instaura a infinitude da busca humana. O interstício, a dobra e o recurvar da

realidade que o personagem tenciona fazer ao se encontrar sozinho no mundo sem duplicação,

funda a representação então com inúmeros pontos de vistas convertidos por intermédio da

divergência.

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Extrapolada toda a possibilidade de fundamentação, o excludente na trajetória do

duplicado, porque não a existência do homem comum? – embora seja um comum sem sentido

único – chega até a problemática de existir enfrentada pelo homem ao longo de sua vida.

Sozinho no mundo, mas sentindo-se em multidão por causa da multiplicidade dos modos de

ser presentes em si, o personagem principal tem mais a vencer além do Senso Comum ou da

voz inibidora ao telefone. A começar por determinar o indeterminado, o sujeito pensante no

passado já foi o Professor de História detentor das respostas prontas aos fatos acontecidos,

agora se vê na iminência de viver o ainda não pensado. A História, a sua história do presente

representa o sem-fundo com a energia da propensão.

Podemos perceber que da descoberta da duplicação ao desfecho sem ser o término, a

intranqüilidade percorre a interioridade do personagem duplicado pelo fator humanidade.

Quando não há mais alguém a quem recorrer, quem possa responder com as palavras

esperadas, a diferença freme onde o descentramento se ajusta. Sobrepõe o caos das fitas

dispostas na mesa enquanto representavam a possível resposta para o caso intrigante do

professor se ver no corpo do ator, o caos/cosmo preponderante é o desnorteio. Há a sensação

do insuportável, o vazio sem possibilidade de preenchimento. O sujeito pensante em pleno

caos recolhe em si o ser dos problemas como forma da inadiável inserção no mundo das

relações. Longe das amarras do Senso Comum, o fator individuante é causa para a procura

iniciada ao final do romance com maior intensidade além até da apresentada no começo da

narrativa.

O livro O homem duplicado apresenta uma visão da identidade destoante do anunciado

no título. A fim de podermos esmiuçar os sentidos presentes na narrativa, procuramos em

Modernidade e identidade (2002) de Anthony Giddens, os meandros possíveis de se observar

na Literatura de José Saramago, uma vez que a identidade é um dos temas mais freqüentes de

sua prosa literária. É mais intenso de modo especial no livro O homem duplicado considerado

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o fato de situar o professor de História e o ator de cinema em seus ofícios, a rotina, o lar, os

amores e perspectivas sendo esta uma forma do escritor iniciar o trato com a vida individual

para depois acentuá-la em circunstâncias de incerteza e múltipla escolha.

O acirramento das questões existenciais segundo Anthony Giddens prefere chamar de

alta modernidade ou modernidade tardia – termo já adotado por nós como pós-modernidade,

conforme defendemos no início da tese – convêm a um ambiente onde o eu é construído

reflexivamente apesar da experiência contemporânea do colapso entre os mecanismos

econômicos globais. Num mundo criador de novas formas de fragmentação e dispersão

através de uma velocidade cada vez mais frenética, a auto-identidade se torna uma espécie de

escolha de estilo de vida. Assim como o corpo se torna cada vez mais uma questão de

escolhas e opções, a falta de sentido pessoal também cresce junto das questões existenciais

sempre emergentes.

Passado a novidade do dinamismo ofertado pela Modernidade, resta ao homem a

identificação com os pressupostos oferecidos na mídia, informática. Contudo, conscientes

disto nem sempre acontecer – nas palavras de Giddens – o ceticismo irrompe dessa tentativa

até como uma posição provisória onde a identidade não ocorra. O novo sentido do eu tem

relação direta com a capacidade apresentada pelo sujeito de poder elaborar as questões de sua

interioridade de forma direta sem a interferência de instituições cerceadoras da moralidade

por exemplo. Neste sentido, conforme Giddens, “ser humano é saber, quase sempre, em

termos de uma descrição ou outra, tanto o que se está fazendo como por que se está fazendo.”

(2002, p. 39). Entretanto, o estar no mundo, o chamado à existência que cada ser humano

recebe não (en)forma esta sabedoria inerente; a vulnerabilidade, a insegurança acompanham

este eu tentando se firmar no aprendizado. Portanto, nas questões existenciais do por que estar

no espaço ocupado, de ser para si um desconhecido, de não haver identificação com a imagem

do espelho, dizem respeito a como a existência e o ser não se desvinculam. O homem ao

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sentir e refletir, se propõe o dilema da finitude e vida humana entrelaçadas procurando a

intersecção entre elas. Como indivíduo, ao interpretar os traços e ações de outros nas mesmas

condições, o homem faz a experiência da alteridade.

A persistência da auto-identidade por meio da conservação de emoções e sentimentos

de um eu num corpo contínuo, provoca a sensação de conteúdo a ser descoberto. Algo

denominado por Anthony Giddens de “a trajetória do eu” implica questões tais como: o que

fazer? Como agir? Quem ser? Estimuladas pela tenaz observação de certa subjetividade

consciente do valor da própria experiência. O processo de auto-interrogação viabiliza a

ruptura com o passado dispensável a fim de contemplar novos cursos de ação já não

direcionadas por hábitos estabelecidos. Assim como não há permanência nas relações

humanas, o continuísmo em questão é o das emoções renovadas contanto seja a primeira

experiência de cada eu ao se colocar sob foco de questionamento.

Os riscos, as escolhas confrontantes dos indivíduos consigo mesmos tendem a fazer

valer a emancipação de situações opressivas encaradas enquanto obstáculos a impedir a

reflexividade do eu. Modernidade e identidade confirma na modernidade tardia a propensão

do corpo sendo cada vez mais socializado e integrado à organização da vida social; isto se

houver por parte do indivíduo o equilíbrio entre as emoções a serem descobertas e as

inquietações de não se deixar levar por elas. A aparência é outro fator a se considerar

elemento central do projeto reflexivo do eu; nem essa nem a postura podem ser

compreendidas como definitivas. O intercâmbio entre o princípio de construção do eu requer

no observável algo mais além do provisório, tal situação acaba gerando a sensação não da

beleza a ser conquistada, mas de um eu participante da inteireza, independente de qual seja.

Ensina Anthony Giddens, viver no ambiente da alta modernidade é estar a par da

oportunidade e o risco ao mesmo tempo inevitáveis dentro de um sistema voltado para a

dominação da natureza e pela reflexividade dos fatos humanos. Assumir os riscos das

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escolhas a serem feitas junto da reflexão iminente num mundo onde ninguém pode se dizer à

vontade, exige atenção, o cuidado consigo e com os outros, não passa despercebido. O

universo das “aparências normais” é cada vez mais desacreditado uma vez que a interação

entre os indivíduos rareia. Se a rotina parece normal e previsível, a interioridade se ressente de

algo para completá-la entendendo a priori, nem o ceticismo nem a dúvida podem fornecer a

explicação necessária quando se vive num mundo de múltiplas opções. Sem autoridade

máxima a quem recorrer, a encruzilhada enquanto sentimento maior do indivíduo tem por

conseqüência na formação da auto-identidade, a imobilidade para perceber as novas

demandas e as alternativas inéditas; portanto, o projeto reflexivo da identidade denota o

encontro com dilemas aos quais o sujeito enfrenta sozinho. Isto, se levar em consideração o

desenvolvimento de sistemas sociais internamente aceitos na origem de tal projeto. Na

implicação entre o viver bem em sociedade e o conseqüente bem estar com outros, depois

consigo, exige a coerência na trajetória do eu pela prática reflexiva do ambiente social mais

amplo.

Uma das diretrizes de Modernidade e identidade é sobre as realizações proporcionadas

pela Modernidade além das conquistas materiais e morais, elas provocam no indivíduo a

liberdade, entretanto de uma espécie vigiada. Então, na alta modernidade a sensação da

necessidade de um suporte, de encarregar alguém a tomar as atitudes que deveriam partir do

indivíduo é algo muito comum; é como se o peso das instituições substituísse o papel do

senso comum combatido com o avanço da ciência no período moderno. Porém, se o indivíduo

não vive mais sob o peso dos preceitos morais, a organização reflexiva do eu é o item

relevante quando se discute a identidade sem as imposições de qualquer instituição. O

movimento característico do sujeito cujo pensar se situa dentro desta ambiência é tentar

entender a vergonha e/ou a culpa em não se enxergar na normalidade exigida pelos

mecanismos morais. O passo seguinte é fazer a identidade aparecer se houver a reacomodação

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dos aspectos básicos da experiência vivencial. Dessa forma, é pertinente perguntar quando se

nasce, o que fazer de si, qual a finalidade de se fazer o que se faz, o sentido da vida ou da

morte.

Quando é o próprio sujeito pensante quem segrega em si a experiência de vida a qual

poderia ter sido compartilhada com outros, há um encolhimento defensivo da auto-identidade.

Giddens discute sobre esta forma de narcisismo a provocar a desordem do caráter gerador da

identidade por fragmentos; sobretudo o sujeito descentrado, os estilhaços da linguagem e do

discurso testemunham uma personalidade cujos sentimentos são o do vazio e da falta de

autenticidade. Sua peculiaridade mais latente é estar sempre à procura; indeciso, o sujeito

tateia as margens, perdido o centro junto às estratégias de sobrevivências continuamente por

se fazer. Caracteres estes afinados com o procedimento do protagonista de O homem

duplicado a saber, em seus modos de agir, entender o mundo e a si mesmo.

Dentre os vários aspectos apresentados pelo autor de Modernidade e identidade um

cresce como ponto de discussão a ponto de questionarmos: se não procuramos mais a

aparência de um eu socialmente valorizado, porque não mais cercados de espelho como é a

sensação provocada pela Modernidade, qual o sentido de direção a seguir se o eu da alta

modernidade se refaz o tempo todo? Podemos observar ao longo deste livro que as várias

formas de dependência são outras mais fechadas na auto-identidade. Cada caminho, uma

abertura e a capacidade de harmonizar preocupações presentes com projetos futuros, ampliam

os deslocamentos, as incertezas passíveis de envolvimento juntamente com a reapropriação de

cada ação. As fontes gerais de preocupação do indivíduo afloram, provocam junto da dúvida

radical acerca de si mesmo, a influência do risco máximo ao se colocar no extenso da

identidade por se fixar. Como resultante, a ansiedade, o fator insegurança são integrados pelo

homem na tentativa de sobreviver em meio às influências globalizantes; estas,

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arregimentadoras de seres e coisas a uma normalidade tão aviltante quanto o borbulhar dos

problemas existenciais os quais não se enquadram em nenhuma planificação.

O fato das pessoas internalizarem a conduta de outras como se fosse algo natural é

acentuado na modernidade tardia. Incorporar elementos da experiência não acarreta a

dissonância cognitiva enquanto particularidade a ser cultivada; ao contrário, esta é evitada.

Então, não havendo a dissonância cognitiva no fato das pessoas assumirem, por exemplo,

hábitos normalmente alheios, o conhecimento de si se torna potencialmente perturbador. Por

outro lado, isto funciona como uma espécie de proteção quando a pessoa simplesmente ignora

tal conhecimento. As várias tensões e dificuldades distintivas referentes ao eu são o preço de

se viver no mundo da modernidade tardia onde preponderam os dilemas em se tratando da

auto-identidade.

O eu na urgência em saber de si tenta novas experiências a fim de resistir à

fragmentação. Dentre as tribulações sofridas, a construção da identidade conformada às

circunstâncias funciona como se estivesse prestes a alcançar um conjunto de lealdades nas

quais confiar, pois, elas fornecem a interpretação requerida. Outra possibilidade a esse

múltiplo eu refratário a alguma situação fixa, vem a ser a evaporação do eu em cada contexto

assim estipulado. Entretanto, se as motivações são muitas em variados eus, o restante

autêntico nesse eu inquiridor é experimentado sob a forma do vazio, o vácuo impróprio para

ser preenchido por um eu de circunstância, dadas as convicções íntimas de cada pessoa. Neste

ínterim, o senso comum ronda pressagiando: “o indivíduo só se sente psicologicamente

seguro em sua auto-identidade na medida em que os outros reconhecem seu comportamento

como apropriado ou razoável” (GIDDENS, 2002, p. 177).

O tão comentado sentimento de impotência experimentado pelo indivíduo situado

neste limbo atravessa a idéia de ver o humano arredado porque na modernidade tardia a

autonomia sobre as circunstâncias da vida exige cada vez mais do indivíduo. No intuito de

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sobreviver, o indivíduo procura enfrentar com determinação as tarefas e quem sabe superá-las

conforme o domínio ativo em prospecção. Do outro lado da impotência, a apropriação marca

a opção do estilo de vida diante das incertezas crescentes; sem autoridade definitiva para

definí-lo, o projeto reflexivo do eu tende à experiência ora personalizada ora mercantilizada.

Sendo assim, a ameaça da falta de sentido esbarra naqueles momentos decisivos nos quais o

indivíduo se vê perturbado em sua rotina, por vezes de maneira radical. As oportunidades de

vida florescentes neste contexto objetivam libertar a pessoa daquelas situações de opressão

sob aspectos marginalizantes.

A questão maior de Modernidade e identidade comparada ao que encontramos em O

homem duplicado retira da aparência a subjetividade inconstante do tempo atual. O professor,

o ator em escala menor se considerarmos o homem num sentido geral no romance, está

incerto de haver possuído alguma vez a identidade pessoal e intransferível, abordagem nas

duas obras de acordo com a especificidade de suas linguagens e objetivos. O homem

duplicado não é apenas a narrativa da busca identitária, porém de alguém à procura da

segurança ontológica impossível em meio às mudanças experienciais. O homem de

moralidade duvidosa na definição do próprio duplicado é também o homem das dúvidas, das

dores exponenciais cuja falta anuncia outra superior ao vazio nos olhos de quem acredita ser

seu original. Embora saiba aos poucos, isto também não faz sentido quando o principal na

vida é ele com seu vazio. Não há escolhas satisfatórias nem dilemas melhores a serem

explorados na vida dos dois personagens cujo formato é o do homem duplicado.

Os personagens em suas maneiras de enfrentar as questões existenciais seguindo os

argumentos de Anthony Giddens têm relação com o ambiente onde o eu é construído

reflexivamente independente do acento colateral entre o pensar e o agir dos seres ficcionais.

Tertuliano e António após se saberem duplicados experimentam a forma de fragmentação

maior de uma auto-identidade antes nunca posta sob questionamento. Não é o caso de uma

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opção estilística de vida conforme estudamos na teoria é saber quem são, onde o acerto da

palavra, o acento de dispersão porque não há possibilidade de reunião nos modos de ser e

pensar. É de especial interesse no romance o fato de não se tratar de uma escolha, alternativa

sobre determinado sentimento, força de caráter, é, sim, a preferência por si, a optativa

existencial partindo do personagem autoconsciente.

Se houve num primeiro momento a identificação com a imagem do vídeo, até como

forma de reagir à estupefação sentida pelo duplicado, esta não resultou numa conformidade

com o ícone Daniel Santa-Clara, significativo naquele instante. Sobrepuja o ceticismo, o

sentimento maior é o inconformismo em ser aquele eu de aparência; observamos isto no

personagem ao discutir a própria imagem enquanto correspondente da identidade procurada.

Nisto, interpretamos sendo um posicionamento assumido por José Saramago concernente ao

irresoluto da condição humana, insatisfeita se não conhecida. Na suspensão, o novo sentido

do eu passa pela condição de elaborar a interioridade mesmo enviesada – a forma duplicada

dos personagens – sem a interferência do mundo exterior.

O novo sentido do eu experimentado tanto por Tertuliano quanto por António implica

não só revisão como também elaboração dos conceitos adotados: a forma de amar, o encontro

com amigos, familiares, colegas; a maneira de ver o mundo; enfrentar os obstáculos; os

recuos diante do desconhecido; a hora certa de enfrentar as situações perigosas. Tudo isto faz

destes seres fictícios seres da incompletude conforme temos em Modernidade e identidade.

Aqueles personagens são mais humanos na medida em que ponderam suas atitudes, sofrem,

procuram se resolver como forma de estar no mundo. Se são frágeis, inseguros ou com

imagem forte não está em discussão, apesar disso é possível apreender o acompanhamento do

ser humano no aprendizado de si ao superar as imposições do senso comum.

O mergulhar no desconhecido já é um aspecto positivo para quem sempre mediu os

prós e contras, agora no objetivo de conhecer, não aquela imagem divulgada pela mídia,

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entretanto aquilo que o espelho apenas contornava. Assim é Tertuliano ao encalço de

Daniel/António, de António ansiando saber quem lhe procurava na produtora de cinema. De

quem é o mérito, o descrédito em se transformar no outro, alvo do encontro, esconder para ser

encontrado? Ambos os personagens ao se colocarem no dilema da finitude e o sentido da vida

humana entram num emaranhado sem o qual não podem ser eles mesmos. Enfim, percorrem a

experiência de vida inegável a nenhum homem: a prospecção de um eu desconhecido.

Conforme acompanhamos na leitura da narrativa, a continuidade da auto-identidade é

colocada em termos de a dúvida persistir naquele cujo sentimento de eu é posto em jogo; para

isso, envolve emoções não sujeitas ao intercâmbio entre um corpo e outro. A continuidade se

houver no trato com o humano é a das emoções renovadas quando se trata da subjetividade a

ser descoberta. A sensação de não saber o que fazer de si experienciada pelo duplicado, vai ao

encontro dos pressupostos teóricos de Anthony Giddens quando este chama atenção para o

fato segundo o qual a reflexividade só pode ser levantada por um eu no respeito ao valor da

própria experiência. Inclusive, esta atitude é tão acentuada a ponto de em O homem duplicado

não importar mais quem usa a máscara do ator ou quem é o erro na história do professor. Os

hábitos são deixados de lado no processo de auto-interrogação bem como a preferência no

enredo é o da impermanência nas relações humanas. Elas estão voltadas a certo tipo de

interesse exclusivo de sentir o eu, embora haja a sensação do vácuo imanente. Os riscos ou as

predileções dos protagonistas representam de forma mais convincente a emancipação de

situações opressivas cujo desdobrar o narrador se esmera.

O não estar à vontade do homem duplicado tem relação direta com a perda do

equilíbrio ao visualizar nas emoções a serem descobertas, o antepasso da sabedoria em falta.

Acima da aparência a se considerar e dentro do contexto localizável do duplicado a postura

ideal de subjetividade é colocada à prova, se o entendermos projeto reflexivo do eu. A

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duplicação é o provisório, depois atinge os homens na construção mais particular, a contar da

sensação de ocupar um lugar cujo direito não lhe pertence.

Ainda seguindo os princípios adotados por Anthony Giddens, a vida dos homens da

duplicação se faz em meio à oportunidade de ser alguém diferente e o perigo de não se fazer

pela própria importância. À medida que eles passam ao estágio da reflexividade dos fatos

humanos, internalizam os riscos das escolhas inadiáveis, têm a atenção necessária quando o

importante é se reconhecerem. Nesse propósito, o cuidado consigo ultrapassa os ditames

alheios a pensar na imagem conhecida para se ocupar com os próprios pensamentos. Atitude

esta percebida inclusive na intervenção do narrador desta história duplicada: “A tão longe dos

nossos assuntos nos levou esta ramalhuda reflexão sobre as origens e os destinos das palavras,

que agora não temos outro remédio que voltar ao princípio.” (SARAMAGO, 2002, p. 62). O

duplicado cujos sentimentos nunca foram fortes nem duradouros, na atual fase de sua vida, os

vê espicaçados por não poder reparti-los com outros.

Acabrunhados, primeiro pela rotina de ser o que são, sem destaque nem

reconhecimento, depois por não satisfazerem a interioridade condizente à completude; resta a

dúvida no papel principal atribuído aos homens do romance. Ou seja, desempenhar na vida

algo supostamente deles. Sem a autoridade da clareza no nome e do máximo no ofício de ser

professor, o homem duplicado (por que não o homem de todos os tempos?) tem na

encruzilhada de sentimentos, a possibilidade de formação da auto-identidade, embora

perplexo, imóvel ao perceber-se sem alternativas. Dessa forma se encaminha o projeto

reflexivo da identidade nos termos de Anthony Giddens, através do encontro com dilemas. O

sujeito os enfrenta solitário, uma das razões para a impossibilidade de se exigir do

personagem a coerência na trajetória do eu em destaque pela prática reflexiva.

Modernidade e identidade pontua como conquistas materiais e morais, logo

discutíveis para o homem no tempo emblemático do dilema, provoca no indivíduo a

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desestabilização dos conceitos, compatível ao encontrado n’O homem duplicado. Agora sem

suporte de opiniões como a do Senso Comum, o peso da própria dor é insubstituível. A

organização reflexiva do eu provocada pela duplicação, impulsiona o movimento típico do

sujeito na fase onde se pensa de maneira a sair da “normalidade”. A identidade, no romance

não é fruto do acaso nem pode ser compreendida enquanto reacomodação da experiência

alheia incomoda por ser indispensável.

O sujeito pensante da narrativa ao adquirir a consciência de separar para si a

experiência de vida não compartilhada com outros, se encolhe na auto-identidade a ser

externada. O narcisismo de O homem duplicado contempla a desordem do caráter identitário

conforme Modernidade e identidade explana. O personagem ao personificar o homem cindido

cujos fragmentos não são possíveis de se juntar, atesta uma personalidade inconstante. Ora se

enche de coragem, ora se vê diminuto pela expressividade do outro. Se as coisas do mundo

não entusiasmam Tertuliano Máximo Afonso, o não saber sobre o futuro o toca de maneira tal

a empurrá-lo para enfrentar aquelas “questões importantes” (SARAMAGO, 2002, p. 150) de

modo a não se parecer com a imobilidade da pedra. Esperar e pensar são as duas atitudes

companheiras desse homem desacreditado pela aparência de outrem socialmente valorizado.

Portanto, o sentido de si segue o rumo de um eu tão longínquo quanto a harmonia perdida; as

incertezas da véspera do encontro; do conhecimento por se firmar sem envolvimento nem

reapropriação incrementam as fontes gerais de preocupação que o personagem tem pela

frente.

No duelo do homem literário com o Senso Comum prevalece a dualidade de ser, de

um lado o homem para o mundo e, do outro, o homem para si. Aquele levanta problemas,

muitas vezes sem ser capaz de solucioná-los, se enche das emoções aprendidas na infância e

procura sentido para a vida ainda em curso. Por isso, ao se compadecer dos sentimentos da

mãe e da esposa de António lhes contando a verdadeira história envolvente a todos, volta a ter

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a inteireza de personalidade desejada por Carolina Máximo, embora localizada naquele

momento singular.

Por causa do Senso Comum estar sempre a rondar os passos do homem duplicado

independente de qual estágio de crescimento individual ele esteja, a discussão se volta para o

aspecto da presença de dois corpos com a mesma imagem e como proceder à distinção. A

importância do corpo neste romance prevê leitura atenta do exposto em Roland Barthes por

Roland Barthes (2003) no qual o crítico literário francês inventaria sua escrita com base na

prefiguração de seu corpo. O texto para ele o despoja de sua duração narrativa, assim sendo,

perdura, prevalece e conota no corpo o ser para nada de que se dá conta. Pelo processo de

questionamento, o homem Barthes (1915-1980) refaz um percurso existencial enquanto

pergunta sobre seu corpo de verdade, não o visto pelos olhos alheios, mas aquilo que os olhos

nus não alcançam. Quanto a seu corpo, condenado ao imaginário, perambula por vãos,

espaços outros além do trabalho onde pode exercer o prazer de se ver transmutado no

processo de escrever, pintar ou classificar. Por outro lado, na relação humana, dependente da

vacância de imagem, abolem-se os adjetivos, fatais no âmbito da dominação, da morte ao se

efetivar.

É o senso comum quem exige os adjetivos como forma de antecipar a presença,

abolidos estes, o à-vontade de cada situação tem a ensinar a perda de qualquer tipo de

heroísmo. Se ainda a humanidade se deixa influenciar com os desmandos do senso comum e

afeita ao sentido da analogia procura o melhor ângulo de comparação para ser diferente sendo

igual, o que escapa pertence ao imaginário. Inclusos os processos de substituição e

nominação, entra em vigor com referência a alguma coisa sem causa nem identidade, o algo a

dizer do nome e da forma repercute no ser procurado. Barthes ao tratar da Doxa a combate

como maneira de desacreditar a fala associada à aparência, à opinião ou à prática redutora

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daquilo a denunciar o ser do sujeito. Nisto perfila para além do horizonte estrutural o grifo

dialético.

Combatendo a violência do preconceito, o escritor valoriza o arbitrário de um sentido

por se fazer no gesto do indivíduo ao encalço de um limite redutível ao nada com o qual possa

se localizar, se dizer ao assentir com a não escolha. Neste trecho temos a valoração do

discurso duplo: “a visada de seu discurso não é a verdade, e esse discurso é, entretanto

assertivo” (BARTHES, 2003, p. 61), bem entendido, a linguagem não seu executor dentro da

cordilheira dialética. A sensação do estranhamento, do estar deslocado acompanha a escrita de

quem procura sair de um lugar intelectual ficando à deriva. Disso, as mutações seguintes

dizem respeito à linguagem necessária a tomar ou rejeitar, onde o corpo pode ou não

prevalecer. A escritura, sedução de prosseguir à semelhança de uma cena infinita, põe a

imaginação para funcionar análoga à válvula do escape a se fazer. É importante frisar, o texto

de Barthes se preocupa em renunciar a perseguir um sentido seja do texto, seja do corpo; está

lá o pedaço dele, o seu corpo, a escrita voluntária dispensada à imitação, confiante por outro

tanto na nominação. Vide a importância do símbolo, de ser e não fazer a história em curso,

por isso não receia o abismo, o perigo, a voragem com os quais o desconhecido toma e o

impulsionam a escrever/viver.

Assumir-se o contemporâneo imaginário de seu próprio presente diz muito de Roland

Barthes para quem o corpo intervém a modo de pergunta sem resposta: como saber aquilo que

sou para o outro? À noção segundo a qual temos vários corpos vem do aspecto emotivo, nossa

particularidade. Assim Barthes conjuga lembranças apagadas com o desejo de mostrá-las;

desvendando uma pessoa atrás de outra, a emoção vislumbra e propaga a contrariedade

necessária de se buscar quando se quer saber do corpo ou como figurá-lo. No engenho de

Barthes, o estereótipo se categoriza lançando raízes no Senso Comum e se, daí surge as safras

dos estereótipos, os frutos gêmeos se espalham sobremaneira ao pé de ilusão da verdade.

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Contrariar opiniões as próprias e as externas diz muito de quem se questiona; avançar

significa procurar o outro lado do sentido contrariado, também fazer uso do sentido para nada

convertido. Na idéia de destruir o estabelecido, o salto se adéqua melhor ao requerido porque

na duplicidade do corpo há destruição da consciência despreparada para se deslocar. Põe em

xeque prioridade e prevalência inclusive no fato de discutir a própria imagem.

Roland Barthes por Roland Barthes esclarece quanto ao posicionamento do homem

diante do mundo, se relaciona à necessidade de propor ininterruptamente questões acerca do

desejo, de satisfazê-lo perante muitos, perante a subjetividade em meio à formalização de uma

situação de conflito. Nisto resvala no imaginário enquanto saída para o desarmônico.

Prevalece por isso segundo esse escritor, a relação tipo privilegiada quando o indivíduo se

coloca em xeque; dual, porém comprometida, plural sem igualdade, sem in-diferença.

Liberado de falsos sentimentalismos, assim que o homem se pensa abre-se um leque de

possibilidades das quais o elemento de corrosão se nota pelo abandono de convicções, modos

de ser comprometidos com opiniões assentes. É desse modo a eliminação da boa consciência

da linguagem visualizada no estilhaçamento do sujeito à base prorrogativa do significado.

Não sendo a verdade o alvo a perseguir porque não se trata de elemento denotativo, a

escrita/vida, é corpo, portanto ambígua; tem a oferecer como ingrediente do humano em

questão, o terceiro termo fora de alcance à dialética tradicional. É conforme Barthes chama

deportação. Para ele tudo retorna como Ficção.

O pluralismo tão importante no pensamento de Roland Barthes visa “dissolver as

confrontações e os paradigmas, pluralizar ao mesmo tempo os sentidos e os sexos (...)” (2003,

p. 83), primordial no combate ao senso comum, uma de suas maiores batalhas. Nesse viés, a

diferença surge como perspectiva a ser alcançada não com as armas simples do binarismo,

todavia por trazer no seu interior a chance de pulverizar e também dispersar o comum na

leitura do mundo e do sujeito nele inscrito. Isto por meio dos transbordamentos, dos escapes a

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serem realizados por aquele que já está no ato da descoberta de si. Pluralizar então é

semelhante a sutilizar os detalhes formadores do conjunto. Desviar o olhar do previsto e

direcioná-lo sem reservas à margem de indecisão, por exemplo, é uma atitude bem-vinda;

outra é achar o lugar da perda, da fenda no qual possa se aventurar. O ineditismo prorrompe

em confronto direto com a Doxa sempre por perto, vigiando, esperando o momento propício

para se fazer perceptível através da repetição. A única reiteração boa é a do corpo com toda a

imprevisibilidade nele incrustada; impregnado com a pergunta para onde ir, o corpo com a

consciência transformada se move por essa questão. Tanto na teoria quanto na vida o apuro

em termos metodológicos pressupõe a revisão ao desencadear repetição e reiteração contínuas

do discurso. E, o repetido com ares de naturalização da significação também exige

esclarecimento.

A duplicidade louvável no sentido mencionado anteriormente favorece a escuta não de

um todo desconexo, contudo em ouvir outra coisa. Nosso trabalho exegético considera sobre

o escritor a procura em compreender pelo sussurro da linguagem em construção; do corpo

desalojado, de vozes a se fazerem ouvir. Ao contrário da Doxa cuja tentativa é a todo instante

se fazer presente sob a alegação de se definir, a voz do sujeito ressoa nos parênteses os quais

requer observação atenta. Com isso, a escrita revestida de vida oferece ao artista da palavra a

marca e o vazio como estilo. Marca ainda indefinida e o vazio alojado na própria substância: o

corpo a ser apreendido, o sentido em processo sendo fugidio ao contato é, contudo, instigador

de busca. Vale por si só, o desencadear do movimento.

A vida afeita ao imaginário – conforme explica Roland Barthes – contraria as

cogitações da opinião corrente; em troca há a virada, o desencaixe contradizendo pela voz do

imaginário a possibilidade de ser pronunciado ou aquilo suposto a ser proferido. Logo, o

específico ou peculiar ao movimento humano de existir, seja a amizade, paixão, ternura ou o

prazer de escrever se tornam termos indizíveis para serem tão somente vivenciados. A

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precariedade da certeza do Eu tem a proporção do óbvio ultrajado; o natural desmentido

recebe desde então o paradoxo com a leveza sugerida pelo imaginário.

O simbólico acumulado, ao forçar o corpo a ceder provoca o afastamento enquanto

testemunha um lugar único de aptidão próprio do homem em se definir. Ao artefato cujo

sentido a opinião comum exige, o legado de Roland Barthes propõe ausência, espécie de

caminho iniciático por onde se atravessa, extenua e isenta o sentido da obrigatoriedade de que

se vê revestido em função do dado concreto. A isenção proclamada em seu texto tem maior

vulto na Ficção onde o reinado da linguagem é soberano, articulado em espiral, a volta

quando acontece se pauta na diferença. Os acontecimentos e os homens/personagens seus

provocadores cintilam emoções no trajeto do aparecimento-desaparecimento no qual figuram.

Atento às minúcias do imaginário Barthes declara: “O prazer do texto é esse momento

em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas idéias

que eu” (2006, p. 24). A duplicidade nessa relação com o corpo apresenta, ao contrário do

propugnado pela Doxa outra vertente, qual seja, a necessidade de uma terceira via. Quando

então o homem cônscio de seu corpo duplo tenta se mover guiado por idéias libertadoras é o

espaço onde prazer e censura adquirem conotação variada. Partem agora de si para si. O

sujeito histórico agindo dessa maneira, entre outros papéis desempenhados ao longo da vida,

segue de contestação em contestação até o fruir das pequenas coisas; as sensações outrora

despercebidas porque o atípico tem a primazia naquele caminhar deflagrado.

Contudo, o homem na iminência de enveredar nesse estilo de existir mais condizente

com sua natureza irrepetível tem pela frente no cotidiano a rivalidade da opinião corrente. À

maneira de Barthes, não se atinge impunemente um degrau acima do que a aparência

denuncia. À tópica do ser comum regulador, principalmente do homem de linguagem,

confronta a capacidade descoberta por este em poder questionar, rever pontos de vista se

desintoxicando do evidente, constatável. Longe da unidade moral exigida de todo produto

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humano, quem o faz mira-se no devir com toda a incógnita nele vincada. Assim, o eu do

entremeio subverte a causa aparente: corpo de se ver, corpo de se notar.

O corpo arrastado por sua natureza contrastiva se embaralha a linguagem de tal forma

sendo a distinção difícil no espaço do livro. A história do sujeito desse corpo eclode

concomitantemente se alia a um paradigma erigido, o destrói na intenção de derivar um

sentido desta ação. Como podemos observar no conjunto de Roland Barthes por Roland

Barthes, sendo uma espécie de balanço da obra do escritor, o gosto pelo começo de cada

escrita se esmera nos detalhes, os fragmentos em seqüência procuram imitar o corpo. Do

pensamento à maneira de folhas soltas ele retira a sobredeterminação com a qual enxerga o

humano, matéria-prima de seu texto. A verdade à vista em meio às inúmeras possibilidades

encontra nos procedimentos a serem adotados a concepção do erro. Ser erro, fazê-lo supõe o

“arrepio do sentido” sem o qual não pode significar. Por que então prosseguir? Por que insistir

em apreender algo a escapar do controle, do cerco típico do senso comum? Se há sentido e se

ele não se deixa tomar tão facilmente, ao contrário permanece fluido, isto equivale a entender

esse tremor como a significância por se fazer; o texto por se escrever.

Na fronteira, o homem e sua significação são arrastados pelo paradoxo. Não se pode,

portanto, exigir dele coerência porque subverte os ditames da Doxa. Não há mais

cumplicidade com a idéia de se normalizar o corpo; ordenar segundo qual padrão se este não

se dá mais? Na disformidade de regras, o homem não mais subjugado por aquilo que esperam

dele percebe na harmonia do conjunto de seu corpo, o desencaixe necessário de se realizar e

continuar. Entre atender requisitos não formulados por si ou anulá-los, sem dúvida, o corpo

lido dessa forma vai optar por traçar o próprio ritmo. À margem, à deriva é o lugar

estabelecido porque não fixado. Atingi-las referenda bastante quem fez sua opção de vida:

libertar o corpo da ilusão de compreender o campo geral de seu olhar, sabendo por outro lado,

sempre fica algo para ser visto.

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O homem habituado ao imaginário ou o esforço vital no intuito de compreender

presente em Roland Barthes por Roland Barthes conforme suas palavras rediscute por isso

papéis, níveis de consciência sem, no entanto, determinar parâmetros senão os ditados pela

própria subjetividade. Aceitar-se pluralizar é como se houvesse a desdita do espelho,

refratário à contrariedade analítica; deixar viver em si recantos ignorados movimenta o corpo

com maior propriedade. Nisso, há a confirmação de uma dialética mais viva na medida em

que não almeja resolução. O trabalho com a palavra – parte do corpo do escritor – adentra

vãos passíveis de espanto porque emerge incompreensões várias. O estranhamento da palavra,

também do corpo, ocorre justamente de acordo com o estipulado porque há partilha de

espaços, divisão em seguida quando não se consegue articulá-los.

Consciente de antemão sobre um corpo não ser exatamente igual a outro, faz desse

conhecimento à vista o compartilhar do enigma instaurado, isto gera cumplicidade por um

lado e irritação por outro. O aceitável é a probabilidade de receber um sentido; encaminhar

protesto, propor explicação de se aceitar o aceitável, assim o manuseio das palavras na

formação do corpo presente na Literatura, estipulado nosso entendimento teórico de Barthes.

Da mesma forma sendo as margens, as fendas imprevisíveis, igualmente o escritor defende a

difração daquilo que as palavras tentam aprisionar, contudo o corpo liberta por meio de gestos

incognoscíveis. Tais como: o gesto interrompido a meio caminho; a palavra cortada pela

emoção; um sentido externado ao contrário da intenção primeira.

Barthes que se diz seduzido pela linguagem não só porque esta o interessa, sobretudo

porque o fere, testemunha o poder exercido pela palavra sobre um corpo, não sendo assim,

perderia a aura de incompletude. Na vastidão do imaginário, o acolhimento se dá quando o

momento de nenhuma significância adquire tanta importância quanto o sentido único reinante

no espaço amealhado pela lógica. Em O prazer do texto (2006) podemos ter noção do quanto

os embates com o senso comum procuram fazer valer a fruição de algo perdido, do

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imperceptível. Como “o sujeito que tem medo permanece sempre sujeito” (BARTHES, 2006,

p. 58) sendo a proposta do escritor o desejo à contestação, o medo impulsiona às contradições

e nisso reside a marca descontínua da escrita/vida. Se há acordo entre a contestação e o

contestado isso só pode vir se o “termo excêntrico inaudito” (2006, p. 65) for o resultante. Daí

termos o senso comum relegado a segundo plano.

Contrariado, o sentido passa adiante como forma de compreensão do devir. Então o

texto toma vulto singular quando contempla a pessoa em pleno imaginário de ser indivíduo,

por isso o intercambiar das identidades – deslocadas por um processo de aprendizagem de si.

Neste contexto, a expressão tantas vezes usadas por Barthes com relação à ficcionalidade das

identidades toca no dado de separação dos corpos. Há um (re)encontro ao mencionar-se o

corpo de fruição; livre das intempéries pronunciadas pelo senso comum, o corpo não mais

subjugado descobre-se plural e se satisfaz com isso. O sujeito presente no texto/tecido daí o

mote entrelace, entretece idéias, trabalha nessa cerzidura e muitas vezes se desfaz nela.

Cônscio de – em confronto direto com o senso comum – não se deixar levar por um

significado à vista, importa é a questão suscitada.

Com um saber diferente a cada dia, o sujeito acresce à última palavra sobre si uma

outra sob a vigilância daquilo que não se pode esclarecer. Na sensibilidade apurada, ele

discute consigo no intuito de sair do evidente, portanto, no domínio da opinião corrente para

buscar maior consistência. Não há mais uma sabedoria suntuosa por trás de si, o homem

paradoxal se põe na ausculta do algo propenso a se dizer, no entanto, não está dito, de onde

ele mesmo foi excluído. Visto por este ângulo, seu posicionamento só poderia ser o de se

afastar do foco das atenções – tão solicitadas pela Doxa – para se por em condições de melhor

intervir. O corpo como palavra-chave é senhor na travessia do sentido enquanto inacabado, à

deriva. Na extensão da provável compreensão ajunta-se à palavra transicional, o outro lado da

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margem a ser tocada ou, vale reforçar, forma o novo sem ser inteiramente uma novidade; esse

o ideal das artes ao contemplar o homem.

O senso comum a ser vencido de maneira constante, exigente quanto ao equilíbrio de

situações e falas, cuja tentativa é de acabar com a noção do problemático tem, no parecer de

Roland Barthes, importância cada vez mais reduzida. Menor todas as vezes onde o disforme

vai para o primeiro plano, o neutro tem a mesma validação que uma direção fixa e o

paradigma se vê perturbado. Neste ponto ligamos a hermenêutica a auto-compreensão do

sujeito enquanto não se pode limitar à necessidade do fechamento, reduzido a uma obra por

exemplo. A idéia de continuidade prevalece sob um fundo de obrigação voluntária em

contrariar o já sabido; reagir contra a banalidade é colocar o corpo à frente numa correção do

discurso. Logo, escrever e imaginário são faces expletoras. Isto significa, ao olhar o corpo do

outro, a subjetividade em expansão o admite como uma proposta de passeio. Sem dúvida, o

percurso deixou de ser plano, rápido, fácil; os volteios, o problemático da visão diz respeito

àquele agente do olhar não mais do corpo olhado. Do contrário recairia na velha fórmula da

opinião corrente sempre em busca do significado, conforme podemos verificar: “o verdadeiro

jogo não está em mascarar o sujeito, mas em mascarar o próprio jogo.” (BARTHES, 2003, p.

159).

O corpo e o corpus têm a oferecer à subjetividade, a superfície da qual o eu se

ressente, pois a profundidade não diz respeito ao sentido do homem em estudo. Cada um –

lembremos que o interpretamos por uma faceta dúplice – tem na fragmentação a via

processual a qual encaminha à dispersão, afinal ser um mosaico de sensações é fugir de

distinções comprometidas com um não-eu. Há algo de indubitável quando admitimos trazer

no próprio corpo dois homens. Longe de ser uma sentença ditada pela Doxa isto pressupõe

colocar no devido lugar o potencial do imaginário sem o qual o homem perde oportunidade

ímpar passível de dizer-lhe quem é. Em O homem duplicado repetição, coincidência sem uma

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história lógica por trás flameja excepcionalidade considerando, “o repetir não é a reprodução

do original, como cópia, mas a sua reprodução, com diferenças.” (RAMOS, 2001, p. 126).

Entendemos se tratar de original tendo em pauta a dialética da subjetividade encontrada no

romance cuja condição do sujeito sendo conflitiva, interpela tal noção.

Ao estudarmos Aula (2007) observamos a preocupação de Roland Barthes já em 1977

com a impostação do sujeito declaradamente incerto num ambiente onde se exige exatamente

o contrário. No trabalho com a linguagem já antevia autoridade na asserção em detrimento do

gregarismo da repetição, no que acolhemos como desapontamento considerada a avaliação do

senso comum. A Literatura, espaço onde o corpo figura é possível trapacear a língua,

oportunidade para se ouvir a língua fora de instâncias redutoras. Aí onde o homem pode

sonhar com a plenitude embora tenha conhecimento que esta pode não ser alcançada em

termos da opinião comum. Pelo trabalho de deslocamento, o homem cujo corpo é visto sob

inúmeros focos de abordagem, tem na Literatura a oportunidade de ver o giro dos saberes

independente de haver prevalência de algum deles, com isso buscar identificação. Então como

Barthes assegura, na Literatura podemos saber de alguma coisa e se ela sabe algo das coisas

sabe muito sobre os homens.

O sujeito ao falar mesmo se às vezes o faz para si, se faz insituável ou desconhecido

em outras vezes. Pelo desejo sensato do impossível, ele é alguém na opção do caminho mais

difícil; alguém situado entre uma aparência de verossimilhança e com uma incerteza de

verdade. Aficcionado por manter um discurso sem o impor, o homem mais senhor de si faz

excursões sobre a escuta, a imagem extraída de si; livre com e pelas palavras, o gestual a

seguir ainda precisa ser elaborado. Senão como contestar: “se quero viver, devo esquecer que

meu corpo é histórico.” (BARTHES, 2007, p. 46) Viver sabendo: desaprender é preferível a

cumprir o determinado pela sedimentação dos saberes. Desaprender o sentido único, começar

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o já iniciado é ousar equivalente a atravessar a encruzilhada armada pelo senso comum para

granjear mais adeptos em cada opinião lançada.

O plural do corpo em vista e o vácuo sentido naquela proposição além de ser alguma

coisa de caça é igualmente fuga do estereótipo ao qual o homem Barthes desempenha no

sentido da legibilidade humana assente na Literatura. Contrariando um possível consenso

imaginado pela Doxa, o escritor tem na dissensão o revestimento no propósito de seu trabalho

com a língua a favorecer a responsabilidade da forma, seguramente seu ofício. Localizamos

na tensão entre o antigo e o novo esse gesto abrasador da escritura anunciadora, faz o sujeito

se anunciar, se procurar nos meandros da opinião pública desconsiderada. Os caminhos

possivelmente abertos diante disto, buscam argumentação entre o desdobramento de imagens.

Tal consideração entra em acordo com o visto na exposição de Roland Barthes por Roland

Barthes quando: “A Doxa não é triunfalista; ela se contenta com reinar; ela difunde; ela

gruda; é uma dominância legal, natural;” (2003, p. 171) sendo assim, a fim de iniciar um

discurso que pode não ser atrativo ou por outra, prosseguir no conhecimento do eu, não há

como negar contrariedades. A fala nutrida de desvãos e que não predomina, auxilia o sujeito

no pensamento igual a corpo, é corpus de se prender para logo em seguida vê-lo escapar,

duplicado existindo.

A voz sussurrante do senso comum sem dúvida ainda tenta investida, todavia, não tem

mais a força de junção anterior. O sujeito disperso e ainda não constituído às custas do

imaginário como sugere Barthes, não tem nenhum valor fundamentador, de preferência ser

sem escolha diante dos pedaços de mundo observados. Espedaçado tanto quanto o corpo da

severidade cede a vez ao corpo sendo corpus de descobertas com a diferença por horizonte.

Em relação ao eu peneirado nesse processo, volta na discussão sob a forma de espiral:

“desconstruída, desunida, deportada, sem ancoragem” (BARTHES, 2003, p. 185) que

justifique um saber universal. O homem detentor dessa descoberta não só rompeu com o

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senso comum como também está decidido a não se adaptar à generalidade do corpo, voz

altissonante em vias de se estruturar. Diferença irredutível, porém desejada na mudança

ofertada com o imaginário de acordo com a ausência, no resto excluindo-se a totalidade.

A fim de concretizarmos a visão do homem literário enfrentando o senso comum,

vejamos como José Saramago constrói essa imagem em O conto da ilha desconhecida (2006).

O humano sai do título, mas, o desconhecido da ilha faz ver o outro lado do homem

insatisfeito de si. Tanto é certo, pois a história inicia na voz do narrador a tratar da vida de um

homem – o homem de todos os tempos ansioso por saber mais de seu potencial. Outra vez o

anonimato de lugares e nomes retorna com a força da liberdade em se fazer notar, entender

acima do solicitado pela maioria ou requisitado como bem estar pessoal. Um homem e o rei.

Entre o comum e o insigne prevalece a vontade do primeiro que tem no seu desejo o

diferencial. O rei entediado por ouvir pedidos de toda ordem se depara com um homem que

queria conhecer o desconhecido; há entre eles a mulher da limpeza, cumpridora de deveres

igualmente inominada, igualmente ignorante não só dos desejos alheios também dos seus.

O homem queria um barco. Antes da manifestação deste desejo surpreende a atitude.

Ele quer algo para além da obviedade e para isso se mostra disposto a fazer com que seu

desejo se concretize, para espanto da mulher a transportar os pedidos, sobretudo da parte do

rei. Se lançar às aventuras era algo impraticável àquela época e, no entanto, aparece alguém

disposto a executar tal ação num tempo em que tudo tinha a aparência de explicado,

publicado. Quando o gesto convicto do homem provoca descontentamento social, o rei

resolve ir falar com ele tocado sobremaneira por uma inquietação maior. A singularidade

daquele homem reticente a cumprir os trâmites burocráticos exigia medida exemplar. O fato

do rei ir até aquele requerente do barco não foi surpresa a este, somente àqueles outros

pedintes, dada a postura de quem sabe exatamente o que quer e aonde ir.

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Repetido o pedido agora frente a frente com o imperador, o narrador se esmera em

mostrar a imagem vacilante, intranqüila do poder diante de quem se mostra a configuração da

paciência, pois, determinado em conseguir seu objetivo. Esperou pela pergunta inevitável em

casos semelhantes: para quê? Subentendido nela o questionamento de servir a qual propósito,

defendendo quais princípios? A que o homem no alto de sua serenidade responde: “para ir à

procura da ilha desconhecida” (SARAMAGO, 2006, p. 16). Vejamos que o homem mais uma

vez desnorteia sua majestade porque não fecha com idéias de um sistema, de uma vontade que

não seja a sua. Supondo ter à frente um louco ou alguém digno de riso – outro Dom Quixote –

o soberano resolve se divertir procurando detalhes, a razão secreta por trás daquilo cuja

aparência é um disparate. Prepondera novamente a tranqüilidade do homem contrastada à

postura de detentor do saber exibida pelo rei, dizendo não haver ilhas desconhecidas porque

todas estavam presentes nos mapas. Nesse momento da narrativa é explícito o questionamento

que o homem empreende concernente sobre a ilha – o desconhecido – não pode estar

enquadrado num saber caso contrário deixaria de o ser. Importa acima de tudo a busca, se

lançar à aventura embora não sendo mais a das grandes navegações ainda e sempre o é a de

saber sem se pautar no que outros dizem assinalando a impossibilidade. O impossível bem-

vindo para o homem com seu desejo de um barco para encontrar a ilha desconhecida é o de

haver desconhecido.

Convencido de merecer o barco, o homem argumenta: ao rei só interessa as ilhas

conhecidas e aquela em seu horizonte pode não se deixar conhecer. Diante do recuo do rei

outra vez a firmeza do homem na certeza de sua intenção mesmo não sabendo aonde chegará,

obriga o soberano a aceder naquele pedido; mesmo porque o restante da população já se

impacientava vendo tanta atenção a um ilustre anônimo. Deu-lhe o barco, mas não a

tripulação. Sozinho, deve arcar com as conseqüências de seu desejo.

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Desde que se postou em frente à porta dos obséquios, o homem do barco foi observado

pela mulher da limpeza. Contaminada com a determinação daquele sujeito sem atributos,

resolve deixar a servidão da limpeza para acompanhá-lo, somar num sonho de hora em diante

também o seu. Então os dois estão resolvidos cada um a seu modo, a modificar a vida até

então com aparência igual. Ela ainda não se manifestou, mas segue seus passos rumo ao porto

onde tomará posse do barco sonhado. Na presença do capitão surge de novo a pergunta muito

comum nessa situação no sentido de como proceder porque a empresa é no mínimo arriscada.

Sabes navegar? O que equivale a, sabes como lidar com o desconhecido para este deixar de o

ser? Sabe as regras, os ditames para conseguir algo muito além de suas possibilidades? Como

vimos, não é o resultado o interesse maior desse homem singular, a resposta não poderia ser

outra: aprenderei no mar. Podendo ser também, aprenderei durante a travessia, saberei qual

atitude tomar quando o problema aparecer. O barco com o qual ele quer se atrever é bem

superior à ousadia do capitão que teme os perigos do desconhecido porque julga conhecer de

antemão os percalços do caminho. Outro personagem detentor do saber, por isso se acomoda

ao conhecido diametralmente oposto ao protagonista.

Diante dos obstáculos propostos pelo senso comum: não ser atendido pelo rei; não

existe ilha desconhecida; não ir com qualquer barco; não saber navegar; não conhecer o

trajeto; não ser marinheiro, ao que o homem com sua vontade de um barco responde com a

linguagem de marinheiro, linguagem de todo ser humano em busca de dignidade: o respeito

pelo que se é. A ilha “onde nunca ninguém tenha desembarcado” (2006, p. 27) como o

capitão critica perfaz justamente por isso o interesse maior do homem. A dúvida da chegada,

na perspectiva do capitão o maior empecilho, motiva ainda mais o pretendente do barco

porque ao final não há garantia de certeza, do absoluto que provavelmente moldou sua vida

até aquela decisão única num reino de mediocridades. Daí a consciência de às vezes se

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naufragar pelo caminho, se completa com o pensamento de sempre se chegar a algum lugar

mesmo não sendo o pretendido.

O antigo aspecto do barco não assustou o homem. É como se ele desse um significado

novo a algo fadado a ser o mesmo, atracado naquele cais sem partidas. Algo agradável

também à mulher da limpeza que nesse exato instante da narrativa se apresenta com a mesma

determinação do homem, a ser sua companhia naquela empreitada. Pela porta das decisões

onde ela havia saído do palácio do rei, às portas abertas com o traçado em busca da ilha

desconhecida, a mulher da limpeza é outra pessoa à procura.

Num segundo momento do conto após ter conquistado o barco, ter se imposto pelo

sonho de ir em busca da ilha desconhecida e ter a seu lado a mulher da limpeza, o homem sai

para recrutar a tripulação no intuito de encontrar pessoas a compartilharem de seu sonho. E,

não à toa Saramago escolhe a hora em que o personagem retorna a seu barco; o sol havia

acabado de sumir-se no oceano quando o homem retorna sozinho e cabisbaixo. É o momento

do limiar. Instante no qual aflora a humanidade dos personagens; a presença da dúvida, de se

questionar sobre a validade do querer; fraqueja o homem, mas não a mulher transformada ao

se espelhar nas atitudes iniciais do dono do barco. Procura alternativas na fala contaminada do

homem enquanto significa a opinião corrente, aquilo que todos ouvem, sem por reparo à

maneira da fala dos marinheiros procurados: não há ilhas desconhecidas e se as houvesse não

era algo a merecer sair do conforto das casas; sair da navegação segura dos barcos de carreira

a ir em busca do impossível.

Temos aqui uma espécie de inversão, o homem antes inabalável pelo querer agora se

mostra fraco diante do escárnio dos homens comuns, enquanto a mulher ocupante do barco –

ocupa o mesmo sonho impossível – é quem questiona, se mostra indignada na argumentação

pouco incisiva daquele que ela aprendeu a admirar. Enfatiza o objetivo da ilha desconhecida,

da certeza de sua existência demonstrada pelo dono do barco. Entre uma indagação e outra

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acerca do que fazer, ainda perdura a vontade de encontrar a ilha desconhecida. Nesse

momento da narrativa na fala do homem com seu antigo sonho de um barco, após realizá-lo

para ir ao encontro de sua ilha, há a manifestação clara de qual sua pretensão maior em agir

dessa forma: “quero saber quem sou eu quando nela estiver,” (SARAMAGO, 2006, p. 40).

Vale retomar, O conto da ilha desconhecida foi publicado pela primeira vez em 1998 e nele já

fica claro o direcionamento das futuras criações literárias do escritor. A busca de si discutida

ao longo de nossa narrativa mestra, O homem duplicado de 2002, é de certa forma uma

extensão dessa procura. No conto, quando perguntado sobre se ainda não sabia de algo

aparentemente óbvio, o homem não se constrange mais diante do senso comum comentando a

necessidade que cada um tem de sair de si para compreender quem é. Apesar de isso

acontecer de forma figurada no romance, permanece a dúvida, prevalece um encontro por se

concretizar. A permuta não é apenas do lugar, é, sobretudo, a suspensão de uma significação

cristalizada pelo mundo por outra, neste ponto, o absurdo e a ignorância a seus olhos se

equivalem. É sobremaneira, o acolhimento destes últimos o divisor de águas para o homem

sem respaldo para o saber de si.

A mulher no barco ao adotar novo estilo de vida, reconhece poder aprender com cada

dificuldade, o ignorado perde o sentido quando se olha de frente e o medo é esquecido. Pelo

exemplo do homem ao dizer-se marinheiro estando em alto mar, ela também se mostra prática

ao cuidar do barco. Agora há uma comunhão do sonho fortalecida porque são duas vontades

celebradas em detrimento daquilo que a opinião corrente decide como o certo a se fazer.

Embora esta deixe rastros de si num conflito interior, por exemplo, na suposição de não

encontrar tripulantes fazendo disso uma provável desistência, a outra parte desse duo

demonstra o irreversível da transformação. Se não encontrar os tripulantes necessários, a

mulher se dispõe a ir sozinha com ele. O homem via tal decisão como loucura, não a

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estampada na porta do palácio do rei, mas, aquela visível nas atitudes de sua companheira,

esta retira a serenidade em poder realizá-la.

No intervalo do sono no barco, as agruras também cessam ao serem tomadas pelo

pensamento de ambos os futuros navegadores. Como o narrador do romance As

intermitências da morte anuncia: “É o costume dessa gente, nunca acabam de dizer o que

querem.” (SARAMAGO, 2005, p. 164) E, se não acabam é porque têm muito para viver,

muito por saber da ilha a se distanciar a cada vez havendo desconhecimento. No sonho do

homem em querer a ilha desconhecida, ele está feliz porque finalmente sai a navegar como

um novo Noé com a missão de povoar a terra. Formando um casal com a mulher, juntamente

com os animais no porão eles finalmente atracariam naquela ilha ignorada pelos mapas. De

leme nas mãos, o que fazer de si também, o homem no sonho, mas consciente de sê-lo, tem

um pensar fingido e não se envergonha disso. Sabe de certeza apesar de não saber como o

sabe que a mulher estava ao alcance dos olhos; ela, a terra, as plantas a bordo num significado

maior de germinação, proliferação daquela maneira diferenciada de viver.

Mesmo no sonho a voz do senso comum ainda pretende se sobressair aos volteios do

homem cujo leme tem firme nas mãos. Os pretensos marinheiros ao relatarem sobre o não

avistarem nenhuma ilha conhecida ou seu contrário, manifestam a vontade de atracar na

primeira terra povoada à vista. O porto, uma taberna e uma cama figuram como o desejo deles

pelo estabelecido. Quando questionados sobre a ilha desconhecida – aquilo que eles mesmos

são e não o reconhecem – o escárnio é inevitável; se os geógrafos do rei haviam afirmado a

inexistência de ilhas desconhecidas, embarcaram na aventura pelo motivo de encontrar novas

terras sendo a viagem do homem, um subterfúgio. Sentindo-se abandonado, vítima da própria

decisão, o homem agora proprietário de um barco e uma vontade, aprendeu da forma mais

dura: o mar não ensina a navegar; não era detentor de um saber prévio para essa aventura.

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Ao avistar terra longínqua quis ignorá-la para protesto dos falsos marinheiros à bordo.

Sua intenção era fazer dela algo como uma miragem daquela ilha desencadeadora da viagem.

Essa terra alcançada pelos olhos dos homens a qual era o lugar onde desembarcariam

conforme manifesto se transforma em motivo de ameaça ao dono do leme. Aqueles

companheiros de ocasião descem do barco com assentimento do dono, levando junto os

animais do porão, ficando apenas as árvores, os trigos e as flores. As raízes das árvores se

espalham, abrindo caminho como as caravelas vão aos poucos formando uma floresta, abrigo

dos pássaros. A relação com o desfecho da história de Noé é inevitável. A nova terra, o canto

dos pássaros anunciando vida – vida transformada – porque a seara está madura precisando

apenas ceifá-la. No instante em que sai para fazer a colheita, o homem acorda abraçado à

mulher da limpeza. É o momento no qual a transformação maior se opera. O barco com a terra

do sonho espalhado sobre si, as árvores crescendo em seu interior é enfim a ilha desconhecida

procurada por ambos. No encontro íntimo das consciências há maturidade, esta chega pela

hora do meio-dia, metáfora do auge da razão iluminada pela emoção do conhecimento

alcançado. Levados pela maré, no mar, os dois não atracam, seguem sem rumo traçado como

a ilha desconhecida à procura de si mesma.

Esse conto de José Saramago contempla de forma satisfatória a luta travada entre o

homem e o senso comum. O gesto de ir contra o sentido armado, empreendido pelo

protagonista ao querer de forma incontestável algo que possa dizer quem ele é, de

enfrentamento das questões colocadas como impedimento, passa em primeiro lugar pela fase

de nomeação. Não é demais repetir: primeiro manifestou de maneira clara e contundente seu

desejo de um barco; depois qual era a intenção com aquilo; em seguida postou-se frente à

porta onde o rei atendia os pedidos; por meio disso se faz ouvir; tem o barco mas a tripulação

só existe em sonhos. Nisso surge a dúvida se o conhecimento almejado significava uma vida,

ocasião na qual a mulher da limpeza retoma o ideal e o impele a consegui-lo. Durante toda a

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narrativa a começar pelo título o inominado predomina: não é uma ilha como outras, é a

desconhecida; o homem do conto não é o sinônimo de grandeza, alguém em quem se põe

reparo pela mudança de um estado de coisas. A metamorfose é dele mesmo junto da mulher

igualmente sem nome. Quando o processo de nomeação ocorre na história – falar do desejo,

se converter nele, enfim, entrar para dentro do espelho – é o momento de dar nome ao barco,

não é mais um barco para ir ao encontro do ignorado, conforme solicitou ao rei. O barco que

por iniciativa do homem e da mulher se chamará ilha desconhecida não irá parar como o fez

os acomodados quando avistaram a terra. A viagem continua como o sentido de si procurado.

Ao se abrirem para o problemático da vida, impulsionados pela maré, em alto mar,

notemos, o homem não está mais ao leme e sim na proa do barco junto da mulher. Na nossa

interpretação isso amplia o sentido na medida em que o personagem – o homem levado pela

vontade de ser – não se firma num lugar a assentar. Os percalços, o se sentir inseguros (a

maré) não é algo para ser temido, é, por outro lado, um trajeto impossível de se desviar por

estarem atentos à diversidade.

Os dois personagens, à maneira de um complemento assim como fazemos a leitura de

Tertuliano Máximo Afonso e António Claro, protagonistas de O homem duplicado são a

expressão de duas metades ímpares. O vazio experimentado no primeiro caso ao não

encontrarem marinheiros para o barco, depois serem abandonados por eles e no segundo ter a

imagem atrelada a um desconhecido, em seguida ser convertido nela sem achar nova máscara,

provoca sentidos. Se estão sozinhos, estão por outro lado no domínio do pensamento acerca

de si. Todos eles a seu modo não se satisfazem mais com o concreto. Uma ressalva é preciso

fazer com relação a este último ponto. O homem e a mulher uma vez dentro da ilha

desconhecida, bem como o homem cuja imagem não é mais sua, perfazem o duplo. Todos

eles se tornam dignos de si quando partem em busca do ignorado movidos pela vontade

pensamentada cujo propósito é capturar o acontecimento.

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Se os personagens das narrativas mencionadas se arriscam rumo à diferença num

modo de viver, escolhem a terceira via ao se deslocarem. Ao pretenderem uma nova história

acerca de si mesmos, tomam junto da vontade decidida o objetivo de afastar o senso comum

procurando manter a serenidade em meio ao intempestivo dos acontecimentos. Nisso são

muito intensos a ponto de causar estranheza: vide o modo pelo qual os circundantes no

palácio se surpreendem com a vinda do rei para ouvir o pedido de um homem do povo; o

comentário do professor de Matemática sobre o de História: você não é mais o mesmo.

Quando os anseios do mundo já não satisfazem os personagens, o inesperado se

transforma em atrativo de maneira tal a se transformar no motivo da busca por saber quem

são. O erro no qual possivelmente se viram por obra e graça do senso comum é de ora em

diante, a mola-mestra para fundar com a própria decisão um conceito mais condizente. Por

isso percebemos, os desnorteios por se ver duplicado tem tanta validade para uma significação

de si quanto a convicção da ilha desconhecida existir; apesar de não constar nos mapas, o

impensado prevalece. Pressupostos estes no intuito de as questões existenciais serem

colocadas, o homem literário sente, avalia e aceita o dilema em condições cabíveis de se

enfrentar.

Na prevalência das emoções e sentimentos propostos na literatura de José Saramago, o

eu dos personagens se sente parte de um conteúdo a ser desvendado, uma ilha. Ser primeiro

neste contexto não significa determinar quem é original ou cópia, refere-se por outro lado a

reconhecer e fazer valer o nada como experiência de vida. Absorvidos pelo caminho, os

personagens deixam de serem os espectadores e agem no sentido da auto-identidade à maneira

de abertura. Em questionamento, o homem ao sujigar o senso comum pergunta sobre o

próprio corpo, a relevância de si junto dos anseios mais recônditos que de repente não podem

mais ser sufocados. É então a ocasião de serem tomados pelo desejo de conhecer. Com o

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auxílio do sonho/imaginação irreconciliável com o senso comum, o ser literário é

compensado com os vãos obscuros de si.

O fato dos personagens anônimos de Ensaio sobre a cegueira, A ilha desconhecida e

As intermitências da morte terem os mesmos objetivos de conhecimento, ao serem nomeados

n’O homem duplicado não significa o alcance da segurança ontológica. Com a perda da

notoriedade pelo nome, os seres fictícios povoam esse último livro e incandescem a

humanidade através da busca de algo sem causa, do específico entrando em vigor assim que

um sonho se torna realidade. A subjetividade assume o primeiro plano não é mais a mesma

até pelo recurso da interpretação adotada. O duplo e a ilha. Os personagens voltam a se

perguntar: quem sou eu?

Sem dúvida, essas narrativas são especiais porque apresentam o homem em plena

manifestação de si. Tomando-se como a partida para um recomeço embora o duplo possa

aparecer do outro lado, instiga o sujeito no papel de comandante sem subordinados, a estar

atento ao porvir. Diferentes no conhecimento à vista, se com sentido ou sem ele, o corpo

duplicado pelas emoções tece as arranhaduras e não mais se lamenta por elas. O inesperado

contraria, tem agora a possibilidade de se situar na tensão apesar de não se incomodar com

isso. Podemos dizer, funciona como uma espécie de desnomeação, sabendo com antecedência

não ter a intenção de se impor. Isto tem cabimento, por exemplo, quando o homem dono do

barco não se opôs na saída dos tripulantes afoitos pelo conhecido. Em pleno mar, a

ancoragem se houver daí em diante será em espiral. Em condições semelhantes, sem nome,

sem vida, o duplicado não consegue se impor nem para si, porém sai à procura, de uma

escolha?

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09. CONCLUSÃO:

Na concepção de que a Literatura oferece uma leitura do homem, partimos na

empreitada conscientes dos entraves à frente porque a matéria-prima – o presente – confina a

figura humana e assim sobrepuja qualquer tentativa de fazer dessa forma de pensamento,

simples referência da subjetividade. Diante do problema hermenêutico de que nos

encarregamos, o não-sujeito aquilata o grau de percuciência na desrazão com que insistimos

em dotá-lo com posições interpostas. Esse, não surgindo do nada, pelo contrário,

incorporando papéis a se interpelarem, se dispõe à inquirição. O processo dá o tom da

discussão e por ser assim, o resgate da individualidade bem como o da afirmação são

igualmente colocados sob questionamento dentro da Pós-modernidade. É importante escapar

à conclusão de uma poética do Pós-modernismo vinculada ao jogo dos contrários em que o

dissimilar fosse fruto de alguma verdade universal aceite. Conforme esta maneira de conceber

o homem e os acontecimentos por ele provocados, há a separação fundamental dos níveis e

vozes harmônicos sem recombiná-los na sua totalidade; algo que já encaminha as

possibilidades do humano inaudito acontecer. Tal elemento se destaca neste propósito por

causa do abandono do desejo assim como da expectativa de um sentido indiscutível. Sair à

procura de si já é um reconhecimento do valor das diferenças a se alcançar, inclusive das

contradições como procedimento significativo. Do ponto de vista teórico, a Pós-modernidade

não surge enquanto proposta de garantia de felicidade numa aclamada era de extremos, como

destaca aquela parte da crítica afoita em condenar qualquer estudo que faça referência a essa

configuração. O sujeito aí localizado pulula, procura se entender marcando ou tentando

definir uma subjetividade, sabendo-a não definitiva. Então, ao pesquisarmos a persona

narrativa Tertuliano Máximo Afonso, podemos nos manifestar sobre, descartando a possível

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perfectibilidade humana instada através da repetição imagética no romance O homem

duplicado.

A visão genuína a que nos propomos, ao contrário de uma corrente crítica alinhada

com o duplicar de determinado discurso, põe acento na resistência. Saber o mundo, saber o

homem do tempo atual exige outro tratamento. O texto de José Saramago não pode ser

esquadrinhado partindo de uma linearidade entre os dois personagens que dão vida à trama da

duplicação. O erro no qual se vê espelhado o personagem se transforma em errância, o nó

intrincado perfazendo o desenredo da narrativa. Não há resgate de essência no mundo

imagético misturado; o retrato duplica a crise da condição humana intolerável com a ordem a

não ser se esta for a do caos deflagrador de outra existência. Logo, faltam subsídios em

denunciar a crítica comprometida com o vazio sem chegar ao âmago. A certidão da incerteza

ronda o ser fictício proporcionando à interpretação, pautada pela junção entre ficção e teoria,

abonar o vazio cercado com o Nada a construir uma personalidade diferenciada. Dentre os

muitos significantes in abstracto, certamente não é um romance à margem de nossa própria

consciência crítica em que pese à homogeneidade, padronização humana imperante na

contemporaneidade. É, outrossim, o dimensionar do erradio uma vez descartada a

possibilidade de representação do homem bem como fugir de equívocos interpretativos.

Longe de querer propor um resultado sedimentado pela idéia de negação da razão para tratar o

conhecimento sobre o homem, nossa leitura teve como aporte destrinchar o romance por outro

olhar. Dessa maneira, houve o realce na conjugação de Literatura e Filosofia em que

predomine o inexato da resposta, impreciso do querer, insensato do poder em relação à figura

humana colocar-se a questão de ser perfectível como homem.

O Homo aequalis escapa a uma compreensão holística porque no vácuo, na

efervescência de uma era polissêmica, o vazio é tábua de salvação mediante o excessivo.

Correlato ao aniquilamento emerge o Nada produtor de sentido. Desamparado, o homem

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avança na possibilidade de viver sem compreender e de modo vertiginoso postado entre as

escolhas particulares. Portanto, o individualismo que tratamos na narrativa se equipara a uma

nova angulação do que acontece hoje em termos globais; a indiferença produtora do

sentimento de repetição e estagnação gera por outro tanto a necessidade de querer saber de si.

Sem beirar à tragédia nem alimentar uma diagramação apocalíptica, a história do professor

deixa rastos antinômicos perfeitamente assimiláveis, pois, a era pós-moderna o qualifica ao

status de avatar.

De ídolo decaído a mestre sem doutrina, o homem sai da falta de expressividade

renitente com a própria imagem. O deserto deste Narciso de nossos tempos emana o

esvaziamento da substância epistemológica de que até então se nutria; a sensibilidade retida

ganha nova concepção e não tendo mais nada para mostrar nem dizer, o homem se faz à

medida que, consciente de poder viver sem finalidade se vê disponível à dispersão. A

caminho, ele observa a imperfeição como atributo humano uma vez perdida toda e qualquer

referência. O modelo perdido para o espelho se reveste do Nada construtor a partir dessa

visão; tal situação particular se eleva ao nível de endossar no personagem uma similitude do

homem contemporâneo. Questionar sobre o que virá depois é fator conducente para se manter

na diligência na qual a contemplação supera a tranqüilidade de uma vida pré-determinada. O

final da narrativa guia de nossa interpretação se afina com a proposta de leitura trabalhada

cuja continuação ambivalente de duplicidade, nos impede de confirmar uma subjetividade

capaz de responder ao homem de modo conclusivo quem ele é. Algo que pensamos ser o item

mais adequado para se estudar junto à linguagem literária. A aquisição do conhecimento

citado exige da multiplicidade em debate a audácia necessária para ao invés de ver e falar,

olhar, ouvir e então esperar até poder se manifestar sobre o teor de significância onde nenhum

predicado pode mais ser aplicado. Se a questão deixou de ser o que fazer e se volta para quem

ser, a discussão se acirra quando o homem se coloca indisposto a servir ao rigor lógico-

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analítico para pelo menos se sentir confortável com a pergunta. A viagem errante na qual se

encontra desguarnecido, o inviso pontilha os passos manifestamente inseguros, mas não

menos válidos por isso. É certo o abismo, entretanto, como atravessá-lo se impõe por meta;

flui desse confronto o reflexo profundo de um conflito arregimentado na vulnerabilidade.

Estando só, o homem pós-moderno deseja sê-lo ao passo que não suporta a si mesmo

neste estado, por isso avança aos poucos diante do desconhecido. Ao se ambientar na

desafeição, abre espaço para se desembaraçar de supostos complexos porque interessa

sobremaneira o saber de si. Acreditamos que não é crível condená-lo por alienação frente ao

sentido histórico no qual poderia interferir. No caso específico do Professor de História, sua

contribuição é bastante significativa porque se preocupa com o labor diário, ao ponto de

exigir mudanças, inclusive colocar em prática suas idéias ao elaborar um estudo visando

concretizar o que os demais profissionais ridicularizavam pela aparente improbabilidade. Por

conseguinte, a sensibilização com o mundo não é epidérmica, passa primeiro pela

sedimentação constitutiva da personalidade pós-moderna disponibilizada com o heteróclito.

Em face ao esmigalhamento do Eu, o desprendimento em relação ao Outro gera a

consciência diferenciada numa réplica marcada pela dissolução, fato este responsável pelo

esvaziamento do conteúdo definitivo. Se o corpo pôde ser colocado em paralelo, a sabedoria

interior não foi possível porque primeiro, era preciso ser resgatada através das emoções pouco

vivenciadas naquela história duplicada. Depois, era necessário ser demarcada, para isso o

mais difícil sempre se coloca à frente, ora fazer o corpo existir por si, se estabilizar na auto-

reflexão, reconquistar a interioridade, ora, transitar não sem inquietação pela humanidade em

alerta. Frente ao reinado indiferente da igualdade, o homem in-comum contraria teorias

adversas que o faz excluir a história e o social, enquanto ensina/aprende na mesma disciplina

cujo pensamento não se assombra com o porvir. É então o traço a desunificar a existência que

caracteriza o ser humano de agora.

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10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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