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O Homem da Arte de Escrever ... Pereira & Júnior Revista Diálogos – N.° 18 – Set. / Out. – 2017 118 O HOMEM DA ARTE DE ESCREVER E PINTAR DEUS: UMA COMPARAÇÃO SIMBÓLICA NA PINTURA “A CRIAÇÃO DE ADÃO” DE MICHELANGELO E NOS POEMAS MALDITOS, DEVOTOS E GOZOSOS” DE HILDA HILST. d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p118 Paulo Fernando de Sousa Pereira 1 Francisco Pereira Smith Júnior 2 Resumo: Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma leitura comparativa entre a pintura de Michelangelo intitulada “A criação de Adão” e o Poema de Hilda Hilst “poemas malditos, devotos e Gozosos” em que será observada a relação que há entre essas obras com foco na figura de Deus. Para isso será estabelecido como ponto de referência entre essas artes uma análise que contemplará os símbolos para demonstrar semelhanças e divergências para entender esse processo comparativo. Como referencial teórico para este artigo serão utilizados os estudos de CARVALHAL (2004), que trata da literatura comparada e seu método de estudo; MARTINS (s/d) que apresenta um estudo sobre Michelangelo e sua constituição enquanto pintor e escultor; CHEVALIER & GEERBRANT (2003) que estuda o símbolo e seus significados e MACHADO & PAGEAUX (1989) sobre a literatura, a interdisciplinaridade e a relação desses estudos com outras artes. Palavras-chave: Literatura comparada, Artes, Símbolo. Abstract: This work aims to establish a comparative reading between Michelangelo 's painting titled "The Creation of Adam" and Hilda Hilst' s poem "cursed, devout and joyful poems" in which will be observed the relation between these works with focus In the figure of God. For this, an analysis that will contemplate the symbols to demonstrate similarities and differences to 1 Especialista, UFPA. 2 Prof. Dr., doutorado pela PDTU/NAEA/UFPA

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Revista Diálogos – N.° 18 – Set. / Out. – 2017 118

O HOMEM DA ARTE DE ESCREVER E PINTAR DEUS: UMA

COMPARAÇÃO SIMBÓLICA NA PINTURA “A CRIAÇÃO DE

ADÃO” DE MICHELANGELO E NOS “POEMAS MALDITOS,

DEVOTOS E GOZOSOS” DE HILDA HILST.

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n18p118

Paulo Fernando de Sousa Pereira1

Francisco Pereira Smith Júnior 2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma leitura comparativa

entre a pintura de Michelangelo intitulada “A criação de Adão” e o Poema de

Hilda Hilst “poemas malditos, devotos e Gozosos” em que será observada a

relação que há entre essas obras com foco na figura de Deus. Para isso será

estabelecido como ponto de referência entre essas artes uma análise que

contemplará os símbolos para demonstrar semelhanças e divergências para

entender esse processo comparativo. Como referencial teórico para este artigo

serão utilizados os estudos de CARVALHAL (2004), que trata da literatura

comparada e seu método de estudo; MARTINS (s/d) que apresenta um estudo

sobre Michelangelo e sua constituição enquanto pintor e escultor; CHEVALIER

& GEERBRANT (2003) que estuda o símbolo e seus significados e

MACHADO & PAGEAUX (1989) sobre a literatura, a interdisciplinaridade e

a relação desses estudos com outras artes.

Palavras-chave: Literatura comparada, Artes, Símbolo.

Abstract: This work aims to establish a comparative reading between

Michelangelo 's painting titled "The Creation of Adam" and Hilda Hilst' s poem

"cursed, devout and joyful poems" in which will be observed the relation

between these works with focus In the figure of God. For this, an analysis that

will contemplate the symbols to demonstrate similarities and differences to

1 Especialista, UFPA. 2Prof. Dr., doutorado pela PDTU/NAEA/UFPA

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understand this comparative process will be established as a point of reference

between these arts. As theoretical reference for this article will be used the

studies of CARVALHAL (2004), which deals with comparative literature and

its method of study; MARTINS (s / d) who presents a study on Michelangelo

and his constitution as painter and sculptor; CHEVALIER & GEERBRANT

(2003) that studies the symbol and its meanings and MACHADO & PAGEAUX

(1989) on literature, interdisciplinarity and the relation of these studies with

other arts.

Keywords: Comparative Literature, Arts, Symbol.

Introdução

A sociedade em que coexistimos é constituída de pensamentos

diferentes sobre aspectos da vida que nos é comum, podemos perceber

isso na constituição do pensamento sobre a origem da vida que é

considerado algo divino, mas também algo puramente natural, biológico.

As artes como o todo, são objetos desse questionamento, demonstrando

assim a capacidade que o homem tem de criar a sua maneira a visão sobre

algo que constitui o nosso mundo e universo.

Nessa busca por uma explicação e resposta aos questionamentos

está um tema que é muito debatido no universo científico e artístico que

é Deus, porém não é um tema fácil de discutir e representar como fazem

as artes, pois torna-se polêmico devido a sua projeção na vida social e

religiosa de cada pessoa. Sendo assim, as obras de artes no geral

comumente utilizam a Bíblia, onde encontramos a base do cristianismo e

da existência de Deus para reformular e questionar tais pensamentos que

lá se constituem. Ou seja, da mesma forma que a bíblia pode ser

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entendida como um objeto criado pelo homem (mas que apresenta um

caráter religioso capaz de mudá-lo), assim também os autores como

homens e mulheres compreendem que podem reescrever essa história e

criar um novo pensamento sobre o ser Divino. Um exemplo maior dessa

reescrita e mudança de pensamento é o Evangelho Segundo Jesus Cristo

de José Saramago, por isso que muitas obras de artes apresentam

semelhanças em sua composição, devido beberem da mesma fonte ou

mesmo de dialogarem entre si.

Para compreender um pouco dessas escritas sobre Deus, este

trabalho busca fazer um diálogo entre a pintura de Michelangelo “A

criação de Adão” e os “poemas malditos, devotos e gozosos” de Hilda

Hilst por meio da literatura comparada como forma de perceber as

semelhanças que podem ter ambas as obras, assim como possibilitar uma

reflexão acerca da possível relação entre uma pintura e um poema, já que

são bastante diferentes em termos de composição, mas que podem ter um

certo contato que possibilita tais semelhanças, competindo assim para a

literatura comparada enquanto ciência que busca estabelecer esse pontos

de contatos para tal investigação.

A semiótica também contribuirá para este estudo devido se

utilizar de um método que abarca ambas as obras em discussão, visto que,

contempla uma discussão mais interdisciplinar. Como não se pode

utilizar um método de estudo totalmente literário (a outra obra trata-se de

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uma pintura) parte-se de uma perspectiva diferente e que tem seus

métodos próprios de análise.

Por fim, este artigo busca por possibilitar uma leitura que mostre

as influências que a literatura pode sofrer de outras artes, como a pintura,

e demonstrar que a escrita(literatura) pode ser influenciada por esse tipo

de linguagem, assim como a possibilidade de artes de épocas e estilos

diferentes estabelecerem pontos de diferenças e semelhanças.

Literatura Comparada: um olhar interdisciplinar e intertextual

A Literatura comparada é um ramo da literatura que tem seu

nascimento nas ciências naturais e nessa era usada para “comparar

estruturas ou fenômenos”, mas ela realmente se consolida como um

método de investigação literária na França. Mas é a partir de várias

publicações de autores que começa a ganhar seu espaço dentro da

literatura como uma disciplina que hoje é essencial para estudarmos as

influências de uma ou mais literaturas ou até mesmo de outras áreas do

conhecimento e da cultura.

Esse método de estudo é útil para compreendermos como

acontece no contexto literário o contato entre obras de épocas e contextos

diferentes, pois além de termos o contato entre obras literárias, temos a

possibilidade de haver o contato entre tipos diferentes de artes como a

possibilidade de termos um diálogo entre uma pintura e um poema,

sendo assim é possível por meio da comparação perceber como essas

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obras podem absorver umas as outras para criar a sua visão acerca do

objeto retratado, como exemplo, as práticas de vida e os modos como

criamos os nossos mundos míticos.

Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma

específica de interrogar os textos literários na sua interação

com outros textos, literários ou não, e outras formas de

expressão cultural e artísticas. (CARVALHAL, 2006 p.

73).

Ou seja, a literatura comparada é uma forma de possibilitar uma

leitura de obras tão diferentes como é o caso de uma pintura e um poema,

além de mostrar o quanto que hoje a linha de contato é bem menos expeça

e que se apropriar e reinventar ou mesmo aumentar uma possibilidade de

visão é demonstrar o quanto que o contato entre obras de expressões

diferentes é muito comum e que não pode ser visto como plágio, mas

como uma forma de releitura, pois para Carvalhal (2006, p.54) “a verdade

é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior,

atualiza-o, renova-o (por que não dizê-lo?) o re-inveta”.

A comparação pode possibilitar o entendimento sobre o processo

de absorção ou contato que uma literatura tem com outra percebendo a

influência que esta recebe, não só de uma obra, mas de várias outras

formas da cultura em que esta se encontra; “o processo de escrita é visto,

então, como resultante também do processo de leitura de um corpus

literário anterior. O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou

vários outros).” (CARVALHAL, 2006, p. 50), nesse caso cada obra

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recebe por meio da leitura a outros textos a influência e tornar-se uma

réplica, mas não em um sentido de cópia, pois como citamos acima, o

texto se renova, demonstrando assim o seu ponto de partida que sempre

é o outro, pois cada escritor ao longo de sua vida fez muitas leituras de

autores diferentes e muitas das vezes se identificou com aquela escrita ou

também fez várias leituras do próprio mundo que o cerca, mas decidiu

apenas por uma visão acerca da coisa retratada e é nesses pedaços de

diferentes leituras que podemos identificar os resquícios do outro que é

um caminho da qual podemos compreender como que se construiu

determinada obra e quais influências recebeu, já que o inédito é algo

considerado como que inexistente, porque já se comentou tudo, então o

que resta é a renovação “desse eu” que foi absolvido do outro.

O Signo

Semiótica é a ciência que estuda os signos, e nesse sentido

podemos entender que as possibilidades que esta ciência tem são vastas,

pois os signos estão presentes nos diferentes campos do conhecimento,

pois existe uma linguagem verbal que “é o uso da língua que falamos e

da qual fazemos uso para escrever” e uma linguagem não verbal que são

as outras várias possibilidades de comunicação que estão fora do âmbito

da língua, pois “Nos comunicamos e nos orientamos através de imagens,

gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons

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musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e

do apalpar” (SANTAELLA, 2004, P. 10).

Isto é, a esses outros tipos de comunicação damos o nome de

linguagem, porém não no sentido que a língua não faça parte desse meio,

mas é por meio destes outros modos de comunicar que a comunicação

sem a língua acontece. A linguagem engloba tudo que expressa o

pensamento e que é o campo de atuação da semiótica e como ela está

presente em todos os campos, acaba por fazer uma grande confusão e

para não causar determinadas polêmicas é definido o seu lugar no mundo

das ciências colocando os “fenômenos” que são produzidos como seu

objeto de investigação.

A nossa vida é composta de representações, imagens, símbolos e

tudo isso leva a construir um mundo de linguagem ao qual chamamos de

signo;

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um

objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou

determinante do signo, mesmo se o signo representar seu

objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto

implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa

maneira, determine naquela mente algo que é

mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual

a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a

causa mediata é o objeto, pode ser chamada de

interpretante. (PEIRCE apud SANTAELLA, 2004, p.58)

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Compreendendo o signo como algo que representa algo, então as

artes são signos que buscam por captar outras formas de representações,

ou seja, outros signos para assim produzir significações acerca da

constituição da vida. A literatura e a pintura são formas de representação

da vida, ou seja, são signos que podem ser compreendidos como objetos

que agem como interpretantes nessa função sígnica.

Pierce (2004) compreendendo a relação com o objeto divide o signo

em símbolo, ícone e índice, mas o que nos interessa nessa análise é o

símbolo e que segundo Chevalier & Gheerbrant (2003 p.11) “os símbolos

estão no centro, constitui o cerne dessa vida imaginativa. Revelam os

segredos do inconsciente, conduzem às mais recônditas molas da ação,

abrem o espirito para o desconhecido e o infinito”, ou seja, ele é o que

representa o mais íntimo do ser, sem que tenhamos a noção do que se

trata, e se diferenciando da natureza do signo, apresenta uma

homogeneidade, sendo assim a sua explicação parte de uma ideia coletiva

e não individual.

Michelangelo e Hilda Hilst: distâncias e semelhanças

Michelangelo nasceu na cidade de Capresse, no dia 06 de março

de 1475, mas passou parte de sua infância e adolescência em Florença,

seu pai era um homem muito severo e temente a Deus, sua mãe morre

quando estava com 5 anos de idade. Primeiramente foi aprendiz de

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Domenico Ghirlandaio, este percebeu seu talento e o enviou para

Lorenzo de Medici, recebendo influência de vários artistas da época,

morou em Bolonha durante 4 anos e recebeu um convite do Cardeal San

Giorgio para morar em Roma. Entre os anos de 1508 e 1512 pinta o teto

da capela sistina no Vaticano e morre em 18 de fevereiro de 1564. Suas

obras revelam um forte apego do homem perfeito que é “belo, bom e

verdadeiro”, considerava a arte como um dom de Deus, não se

considerava um pintor, mas sim um escultor e para atingir toda a

perfeição que considerava em suas esculturas e pinturas buscava por

meio da dissecação de corpos no estudo da anatomia uma forma para

transmitir os detalhes em suas obras.

Hilda Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade de Jaú no

interior de São Paulo e faleceu no dia 04 de fevereiro de 2004, era filha

de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso, ele era ensaísta,

jornalista e poeta. Com pouco tempo seus pais separam-se e vai morar

com sua mãe em uma fazenda, seu pai é internado em um sanatório e seus

estudos são no colégio interno Santa Marcelina e no curso clássico da

escola Mackenzie e direito na faculdade do largo de São Francisco na

cidade de São Paulo, levou uma vida considerada boêmia e para época

seu modo de se comportar escandalizava a alta sociedade paulista, pois

era uma bela mulher.

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Uma definição bem concisa do que foi esta escritora tão

peculiar quanto surpreendente e polêmica está nas palavras

do escritor José Mora, que faz a conciliação entre a pessoa

e a artista: “Hilda faz as perguntas essenciais, comuns a

todos os seres humanos, por isso ela é uma escritora

universal. Era de fato um gênio. Tinha um olhar generoso,

emocionado e fraterno sobre o mundo, a vida e a

humanidade”. (NINA apud BORGES, p.01, 2008)

Michelangelo e Hilda Hilst, são artistas de épocas muitos

diferentes, mas que trazem em suas obras pontos semelhantes que fazem

serem muito próximos e que torna possível o diálogo entre ambos.

Michelangelo é de um período chamado Renascimento, onde a

centralidade é o homem, porém um homem que aparentemente é mais

ligado a Deus, neste período começa a se desenvolver algumas teorias

cientificas que vão contra alguns princípios que foram formulados pela

igreja católica, já Hilda Hilst é do Modernismo, onde neste movimento

busca-se uma libertação da arte dos moldes da qual algumas escolas

colocaram.

Percebemos em Michelangelo e Hilda Hilst questionamentos

muito parecidos como a retração do homem, da vida, porém cada um à

sua maneira e condizendo com o pensamento de suas épocas. Em Hilst,

encontramos um desapego com todas as formas que são constituídas

socialmente como certas e corretas, há um rompimento com os moldes

que são predeterminadas pelo contexto social, já em Michelangelo isso

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não é percebido de forma clara, mas em suas obras percebemos esse

rompimento com os pensamentos da época, principalmente em relação a

visão divina, ou seja, o ponto central de semelhança entre os dois pode

ser medido pelo Humanismo que é o homem no centro de tudo, tornando

assim as obras que serão analisadas semelhantes, mas que trazem as

singularidades cada autor.

“A Criação de Adão” e “Poemas Malditos, Gozosos e Devotos”:

estabelecendo uma comparação.

Fig.1 – “A criação de Adão, imagem que compõe os afrescos do teto da capela

Sistina”3

3 Fonte: - Disponível em http://noticias.universia.com.br/tempo-

livre/noticia/2012/08/22/960448/conheca-criaco-ado-michelangelo-buonarroti.html

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A pintura acima de Michelangelo é intitulada de “A criação de

Adão”, essa imagem busca transmitir uma cena bíblica descrita no livro

do Gênesis cap. 2 vers. 7, que diz: “Então javé Deus modelou o homem

com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem

tornou-se um ser vivente”.

A Criação de Adão foi pintada entre os anos de 1508 e 1510

pelo italiano Michelangelo Buonarroti. A Criação de Adão,

do pintor italiano renascentista Michelangelo Buonarroti é

a obra homenageada hoje no projeto Um Pouco de Arte

para sua Vida. A pintura faz parte do teto da Capela Sistina.

Seu pintor é celebrado como o maior artista das três artes

visuais: escultura, pintura e arquitetura e também é um dos

três maiores artistas renascentistas, ao lado de Leonardo da

Vinci e Rafael. (UNIVERSIA, 2012)

A outra obra é o poema de Hilda Hilst que transmite uma imagem

de Deus onde o eu-lírico o narra a partir de uma visão humanizada e

diabólica, pois na primeira parte há uma visão de um ser divino e

diabólico, na segunda parte temos uma narração como se houvesse uma

relação amorosa e na terceira parte há uma relação de devoção e tendo

como base uma visão fundamentada no homem.

O ponto que podemos perceber entre essas duas artes é a maneira

como são compostas, pois ambas estabelecem um diálogo muito próximo

em relação a criação, vejamos alguns pontos por meio da comparação.

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Podemos perceber uma primeira relação de semelhança no poema

é quando no início o eu-lírico transmite a ideia de Deus ser humano, isso

construído a partir da figura de Cristo.

Nos pés de carne

Nas mãos de carne

No peito vivo. De carne.

Há uma semelhança neste trecho com a pintura, pois percebemos

como o eu-lírico deixa claro a humanidade de Deus, pois segundo

Chevalier & Gheerbrant (2003) simbolicamente “pé” remete a ideia de

realidade, assim também é percebido na pintura, já que o homem é que

toca o chão, a terra, já Deus permanece no ar, ou seja, não toca o plano

da realidade.

Dedo alongado agarrando homens

Galáxias. Corpo de homem?

Não sei. Cuidado.

Neste outro trecho há uma relação com a pintura a partir do

‘toque’ que parece ter entre o homem e Deus, mas esse toque é segundo

Martins (2008, p. 13) “O Adão de Buonarrotti não só está em posição

vívida como também fita o criador com o amor e parcimônia. Além disso,

o quase toque de Deus em Adão poderia significar o infinito que separa

as duas personagens da pintura”, ou seja, tanto a pintura quanto o poema

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mostram esse distanciamento entre os dois, mas no poema há um alerta

para tal distância.

Ainda em outro trecho o eu-lírico Hilstiano mostra esse

distanciamento entre ambos como uma forma de libertação, pois a oração

para ela não é algo tido como essencial e por isso é rejeitada, já que Deus

é como se não existisse.

(...)

Se tenho a pedir, não peço.

Contente, eu mais lhe agradeço

Quanto maior a distância.

Essas semelhanças mostram o quanto as duas obras comungam

das mesmas concepções acerca de Deus. Uma outra questão que pode

mostrar que tanto o poema quanto a pintura têm em si uma semelhança é

a partir do seguinte trecho:

Rasteja e espreita

Levita e deleita

É negro. Com luz de ouro.

É branco e escuro.

Tem muito de foice

E furo.

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Percebemos na estrofe acima que a imagem que passa o poema é

de uma serpente e que segundo Chevalier & Gheerbrant (2003) este ser

pode representar tanto o bem como o mal, e nessa mesma estrofe ainda

podemos perceber que as palavras estão em forma de contrariedade,

assim como a pintura também mostra ambos o criado e o criador em

oposição o que é diferente da ideia bíblica onde o “ser criador está acima

e o ser criado está abaixo” ou pelo menos é essa a visão que é entendida

e compreendida pela sociedade, mas segundo Chevalier & Gheerbrant

(2003) o Contrário representa “forças opostas em todo ser, em toda

manifestação de energia”, ou seja, ambos mostram uma certa

contrariedade em Deus que pode sustentar tanto a divindade quanto a

humanidade o que é bem próximo do que o ser humano aparenta ser.

Corronhadas exatas

De tuas mãos sagradas.

Me queres esbatida, gasta

Neste trecho do poema percebemos uma certa semelhança com a

pintura, pois o eu-lírico se mostra como se estivesse cansada, gasta de ser

atingida por Deus, assim percebemos na imagem pelo olhar do homem

como se ele estivesse jogado, cansado, um olhar de passividade. Mas

abaixo perceberemos uma semelhança a partir da ideia de criação;

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Doem-te as veias?

Pulsaram porque fizeste

Do barro dos homens.

E agora dói-te a Razão?

Se me visses fazer

Panelas, cuias

Percebemos que o eu-lírico no poema mostra um ser que foi

modelado pelo homem, sendo que ele é capaz de fazer as coisas, além de

enfatizar a fragilidade da criação e este mesmo ponto é encontrado na

pintura de Michelangelo na forma onde se encontra Deus e os anjos, pois

ambos estão envoltos por um manto vermelho e que segundo Fróis (2005)

é a imagem de um cérebro, ou seja, percebemos que o pintor procura dar

uma ênfase na ideia de que todos os seres divinos, místicos são criados

pela ideia, pela imaginação não de algo que esteja em um plano distante

do ser humano, mas que comunga deste mesmo plano, sendo o próprio

homem, pois este é representado como frágil e a mesma coisa acontece

com suas criações.

E depois de prontas

Me visses

Aquecê-las a um ponto

A um grande fogo

Até fazê-las desaparecer

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Dirias que sou demente

Louca?

Assim fizeste aos homens.

Neste trecho do poema percebemos que o eu-lírico Hilstiano

mostra que o homem cria, mas ao mesmo tempo é responsável pela

destruição daquilo que cria, e há um questionamento acerca desse mesmo

poder que Deus tem, pois ele cria e também destrói a sua criação dando

a ela a morte, isso mostra a semelhança que Deus tem com o ser humano

que a loucura. E na pintura de Michelangelo essa semelhança entre Deus

e o Homem está na forma que é feita a composição de ambos na obra,

pois este são colocados em forma de espelho, ou seja, um reflete o outro

e também no título da obra, já que “adão” quer dizer homem e mostra

uma ambiguidade como se o homem tivesse criado Deus e vice-versa “a

criação do homem”.

Se mil anos vivesse

Mil anos te tomaria.

Tu.

e tua cara fria.

Teu recesso.

Teu encostar-se

Às duras paredes

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De tua sede.

Há uma outra ideia que é colocada nestas estrofes do poema que

mostram que pode ter um diálogo com a pintura, pois o eu-lírico mostra

por meio da simbologia do número “mil” e que segundo Chevalier &

Gheerbrant (2003) o número “mil” tem o significado de imortalidade da

felicidade, ou seja, o eu-lírico revela a imortal felicidade do ser humano

em tomar para si o lugar de divino ao qual realmente lhe cabe e viver sem

limites seus desejos, já que “rosto” simboliza o divino no ser humano

O mesmo está presente na pintura, pois temos essa ideia de

tomada para si o seu lugar como divindade criadora por que o toque entre

deus e homem se mostra como sendo recusado por este, já que na forma

da mão é percebido esta não disposição em tocar o seu criador, enquanto

que na imagem de Deus este esforço se mostra bem maior, além do que

a imagem do rosto de deus é algo frio sem vida, refletindo a mesma

composição da face humana.

Teu vício de palavras.

Teu silêncio de facas.

As nuas molduras

De tua alma.

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Para Chevalier & Gheerbrant (2003) “a palavra simboliza de uma

maneira geral a manifestação da inteligência na linguagem, na natureza

dos seres e na criação continua do universo; ela é a verdade e a luz do

ser.”, então o significado que está por trás é a não existência de deus, pois

o ser humano que é dotado da faculdade da linguagem é quem cria tudo

inclusive seu deus, mas revela uma natureza maléfica nessa criação com

a utilização do símbolo “faca”, porém tudo isso não está oculto segundo

o eu-lírico, porque “nudez” significa isso, mostrando assim que o homem

é quem cria seus próprios deuses com intenções maléficas e o homem

tem a consciência disso, e “alma” revela que é o homem, pois é ele quem

possui.

Destarte da mesma forma que o poema é baseado na bíblia sobre

a criação, a pintura também tem o mesmo embasamento, sendo ambos

dirigidos pelo elemento criador que é a palavra mostrando que é por meio

desta que as coisas são feitas, os seres são criados e nomeados e quem

domina este recurso único é o ser humano, o que portanto demonstra que

em ambas as obras o central é a figuração humana como principal

elemento criador e criado que conhecemos como criação.

Considerações finais

Enfim, percebemos que o diálogo entre a pintura de Michelangelo

e o poema de Hilda Hilst é muito próximo, mesmo que seja considerada

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uma análise muito subjetiva, mas ao aproximarmos ambos e fazermos a

leitura detalhada percebemos que há sim uma semelhança e que pode ser

demonstrada e captada pelo olhar.

A ideia percebida quando se faz essa análise, para resumir o

estudo, é como se Hilda Hilst estivesse olhando a pintura e transcrevendo

essa imagem de cores para uma imagem em palavras, onde o centro é o

tema sobre a criação.

É percebido que nas obras a imagem de Deus é construída a partir

do homem, como centro de tudo, consequentemente é a visão humanista

presente na escrita desses autores, o que os tornam semelhantes e

comparáveis, portanto a análise buscou por contemplar essa possível

semelhança o que não quer dizer que realmente seja assim, mas o que

ficou evidenciado é que há uma possibilidade abrangente de uma

absorção do pintor pela autora do poema.

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