O Historiador - Elizabeth Kostova

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O HISTORIADOR

ELIZABETH KOSTOVA

O HISTORIADORTraduo de M. L. N. SILVEIRA

Crculo de Leitores

Ttulo original: THE HISTORIAN Capa: TWBG - Duncan Spilling

As citaes de Drcula, de Bram Stoker foram extradas da edio de 1972 da Editorial Minerva, com traduo de Mrio Gonalves.ISBN 972-42-3530-0 Copyright 2005 by Elizabeth Kostova Esta edio publicada com o acordo de Little, Brown and Company (Inc.), Nova Iorque Impresso e encadernado para Crculo de Leitores por Tilgrfica, S Rua da Amarela Ferreiros, Braga no ms de Outubro de 2005 Nmero de edio: 6514 Depsito legal nmero 232 979/05

Digitalizao e correco: Ftima Toms Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficincia visual.

Para o meu pai, que primeiro me contou algumas destas histrias

Nota ao LeitorNunca tive a inteno de passar para o papel a histria que se segue. Recentemente, contudo, um inesperado conjunto de circunstncias forou-me a relembrar os episdios mais perturbadores da minha vida e das vidas das pessoas que mais amei. Esta a histria de como, aos dezasseis anos, parti em busca do meu pai e do seu passado, e de como ele prprio partiu em busca do seu amado mentor e da histria desse mentor, e de como todos ns nos encontrmos numa das mais sombrias encruzilhadas da histria. a histria de quem sobreviveu a essa busca e de quem no sobreviveu, e porqu. Como historiadora que sou, aprendi que, na realidade, nem todos os que se voltam para a histria do passado conseguem sobreviver-lhe. E no s voltarmo-nos para trs que nos pe em perigo; s vezes, a prpria histria estende inexoravelmente para ns a sua garra tenebrosa, procurando alcanar-nos. Nos trinta e seis anos que se seguiram revelao desses acontecimentos, a minha vida decorreu de maneira relativamente tranquila. Dediquei o meu tempo a trabalhos acadmicos e a viagens de rotina, aos meus alunos e aos meus amigos, a escrever livros de natureza histrica e sobretudo impessoal, e aos assuntos da universidade na qual acabei por procurar abrigo. Ao fazer esta reviso do passado, foi uma sorte ter tido acesso maioria dos documentos pessoais em questo, pois j estavam na minha posse h muitos anos. Quando julguei necessrio, liguei-os para formar uma narrativa contnua, que de vez em quando tive de completar com as minhas prprias reminiscncias. Embora tenha apresentado as primeiras histrias que o meu pai me contou da maneira como foram narradas de viva voz, tambm me apoiei profusamente nas suas cartas, algumas das quais repetiam essas narrativas orais. Alm de reproduzir essas fontes quase na totalidade, aventurei-me por todos os caminhos possveis de recolha e pesquisa, revisitando por vezes um lugar para refrescar passagens mais adormecidas da minha memria. Um dos maiores prazeres deste empreendimento foram as entrevistas em alguns casos, a correspondncia com os poucos estudiosos ainda vivos que estiveram envolvidos nos factos aqui relatados. As suas memrias acrescentaram um

12 complemento inestimvel s minhas outras fontes. O meu texto tambm beneficiou com as contribuies de jovens especialistas de diversas reas. Houve um recurso final de que lancei mo quando necessrio a imaginao. Fi-lo com rigoroso cuidado, imaginando para o meu leitor apenas o que j sei ser muito provvel e, assim mesmo, apenas quando uma especulao razovel ajudar a inserir esses documentos no seu devido contexto. Nas ocasies em que no fui capaz de explicar acontecimentos ou motivos, deixei-os sem explicao, respeitando as suas realidades ocultas A histria mais distante dentro desta histria foi pesquisada com o mesmo cuidado que usaria para qualquer texto acadmico. Ao leitor moderno, vo parecer dolorosamente familiares vislumbres de conflitos religiosos e territoriais entre um Oriente islmico e um Ocidente judaico-cristo. Ser-me-ia difcil agradecer de modo adequado a todos aqueles que me ajudaram neste projecto, mas gostaria de citar pelo menos alguns. A minha profunda gratido aos que se seguem, entre muitos outros- doutor Radu Georgescu do Museu Arqueolgico da Universidade de Bucareste, doutora Ivanka Lazarova da Academia Blgara de Cincias, doutor Petar Stoichev da Universidade de Michigan, a incansvel equipa da Biblioteca Britnica, os bibliotecrios do Museu Literrio e Biblioteca Rutherford de Filadlfia, o padre Vasil do Mosteiro Zographou no monte Athos e o doutor Turgut Bora da Universidade de Istambul. A minha maior esperana ao tornar pblica esta histria que seja possvel encontrar pelo menos um leitor que a compreenda pelo que de facto : um m de coeur. A si, leitor sensvel, confio a minha histria. Oxford, Inglaterra 15 de Janeiro, 2005

Parte ICompreender-se- claramente, pela leitura destes apontamentos, a razo por que foram colocados na ordem que apresentam. Eliminaram-se as coisas desnecessrias, de modo a que surgisse como facto verdadeiro uma histria quase em completo desacordo com as crenas habituais. No h nenhuns pormenores em que a memria corresse perigo de se enganar, pois tudo foi anotado dia a dia e por aqueles que o podiam testemunhar.Bram Stoker, DRCULA, 1897

Captulo 1Em 1972 eu tinha dezasseis anos demasiado jovem, dizia o meu pai, para viajar com ele nas suas misses diplomticas. Ele preferia saber que eu estava sentada a seguir atentamente as aulas na Escola Internacional de Amesterdo; naquela poca, a sede da fundao do meu pai era em Amesterdo, onde eu morava h j tanto tempo que quase esquecera a nossa vida anterior nos Estados Unidos. Hoje, acho estranho ter sido to obediente na minha adolescncia, enquanto a minha gerao experimentava drogas e protestava contra a guerra imperialista no Vietname, mas fui criada num ambiente to resguardado que fez a minha vida adulta e acadmica parecer decididamente aventurosa. Para comear, era rf de me, e os cuidados que o meu pai tinha comigo foram aumentados por uma dupla noo de responsabilidade, de modo que ele me protegia mais do que se as circunstncias fossem outras. A minha me morreu quando eu era beb, antes de o meu pai fundar o Centro para a Paz e a Democracia. O meu pai nunca falava dela e esquivava-se discretamente sempre que eu fazia perguntas; muito cedo compreendi que era demasiado doloroso para ele tocar nesse assunto. Em contrapartida, cuidava muito bem de mim com a ajuda de diversas preceptoras e governantas que contratou com esse fim o dinheiro no era obstculo quando se tratava da minha educao, apesar de vivermos com simplicidade no dia-a-dia. A ltima dessas governantas foi Mrs. Clay, que tomava conta da nossa casa holandesa do sculo dezassete perto do Raamgracht, um canal no centro histrico da cidade. Mrs. Clay abria-me a porta todos os dias quando eu chegava da escola e era uma espcie de parente quando o meu pai viajava, o que acontecia com frequncia. Era inglesa, mais velha do que a minha me teria sido, hbil com um espanador de p e desajeitada com adolescentes; s vezes, olhando para o rosto dela durante o jantar e vendo a sua expresso de pena exagerada e os dentes demasiado compridos, tinha a impresso de que ela pensava na minha me e detestava-a por causa disso. Quando o meu pai estava fora, a linda casa ecoava como se estivesse vazia. No havia ningum para me ajudar com os problemas de lgebra, ningum para admirar o meu casaco ou pedir-me um abrao, nem para se admirar de como eu estava a ficar alta. Quando o meu pai

16voltava de algum daqueles lugares cujos nomes estavam escritos no mapa da Europa que fora pendurado na parede da nossa sala de jantar, cheirava a outros tempos e lugares, um cheiro pungente e cansado. Passvamos as frias em Paris ou Roma, a visitar e a estudar diligentemente tudo o que o meu pai achava que eu deveria ver, mas eu suspirava por aqueles outros lugares para onde ele desaparecia, aqueles estranhos lugares antigos onde eu nunca estivera. Quando ele partia, eu ia e voltava da escola, atirando os meus livros com estrpito para cima da mesa polida da entrada. Nem Mrs. Clay nem o meu pai me deixavam sair noite, excepto para um cinema de vez em quando, para ver um filme cuidadosamente aprovado, com amigos aprovados com igual cuidado, e para meu espanto, agora que recordo esse tempo nunca trocei dessas regras. Talvez a razo principal tenha sido o facto de eu preferir a solido; era o elemento em que fora criada e no qual me sentia vontade Sobressaa nos estudos mas no na vida social. As raparigas da minha idade apavoravam-me, especialmente as sofisticadas do nosso meio diplomtico, que falavam com desenvoltura e fumavam sem parar, perto delas, achava sempre que o meu vestido era comprido de mais, ou curto de mais, ou que deveria ter vestido algo totalmente diferente. Os rapazes desorientavam-me, embora sonhasse vagamente com homens. Na verdade, ficava mais feliz sozinha na biblioteca do meu pai, uma bela e ampla diviso no rs-do-cho da nossa casa possvel que a biblioteca do meu pai tivesse sido anteriormente uma sala de estar, mas ele sentava-se apenas para ler e considerava uma ampla biblioteca mais importante do que uma ampla sala de estar. H muito tempo que ele me dera livre acesso a sua coleco de livros. Durante as suas ausncias, eu passava horas a fazer os trabalhos de casa na mesa de mogno ou a passar os olhos pelas estantes que cobriam todas as paredes. Compreendi mais tarde que o meu pai esquecera em parte o que se encontrava nas prateleiras superiores ou o mais provvel presumira que eu jamais conseguiria alcan-las; e, certa noite, no s trouxe para baixo uma traduo do Kama Sutra, como tambm um livro muito mais antigo e um envelope cheio de papis amarelados. At hoje no sei dizer o que me fez tir-los de l. Mas a figura no centro da capa do livro, o cheiro a antigo que o volume exalou e a descoberta de que os papis eram cartas pessoais, tudo atraiu fortemente a minha ateno. Sabia que no devia examinar os papis particulares do meu pai, ou de quem quer que fosse, e tambm receava que Mrs Clay pudesse aparecer de repente para limpar o p a mesa j limpssima - deve ter sido isto o que me fez olhar por cima do ombro para a porta. No entanto, no consegui deixar de ler o primeiro pargrafo da carta que se encontrava no cimo da pilha, segurando-a por alguns minutos enquanto estava parada junto s estantes.

1712 de Dezembro, 1930 Trinity College, Oxford Meu caro e desventurado sucessor: com pesar que o imagino, quem quer que seja, a ler o relato que me sinto na obrigao de registar nesta carta. O pesar em parte por mim prprio porque estarei no mnimo em dificuldades, talvez morto, ou pior, se esta carta estiver nas suas mos. Mas o pesar tambm por si, meu amigo ainda desconhecido, porque s por algum que precise de uma informao to odiosa esta carta ser lida um dia. Se no o meu sucessor em qualquer outro sentido, ser em breve meu herdeiro e lamento ter de legar a outro ser humano a minha talvez inacreditvel experincia pessoal com o mal. Por que motivo fui eu a herd-la, no sei, mas espero acabar por descobrir talvez enquanto lhe escrevo ou talvez no decorrer de acontecimentos futuros.

Nesse ponto, o meu sentimento de culpa e algo mais, tambm - fez-me voltar a colocar apressadamente a carta no seu envelope, mas pensei nela o dia inteiro e ainda no dia seguinte. Quando o meu pai voltou da sua ltima viagem, procurei uma oportunidade para lhe perguntar sobre as cartas e sobre o estranho livro. Esperei por uma ocasio em que ele estivesse disponvel, em que ficssemos sozinhos, mas ele esteve muito ocupado naqueles dias e alguma coisa relacionada com o que tinha encontrado fazia com que eu hesitasse em aproximar-me dele. Finalmente, pedi-lhe que me levasse na sua prxima viagem. Era a primeira vez que eu lhe escondia alguma coisa e a primeira vez que insistia em fazer alguma coisa. Relutantemente, o meu pai concordou. Conversou com os meus professores e com Mrs. Clay, lembrou-me de que eu teria tempo suficiente para os trabalhos de casa enquanto ele estivesse nas suas reunies. No me surpreendi; os filhos dos diplomatas esto habituados a esperar. Fiz a minha mala azul-marinho, levando os meus livros escolares e demasiados pares de meias pelo joelho. Em vez de sair para a escola naquela manh, parti com o meu pai, andando ao lado dele, calada e alegre, rumo estao. Um comboio levou-nos at Viena; o meu pai detestava avies, que alegava tirarem viagem a sensao de viajar. L, passmos uma curta noite num hotel. Noutro comboio, atravessmos os Alpes, para alm de todas as elevaes azuis e brancas do nosso mapa de casa. sada de uma empoeirada estao amarela, o meu pai arrancou no nosso carro alugado e eu sustive a respirao at nos depararmos com os portes de uma cidade que ele me descrevera tantas vezes que j a via em sonhos. O Outono chega cedo no sop dos Alpes Eslovenos. Antes mesmo de Setembro, as colheitas abundantes so seguidas de uma chuvada repentina e intensa que dura muitos dias e faz cair as folhas das rvores nas ruas das aldeias.

18Hoje, aos cinquenta anos de idade, dou por mim deambulando de tempos a tempos por essas paragens, revivendo a minha primeira viso do campo esloveno. uma terra antiga. A cada Outono amadurece um pouco mais, aeternum, e cada um deles comea com as mesmas trs cores: uma paisagem verde, duas ou trs folhas amarelas caindo numa tarde cinzenta. Imagino que os Romanos que deixaram ali as suas muralhas e as suas arenas colossais no litoral, para oeste - tenham visto o mesmo outono e sentido o mesmo arrepio. Quando o carro do meu pai passou pelos portes da mais antiga das cidades julianas, dei um abrao a mim mesma. Pela primeira vez, fui acometida pela excitao do viajante que olha de frente o rosto subtil da histria. Por ser essa a cidade onde a minha histria comea, vou chamar-lhe Emona, o seu nome romano, para a proteger um pouco do tipo de turistas que andam atrs de desgraas com um guia na mo. Emona foi construda sobre pilares da Idade do Bronze, ao longo de um rio hoje ladeado por arquitectura art-nouveau. Durante os dois dias seguintes iramos passear, passando pela manso do presidente da Cmara, por residncias do sculo dezassete adornadas comfleurs-de-lys prateadas e pela slida parede dourada do edifcio de um grande mercado, cujos degraus comeavam junto a velhas portas fortemente trancadas e desciam at a superfcie da gua. Durante sculos, cargas de mercadorias transportadas pelo rio tinham sido levadas para aquele lugar para alimentar a cidade e, onde outrora cabanas primitivas haviam proliferado nas margens, cresciam agora sicmoros os pltanos europeus, formando uma imensa cintura acima dos paredes do rio, e soltavam pedaos encaracolados das suas cascas na corrente. Perto do mercado, a praa principal da cidade abria-se sob o cu pesado. Emona, como as suas irms do Sul, exibia flores de um passado camalenico: art dco vienense no alto, na silhueta dos prdios contra o cu; grandes igrejas vermelhas da Renascena dos seus catlicos de lngua eslovena; capelas medievais escuras com grossos contrafortes e formas tpicas das Ilhas Britnicas. (So Patrcio mandou missionrios para esta regio, fechando o crculo do novo credo ao voltar s suas origens mediterrnicas, de modo que a cidade se orgulha de ter uma das mais antigas histrias crists da Europa.) Aqui e ali, um elemento otomano salientava-se num batente de porta ou na moldura pontiaguda de uma janela. Perto do mercado, os sinos de uma pequena igreja austraca chamavam para a missa vespertina. Homens e mulheres vestidos com idnticos casacos azuis de algodo caminhavam de regresso para casa no fim de mais um dia de trabalho socialista, segurando guarda-chuvas sobre os seus embrulhos. Ao aproximarmo-nos do centro de Emona no nosso carro, atravessmos uma linda ponte antiga, guardada em cada extremidade por drages de bronze esverdeados.

19 - L est o castelo - disse o meu pai, abrandando a marcha na orla da praa e apontando para cima atravs de um vu de chuva. J sei que vais querer v-lo. Queria mesmo. Estiquei-me e estendi o pescoo at vislumbrar o castelo por entre os galhos encharcados de uma rvore torres castanhas carcomidas numa elevao ngreme no centro da cidade. - Sculo catorze disse o meu pai, pensativo. Ou ser treze? No sou muito bom com estas runas medievais, pelo menos ao ponto de acertar no sculo exacto. Mas havemos de ver no guia. Podemos ir at l e explor-lo? - Vamos saber depois das minhas reunies de amanh. Aquelas torres no devem aguentar sequer o peso de um passarinho, mas nunca se sabe. Estacionou o carro perto da Cmara Municipal e ajudou-me a sair do banco do passageiro, galante, a mo ossuda dentro da luva de couro. - um pouco cedo para nos registarmos no hotel. Queres tomar um ch quente? Ou podemos lanchar naquela gastronomia. Est a chover com mais intensidade acrescentou, indeciso, olhando para o meu casaco e a minha saia de l. Peguei rapidamente no impermevel com capuz que ele me trouxera de Inglaterra no ano anterior. A viagem de comboio de Viena demorara quase um dia e eu j estava outra vez com fome, apesar do nosso almoo no vago-restaurante. Mas no foi a gastronomia, com as suas luzes vermelhas e azuis a brilhar debilmente atravs da janela encardida, as criadas de mesa com sandlias azul-marinho de plataforma e a indiscutvel e carrancuda imagem do Camarada Tito, que nos atraiu. Abrindo caminho entre os transeuntes molhados da chuva, o meu pai comeou a andar em frente. - Vamos! Segui-o a correr, com as abas do capuz a baterem-me no rosto, quase a taparem-me a vista. Ele tinha avistado a entrada de uma casa de ch art-nouveau, uma grande janela decorada com desenhos de arabescos e cegonhas a voar entre eles, portas de bronze esverdeadas com a forma de centenas de caules de lrios. As portas fecharam-se pesadamente atrs de ns e a chuva transformou-se em nvoa, vapor na janela, vista atravs dos pssaros prateados como uma mancha de gua. - incrvel isto ter sobrevivido nestes ltimos trinta anos - disse o meu pai, enquanto tirava o seu impermevel London Fog. O socialismo nem sempre to benevolente com os seus tesouros. Numa mesa perto da janela, tommos ch com limo, escaldante nas chvenas grossas, comemos sardinhas em po branco com manteiga e at umas fatias de torta. - melhor pararmos por aqui - disse o meu pai.

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Ultimamente, eu passara a no gostar daquela forma que ele tinha de soprar o ch uma e outra vez para o arrefecer, e tambm a recear o inevitvel momento em que ele dizia que deveramos parar de comer, parar de fazer qualquer coisa agradvel e nos pouparmos para o jantar. Olhando para ele, bem vestido com o seu casaco de tweed e camisola de gola alta, senti que negara a si prprio qualquer aventura na vida com excepo da diplomacia, que o consumia inteiramente. Teria sido mais feliz se vivesse um pouco a vida, pensei, para ele, tudo era demasiado srio. Mas fiquei calada, porque sabia que ele detestava as minhas crticas e porque tinha uma coisa para lhe perguntar. Tinha de o deixar acabar primeiro o seu ch, e assim recostei-me na cadeira, mas apenas o suficiente para que o meu pai no me pedisse para, por favor, me sentar com as costas direitas. Pela janela salpicada de prata via uma cidade molhada, melanclica no final da tarde, e pessoas passando apressadas sob uma chuva que caa horizontalmente. A casa de ch, que deveria estar cheia de senhoras com vestidos compridos de gaze cor de marfim ou de cavalheiros com barbas pontiagudas e casacos com golas de veludo, estava vazia. No me tinha apercebido de como a viagem de carro me cansou o meu pai pousou a sua chvena e apontou para o castelo, que mal se distinguia atravs da chuva. Foi daquela direco que viemos, do outro lado daquela colina Vamos poder ver os Alpes l do alto. Lembrei-me das montanhas de encostas nevadas e senti que elas respiravam por cima daquela cidade. Estvamos agora juntos e sozinhos do lado oposto delas. Hesitei, respirei fundo. - Pode contar-me uma histria? As histrias eram um dos mimos que o meu pai sempre proporcionara sua filha sem me; algumas tirava-as da sua agradvel infncia em Boston e outras das suas viagens exticas Outras ainda, inventava-as para mim no momento, mas nos ltimos tempos eu cansara-me destas, achando-as menos surpreendentes do que em tempos pensara. - Uma histria sobre os Alpes? perguntou o meu pai. No - e senti uma inexplicvel onda de medo. - Encontrei uma coisa sobre a qual gostaria de lhe fazer uma pergunta. Ele virou-se e olhou para mim com brandura, as sobrancelhas grisalhas arqueando-se por cima dos olhos cinzentos. Foi na sua biblioteca disse eu. Desculpe, mas.. eu estava a bisbilhotar e encontrei uns papis e um livro. No olhei... muito.. para os papis. Pensei que... Um livro? o tom era ainda brando, ele olhava para o fundo da sua chvena de ch a procura de uma ltima gota, parecia no estar a prestar muita ateno.

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- Pareciam... o livro era muito velho, com a imagem de um drago no centro. Ele inclinou-se para a frente, ficou muito quieto e depois estremeceu visivelmente. Aquele estranho gesto ps-me imediatamente alerta. Se houvesse uma histria, seria diferente de todas as outras que ele me contara. Lanou-me um olhar de relance por baixo das sobrancelhas e espantei-me ao ver como parecia abatido e triste. - Ficou zangado? agora, era eu que olhava para o fundo da minha chvena. - No, querida - suspirou profundamente, desgostoso. A pequena criadinha loira encheu-nos de novo as chvenas, mas ele ainda demorou bastante para comear a falar.

Captulo 2 Como sabes - disse o meu pai -, antes do teu nascimento, eu dava aulas numa universidade americana. Antes disso, estudei durante muitos anos para ser professor. A princpio, achava que iria estudar literatura. Ento, descobri que gostava mais das histrias verdadeiras do que das imaginrias. Todas as histrias literrias que lia me levavam a uma espcie de... explorao... da Histria. E assim acabei por me render a ela. E fico muito satisfeito por tambm te interessares por Histria. Numa noite de Primavera, quando eu ainda era estudante de ps-graduao, estava no meu compartimento de estudos na biblioteca da universidade, sentado sozinho, j muito tarde, entre fileiras e fileiras de livros. Ao levantar os olhos do meu trabalho, notei que algum havia deixado um livro cuja lombada nunca vira no meio dos meus livros, que ficavam numa prateleira acima da minha escrivaninha. A lombada desse livro mostrava um pequeno drago de desenho elegante, verde sobre um fundo de couro claro. No me lembrava de ter visto aquele livro ali ou em qualquer outro lugar, por isso peguei nele e folheei-o sem pensar muito. A encadernao era de couro macio, esmaecido, e as pginas pareciam muito antigas. Abriu-se com facilidade, justamente no meio. Ocupando essas duas pginas centrais, vi uma xilogravura com a imagem de um drago de asas abertas e uma comprida cauda enrolada, uma fera solta, enraivecida, as garras mostra. Das garras do drago pendia um estandarte no qual havia uma nica palavra escrita em caracteres gticos: DRKULA. Reconheci logo a palavra e pensei no romance de Bram Stoker, que ainda no tinha lido, e nessas noites da minha infncia, no cinema do bairro, com Bela Lugosi contemplando o alvo pescoo de alguma estrela de cinema de ento. Mas a grafia da palavra era estranha e o livro visivelmente muito antigo. Alm disso, eu era um acadmico, profundamente interessado na Histria europeia e, depois de olhar para aquilo por alguns segundos, lembrei-me de algo que lera. O nome derivava da raiz latina significando drago ou demnio, o ttulo honorfico de Vlad Tepes - o Empalador - da Valquia, um senhor feudal da regio dos Crpatos que torturava os seus sbditos e prisioneiros de guerra

23 de formas incrivelmente cruis. Eu estava a estudar o comrcio na Amesterdo do sculo dezassete, portanto no havia razo para um livro sobre aquele assunto estar metido entre os meus, e conclu que fora deixado ali por acaso, talvez por algum que estivesse a trabalhar sobre a histria da Europa Central ou sobre smbolos feudais.

Folheei o resto das pginas quando se lida com livros o dia inteiro, cada livro novo que aparece um amigo e uma tentao. Para minha surpresa, o resto do livro todas aquelas belas pginas antigas, cor de marfim estava totalmente em branco. No havia sequer uma pgina com o ttulo, muito menos informaes sobre onde e quando o livro fora impresso, mapas, pginas de guarda ou outras ilustraes. No tinha o carimbo da biblioteca da universidade, nem qualquer ficha, selo ou etiqueta. Depois de contemplar o livro por mais alguns minutos, pousei-o na minha escrivaninha e desci para examinar o ficheiro no rs-do-cho. Havia de facto uma ficha temtica para Vlad III (Tepes) da Valquia, 1431-1476 Ver tambm Valquia, Transilvnia, e Drcula. Pensei que devia comear por procurar um mapa; depressa descobri que a Valquia e a Transilvnia eram duas antigas regies situadas onde hoje fica a Romnia. A Transilvnia parecia muito mais montanhosa, com a Valquia a limit-la a sudoeste. Nas estantes, encontrei o que parecia ser a nica fonte da biblioteca sobre o assunto, uma estranha traduo de 1890 para o Ingls de uns folhetos sobre Drakula. Os folhetos originais tinham sido impressos em Nuremberga nas dcadas de 1470 e 1480, alguns anos antes da morte de Vlad. A referncia a Nuremberga deu-me um calafrio; poucos anos antes, acompanhara atentamente os julgamentos dos lderes nazis ali realizados. Tinha menos um ano que a idade mnima exigida para entrar na guerra quando esta acabou e interessei-me pelas suas consequncias com todo o fervor dos excludos. O volume de folhetos tinha um frontispcio, uma xilogravura tosca do busto de um homem, um homem de pescoo taurino e olhos negros e fundos, bigode comprido e um chapu enfeitado com uma pluma. A imagem era surpreendentemente vvida, tendo em conta o mtodo primitivo de impresso. Sabia que devia prosseguir o meu trabalho, mas no pude deixar de ler o comeo de um dos folhetos. Tratava-se de uma lista dos crimes de Drcula contra o seu prprio povo e contra alguns outros grupos tambm. Sou ainda capaz de repetir de cor o que dizia essa lista, mas prefiro no o fazer era extremamente perturbador. Fechei o pequeno volume com um gesto brusco e voltei para o meu local de estudo. O sculo dezassete ocupou-me a ateno at quase meia-noite. Deixei o estranho livro fechado em cima da escrivaninha, na esperana de que o seu dono o encontrasse ali no dia seguinte, e fui para casa dormir.

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Na manh seguinte, tinha uma reunio. Estava cansado da longa noite anterior mas, no fim das aulas, bebi duas chvenas de caf e voltei minha pesquisa. O livro antigo ainda l estava, agora aberto e exibindo o turbulento drago. Depois da minha curta noite de sono e do caf que me serviu de almoo, aquilo deu-me a volta cabea, como se dizia nos romances antigos. Olhei de novo para o livro, com mais cuidado. A imagem central era sem dvida uma xilogravura, talvez um desenho medieval, um excelente trabalho do gnero. Achei que o livro devia ser valioso do ponto de vista financeiro, ou talvez tivesse valor pessoal para algum estudioso, j que era bvio que no se tratava de um livro da biblioteca Entretanto, no estado de esprito em que me encontrava, no gostei de o ver ali. Fechei o livro com uma certa impacincia e sentei-me para escrever sobre guildas de comerciantes at ao final da tarde. Ao sair da biblioteca, parei no balco da entrada e entreguei o livro, explicando o que acontecera. O bibliotecrio prometeu coloc-lo no armrio dos achados e perdidos. As oito horas da manh seguinte, quando entrei no meu compartimento para trabalhar um pouco mais no meu tema, l estava o livro outra vez em cima da escrivaninha, aberto e exibindo a sua nica e terrvel ilustrao. Desta vez, aborreci-me e achei que o bibliotecrio me entendera mal. Coloquei rapidamente o livro numa das minhas prateleiras e passei o dia inteiro sem me permitir olhar para ele. No fim do dia, tinha um encontro com o meu orientador e, ao recolher os meus papis para os examinarmos juntos, peguei no livro misterioso e acrescentei-o pilha. Foi um impulso; no pretendia ficar com ele, mas o professor Rossi gostava de mistrios histricos e imaginei que pudesse diverti-lo. Alm disso, talvez ele conseguisse identific-lo, com os seus vastos conhecimentos sobre a histria da Europa. Eu tinha o hbito de me encontrar com Rossi no fim da sua aula da tarde e gostava de me esgueirar para dentro da sala antes que ele acabasse, para o ver em aco Naquele semestre, estava a dar um curso sobre o Mediterrneo antigo e eu acompanhara o final de vrias das suas palestras, todas brilhantes e teatrais, imbudas do seu grande talento para a oratria. Desta vez, sentei-me discretamente numa cadeira do fundo a tempo de o ouvir concluir uma discusso sobre o restauro do palcio minico de Creta por Sir Arthur Evans. A sala, um enorme auditrio que comportava quinhentos alunos, estava mergulhada na penumbra. O silncio era digno de uma catedral. Ningum se mexia, todos os olhares estavam fixos na sua elegante figura. Rossi estava sozinho no palco iluminado. s vezes, andava de um lado para o outro, explanando ideias em voz alta como se estivesse a ruminar para si mesmo na privacidade do seu gabinete. De vez em quando, parava repentinamente, fixando os seus alunos com um olhar intenso, um gesto eloquente, uma declarao surpreendente. Ignorava o estrado, desdenhava os microfones

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e nunca usava anotaes, embora uma vez por outra mostrasse slides, dando pancadinhas secas com um ponteiro na tela imensa para reforar a sua argumentao. Em certas ocasies, ficava to entusiasmado que levantava os dois braos e atravessava metade do palco a correr. Contava-se que certa vez chegara a cair da frente do palco num arroubo sobre o florescimento da democracia grega e voltara a subir sem perder o fio meada. Nunca me atrevi a perguntar-lhe se isso era verdade.

Naquele dia, estava pensativo, caminhando de l para c com as mos atrs das costas. - Sir Arthur Evans, faam o favor de se lembrar, restaurou o palcio do rei Minos em Cnossos em parte de acordo com o que l encontrou e em parte de acordo com a sua prpria imaginao, com a sua viso de como teria sido a civilizao minica. Olhou fixamente para a abbada acima de ns. - Os registos eram escassos e ele estava a lidar principalmente com mistrios. Em vez de se colar a uma exactido limitativa, usou a imaginao para criar um estilo de palcio de uma veracidade emocionante e falsa. Estaria errado ao agir assim? E fez uma pausa, olhando com um ar quase melanclico para o mar de cabeas despenteadas, poupas, cortes escovinha, casacos deliberadamente surrados e jovens e graves rostos masculinos (lembra-te que na poca s os rapazes iam para uma universidade como aquela, ao passo que tu, querida filha, provavelmente vais poder matricular-te onde quiseres). Quinhentos pares de olhos estavam voltados para ele. - Vou deix-los reflectir sobre esta questo. Rossi sorriu, virou-se abruptamente e afastou-se da ribalta. Todos respiraram fundo; os alunos comearam a conversar e a rir, a reunir os seus pertences. Rossi costumava ir sentar-se na beira do palco depois da palestra, e alguns dos seus discpulos mais vidos acorriam para lhe fazerem perguntas a que ele respondia com seriedade e bom humor at o ltimo aluno se ir embora, e ento eu aproximava-me para o cumprimentar. - Paul, meu amigo! Vamos subir e falar holands! deu-me uma pancadinha afectuosa no ombro e samos juntos. O gabinete de Rossi divertia-me sempre porque contrariava o padro do gabinete do professor luntico: os livros alinhavamse em ordem nas prateleiras, uma pequena cafeteira muito moderna junto janela satisfazia-lhe o vcio do caf, plantas que nunca ficavam sem gua enfeitavam a secretria e ele prprio estava sempre vestido com esmero, com as suas calas de tweed e camisa e gravata impecveis. O seu rosto tinha traos nitidamente ingleses, bem marcados, e olhos intensamente azuis; contou-me certa vez que do seu pai, um imigrante toscano que fora para o Sussex, herdara apenas o amor pela boa comida.

26 Olhar para o rosto de Rossi era vislumbrar um mundo to definido e ordenado como o render da guarda no palcio de Buckingham. A sua cabea era outra coisa completamente diferente. Mesmo depois de quarenta anos de rigoroso autodidactismo, fervia com os vestgios do passado, fervilhava com o que no fora explicado. A sua produo enciclopdica h muito que lhe granjeara louvores num mundo editorial muito mais amplo do que a imprensa acadmica. Assim que terminava um trabalho, voltava-se para outro, muitas vezes mudando abruptamente de direco. Como resultado, era procurado por alunos de inmeras disciplinas, e fui considerado uma pessoa de sorte por ter conseguido que orientasse a minha tese. Era tambm o amigo mais amvel e caloroso que j tivera. - Muito bem disse ele, ligando a cafeteira e fazendo sinal para que eu me sentasse, como vai a obra?

Coloquei-o a par de vrias semanas de trabalho e tivemos uma rpida discusso sobre o comrcio entre Utreque e Amesterdo no incio do sculo dezassete. Serviu o seu excelente caf em chvenas de porcelana e ambos nos recostmos nas nossas cadeiras, ele atrs da sua grande secretria. O aposento estava banhado pela agradvel luminosidade que ainda persistia quela hora, cada dia mais tarde, agora que a Primavera se instalara. Ento, lembrei-me do meu livro antigo. Trouxe-lhe uma curiosidade, Ross. Algum deixou por engano uma coisa bastante mrbida no meu canto de estudos na biblioteca h dois dias e resolvi trazer-lha para dar uma olhadela. Deixe-me ver. Pousou a delicada chvena e estendeu a mo para pegar no meu livro. Boa encadernao. Este couro pode ser at algum tipo de velino pesado. E tem uma estampa em relevo na lombada. - Algo na lombada do livro tornou-lhe sombrio o olhar habitualmente claro. Abra-o sugeri. No compreendia o motivo da sbita palpitao do meu corao enquanto esperava que ele repetisse a minha experincia de encontrar o livro quase todo em branco. Este abriu-se nas suas mos treinadas exactamente no centro. De onde eu estava, no via o que ele estava a ver atrs da secretria, mas via-o ver. O rosto ficou de repente srio com uma expresso imvel, que eu desconhecia. Folheou o livro para a frente e para trs, como eu fizera, mas a seriedade no se transformou em surpresa. - Sim, vazio. - Pousou-o aberto sobre a secretria. - Todo em branco. No esquisito? O meu caf estava a ficar frio na chvena que eu segurava. - muito antigo. Mas no est em branco apenas por estar inacabado. Est apenas ostensivamente em branco para dar destaque gravura do centro.

27 Pois , como se a criatura no meio tivesse devorado tudo sua volta. Comecei a frase num tom frvolo, mas acabei-a devagar, pausado. Rossi no conseguia tirar os olhos da imagem central aberta diante dele. Por fim, fechou o livro com firmeza e mexeu o caf sem o beber. Onde que arranjou isto? Bem, como lhe disse, algum o deixou sem querer na minha mesa na biblioteca h dois dias. Acho que devia ter levado o livro imediatamente para a seco de Livros Raros, mas, para ser sincero, acredito que pertena a algum, por isso no o levei. - Ah, e verdade - disse Rossi, encarando-me, pertence mesmo a algum. - Quer dizer que sabe de quem ? Sei. seu. - No, no isso, eu s o encontrei na minha... A expresso do seu rosto fez-me parar. Parecia dez anos mais velho, talvez por algum efeito especial da luz crepuscular na janela. - O que quer dizer, como pode ser meu? Rossi levantou-se lentamente e dirigiu-se a um canto do gabinete atrs da secretria, subindo dois degraus da escadinha de biblioteca para tirar um pequeno volume escuro. Ficou parado a olhar para ele um instante, como se hesitasse em dar-mo. Ento, entregou-me o livro. O que acha disto? O livro era pequeno, revestido de um veludo castanho de aspecto antigo, semelhante a um missal ou Livro de Horas, sem nada na lombada ou na capa que lhe conferisse alguma identidade. Possua um fecho cor de bronze que se deslocava com uma leve presso. O livro abriu-se ao meio por si s. Ali, espalhado no centro, estava o meu e digo o meu drago, dessa vez derramando-se para alm das margens das pginas, garras de fora, o bico selvagem aberto mostrando as presas, e com a mesma palavra, na mesma escrita gtica, no mesmo estandarte. - claro dizia Rossi que tive tempo e mandei identificar isso. um desenho originrio da Europa Central, impresso por volta de 1512, portanto o texto poderia muito bem ter sido composto com tipos mveis, se na verdade tivesse algum texto. Folheei lentamente as folhas delicadas. Sem ttulos nas primeiras pginas, isso j eu sabia. - Que estranha coincidncia. Tem manchas de gua salgada atrs, talvez por causa de alguma travessia do mar Negro. Nem o Smithsonian foi capaz de me dizer o que aconteceu durante as suas viagens. Porque, sabe, eu dei-me ao trabalho de o submeter a uma anlise qumica. Custou-me trezentos dlares saber que esse livro, num determinado momento, esteve num local intensamente impregnado de p de

28 pedra, provavelmente antes de 1700. Tambm fui at Istambul para tentar aprender mais sobre as suas origens Mas o mais estranho de tudo foi a maneira como adquiri esse livro. Estendeu a mo e apressei-me a devolver-lhe o livro, antigo e frgil como era Onde o comprou? Encontrei-o na minha escrivaninha quando era estudante universitrio. Senti um calafrio, mas disfarcei-o. - Na sua escrivaninha? No meu compartimento de estudos na biblioteca. Tambm tnhamos isso. O costume remonta aos mosteiros do sculo dezassete Onde que.. de onde que ele veio? Recebeu-o de presente? - Talvez. Rossi sorriu de modo estranho. Parecia esforar-se por controlar uma emoo difcil - Quer mais caf? Sim, acho que quero disse eu, com a garganta seca - As minhas tentativas para encontrar o dono fracassaram, e a biblioteca no conseguiu identific-lo. Mesmo a Biblioteca do Museu Britnico nunca tinha visto nenhum igual e ofereceu-me uma soma considervel por ele. - Mas no quis vend-lo. No. Gosto de enigmas, como sabe. Qualquer acadmico que se preza gosta. a recompensa do ofcio, olhar a Histria nos olhos e dizer: Sei quem s. A mim no me enganas. - Ento, de que se trata? Acha que este exemplar maior foi feito pelo mesmo impressor ao mesmo tempo? Ele tamborilou os dedos no peitoril da janela. No tenho pensado muito no assunto nestes ltimos anos, para dizer a verdade. Ou procurei no pensar, embora de certa forma. sinta a presena dele ali, atrs do meu ombro. E fez um gesto para a fenda escura e vazia entre os outros livros. Aquela prateleira de cima a minha fila de fracassos. E das coisas em que prefiro no pensar. Bem, talvez agora que eu trouxe um companheiro para ele, consiga encaixar melhor as peas. impossvel os livros no estarem relacionados um com o outro. - impossvel no estarem relacionados repetiu ele, um eco vazio de senado, mesmo vindo atravs do rudo do caf fresco a passar na cafeteira A impacincia e uma ligeira sensao febril que eu sentia com frequncia naqueles dias, por causa da falta de sono e do cansao mental, fizeram-me pression-lo. E a sua pesquisa? Para alm da anlise qumica Disse que tentou descobrir mais coisas...?

29 Tentei descobrir mais coisas. - Sentou-se de novo e pousou as duas mos, pequenas e prticas, de cada lado da chvena de caf. Acho que lhe devo mais do que uma histria - disse em voz baixa. Talvez uma espcie de pedido de desculpas vai ver porqu, apesar de nunca ter desejado conscientemente deixar um legado como este a nenhum dos meus alunos. Ou maior parte deles, admito. E sorriu de modo afectuoso. Mas triste, pareceu-me. Decerto j ouviu falar de Vlad Tepes o Empalador? Sim, Drcula. Um senhor feudal da regio dos Crpatos, tambm conhecido como Bela Lugosi. O prprio. Ou um deles. Eram uma famlia antiga antes de o seu membro mais desagradvel assumir o poder. Tentou saber mais sobre ele na biblioteca? Sim? Mau sinal. Quando o meu livro apareceu de modo to estranho, pesquisei a palavra nessa tarde o nome, bem como Transilvnia, Valquia e os Crpatos. Uma obsesso instantnea. Perguntei a mim prprio se aquilo seria um cumprimento velado. Rossi gostava de ver os seus alunos trabalhar intensamente -, mas deixei passar, receando interromper a sua histria com comentrios irrelevantes. Pois , os Crpatos. Foi sempre um lugar mtico para os historiadores. Um dos alunos de Occam viajou por l de burro, suponho e produziu, a partir das suas experincias, uma coisa engraada chamada Filosofia do Assombroso. claro que a histria original do Drcula foi baralhada muitas vezes e no fcil de ser investigada. Temos o prncipe da Valquia, um soberano do sculo quinze, detestado ao mesmo tempo pelo Imprio Otomano e pelo seu prprio povo. Um dos piores tiranos da Europa medieval, sem dvida. Calcula-se que tenha assassinado pelo menos vinte mil dos seus concidados da Valquia e da Transilvnia, ao longo do tempo. Drcula significa filho de Dracul filho do drago, mais ou menos. O pai dele foi introduzido na Ordem do Drago por Sigismundo, imperador do Sacro Imprio Romano - a Ordem era uma organizao para a defesa do imprio contra os Turcos Otomanos. Na realidade, h provas de que o pai de Drcula o entregou aos Turcos como refm, quando ele era criana, numa querela poltica, e que Drcula ganhou parte do seu gosto pela crueldade observando os mtodos de tortura dos Otomanos. Rossi abanou a cabea. Seja como for, Vlad foi morto numa batalha contra os Turcos, ou, quem sabe, talvez acidentalmente pelos seus prprios soldados, e enterrado num mosteiro situado numa ilha no lago Snagov, agora na posse da nossa amiga socialista Romnia. A sua memria transformou-se em lenda, transmitida por geraes de camponeses supersticiosos. No final do sculo dezanove, um escritor perturbado e melodramtico, Abraham Stoker, apropriou-se do nome de Drcula para uma criatura inventada por ele, um vampiro. Vlad Tepes era de uma crueldade terrvel, mas no era um vampiro, evidentemente. E no se encontra qualquer referncia a Vlad no livro de Stoker, embora ele tenha

30 reunido elementos da tradio oral popular sobre as lendas dos vampiros - e sobre a Transilvnia tambm, sem nunca l ter estado, apesar de Vlad Drcula ter governado a Valnia, que faz fronteira com a Transilvnia. No sculo vinte, Hollywood tomou conta do assunto e o mito perdura, ressuscitado. E nesse ponto que a minha irreverncia pra, alis. Rossi ps a chvena de lado e juntou as mos. Por um instante, tive a impresso de que no conseguiria continuar. - Posso ser irreverente quanto lenda, que foi comercializada de uma forma monstruosa, mas no quanto ao que aconteceu com a minha pesquisa. Na verdade, fui incapaz de a publicar, em parte por causa da presena daquela lenda. Achei que o tema da pesquisa no seria levado a srio. Mas havia ainda outro motivo. Aquilo deixou-me sem reaco. Rossi nunca deixava nada por publicar; era parte da sua produtividade, da sua prdiga genialidade. Recomendava enfaticamente aos seus alunos que fizessem o mesmo, que no desperdiassem nada. O que encontrei em Istambul era demasiado grave para no ser levado a srio. Talvez tenha feito mal quando decidi guardar essa informao, que como posso honestamente classific-la, para mim mesmo, mas cada um de ns tem as suas prprias supersties. Acontece que a minha a do historiador. Fiquei com medo.

Olhei para ele espantado e ele suspirou, como se tivesse relutncia em prosseguir. Veja bem, Vlad Drcula fora sempre estudado nos grandes arquivos da Europa Central e Oriental ou, em ltima instncia, na sua regio natal. Mas comeou a sua carreira como matador de turcos e descobri que ningum investigara nunca o mundo otomano procura de material sobre a lenda do Drcula. Foi o que me levou at Istambul, numa deriva secreta da minha pesquisa sobre as antigas economias gregas. Ah, mas, por vingana, publiquei todo o meu material sobre a Grcia. Calou-se um momento, voltando o olhar para a janela. E imagino que deveria contar-lhe a si, directamente, o que descobri na coleco de Istambul e que depois procurei afastar do meu esprito. Afinal, voc herdou um desses lindos livros e pousou gravemente a mo nos dois livros empilhados. - Se no for eu a contar-lhe tudo, provvel que refaa o meu percurso, talvez correndo mais riscos. Sorriu sem alegria por cima da mesa. No mnimo, posso poupar-lhe um bocado de trabalho de redaco de relatrios de bolsa de estudos. A risadinha seca ficou-me entalada na garganta. Onde raio queria ele chegar? Teria enlouquecido, Deus do cu? Ocorreume que talvez eu no tivesse levado em conta um certo sentido de humor peculiar do meu mentor. Talvez se tratasse de uma brincadeira sofisticada - ele possua dois exemplares

31 do assustador livro antigo na sua biblioteca pessoal e deixara um na minha mesa, sabendo que eu lho levaria, o que eu fizera, como um tolo. Entretanto, luz familiar do candeeiro da sua mesa, pareceu-me subitamente grisalho, com a barba crescida do fim do dia e sombras escuras em torno dos olhos, que lhes tiravam a cor e o humor. Inclinei-me para a frente. O que est a tentar dizer-me? - Drcula fez uma pausa. Drcula... Vlad Tepes... ainda est vivo. Meu Deus disse o meu pai subitamente, olhando para o relgio. - Por que no me avisaste? So quase sete horas. Enfiei as minhas mos geladas dentro do casaco azul-marinho. No sabia respondi. Mas no pare de contar a histria, por favor. Agora no. O rosto do meu pai pareceu-me irreal por um momento; nunca considerara antes a possibilidade de ele ser - no sabia como definir aquilo mentalmente desequilibrado? Teria perdido o equilbrio por alguns minutos ao contar a sua histria? -J tarde para uma histria to comprida. O meu pai levantou a chvena e colocou-a de novo no pires. Reparei que as suas mos tremiam. Por favor, continue pedi. Ele ignorou-me. De qualquer modo, no sei se te assustei ou se apenas te aborreci. Provavelmente, querias s uma boa e simples histria de drages. Essa histria tinha um drago repliquei. Tambm eu queria acreditar que ele inventara a histria. - Dois drages. Pelo menos, vai contar-me mais amanh? Esfregou os braos, como se quisesse aquecer-se, e vi que por enquanto no estava disposto a continuar a falar sobre o assunto. O seu rosto estava sombrio, fechado. - Vamos jantar. Podemos deixar primeiro a nossa bagagem no Hotel Turist. - Est bem - disse eu. Alm do mais, vo expulsar-nos daqui a qualquer momento, se no nos formos embora. De onde estava, via a criadinha de cabelos claros debruada no bar; aparentemente, tanto se lhe dava que ficssemos ou no. O meu pai pegou na carteira, alisou uma daquelas enormes notas desbotadas, que representavam sempre a imagem de um mineiro ou de um trabalhador rural sorrindo heroicamente no verso, e colocou-a na bandeja de estanho. Contornmos as cadeiras e as mesas de ferro forjado e samos pela porta embaciada.

32 A noite cara de facto, uma daquelas noites frias, enevoadas e hmida do Leste europeu, e a rua estava quase deserta. Cobre a cabea - disse o meu pai, como sempre fazia. Antes de entrarmos no caminho sob os sicmoros encharcados de chuva, parou de repente e fez-me parar com uma mo estendida, protegendo-me como se um carro tivesse passado por ns a grande velocidade. Mas no havia carro nenhum, e a rua gotejava, quieta e rstica sob as luzes amareladas. O meu pai olhou rapidamente para a direita e para a esquerda. No me pareceu ter visto ningum, embora o meu amplo capuz me bloqueasse em parte a viso. Ele ficou parado a ouvir, o rosto inclinado, o corpo imvel. Ento, soltou o ar com fora e seguimos caminho, conversando sobre o que iramos pedir para jantar no Turist, quando l chegssemos. No haveria mais conversas sobre o Drcula naquele dia. Depressa me apercebi do padro do medo do meu pai: s podia contar-me aquela histria em fragmentos curtos, fragmentando-a, no para procurar efeitos dramticos, mas para preservar qualquer coisa: a sua fora? A sua sanidade?

Captulo 3De regresso a casa, em Amesterdo, o meu pai manteve-se estranhamente calado e ocupado, e eu esperei inquieta por uma oportunidade para lhe perguntar mais sobre o professor Rossi. Mrs. Clay jantava connosco todas as noites na sala de jantar revestida de lambris escuros, servindo-nos das travessas no aparador mas sentando-se mesa como um membro da famlia, e o instinto dizia-me que ele no desejava continuar a sua histria na presena dela. Se eu o procurava na biblioteca, ele fazia-me perguntas breves sobre o meu dia, ou pedia para ver os meus trabalhos de casa. Examinei as prateleiras da biblioteca s escondidas, logo depois de regressarmos de Emona, mas o livro e os papis j tinham desaparecido do seu lugar l no alto; no tinha qualquer ideia de onde ele os poderia ter colocado. Nas noites de folga de Mrs. Clay, sugeria que fssemos ao cinema ou levava-me loja barulhenta do outro lado do canal para um caf e bolos. Eu poderia afirmar que ele estava a esquivar-se de mim, se no fosse pelas vezes em que, quando me sentava perto dele para ler, na expectativa de uma abertura para fazer perguntas, ele estendia a mo e me acariciava o cabelo com uma tristeza abstracta no rosto. Nesses momentos, era eu que no conseguia trazer baila a histria. Quando o meu pai foi para o Sul outra vez, levou-me com ele. Teria apenas uma reunio l, e uma reunio informal, quase no valia a pena fazer uma viagem to longa, mas ele queria que eu visse a paisagem. Dessa vez, fomos de comboio muito para l de Emona e depois apanhmos um autocarro para o nosso destino. O meu pai preferia os transportes locais sempre que podia utiliz-los; hoje, quando viajo, penso nele e prefiro sempre o metro ao carro alugado. Vais ver, Ragusa no uma cidade para carros disse ele, enquanto segurvamos a barra de metal atrs do banco do motorista do autocarro. - Procura sempre um lugar na frente do autocarro, menos provvel que enjoes. Agarrei-me com fora barra de ferro at os ns dos meus dedos ficarem brancos; parecia que estvamos a voar entre os altos amontoados de rochas de um cinzento plido que faziam as vezes de montanhas naquela nova regio. - Deus do cu - disse o meu pai depois de um salto horrvel numa curva fechada. Os outros passageiros davam a impresso de estarem completamente

34 vontade. Num dos bancos do outro lado, uma senhora idosa vestida de preto fazia croch, o rosto emoldurado pela franja do xaile, que danava com o sacolejar do autocarro. - Olha com ateno disse o meu pai. - Vais ver uma das melhores paisagens desta costa. Eu olhava diligentemente pela janela, desejando que ele no achasse necessrio dar-me tantas instrues, mas sem deixar escapar nada das montanhas de rochas empilhadas e das aldeias de pedra que as coroavam. Pouco antes do pr do Sol, fui recompensada com a viso de uma mulher parada, beira da estrada, talvez espera de um autocarro que fosse para a direco oposta. Era alta, vestia saias compridas e pesadas, um corpete justo, e trazia na cabea um fabuloso toucado que lembrava uma borboleta de organdi. Estava sozinha no meio das rochas, banhada pelo sol do fim da tarde, uma cesta no cho a seu lado. Teria pensado que se tratava de uma esttua se ela no tivesse virado a cabea magnfica quando passmos. O rosto era oval, plido, demasiado distante para lhe distinguir a expresso. Quando a descrevi ao meu pai, ele disse-me que a mulher devia estar a usar o traje tpico daquela parte da Dalmcia. - Um toucado grande, com uma asa de cada lado? J vi retratos deles Pode dizer-se que uma espcie de fantasma; provavelmente vive numa aldeia muito pequena. Suponho que a maioria dos jovens daqui usa agora jeans. Mantive o rosto colado janela. No apareceram mais fantasmas, mas no perdi uma nica cena do milagre que surgiu: Ragusa, l em baixo ao longe, uma cidade de marfim com um mar de ouro fundido, batido pelo sol, quebrando-se em torno dos seus paredes, telhados mais rubros que o cu do entardecer dentro de extraordinrias muralhas medievais. A cidade estava construda numa grande pennsula arredondada e os seus muros pareciam impenetrveis s tormentas martimas ou s invases, um gigante entrando mar adentro na costa do Adritico. Ao mesmo tempo, vista de muito alto na estrada, tinha a aparncia de uma miniatura, como algo esculpido mo e colocado fora de escala na base das montanhas. A rua principal de Ragusa, quando l chegmos umas duas horas depois, era pavimentada de mrmore, intensamente polido por sculos de solas de sapatos, reflectindo salpicos de luz das lojas e dos palcios circundantes, de modo que reluzia como a superfcie de um grande canal Na extremidade da rua que dava para o porto, sos e salvos no velho corao da cidade, deixmo-nos cair nas cadeiras de um caf e eu virei o rosto na direco do vento, que cheirava a maresia e - estranho para mim naquela estao do ano - a laranjas maduras. O mar e o cu estavam quase escuros. Barcos de pesca danavam numa faixa de gua mais agitada na parte mais distante do porto; o vento trazia-me sons do mar, perfumes do mar e uma nova serenidade.

35 - Ah, o Sul disse o meu pai com ar satisfeito, levantando um copo de usque e um prato de sardinhas maneira de um brinde. Imagina que punhas o teu barco na gua exactamente aqui e tinhas uma noite de cu claro para viajar. Poderias orientar-te pelas estrelas e seguir daqui directamente para Veneza, ou para a costa da Albnia, ou para o mar Egeu. - Quanto tempo levaria para ir vela at Veneza? mexi o meu ch e a brisa levou o seu leve vapor para o mar. - Ah, uma semana ou mais, suponho, num navio medieval. - Sorriu-me, descontrado naquele momento. Marco Polo nasceu nesta costa, e os Venezianos invadiam-na frequentemente. Na verdade, pode dizer-se que estamos sentados numa espcie de prtico de entrada para o mundo. Quando que esteve aqui antes? Eu estava apenas a comear a acreditar na vida anterior do meu pai, na sua existncia anterior a mim.

Estive aqui diversas vezes. Talvez umas quatro ou cinco. A primeira foi h muitos anos, quando ainda era estudante. O meu orientador recomendou-me que visitasse Ragusa ao sair de Itlia, s para ver esta maravilha, enquanto estava a estudar. J te contei que estudei Italiano em Florena durante um vero. - Est a referir-se ao professor Rossi. Sim o meu pai lanou-me um olhar penetrante e depois voltou a sua ateno para o copo de usque.

Fez-se um breve silncio, preenchido pelo rudo do toldo do caf, que ondulava acima de ns com aquela brisa morna fora de estao. Do interior do bar e do restaurante vinha o bulcio confuso de vozes de turistas, de loua a ser colocada nas mesas, de msica de saxofone e piano. De mais longe, chegava o rumorejar do mar nos cascos dos barcos, no escuro do porto. Por fim, o meu pai falou. - Devia contar-te um pouco mais sobre ele. Ainda no olhara para mim, mas percebi que a sua voz falhara levemente. Eu gostaria muito disse, cautelosa. Ele bebericou o seu usque. A lona do toldo batia como uma vela de barco sobre as nossas cabeas. - Tu s teimosa quando se trata de histrias, hein? O pai que teimoso, quis eu dizer, mas fechei a boca; pois a minha vontade de ouvir a histria era maior do que a de discutir com ele. O meu pai suspirou. Est bem. Amanh, conto-te mais sobre o Rossi, luz do dia, quando no estiver to cansado e tivermos algum tempo para andar pelas muralhas. E apontou com o copo para as ameias luminosas, de um branco-acinzentado, acima do hotel. - Ser uma hora melhor para contar histrias. Principalmente essa histria. Pelo meio da manh seguinte estvamos sentados a uns trinta metros acima das ondas, que rebentavam e rugiam, brancas em torno das razes gigantescas da cidade. O cu de Novembro brilhava como num dia de Vero. O meu pai ps os culos escuros, olhou para o relgio, dobrou e guardou o folheto sobre a arquitectura de telhados oxidados l em baixo, deixou um grupo de turistas alemes passar e afastar-se de ns at estar fora do alcance da sua voz. Eu contemplava o mar para alm de uma ilha coberta de rvores, at ao horizonte de um azul esmaecido. Daquela direco tinham vindo os navios venezianos, trazendo guerra ou comrcio, as suas bandeiras vermelhas e douradas tremulando sob o mesmo cu resplandecente. Esperando que o meu pai falasse, senti uma ponta de apreenso muito pouco intelectual. E se aqueles navios que eu imaginara no horizonte fizessem simplesmente parte de um colorido espectculo de reconstituio histrica? Por que seria to difcil para o meu pai comear a falar?

Captulo 4Como j te contei disse o meu pai, pigarreando uma ou duas vezes, o professor Rossi era um excelente acadmico e um verdadeiro amigo. No gostaria que tivesses dele uma opinio diferente. Sei que tudo o que te contei antes, e talvez tenha sido um erro da minha parte, faz com que Rossi parea... meio louco. Deves lembrar-te de que ele me descreveu algo terrivelmente difcil de acreditar. E que me deixou estupefacto e cheio de dvidas a seu respeito, embora visse sinceridade e aceitao no seu rosto. Quando acabou de falar, fixou em mim aqueles olhos perspicazes. - O que est a dizer? - devo ter balbuciado. Vou repetir disse Rossi, enftico. Descobri em Istambul que Drcula est vivo entre ns hoje. Ou estava naquela poca, pelo menos. Fiquei a olhar para ele, pasmado. Deve estar a pensar que enlouqueci disse ele, suavizando nitidamente o tom. - E admito que qualquer pessoa que se ponha a remexer nessa histria durante algum tempo pode muito bem enlouquecer. E suspirou. Em Istambul, h um acervo de material que pouca gente conhece, fundado pelo sulto Mehmed II, que tomou a cidade aos Bizantinos em 1453. Esse arquivo , na sua maior parte, uma miscelnea reunida mais tarde pelos Turcos medida que foram, por sua vez, sendo derrotados nas franjas do seu imprio. Mas tambm guarda documentos do final do sculo quinze e, entre estes, alguns mapas que supostamente davam indicaes a respeito da Tumba mpia de um matador de turcos, que pensei poder ser Vlad Drcula. Na realidade, havia trs mapas, graduados em escala para mostrar a mesma regio em pormenores cada vez maiores. No havia nada nesses mapas que eu reconhecesse ou pudesse associar a qualquer regio que conhecesse. Estavam catalogados principalmente em rabe e datavam de cerca de 1500, segundo os bibliotecrios do arquivo. Bateu com a mo no pequeno livro estranho que, como te contei, se parecia tanto com o que eu encontrara. As informaes no centro do terceiro mapa estavam escritas num dialecto eslavo muito antigo. S um estudioso com mltiplos recursos lingusticos ao seu dispor teria conseguido dar sentido quele texto. Fiz o melhor que pude, mas era um trabalho impreciso.

38Nesse ponto, Rossi abanou a cabea, como se ainda lamentasse as suas limitaes. - O esforo que dediquei a essa descoberta afastou-me excessivamente e pouco razoavelmente das minhas pesquisas oficiais desse Vero sobre o comrcio de Creta na Antiguidade. Mas eu j estava para l da razo, creio, sentado naquela biblioteca abafada e quente em Istambul. Lembro-me de que via os minaretes de Hagia Sophia atravs das janelas sujas. Trabalhei ali, com aquelas pistas do reino de Vlad segundo a viso dos Turcos, espalhadas na mesa minha frente, revirando os meus dicionrios, tomando extensas notas e copiando os mapas mo. Para encurtar a histria de uma longa pesquisa, chegou o dia em que me vi prximo do ponto da Tumba mpia cuidadosamente marcado no terceiro e mais complicado dos mapas. Lembras-te de que Vlad Tepes foi supostamente enterrado no mosteiro de uma ilha do lago Snagov, na Romnia. Aquele mapa, assim como os outros dois, no mostrava qualquer lago com uma ilha mas havia um rio que passava na regio e se alargava no meio. Eu j tinha traduzido todos os nomes volta das margens com a ajuda de um professor de lngua rabe e otomana da Universidade de Istambul provrbios enigmticos sobre a natureza do mal, muitos deles tirados do Coro. Aqui e ali no mapa, aninhadas entre montanhas toscamente esboadas, havia algumas palavras escritas que primeira vista pareciam ser topnimos num dialecto eslavo, mas que se traduziam como enigmas, provavelmente um cdigo para ocultar localizaes verdadeiras: Vale dos Oito Carvalhos, Aldeia dos Porcos Roubados, e assim por diante - estranhos nomes camponeses que nada significavam para mim. Bem, no centro do mapa., sobre o stio da Tumba mpia, onde quer que fosse suposto estar localizada, havia um esboo tosco de um drago, usando um castelo na cabea como uma espcie de coroa. O drago no se parecia nada com o do meu - dos nossos - livros antigos, mas conjecturei que deveria ter chegado aos Turcos juntamente com a lenda de Drcula. Abaixo do drago, algum tinha escrito a tinta palavras minsculas, numa lngua que inicialmente pensei ser rabe, como os provrbios nas margens do mapa. Observando-as com a lupa, percebi de repente que estavam escritas em Grego, e traduzias em voz alta antes de pensar em regras de cortesia - embora no houvesse mais ningum na sala da biblioteca alem de mim e de um bibliotecrio entediado que aparecia, de vez em quando, decerto para se certificar de que eu no roubava nada. Naquele momento, estava absolutamente sozinho. As letras infinitesimais danavam-me diante dos olhos medida que as lia: Neste lugar, ele reside no mal. Leitor, desenterra-o com uma palavra. Naquele momento, ouvi uma porta bater l em baixo no vestbulo. Passos pesados subiam a escada. Entretanto, eu estava ainda ocupado com o lampejo de uma ideia: a lupa acabara de me dizer que aquele mapa, ao contrrio dos dois

39 primeiros, mais genricos, fora catalogado por trs pessoas diferentes em trs lnguas diferentes. As caligrafias, assim como as lnguas, eram dissemelhantes. E tambm as cores das velhas tintas. E tive uma viso repentina sabes, aquela intuio em que um estudioso quase pode confiar quando est apoiado em semanas de trabalho meticuloso. Tinha a impresso de que o mapa consistira originalmente naquele esboo central e nas montanhas que o rodeavam, com a frase em Grego no centro. Provavelmente, s mais tarde fora catalogado naquele dialecto eslavo para identificar os lugares a que o mapa aludia em cdigo, pelo menos. Depois, cara em mos otomanas e o desenho fora contornado por frases do Coro, que pareciam encerrar ou aprisionar aquela ameaadora mensagem no centro, ou cerc-la com talisms contra as trevas. Se isto fosse verdade, algum, que sabia Grego, teria marcado primeiro o mapa, talvez o tivesse mesmo desenhado. Sabia que o Grego era usado pelos eruditos bizantinos do tempo de Drcula, mas no pela maioria dos eruditos do mundo otomano. Antes que eu pudesse sequer fazer uma anotao sobre esta teoria, que envolveria testes que ultrapassavam as minhas capacidades, a porta do outro lado dos conjuntos de estantes abriu-se com estrondo e um homem alto e bem constitudo entrou, passou apressado e impetuoso pelos livros e parou do outro lado da mesa onde eu trabalhava. O efeito foi chocante, incmodo. Ele no escondia o facto de estar consciente da sua intruso e eu tinha a certeza de que no se tratava de um dos bibliotecrios. Senti tambm, por qualquer razo, que deveria levantar-me, mas um certo orgulho impediu-me de o fazer; poderia parecer uma deferncia, quando a interrupo fora inesperada e bastante descorts. Encarmo-nos e fiquei ainda mais surpreendido. O homem no se encaixava definitivamente naquele ambiente esotrico. Era bem-parecido e elegante, muito moreno, parecendo um Turco ou um Eslavo do Sul, com bastos bigodes cados e fato escuro como o de um homem de negcios ocidental. Os seus olhos fitaram os meus com agressividade, e as suas pestanas compridas pareciam de certa forma repulsivas naquele rosto severo. A pele era amarelada e plida mas impecvel, perfeita, sem qualquer mancha, e os lbios muito vermelhos. Senhor disse ele, a voz baixa e hostil, quase um rosnado num ingls com sotaque turco, no creio que tenha as autorizaes necessrias para isso. - Para qu? - os meus brios acadmicos reagiram de imediato. Para essas pesquisas. O senhor est a lidar com material que o Governo turco considera arquivo confidencial da Turquia. Posso ver os seus documentos, por favor? - Quem o senhor? - perguntei, com idntica frieza. - Posso ver os seus?

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Ele tirou uma carteira do bolso interior do casaco, escancarou-a em cima da mesa minha frente e fechou-a de seguida com um gesto rpido. S tive tempo de ver um carto cor de marfim com uma misturada de ttulos turcos e rabes. A mo do homem tinha um aspecto desagradvel, como se fosse de cera, com unhas compridas e um tufo de plos escuros nas costas. Ministrio dos Recursos Culturais disse ele, glido. Fui informado de que no fez qualquer acordo de facto com o Governo turco para examinar esse material. verdade? - De maneira nenhuma. Mostrei-lhe uma carta da Biblioteca Nacional declarando que me concedia o direito de realizar pesquisas em qualquer uma das suas divises em Istambul. No suficiente - disse ele, atirando a carta para o meio dos meus papis. Talvez tenha de me acompanhar. Para onde? Levantei-me, sentindo-me agora mais seguro de p, mas esperando que ele no tomasse o meu gesto como uma manifestao de obedincia. Para a polcia, se necessrio. Isto uma afronta. No caso de uma dvida burocrtica, aprendera eu, levanta a voz. - Sou doutorando na Universidade de Oxford e cidado do Reino Unido. Registei-me na universidade daqui no dia em que cheguei e recebi esta carta como prova da minha posio. No admito ser interrogado pela polcia - ou pelo senhor. - Estou a ver. Sorriu de uma maneira que me deu um n no estmago. Lera um pouco sobre as prises turcas e os seus espordicos hspedes ocidentais, e a minha situao pareceu-me precria, embora no compreendesse em que tipo de dificuldade poderia estar metido. Tinha esperana de que um dos vagarosos bibliotecrios me tivesse ouvido e viesse recomendar silncio. Depois, ocorreu-me que eles tinham certamente permitido a entrada daquele sujeito, com o seu intimidante carto-de-visita, para falar comigo. Talvez fosse realmente algum importante. Ele inclinou-se para a frente. Vejamos o que est a fazer aqui. Afaste-se, por favor. Contra a minha vontade, cheguei-me para o lado e ele inclinou-se para o meu trabalho, fechando ruidosamente os meus dicionrios para ler as respectivas capas, sempre com aquele sorriso inquietante. Era uma presena macia por cima da mesa, e reparei que exalava um odor esquisito, como o de uma gua-decolnia usada sem muito sucesso para disfarar algum mau cheiro. Por fim, pegou no mapa em que eu estava a trabalhar, as mos de repente delicadas, segurando-o quase com carinho. Olhou para o mapa como se no precisasse de examinar muito para saber do que se tratava, embora eu achasse que devia estar a fazer bluff. Este o material do arquivo que est a usar, no ?

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respondi, zangado. Isto propriedade valiosa do Governo turco. No creio que v precisar dela para qualquer finalidade estrangeira. E foi este pedao de papel, este pequeno mapa, que o fez vir da sua universidade estrangeira at Istambul? Cheguei a pensar em argumentar que viera tambm com outros objectivos, para o desviar do tema dos meus estudos, mas percebi imediatamente que isso poderia levar a mais perguntas da sua parte. - Sim, essencialmente. - Essencialmente? - repetiu, num tom mais ameno. Bem, acho que vou ter de confiscar isto temporariamente. Que vergonha para um investigador estrangeiro. Eu fervia de raiva ali parado, to perto da minha soluo, e dei graas a Deus por no ter trazido naquela manh as cpias meticulosas que fizera de velhos mapas dos Crpatos, que pretendia comear a comparar com aquele mapa no dia seguinte. Estavam escondidas na minha mala, no hotel. O senhor no tem o direito de confiscar material para o qual j recebi autorizao para trabalhar - disse eu, rangendo os dentes. Vou levar imediatamente a questo Biblioteca Nacional. E Embaixada da Inglaterra. Seja como for, qual a sua objeco a que eu estude estes documentos? So fragmentos obscuros de histria medieval. Tenho a certeza de que nada tm a ver com os interesses do Governo turco. O burocrata olhava atravs de mim, como se as agulhas das torres de Hagia Sophia se apresentassem sob um ngulo novo e interessante que ele nunca tivera ocasio de ver antes para seu prprio bem prosseguiu ele, impassvel. muito melhor deixar outra pessoa trabalhar nisso. Talvez noutra altura. Permaneceu imvel, com a cabea voltada para a janela, quase como se quisesse que eu seguisse o seu olhar em direco a um determinado ponto. Tive a sensao infantil de que no deveria faz-lo porque poderia ser um ardil, por isso preferi olhar para ele e esperar. Ento vi, como se ele tivesse a inteno que a oleosa luz do dia incidisse exactamente ali, o seu pescoo a sair do colarinho da camisa cara. No lado do seu pescoo musculoso, onde a carne mais profunda, havia duas crostas castanhas de fendas, no abertas mas sem estarem ainda completamente cicatrizadas, semelhantes a perfuraes feitas por dois espinhos ou a cortes com a ponta de uma faca Recuei, afastei-me da mesa, imaginando que perdera o juzo com todas as minhas leituras mrbidas, que realmente estava a ficar desequilibrado. Mas a luz do dia era perfeitamente vulgar, o homem do fato de l escura perfeitamente real, at no cheiro de falta de banho, de suor, ou de outra coisa qualquer por baixo do perfume da gua-de-colnia. Nada desapareceu ou mudou. No conseguia tirar os olhos daquelas duas pequenas fendas mal cicatrizadas. Depois

42de alguns segundos, ele virou as costas vista absorvente, parecendo satisfeito com o que vira - ou com o que eu vira - e sorriu de novo. Para seu prprio bem, professor. Fiquei ali sem fala, esttico, enquanto ele saa da sala com o mapa enrolado na mo, e ouvi o som dos seus passos morrer aos poucos nas escadas. Minutos depois, um dos bibliotecrios idosos entrou, um homem com uma espessa cabeleira grisalha, transportando dois flios, que se preparou para deixar numa prateleira baixa. Desculpe disse-lhe eu, com a voz meio presa na garganta, desculpe, mas isto um absurdo. Ele olhou-me, espantado. Quem era aquele homem? O funcionrio do Ministrio? - Funcionrio do Ministrio - repetiu o bibliotecrio, gaguejando. Preciso que me d imediatamente uma carta oficial confirmando o meu direito de trabalhar neste arquivo. Mas o senhor tem todo o direito de trabalhar aqui - disse ele, em tom apaziguador. Fui eu mesmo que fiz a sua inscrio. - Eu sei, eu sei. Por isso tem de ir atrs dele e obrig-lo a devolver o mapa. Ir atrs de quem?

Do homem do Ministrio, o que acabou de descer. O senhor no o deixou entrar? Olhou-me com uma expresso curiosa por baixo da sua trunfa grisalha. Algum entrou aqui? Ningum entrou neste lugar nas ltimas trs horas. Sou eu prprio que fico na entrada. Infelizmente, poucas pessoas vm aqui pesquisar. O homem... comecei a falar, mas calei-me. De repente, vi a minha prpria figura, um estrangeiro maluco a gesticular. - Ele levou o meu mapa. Quer dizer, o mapa do arquivo. - O mapa, Herr Professor? - Eu estava a trabalhar num mapa. O que requisitei esta manh no balco. No aquele? E apontou para a minha mesa de trabalho. Mesmo no meio, estava um vulgar mapa de estradas dos Balcs que eu nunca vira na vida. Certamente no estivera ali cinco minutos antes. Achava que devia estar a perder a minha sanidade mental, mas tinha a certeza absoluta de que aquele mapa no estava ali. O bibliotecrio guardou o seu segundo flio. No tem importncia. Juntei os meus livros o mais depressa que pude e sa da biblioteca. Na rua movimentada, cheia de trfego, no havia sinal do burocrata, embora vrios homens de altura e peso semelhantes, com fatos parecidos, tenham passado por mim com as suas pastas. Quando cheguei ao quarto em que estava hospedado, descobri que os meus pertences tinham sido deslocados devido a algum problema prtico com o quarto. Os meus primeiros desenhos dos velhos mapas,

43 assim como as anotaes completas de que eu no precisara naquele dia, tinham desaparecido. A minha mala fora impecavelmente refeita. O pessoal do hotel disse que no sabia nada sobre isso. Passei a noite em claro, prestando ateno a todos os sons vindos do exterior. Na manh seguinte, recolhi a minha roupa suja e os meus dicionrios e apanhei o navio de regresso Grcia. O professor Rossi entrelaou as mos de novo e olhou para mim, como se esperasse pacientemente a minha manifestao de descrena. Entretanto, o que subitamente me abalava era a crena, no a dvida. E voltou para a Grcia? Voltei, e passei o resto do Vero a tentar ignorar a recordao da minha aventura em Istambul, embora no pudesse ignorar as suas implicaes. - Foi-se embora porque estava... assustado? Apavorado. No entanto, mais tarde fez, ou mandou fazer, todas aquelas pesquisas sobre o seu estranho livro? Sim, principalmente a anlise qumica no Smithsonian. Mas quando o exame se revelou inconclusivo, e ao mesmo tempo influenciado por outros factores, abandonei por completo a questo e guardei o livro na estante. L para cima, por acaso. Fez um gesto com a cabea na direco da prateleira mais alta da estante. Penso de vez em quando naqueles acontecimentos, s vezes lembro-me deles com muita clareza, outras vezes s em fragmentos. Imagino, porm, que a familiaridade acabe por desgastar mesmo as lembranas mais terrveis. E sem dvida h perodos, anos a fio, em que no quero pensar de maneira nenhuma nisso. - Mas acredita mesmo... aquele homem com as feridas no pescoo... - O que pensaria se ele estivesse sua frente e voc estivesse certo da sua prpria sanidade? Estava de p encostado s estantes e, por um momento, o seu tom de voz soou irritado Dei um ltimo gole no caf frio; o que restava dele estava muito amargo. E nunca tentou decifrar novamente o significado daquele mapa, ou saber de onde viera? Nunca fez uma pausa momentnea. No. uma das poucas pesquisas que estou certo de nunca vir a terminar. Tenho porm uma teoria de que essa linha de estudos horripilante, como tantas outras menos horrorosas, apenas algo em que uma pessoa faz pequenos progressos, depois outra faz mais um pouco, cada uma contribuindo com uma pequena parcela durante a vida. Quem sabe, trs dessas pessoas, h sculos atrs, fizeram exactamente isso ao desenhar aqueles mapas e fazer os acrscimos, embora eu admita que todas aquelas frases do Coro usadas como talisms no devem ter contribudo em

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nada para aumentar os conhecimentos sobre a verdadeira localizao da sepultura de Vlad Tepes. E claro que tudo isto pode ser um grande disparate. Ele pode muito bem ter sido enterrado no mosteiro daquela ilha, como reza a tradio romena, e ter l ficado em paz, como uma boa alma. O que ele no era. Mas no acredita nisso. Ele hesitou outra vez. O conhecimento precisa de prosseguir. Para o bem ou para o mal, mas inevitavelmente, em todos os campos. - Alguma vez foi a Snagov para ver com os seus prprios olhos, fosse o que fosse?

Ele abanou a cabea. No. Desisti da pesquisa. Pousei a minha chvena gelada na mesa, sondando a expresso do seu rosto. Mas guardou algumas informaes - arrisquei, devagar. Ele enfiou novamente a mo entre os livros da prateleira mais alta, tirando de l um envelope pardo lacrado. Claro. Quem seria capaz de destruir completamente uma pesquisa? Copiei de memria o que pude dos trs mapas e guardei as minhas outras anotaes, as que estavam comigo naquele dia no arquivo. Colocou o pacote na mesa sem o abrir, entre ns os dois, e tocou nele com uma delicadeza que no combinava com o horror que revelara ter pelo seu contedo. Talvez tenha sido essa incongruncia, ou o fim de tarde de Primavera ter-se transformado em noite l fora, que me fez ficar ainda mais nervoso. No acha que isto pode ser um legado perigoso? S Deus sabe como eu gostaria de dizer que no. Mas talvez seja perigoso apenas no sentido psicolgico. A vida melhor, mais ntegra, quando no ruminamos horrores desnecessariamente. Como sabe, a histria humana est cheia de ms aces, e talvez devssemos pensar nelas com lgrimas, e no com fascnio. Foi h tantos anos que j nem sei se deva confiar nas minhas recordaes de Istambul, onde nunca mais fiz questo de voltar. Alm disso, tenho a impresso de que trouxe comigo tudo o que precisava saber. Para prosseguir a pesquisa? Sim. Mas ainda no sabe quem teria concebido um mapa mostrando onde fica a sepultura dele? Ou onde ficava? -No. Estendi a mo para pegar no envelope pardo. No precisarei de um rosrio para levar juntamente com isto, ou algo do gnero, um amuleto?

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- Estou certo de que leva consigo a sua bondade, o seu sentido moral, ou como lhe quiser chamar. Seja como for, gosto de pensar que a maioria de ns capaz disso. Eu tambm no sairia por a com alho no bolso, de modo nenhum. - Mas com algum forte antdoto mental. Sim, tentei. O seu rosto estava profundamente triste, quase lgubre. Talvez tenha feito mal em no recorrer a essas antigas supersties, mas suponho que sou um racionalista e assim continuarei. Os meus dedos fecharam-se no envelope. - E no se esquea do seu livro. interessante e desejo-lhe sorte para identificar a sua origem. Entregou-me o meu livro encadernado em velino. A tristeza dos seus olhos desmentia o tom superficial das palavras. Volte daqui a duas semanas e falaremos mais sobre o comrcio em Utreque. Devo ter pestanejado; at a minha tese me parecia irreal. Claro, est bem. Rossi recolheu as chvenas de caf e eu guardei as coisas na minha pasta, com os dedos rgidos. - Mais uma coisa disse-me com ar grave, quando me virei novamente para ele. -Sim?

No vamos voltar a falar sobre este assunto. - No vai querer saber como estou a evoluir? Aquilo deixava-me aterrorizado, sozinho. - Encare as coisas assim, se quiser. No quero saber. A menos, claro, que se veja em dificuldades. Apertou-me a mo com a sua habitual maneira afectuosa. O rosto estava realmente triste, o que era novidade para mim, e ento esforou-se para sorrir. Est bem disse eu. Daqui a duas semanas lembrou ele num tom quase alegre enquanto eu saa. Traga um captulo pronto, ou algo parecido. O meu pai calou-se. Para meu espanto e embarao, vi que havia lgrimas nos seus olhos. Aquele vislumbre de emoo teria interrompido as minhas perguntas mesmo que ele no tivesse dito nada. - Pois , escrever uma tese no brincadeira disse ele, num tom despreocupado. De qualquer forma, talvez tivesse sido melhor nem tocar neste assunto. uma histria antiga, to complicada, e claro que afinal de contas tudo acabou bem, porque eu estou aqui, nem sou j sequer aquele professor soturno que era dantes, e tu ests aqui. Piscou os olhos, estava a recompor-se. um final feliz, como devem ser os finais. Mas talvez haja muita coisa pelo meio consegui dizer.

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O calor do sol chegava-me apenas pele, no aos ossos, enregelados por uma brisa fria vinda do mar. Espreguimo-nos e olhmos para um e outro lado, examinando a cidade, em baixo. O ltimo grupo de turistas passara por ns ao longo da muralha e encontrava-se numa reentrncia distante, apontando para as ilhas ou a posar para as cmaras uns dos outros. Relanceei os olhos para o meu pai, mas ele estava a contemplar o mar. Atrs dos outros turistas e j bem adiante de ns, havia um homem cuja presena eu no notara antes, caminhando devagar mas inexoravelmente fora de alcance, alto, de ombros largos e vestido com um fato escuro de l. J tnhamos encontrado outros homens de fato escuro naquela cidade; por que razo me era to difcil deixar de olhar para aquele?

Captulo 5 Por me sentir to constrangida com o meu pai, decidi investigar um pouco por conta prpria e, um dia, depois da escola, fui sozinha para a biblioteca da universidade. O meu holands era bastante razovel, h anos que estudava Francs e Alemo e a universidade tinha um vasto acervo de obras em Ingls. Os bibliotecrios eram amveis e s precisei de uma ou duas conversas tmidas para encontrar o material que procurava: o texto dos folhetos de Nuremberga sobre Drcula que o meu pai mencionara. A biblioteca no possua os originais - eram muito raros, explicou-me o bibliotecrio idoso do acervo medieval, mas encontrou o texto numa colectnea de documentos medievais alemes traduzido para o Ingls. - Ser que disto que est procura, minha querida? - perguntou ele, sorrindo. Tinha um desses rostos muito claros e abertos de certos holandeses o olhar directo e azul e o cabelo parecia ter ficado mais louro com o tempo, em vez de grisalho. Os pais do meu pai, em Boston, tinham morrido quando eu era pequena, e pensei que gostaria de ter um av daquele gnero. Chamo-me Johan Binnerts acrescentou. Pode procurar-me sempre que precisar de ajuda. Respondi que era exactamente o que procurava, dank u, e ele bateu-me ao de leve no ombro antes de se afastar em silncio. Na sala vazia, reli o primeiro pargrafo do meu caderno de anotaes: No ano de Nosso Senhor de 1456, Drakula fez muitas coisas terrveis e singulares. Quando foi nomeado Senhor da Valquia, mandou queimar todos os jovens que tinham ido para aquela terra aprender a lngua, num total de quatrocentos. Mandou empalar uma famlia numerosa e muitos dos seus sbditos foram enterrados nus at ao umbigo e alvejados. A alguns, mandou-os esfolar e depois assar. Havia tambm uma nota de rodap no fim da primeira pgina. Os caracteres da nota eram to pequenos que quase me passou despercebida. Olhando mais de perto, verifiquei que se tratava de uma explicao sobre a palavra empalar. Dizia que Vlad Tepes aprendera aquela forma de tortura com os Otomanos. A empalao que ele praticava consistia na penetrao do corpo com

48uma estaca afiada de madeira, em geral pelo nus ou pelos rgos genitais, de tal modo que a estaca saa s vezes pela boca e s vezes pela cabea. Tentei por um minuto no ver estas palavras; depois, durante vrios minutos, tentei esquec-las, com o livro fechado Porm, o que mais me impressionou naquele dia, quando guardei o meu caderno e vesti o casaco para ir para casa, no foi a imagem fantasmagrica de Drcula nem a descrio do empalamento, mas o facto de estas coisas, aparentemente, terem acontecido realmente. Se prestasse ateno, pensei, ouviria os gritos dos rapazes, da famlia numerosa morrendo junta. Apesar de todo o seu cuidado com a minha educao histrica, o meu pai esquecera-se de me contar isto: os terrveis momentos da histria eram reais. Compreendo hoje, dcadas mais tarde, que de nada adiantaria ele ter-me contado. S a prpria histria pode convencer-nos desta verdade. E uma vez que tenhamos visto de frente esta verdade visto realmente, j no podemos desviar os olhos dela. Ao chegar a casa naquela noite, senti uma espcie de fora diablica e enfrentei o meu pai. Ele estava a ler na biblioteca enquanto Mrs. Clay estava s voltas com os pratos do jantar na cozinha. Fui para a biblioteca, fechei a porta e postei-me diante da poltrona dele. Ele segurava um dos seus amados livros de Henry James, o que nele era um sinal inconfundvel de tenso. Fiquei parada sem falar at ele levantar os olhos para mim. Ol disse ele, pegando no seu marcador com um sorriso. Um problema de lgebra? O seu olhar j revelava ansiedade. - Quero que acabe a histria - disse eu.

Ele ficou calado, tamborilando com os dedos no brao da cadeira. - Por que no me conta o resto? - Foi a primeira vez que senti que era uma ameaa para ele. Olhou para o livro que acabara de fechar. Sabia que estava a ser cruel com ele de uma forma que eu mesma no compreendia, mas, j que comeara aquela maldita tarefa, teria de a terminar. O pai no quer que eu saiba certas coisas. O meu pai levantou finalmente os olhos para mim. O seu rosto estava inexplicavelmente triste, marcado por rugas profundas a luz do candeeiro. No, no quero. - Sei mais do que pensa disse eu, apesar de sentir que aquilo era uma infantilidade, no lhe diria o que sabia ainda que me perguntasse. Ele juntou as duas mos sob o queixo. - Sei que sabes - disse por fim. - E porque no sabes nada, vou ter de te contar tudo.

Olhei para ele, surpreendida. Ento, conte-me - disse eu, arrebatada. Ele baixou de novo a cabea.

49 - Vou contar-te, vou contar-te assim que puder. Mas no aqui, em nossa casa. E no tudo de uma vez. No consigo. - E explodiu. - Tudo de uma vez de mais para mim. Tem pacincia comigo. O olhar que me lanou era de splica, no de acusao. Aproximei-me e envolvi com o meu brao a sua cabea curvada. Maro costuma ser frio e ventoso na Toscana, mas o meu pai achou que uma viagem curta pelo campo seria o ideal depois de quatro dias de palestras - sempre considerei o trabalho dele como palestras - em Milo. Desta vez, no precisei de pedir que me levasse com ele. - Florena maravilhosa, principalmente fora da estao - declarou, enquanto saamos de carro de Milo rumo ao Sul. Gostaria que fosses at l um dia destes. Primeiro, vais ter de aprender um pouco mais sobre a histria da cidade e sobre as suas pinturas para a apreciares devidamente. Mas o campo da Toscana o melhor que h. Descansa os olhos e estimula-os ao mesmo tempo, vais ver. Concordei com a cabea e acomodei-me no banco do Fiat alugado. O amor do meu pai pela liberdade era contagiante, e eu gostava da maneira como ele alargava o n da gravata e o colarinho da camisa quando partamos para um lugar novo. O Fiat seguia a uma velocidade uniforme pela lisa auto-estrada do Norte de Itlia. De qualquer maneira, h anos que tenho vindo a prometer a Massimo e Giulia que viramos. Nunca me perdoariam se eu passasse to perto sem os visitar. Inclinou o corpo para trs e estendeu as pernas. Eles so um tanto esquisitos. Excntricos talvez seja uma definio melhor, mas so muito gentis. Alinhas? -J disse que sim frisei. Preferia estar sozinha com o meu pai do que visitar estranhos, cuja presena despertava sempre a minha timidez natural, mas ele mostrava-se ansioso por rever os seus velhos amigos. Em todo o caso, a vibrao do Fiat dava-me sono; estava cansada da viagem de comboio. Tivera uma indisposio naquela manh, o fluxo de sangue alarmantemente atrasado que era sempre um motivo de preocupao para o meu mdico e que fizera a desajeitada Mrs. Clay abastecer a minha mala com uma poro de maos de algodo. A minha primeira reaco ao dar com aquela alterao foram lgrimas de surpresa no lavabo do comboio, como se algum me tivesse ferido; a pequena mancha no algodo delicado das minhas cuecas parecia a impresso digital de um assassino. Mas no dissera nada ao meu pai. Vales, aldeias alcantiladas em colinas distantes tornaram-se um panorama difuso que passava pela janela do carro e depois uma mancha indistinta. Ainda estava sonolenta hora do almoo, numa

50 cidade feita de cafs e bares escuros, com gatos a enroscarem-se e desenroscarem-se entrada das portas. Mas quando, ao crepsculo, subimos na direco de uma daquelas vinte cidades no alto de colinas, amontoadas nossa volta como temas de um fresco, senti-me bem acordada. O anoitecer cheio de nuvens varridas pelo vento revelava brechas de pr-do-sol no horizonte na direco do Mediterrneo, disse o meu pai, na direco de Gibraltar e de outros lugares onde poderamos ir um dia. Acima de ns, erguia-se uma cidade construda sobre estacas de pedra, com ruas quase verticais e vielas com degraus estreitos. O meu pai guiava o pequeno carro aparentemente ao acaso, at que passmos porta de uma trattoria que derramava luz nas pedras arredondadas da rua molhada. Nessa altura, ele desceu devagar pelo outro lado da colina. - Acho que aqui, se bem me lembro. - E enveredou por um caminho cheio de sulcos de pneus e guardado por ciprestes escuros. - Villa Montefollinoco, em Monteperduto. Monteperduto a cidade, lembras-te? Eu lembrava-me. Tnhamos examinado o mapa ao pequeno-almoo, o dedo do meu pai traando o percurso depois de tomar a sua chvena de caf: Siena aqui. Fica na Toscana Depois, atravessamos at Umbria. C est Montepulciano, um famoso lugar antigo, e nesta prxima colina fica a nossa cidade, Monteperduto. Os nomes estavam associados um ao outro na minha cabea, mas monte significava montanha e estvamos cercados por montanhas de casa de bonecas, pequenas montanhas pintadas como se fossem filhotes dos Alpes, que eu j atravessara duas vezes. Na escurido iminente, a villa parecia pequena, uma casa baixa de quinta, feita de pedra bruta, com ciprestes e oliveiras agrupados volta dos telhados avermelhados e um par de postes de pedra inclinados a marcar o caminho que dava acesso casa. Havia luz nas janelas do andar de baixo e, de repente, dei-me conta de que estava faminta, cansada e irritada, com uma irritao de jovem que teria de disfarar na presena dos nossos anfitries. O meu pai tirou a nossa bagagem da mala do carro e eu segui-o atravs do caminho. At a sineta ainda a mesma disse ele, satisfeito, puxando uma pequena corda na entrada e ajeitando o cabelo na penumbra O homem que abriu a porta saiu como um p-de-vento, abraando o meu pai, dando-lhe palmadas nas costas, beijando-o ruidosamente nas duas faces, inclinando-se um pouco de mais para me apertar a mo. A dele era enorme e quente, e pousoua no meu ombro para entrarmos juntos. No vestbulo, de tecto baixo e vigas vista, cheio de mveis que at ento eu s vira em museus, berrou como um animal da quinta: - Giulia, Giulia! Anda c Vem ver quem chegou Anda O ingls dele era seguro, forte, sonoro.

51 A mulher alta e sorridente que veio ao nosso encontro agradou-me de imediato. O cabelo dela era grisalho, mas brilhava com reflexos prateados, preso atrs da cabea e descobrindo-lhe o rosto comprido. Comeou por sorrir para mim e no se curvou para a frente para me cumprimentar. A sua mo era quente, como a do marido, e beijou o meu pai nas duas faces, sacudindo a cabea por entre um fluxo suave de palavras em italiano. E tu disse-me em ingls, vais ter um quarto s para ti, um quarto bem simptico, est bem? - Est bem - concordei, gostando da ideia. Esperava que ficasse prximo do quarto do meu pai e tivesse uma boa vista do vale circundante, que tnhamos percorrido demasiado depressa. Depois do jantar na sala com o cho lajeado, todos os adultos se recostaram nas cadeiras e suspiraram. - Giulia disse o meu pai -, cada ano cozinhas melhor. s uma das grandes cozinheiras de Itlia. - Que disparate, Paolo. - O ingls dela tinha traos de Oxford e Cambridge. Ests sempre a dizer esses disparates. - Talvez seja do Chianti. Deixa-me olhar para essa garrafa. Deixa-me encher-te outra vez o copo interrompeu Massimo. E o que est a linda filha do Paolo a estudar? Estudamos todos os assuntos na minha escola disse eu, toda empertigada. Ela gosta de Histria, julgo eu disse o meu pai. E tambm uma boa viajante. Histria? Massimo encheu de novo o copo de Giulia, e depois o seu,