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ÍNDICE

Nota Prévia ....................................................................................... 9

O Galo de Ouro ................................................................................... 15

Sinopse de O Galo de Ouro ................................................................ 81

Avaliação Literária do Romance O Galo de Ouro .............................................................................. 87

Texto para Cinema: O Galo de Ouro na produção artística de Juan Rulfo .......................................... 113

A Fórmula Secreta ............................................................................... 149

Sobre A Fórmula Secreta .................................................................... 155

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NOTA PRÉVIA

É muito o que sabemos hoje sobre a história de O Galo de Ouro, graças aos documentos do arquivo de Juan Rulfo e aos recortes de imprensa que reuniu sobre as suas rela-ções com o mundo do cinema. O texto deste breve romance foi estudado em data tão precoce como 19861 por José Carlos González Boixo, bem conhecido pelos estudiosos do autor de Jalisco e a quem convidámos a colaborar neste livro com um ensaio que acolhe a sua apreciação da obra naquele tempo e à luz dos novos dados que pusemos à sua disposição. Outro conhecedor da obra de Juan Rulfo, Douglas Weatherford, imerso desde há uns anos na mais completa investigação sobre as relações da mesma com o cinema2 e a quem remetemos também a informação mencionada, aceitou o nosso convite para apresentar o seu ponto de vista sobre esta peculiar obra do autor de A Planície em Chamas e Pedro Páramo. Cremos que ambos permitirão reler ou conhecer O Galo de Ouro a partir de uma perspectiva mais informada e fazer um juízo mais sólido sobre o segundo romance de Rulfo. E não que-remos deixar de mencionar como leitura recomendável, antes de entrar na matéria, o texto de Alberto Vital publi-cado em 2006 e onde se analisa a breve narração a partir de novos pontos de vista3.

1 «El Gallo de Oro y Otros Textos Marginados de Juan Rulfo», Revista Iberoamericana, LII, 135-136, Abril-Setembro, 1986, pp. 489-505.

2 Um esboço do seu trabalho pode ser visto no artigo «Citizen Kane y Pedro Páramo: un Análisis Comparativo», em Tríptico para Juan Rulfo, Congresso do Estado de Jalisco — Univer-sidade Nacional Autónoma do México, Faculdade de Filosofia e Letras — Universidade Ibero--americana — Universidade de Aguascalientes — Universidade de Colima — Editorial RM — Fundação Juan Rulfo, México, 2006, pp. 501-530; a partir daqui mencionado como Tríptico.

3 «El Gallo de Oro, Hoje», em Tríptico, pp. 423-436.

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Os documentos mostram que, em 1956, Rulfo se encon-trava a trabalhar numa história sobre o mundo das lutas de galos e o instavam a terminar a mesma para a levar à tela, embora só em Janeiro de 1959 tivesse registado o seu «argumento para cinema», como foi designado então. Rulfo não tinha avançado à velocidade que os produto-res de cinema desejavam, mas quando o seu texto chegou finalmente às suas mãos ainda teve de esperar cinco anos até à realização do filme.

Não se conserva o original, escrito à mão ou à máquina, de Juan Rulfo. Provavelmente entregou-o ao produtor Manuel Barbachano, que teria decidido que fosse escrito à máquina até conseguir um texto de 42 folhas. Analisando-o com cuidado fica claro que quem fez esse trabalho tinha apti-dões profissionais com a máquina, mas era pouco versado na transcrição de originais literários. Não se observam no texto dactilografado critérios homogéneos de disposição do texto em situações semelhantes e verificam-se erros ou omissões típicas de uma dactilografia rápida. Uma cópia a papel químico deste texto dactilografado, com uma folha inicial que agrega a data do seu registo (9 de Janeiro de 1959), ficou nas mãos de Juan Rulfo, como já consta na bio-grafia escrita por Alberto Vital, Noticias sobre Juan Rulfo4, e como ampliam aqui González Boixo e Weatherford.

No arquivo de Rulfo há também dois documentos datados do dia anterior, 8 de Janeiro de 1959, relaciona-dos com o mesmo assunto. Um é o original dactilografado de uma «Sinopse» quase de certeza escrita directamente por Rulfo, embora numa máquina diferente da sua (não parece feita por um dactilógrafo profissional, mas sim

4 Alberto Vital, Noticias sobre Juan Rulfo: 1784-2003, Editorial RM — Universidade de Gua-dalajara — Universidade Autónoma de Aguascalientes — Universidade de Tlaxcala — Univer-sidade Nacional Autónoma do México — Fundo de Cultura Económica, México, 2003, p. 160.

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por um experimentado, como era Rulfo). Este resumo era certamente exigido pelo serviço encarregado daqueles assuntos. Apesar de se tratar de uma síntese, aparecem nela dados que não figuram no «original» completo. O outro documento é o formulário de um «Certificado de Registo» impresso em papel do Sindicato de Trabalhadores da Produção Cinematográfica da República Mexicana (junto do qual se fazia o registo das obras), em que se reconhece Rulfo como autor do «argumento cinematográfico intitu-lado “De la Nada a la Nada”». Não sabemos porque apa-rece este nome alternativo, já que tanto na Sinopse como no original só figura O Galo de Ouro. A Sinopse, até agora inédita, é dada a conhecer nesta edição.

Rulfo não pensou em publicar este «argumento», que na realidade é um pequeno romance (nunca um «guião», como por vezes se diz), mas em 1980 alguém que tinha nas mãos o original do texto dactilografado, depositado no escritório de Manuel Barbachano, apresentou-o a um edi-tor, Era, e este decidiu propor a sua edição. Rulfo acedeu sem excessivo entusiasmo, considerando que tinha sido preparado tendo em vista um filme, já realizado, e não queria voltar a uma obra abandonada (para utilizar o termo de Paul Valéry quando queria referir-se à conclusão de um texto literário) há mais de duas décadas. Não fez observa-ções durante o processo de edição e, embora tivesse sido muito útil que tivesse aceitado ser consultado, tal não ocor-reu. O editor descobriu as já mencionadas inconsistências do texto dactilografado e corrigiu as mais notórias. Não todas, no entanto.

O nosso trabalho consistiu em unificar os critérios dis-crepantes utilizados no «original» em matéria de pontua-ção e sinais que deveriam indicar o narrador e as diferen-tes personagens, bem como nos conjuntos e agrupamentos

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de versos quando se trata da transcrição de canções. As expressões entre aspas foram sistematizadas, bem como as maiúsculas nas alcunhas de determinadas personagens. Isto é, um cuidado de edição muito detalhado, que pôde ser feito antes. Não podemos agora perguntar nada a Rulfo e poderiam ser despertadas algumas inquietudes no leitor atento. Também nós as sentimos... limitando-nos a isso. As nossas inferências nunca vão muito longe e o seguinte exemplo mostra como procedemos num caso que propicia a confusão. Trata-se do diálogo entre o varredor de uma cerca e Dionisio Pinzón. Primeiro copiámos aqui, com todas as suas características, o «original» dactilografado (isto é, a transcrição do original perdido de Rulfo reali-zada pelo escritório de Barbachano):

Trai usted gallo pa’toparle a cualquiera, amigo. Responde. Si... Sabe responder — fué la respuesta de Dionisio

Pinzón que salió en busca de su «padrino». Lo encontró en la cantina.

Este mesmo texto aparece assim na transcrição publi-cada em 1980:

— Trai usted gallo pa’ toparle a cualquiera, amigo. Responde:— Si... Sabe responder — fue la respuesta de Dionisio Pinzón

que salió en busca de su «padrino». Lo encontró en la cantina.

E a nossa transcrição:

— Trai usted gallo pa’toparle a cualquiera, amigo. Responde.— Si... Sabe responder — fué la respuesta de Dionisio Pinzón,

que salió en busca de su «padrino». Lo encontró en la cantina.

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Um «original» com inconsistências deve ser objecto, inevitavelmente, de uma boa revisão, e foi o que se fez em 1980. Muitas das correcções foram acertadas e conservámo--las. Outras não foram percebidas e realizámo-las agora. O exemplo citado mostra uma correcção que não elimi-nou um erro do «original», embora uma leitura cuidadosa possa emendá-lo facilmente. Foi o que fizemos.

Oferecemos, nesta mesma edição, a transcrição reali-zada por Dylan Brennan do texto de Rulfo lido por Jaime Sabines em A Fórmula Secreta, a excepcional gravação de Rúben Gámez estreada em 1965 e cuja avaliação não cessa de crescer entre os conhecedores.

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Amanhecia.Pelas ruas desertas de San Miguel del Milagro, uma

ou outra mulher velada caminhava rumo à igreja, às badaladas da primeira missa. Algumas outras varriam as ruas poeirentas.

Ao longe, tão longe que não se percebiam as suas pala-vras, ouvia-se o clamor de um pregoeiro. Um desses pre-goeiros de aldeia, que vão de esquina em esquina gritando a resenha de um animal perdido, de um menino perdido ou de alguma rapariga perdida... No caso da rapariga, a coisa ia mais longe, pois, além da data da sua desapa-rição, havia que dizer quem era, supostamente, o sujeito que a tinha roubado e onde estava metida, e se havia recla-mação ou abandono da parte dos pais. Isto fazia-se para inteirar a povoação daquilo que tinha sucedido e para que a vergonha obrigasse os fugitivos a unirem-se em matrimó-nio... Quanto aos animais, era obrigatório ir buscá-los, se anunciar a sua perda não desse resultado pois, de outro modo, não se pagava o trabalho.

Conforme se afastavam as mulheres até à igreja, a resenha do pregoeiro ouvia-se mais próxima, até que, parado numa esquina, dando um som de buzina à voz entre as suas mãos, lançava os seus gritos agudos e afiados:

«Alazão amarelo torrado... De grande altura... Cinco anos... Sem manchas... Marcado na anca... Ferro em S... Rédea falsa... Extraviou-se no dia de anteontem no cercado Hondo... Propriedade de dom Secundino Colmenero...

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Vinte pesos de alvíssaras a quem o encontrar... Sem averiguações...»

Esta última frase era comprida e destemperada. Depois, ia mais além e voltava a repetir o mesmo estribilho, até que o pregão se afastava de novo e logo se dissolvia nos recan-tos mais afastados da povoação.

Quem assim exercia este ofício era Dionisio Pinzón, um dos homens mais pobres de San Miguel del Milagro. Vivia numa casinha desfeita do bairro de Arrabal, na compa-nhia da sua mãe, enferma e velha, mais pela miséria do que pelos anos.

E ainda que a aparência de Dionisio Pinzón fosse a de um homem forte, na realidade ele estava diminuído, pois tinha um braço morto sem que se soubesse porquê; o que é certo é que aquilo o impossibilitava de desempenhar algu-mas tarefas, fosse o trabalho nas obras ou o cultivo da terra, únicas actividades que havia na povoação. Assim, acabou por não servir para nada ou, pelo menos, para granjear para si esta opinião. Dedicou-se, pois, ao ofício de pregoeiro, que não necessitava do recurso dos seus braços e que desempe-nhava bem, pois tinha voz e vontade para isso.

Nunca deixava um recanto de San Miguel del Milagro sem o seu clamor, fosse a trabalhar por encomenda de alguém ou não, procurando a vaca pelada do senhor padre, que tinha a má manha de arremeter para o outeiro sem-pre que via a porta do curral da paróquia aberta, o que sucedia com demasiada frequência. E mesmo quando não faltava algum desocupado que, ao ouvir o relato, se oferecia para ir à procura da mencionada vaca, havia oca-siões em que o próprio Dionisio se obrigava a si próprio a fazê-lo, recebendo em troca umas quantas bênçãos e a promessa de ir cobrar no céu a recom-pensa pelos seus préstimos.

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De qualquer modo, com ganho ou sem ele, a sua voz nunca se embargava e ele continuava a cumprir, porque, para dizer a verdade, não lhe restava outra coisa a fazer para não morrer de fome. E embora nem sempre che-gasse a casa de mãos vazias, como nesta ocasião em que teve a incumbência de relatar a perda do cavalo alazão de dom Secundino Colmenero desde a madrugada até à noite muito funda, até sentir que o seu pregão se con-fundia com o ladrar dos cães na povoação adormecida; e como, durante o dia, o cavalo não tinha aparecido, nem houve ninguém que desse novas dele, dom Secundino não lhe pagou até ver o seu animal recolhido no curral, já que não queria dar-lhe bom dinheiro por um mau trabalho; mas para que o pregoeiro não desanimasse e continuasse a gritar a sua perda, adiantou-lhe um decilitro de feijão que Dionisio Pinzón embrulhou no lenço que trazia ao pescoço e levou para sua casa já a noite ia adiantada, que foi quando chegou, cheio de fome e de cansaço. E, como fazia noutras ocasiões, a sua mãe tratou de lhe preparar um pouco de café e cozinhar-lhe uns «navegantes», que mais não eram do que figos-do-inferno cozidos, mas que, pelo menos, serviam para enganar o estômago.

Porém, nem sempre as coisas lhe corriam mal. Ano após ano, pelas festas de San Miguel, ele alugava-se para anun-ciar os convites da feira. E ali o tínhamos, diante dos sono-ros retumbares do bombo e dos guinchos da charamela, tornando mais audíveis os seus comedidos gritos dentro de um megafone de cartão, anunciando as «partidas» de gado, as reses «rabeadoras», as tapadas5 e, de passagem,

5 Tipo de luta de galos que se caracteriza pelo seu carácter aberto a quem nela queira participar e no qual os galos são destapados apenas no início da luta. Distinguem-se das «lutas de compromisso», que resultam de um desafio público entre apostadores de condição económica elevada e nas quais foram previamente acordados a respectiva data, os galos em contenda (descobertos), bem como o montante da aposta inicial. [N. dos T.]

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todas as festividades da igreja, dia após dia do calendário das novenas, não sem deixar de mencionar os espectácu-los das tendas ou algum unguento bom para tudo. Muito mais atrás da procissão que ele encabeçava seguia-o a música dos sopros, amenizando os períodos de descanso do pregoeiro com as desafinadas notas do Zopilote Mojado. O desfile terminava com a passagem das carroças, enfeita-das com raparigas, sob arcos de carriço e de milho verde.

Era então que Dionisio Pinzón se esquecia da sua vida cheia de privações, pois caminhava contente, guiando o convite, animando com gritos os palhaços que iam a seu lado, volteando e fazendo cabriolas para divertir as pessoas.

Num desses anos, talvez por causa da abundância das co- lheitas ou por milagre não sei de quem, deram-se as festas mais buliçosas e concorridas que tinha havido desde há muito tempo em San Miguel del Milagro. O entusiasmo alastrou de tal modo que, duas semanas depois, continua-vam a rifar as partidas e as lutas de galos pareciam eterni-zar-se, a tal ponto que os aficionados da região esgotaram as suas criações e ainda tiveram tempo de encomendar outros animais, de cuidar deles, de treiná-los e jogá-los. Um dos que fez isso foi Secundino Colmenero, o homem mais rico da povoação, o qual acabou com o seu gali-nheiro de criação e perdeu nas malfadadas tapadas, além do seu dinheiro, um rancho cheio de galinhas e vinte e duas vacas, que eram todas as suas propriedades. E apesar de, por fim, ter recuperado algo, o restante foi pelo cano das apostas.

Dionisio Pinzón viu-se em apuros para cumprir com tanto trabalho. Já não como pregoeiro, mas sim como anunciador na cercadura. Conseguiu açambarcar quase todas as lutas e, nos últimos dias, ouvia-se-lhe a voz cansada,

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mas nem por isso deixou de anunciar a plenos pulmões as decisões do sentenciador.

E as coisas tinham vindo a aumentar de importân-cia. Chegou a hora em que apenas se enfrentavam pra-ças-fortes, com a assistência de jogadores famosos vin-dos de San Marcos Aguascalientes, Teocaltiche, Arandas, Chalchicomula, Zacatecas, trazendo todos galos tão finos que dava pena vê-los morrer. E, vindas de quem sabe onde, fizeram a sua aparição as «cantadeiras», talvez atraídas pelo cheiro do dinheiro, pois antes nem sequer se tinham aproxi-mado de San Miguel del Milagro. À frente delas vinha uma mulher bonita, enérgica, com um rebuço amarelado sobre o peito e a quem chamavam La Caponera6, talvez pelo arrasto que suscitava nos homens. A verdade é que, rodeadas por mariachis, fizeram, com a sua presença e as suas canções, com que crescesse mais o entusiasmo na praça de galos.

A cercadura de San Miguel del Milagro era improvi-sada e não tinha capacidade para grandes multidões. Aproveitava-se para este fim o pátio de um fabricante de ladrilhos, erguendo-se um telheiro de palha com um telhado de malha de erva. O anel era feito de tiras de madeira fina e as bancas que o rodeavam e onde o público se acomodava não eram mais do que pranchas apoiadas em grossos tijolos de barro. Contudo, nesse ano, as coisas tinham-se complicado um bocado, pois ninguém tinha imaginado que se ia acumular tamanha concorrência. E, como se isso fosse pouco, esperava-se, de um momento para o outro, a visita de alguns políticos. Para este efeito, as autoridades ordenaram que se desalojassem as duas primeiras filas, que permaneceram vazias até à chegada daqueles senhores e até depois, visto que eram apenas dois,

6 Literalmente, «cevadouro«; coloquialmente: «lugar onde se encontra o necessário [assistência, conveniência, prazer] sem ter de pagar». Significa «capar». [N. dos T.]

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embora cada um deles trouxesse a correspondente compa-nhia de pistoleiros. Estes instalaram-se na segunda fila, nas costas do seu respectivo chefe, e aqueles dois na primeira, frente a frente, separados pelo anel. E quando as lutas tive-ram início, percebeu-se que aquele par de telhudos não se dava bem. Pareciam ter lá ido por causa de alguma velha rivalidade, pois não só o demonstravam pessoalmente mas também durante as próprias lutas. Se um deles tomava partido por um galo, o outro deixava cair o seu favor no adversário. Assim foi, até que os ânimos foram aque-cendo, já que ambos queriam que os seus galos ganhas-sem. Cedo chegou a desavença: o perdedor levantava-se e, com ele, todo o grupo dos seus acompanhantes e isto fazia com que começassem a lançar um ao outro palavrões e ameaças, que os pistoleiros repetiam em coro, desafiando os pistoleiros da frente. Aquele espectáculo dos dois gru-pos que se mostravam enfurecidos acabou por cativar a atenção de todo o público, que esperava que acontecesse alguma desordem entre aqueles sujeitos, que não per-diam a oportunidade de brandir o quanto eram valentes.

Alguns não tardaram a abandonar a cercadura perante o temor de que se desse um tiroteio. Mas não aconteceu nada. Ao acabar a luta, os dois políticos saíram da praça de galos. Encontraram-se à porta. Ali, ambos se tomaram pelo braço e, mais tarde, viram-nos a beber juntos numa tenda de aguardentes, na companhia das cantadeiras, dos seus pistoleiros, que pareciam ter esquecido as suas más inten-ções, e do presidente da câmara municipal da povoação, como se todos estivessem a celebrar o seu feliz encontro.

Mas voltando a Dionisio Pinzón, foi nesta célebre noite que a sua sorte mudou. A última luta de galos fez mudar o seu destino.

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Lutava um galo branco de Chicontepec contra um galo dourado de Chihuahua. As apostas eram fortes e houve até quem arriscasse cinco mil pesos e ainda apostasse dois contra um no galo de Chihuahua.

O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as pri- meiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, ref lectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, ten-tando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu as asas com força para manter o equilíbrio e por fim con-seguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.

O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem mise-ricórdia o «eriçado»7, que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio voo ao sen-tir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.

Deste modo, aquele animal cobarde ganhou a luta e assim foi proclamado por Dionisio Pinzón quando gritou:

7 Alzapelos, no original; regionalismo, provavelmente guatemalteco, «galo cobarde». [N. dos T.]

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— Foi pequena a luta! Perde o favorito! — E, a seguir, acrescentou: — Aaa-bram as portas...!

O amarrador8 de Chihuahua recolheu o seu galo mal- tratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que vol-tava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:

— Não há mais remédio senão liquidá-lo.E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando

Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:— Não o mate — disse-lhe. — Pode curar-se e servirá,

nem que seja para criação.O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dio-

nisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Acon-chegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.

Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela sua mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.

Passaram os dias. Dionisio Pinzón vivia unicamente preo-cupado com o seu galo, que enchia de cuidados. Levava- -lhe água e comida. Metia-lhe migalhas de tortilha e folhas de alfafa dentro do bico, esforçando-se por fazê-lo comer. Mas o animal não tinha fome nem sede, parecia ter apenas vontade de morrer; embora ele ali estivesse para o impedir, vigiando-o constantemente, sem des-colar os seus olhos dos olhos semiadormecidos do galo enterrado.

Contudo, uma manhã, deparou-se com a novidade de que o galo já não abria os olhos e tinha o pescoço torcido,

8 Nas lutas de galos, aquele que amarra a navalha às patas dos galos. [N. dos T.]

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caído sob o seu próprio peso. Colocou rapidamente um caixote sobre a cova e pôs-se a bater-lhe com uma pedra durante horas e horas.

Quando, por fim, tirou o caixote, o galo olhava-o atur- dido e pelo bico entreaberto entrava e saía o ar da ressur-reição. Aproximou dele a tigela da água e o galo bebeu; deu-lhe de comer massa de milho e este engoliu-a, em seguida.

Poucas horas depois, pastoreava o seu galo pelo ter-reiro do curral. Aquele galo dourado ainda cinzento de terra que, apesar de se alquebrar a cada instante por lhe faltar o apoio da sua asa partida, dava mostras da sua fina condição, erguendo-se cheio de coragem perante a vida.

Depressa sarou também da asa. Embora uma tenha ficado um bocado mais levantada do que a outra, batia as asas com força e o seu bater era brusco e desafiador quando a manhã se iluminava.

Mas, nessa altura, morreu a sua mãe. Parecia ter tro-cado a sua vida pela vida do «asa torta», como o galo dou-rado acabou por se chamar. Pois enquanto este ia ressus-citando, a mãe de Dionisio Pinzón dobrou-se até morrer, doente de miséria.

Muitos anos de privações, dias inteiros de fome e ne- nhuma esperança mataram-na mais cedo. E quando ele já acreditava ter encontrado ânimo para lutar firmemente pelos dois, a mãe não tinha remédio nem vontade para recuperar as suas forças perdidas.

O que é certo é que morreu. E Dionisio Pinzón teve de prover o enterro sem ter sequer com que comprar um caixão para a enterrar.

Talvez tenha sido então que odiou San Miguel del Milagro. Não só porque ninguém lhe estendeu a mão,

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mas também porque até zombaram dele. O certo é que as pessoas se riram da sua estranha figura, enquanto ia pelo meio da rua, carregando nos seus ombros uma espécie de jaula feita com as pranchas apodrecidas da porta e dentro dela, embrulhado numa esteira de palma, o cadáver de sua mãe.

Todos os que chegaram a vê-lo zombaram dele, julgando que estava a levar algum animal morto.

Para rematar a coisa, no mesmo dia, a somar-se ao abandono da sua mãe, precisou de apregoar a fuga de Tomasa Leñero, a rapariguinha que ele teria querido tor-nar sua mulher se a sua pobreza não se tivesse interposto entre eles:

— Tomasa Leñero — dizia. — Catorze anos cumpri-dos. Fugiu, ao que parece, no dia 24 do corrente mês, ao que parece com Miguel Tiscañero. Miguel, filho de pais finados. Tomasa, filha única de don Torcuato Leñero, que suplica saber em que lugar foi depositada.

Assim, com a sua dupla pena, Dionisio Pinzón foi de uma esquina a outra, até onde a povoação se desfazia em planí-cies baldias, clamando o seu pregão, o qual, mais do que uma resenha, pareceu um lamento choroso.

Encostou-se a uma pedra depois do seu fatigante per-curso e ali, com a cara endurecida e um gesto rancoroso, jurou a si mesmo que nunca mais ele, nem nenhum dos seus, voltaria a passar fome...

No dia seguinte, com as primeiras luzes, partiu para nunca mais voltar. Levava apenas um pequeno envoltório de trapos e, debaixo do braço encolhido, resguardando-o do ar e do frio, o seu galo dourado. E naquele animalzinho jogou a sua sorte, indo pelo mundo.