O GALO BRANCO DE SÃO GONÇALO DO AMARANTEze... · Ao longo dos anos a produção de artesanato em...

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS O GALO BRANCO DE SÃO GONÇALO DO AMARANTE: HISTÓRIA E IDENTIDADE NATAL 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

O GALO BRANCO DE SÃO GONÇALO DO AMARANTE:

HISTÓRIA E IDENTIDADE

NATAL

2013

2

LEÍZE MARIA DOS SANTOS DE SÁ

O GALO BRANCO DE SÃO GONÇALO DO AMARANTE:

HISTÓRIA E IDENTIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como

requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em

Artes Visuais.

Orientador

Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques de Carvalho

NATAL

2013

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LEÍZE MARIA DOS SANTOS DE SÁ

O GALO BRANCO DE SÃO GONÇALO DO AMARANTE:

HISTÓRIA E IDENTIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como

requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em

Artes Visuais.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques de Carvalho

Orientador

Profa. Dra. Nivaldete Ferreira da Costa

Profa. Dra. Evanir de Oliveira Pinheiro

NATAL, 11 de dezembro de 2013.

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AGRADECIMENTOS

Depois de seis anos de esforço, dos quais este trabalho é apenas uma página –

como a que encerra um capítulo, agradeço especialmente à minha família, pelo

apoio constante e irrestrito que me acompanha desde o momento em que escolhi a

Arte como projeto de vida;

À Mayara Silva por tudo, desde os ouvidos e olhos atentos às minhas necessidades

de puxões de orelha, até o socorro nas horas em que a falta de tempo e energia me

impediram de fazer melhor. Esta conquista também é tua!

À Alana Bezerra, Cristiane Cavalcante e Gabriela Rebouças, que dividiram comigo

todas as dores e delícias que a graduação nos ofereceu e me ajudaram a seguir em

frente e das quais jamais esquecerei.

Ao Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques de Carvalho, pelo exemplo de Artista e

Professor que é. Obrigada por ter acreditado neste trabalho!

Agradeço também a todos os professores e professoras que me ajudaram durante

toda a graduação, sem a disponibilidade de vocês nada disso seria possível. Enfim,

agradeço a todos que me acompanharam e incentivaram por todos esses anos. Eu

nunca teria conseguido sozinha. Muito obrigada!

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RESUMO

Esta pesquisa tem o caráter de registro e divulgação de um símbolo da arte popular

norte-rio-grandense, tão representativo da cultura do povo potiguar – o Galo Branco.

Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas e entrevistas com moradores

da localidade onde foi criado, a fim de se fazer um registro histórico sobre seu

surgimento e valorização artístico-cultural. Além de contribuir, observando o

tratamento que lhe é dispensado hoje enquanto símbolo cultural, apontando

medidas que o façam voltar novamente ao lugar de destaque na cultura popular do

Estado do Rio Grande do Norte.

Palavras-chave: Arte popular norte-rio-grandense; Galo Branco; Símbolo cultural;

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Galo de Barcelos; Galo clássico, c.1950

Figura 2 - Galo Branco; Acervo particular de José Alaí de Souza

Figura 3 - Antônio Soares ao lado de uma espécie de forno para queima das peças

Figura 4 - Maria das Neves Felipe (Dona Neném)

Figura 5 - Primeira Praça de Cultura - 1961

Figura 6 - Cartaz da Festa do Folclore Brasileiro de 1975

Figura 7- Cartaz da II Semana de Cultura Nordestina de 1979, com o Galo Branco

estilizado.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................07

1. O Galo e seus significados ................................................................................08

1.1 A como símbolo ..................................................................................................08

1.2 O Galo no Brasil .................................................................................................10

2. O Galo Branco em São Gonçalo do Amarante ................................................11

2.1 Antônio Soares e a bilha em forma de galo .......................................................12

2.2 Dona Neném e o Galo Branco ...........................................................................15

3. Os folcloristas e a ascensão do Galo Branco a ícone da arte popular norte-rio-grandense .....................................................................................................16

4. Galo Branco: memória e identidade na atualidade ........................................19

5. Considerações finais .........................................................................................20

REFERÊNCIAS

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

“Objetos culturais são aqueles aos quais o homem acrescentou a marca de sua

individualidade, objetos que passaram da natureza para a sociedade, numa trajetória do dado ao

construído, num trabalho de valoração evidente, numa transposição progressiva da categoria natural

para a categoria cultural.”

Ao longo dos anos a produção de artesanato em argila no município de

São Gonçalo do Amarante, especialmente no distrito de Santo Antônio do Potengi,

tornou-se uma das mais importantes e caracterizadoras da arte popular no estado do

Rio Grande do Norte, tendo figurado nas logomarcas do artesanato estadual em

feiras nacionais e internacionais, como nas edições de 2012 e 2013 da FIART –

Feira Internacional de Artesanato. O que é pouco lembrado é o fato de que não é a

primeira vez que o artesanato de São Gonçalo representa a cultura norte-rio-

grandense em eventos desse tipo, que tratam de cultura popular em todas as suas

expressões. Nas décadas de 70 o dito Galinho foi o “garoto propaganda” da Festa

do Folclore Brasileiro e da II Semana de Cultura Nordestina (imagens 6 e 7).

Nesse contexto de identificação da cultura potiguar, dentre tantos

exemplos que figuram na produção de peças em argila de São Gonçalo, o maior e

mais significativo é o Galo Branco, Galo de Dona Neném ou Galinho Branco de São

Gonçalo, que, descoberto pelos folcloristas de Natal, tornou-se o maior

representante da arte popular do estado. E hoje, perdidos os registros desse

“achado”, tem-se a impressão que junto com eles também se perdeu a importância

desse ícone da cultura potiguar que, embora identifique um estado quanto às suas

manifestações artísticas populares, ao longo dos anos foi sendo esquecido a ponto

de nem os próprios são-gonçalenses terem, de fato, o conhecimento de sua

importância histórica para a cultura, nem de sua cidade nem de seu estado. Assim, a

pesquisa aqui apresentada tem o caráter de registro e divulgação de um símbolo da

arte popular norte-rio-grandense, tão representativo da cultura do povo potiguar.

Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas a fim de se fazer um breve

registro histórico sobre seu surgimento e sua valorização artístico-cultural.

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1. O Galo e seus significados

Para que seja dado início ao estudo sobre o Galo Branco de São Gonçalo

do Amarante, é preciso antes fazer uma pequena panorâmica sobre o significado da

figura do animal galo, que está presente tanto na Bíblia quanto em histórias e lendas

populares de várias partes do mundo – independente dos textos evangélicos, e do

galo enquanto patrimônio cultural de determinados lugares, como símbolo de

identidade de uma determinada região ou país, como acontece em São Gonçalo do

Amarante e, por extensão, no estado do Rio Grande do Norte.

1.1 O Galo como símbolo

O primeiro galo que surge na memória, logo que pensamos em galo como

figura representativa, é o galo evangélico. Aquele que, cumprindo a profecia feita por

Jesus, por ocasião das investidas de Pedro em tentar livrá-lo da prisão, cantou

assim que o apóstolo negou o Cristo pela terceira vez, fazendo-lhe lembrar das

palavras do seu mestre.

“Eles prenderam Jesus e o levaram, conduzindo-o a residência do sumo

sacerdote. Pedro acompanhava de longe. Eles acenderam uma fogueira no

meio do pátio e sentaram-se ao redor. Pedro sentou-se no meio deles. Ora,

uma criada viu Pedro sentado perto do fogo; encarou-o bem e disse: „Este

aqui também estava com ele!‟ Mas ele negou: „Mulher, eu nem o conheço!‟

Pouco depois, um outro viu Pedro e disse: „Tu também és um deles.‟ Mas

Pedro respondeu: „Não, homem, eu não.‟ Passou mais ou menos uma hora,

e um outro insistia: „Certamente, este aqui também estava com ele, pois é

galileu!‟ Mas Pedro respondeu: „Homem, não sei de quem estás falando!‟ E,

enquanto ainda falava, o galo cantou. Então o Senhor se voltou e olhou

para Pedro. E Pedro lembrou-se da palavra que o Senhor lhe tinha dito:

„Hoje, antes que o galo cante, três vezes me negarás‟. Então Pedro saiu de

pátio e pôs-se a chorar amargamente” (LUCAS 22, 54–62).

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Assim, nesta passagem bíblica já o temos como símbolo sagrado, ligado

principalmente à sabedoria que pode aludir à luz da manhã que vence as trevas e é

anunciada pelo canto do galo, da mesma forma que a sabedoria do Nazareno

venceu as trevas representadas pelo medo e desobediência de Pedro, que apenas

se dá conta de seu erro para com o sagrado ao soar do canto da ave.

Além da tradição cristã, há registros de referencias ao galo como

anunciador de inteligência, sabedoria e demais ligações ao intelecto como, por

exemplo, na tradição grega, em que esse animal simbolizava Alectrion, o sentinela

celeste que avisava a chegada do sol, sendo assim considerado um símbolo do

tempo, além de ter em si o segredo do nascer do sol, como uma energia masculina

que remete ao que é altivo. Daí, a ideia de que sonhos relacionados a essas aves

podem ser explicados por uma necessidade de libertação. Na tradição cigana, era

visto como aquele que anuncia a luz e o dia. E, na tradição cultural dos povos

africanos, ao galo é atribuído um papel de colaboração com o deus Olurum, pelo

fato de ter sido enviado com seu filho Obotala para colocar ordem na terra, o que,

inclusive, é acreditado no candomblé brasileiro.

Já dentro da cultura esotérica, que trata dos significados ocultos em

símbolos ligados a doutrinas, filosofias e religiões, a ave da manhã é tida como uma

figura ligada à transformação, estando presente nos rituais de iniciação da

maçonaria como aquele que anuncia uma nova vida, partindo do principio de que

neste ritual, o individuo morre para sua vida pregressa e renasce para a vida

maçônica. Tem significado semelhante na alquimia, na qual representava o mercúrio

filosófico, o elemento que tornaria possível a transmutação dos elementos.

Há também os países que tomaram o galo como símbolo por motivos

diversos como, por exemplo, a França, que antes era chamada Gália. O site France

Guide, refere-se a uma palavra derivada do latim gallus, que significa galo, e que

teria sido atribuída aos gauleses devido ao culto dos habitantes da região à ave em

questão, além das referências ao orgulho mostrado pela ave ao caminhar, como se

estivesse sempre com o peito estufado, e sua coragem e prontidão peculiares.

Portugal, por sua vez, tem como símbolo o Galo de Barcelos, diretamente ligado à fé

do povo português, visto que se relaciona à lenda de um peregrino que fazia o

caminho de Santiago de Compostela e foi acusado injustamente quando passava

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pela cidade de Barcelos. Tendo sido condenado à forca, o miserável pediu uma

audiência com o juiz que lhe dera a sentença. Como este almoçava frango assado, o

condenado, em seu desespero, afirma que é inocente e que aquele galo iria cantar

como prova de sua inocência. E eis que, quando o peregrino já estava com a corda

no pescoço, o galo bateu as asas e cantou sobre a mesa do juiz, que mandou

libertarem o homem imediatamente. Anos mais tarde, o tal peregrino mandou que

construíssem a estátua de galo na cidade de Barcelos, como homenagem àquele

que lhe salvara, e, assim, a lenda foi reforçada no imaginário popular.

1.2 O Galo no Brasil

No Brasil, a figura do galo refere-se a tradições e culturas regionais mais

do que à religiosidade, por exemplo. Há desde crendices populares ligadas ao

comportamento de moças solteiras, quanto à utilização de partes e/ou produtos do

galo como medicamentos caseiros. Citamos algumas:

Figura 1 Galo de Barcelos; Galo clássico,

c. 1950 (Imagem: autor desconhecido)

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Os galos que cantam fora de hora estão denunciando as moças solteiras

que procuram encontros amorosos escondidas dos pais.

Para os rapazes cujas barbas não crescem, basta passar titica de galo no

rosto que os pelos surgem.

Para que se obtenham galos que cantem além do comum, basta que as

galinhas sejam postas para chocar os ovos no dia quatro de dezembro,

dia de Santa Barbara, para que o galo nasça no dia de Natal junto com o

Menino Jesus.

Para crianças que urinam na cama, a solução é lhes dar de comer crista

de galo torrada.

Santa Bárbara é referida nestas crenças pelo fato de ser a protetora

contra relâmpagos e trovões, e estar ligada à figura do galo pelas orações que lhes

são feitas para que os ovos das galinhas não gorem por causa de trovões e

relâmpagos.

2. O Galo Branco em São Gonçalo do Amarante

Figura 2 Galo Branco; Acervo

particular de José Alaí de Souza.

(Imagem: autor desconhecido)

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Com base em pesquisas anteriores é possível perceber que, muito

embora seja detentora do símbolo que representa a arte popular norte-rio-

grandense, a cidade de São Gonçalo do Amarante parece não se dar conta de sua

importância cultural perante todo o estado do Rio Grande do Norte. E isto se

percebe pelo notável desconhecimento, pelos seus habitantes, da importância

iconográfica da arte popular produzida na cidade. De tal forma que a peça em

questão não é encontrada nas residências locais, mas em mercados de artesanato,

tanto em São Gonçalo quanto em Natal, que divulgam uma identidade local para

turistas, brasileiros e estrangeiros, que levam em suas bagagens um suvenir de uma

cidade cujo povo não se vê representado ali, naquela peça símbolo da expressão

popular de um Estado inteiro.

2.1 Antônio Soares e a bilha em forma de galo

Antônio Soares pode ser considerado o nome mais importante da

cerâmica são-gonçalense, especialmente quando tratamos do distrito de Santo

Antônio do Potengi por ser o que se pode chamar de „polo‟ do artesanato da cidade.

Toda essa importância reside no fato dele ter sido responsável pela criação da bilha

em formato de galo, feita com argila branca – massaranduba - e decorada com

Figura 2 Antônio Soares ao lado de uma espécie de forno para queima das peças.

Acervo da Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarante/ RN

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baixos relevos que, na década de 70, tornou-se símbolo do então chamado folclore

potiguar.

No entanto, muito pouco se sabe sobre este homem. As fontes

encontradas até agora tratam apenas de esposa, filhos, netos e poucas

características de sua produção, como a maneira que decorava suas peças e fazia

seu acabamento. Registra-se também uma suposta encomenda recebida de Djalma

Maranhão, na década de 60, para a confecção de uma espécie de monumento que

foi mantido na Praça das Mães, até sua total destruição por vândalos pouco tempo

depois.

Como qualquer pesquisa biográfica que se preze, esta deveria começar

com os dados sobre nascimento e morte do biografado, além de tratar minimamente

de aspectos relacionados ao seu modo de vida e, contando com um pouco de sorte,

certos relatos de suas opiniões. No entanto, o homem abordado por este trabalho

hoje não passa de um nome citado em livros sobre cultura popular ( BORBA FILHO,

1977; GURGEL, 2010) sob o aval de terceiros devidamente mencionados nas

referencias bibliográficas. Temos assim, um nome institucionalizado como

personalidade, mas de quem o rosto e a identidade não despertam o interesse

histórico que lhe é devido.

Essa dívida histórica se dá em decorrência da confusão existente no que

se refere à atribuição da autoria do Galo Branco que é símbolo da arte popular

norte-rio-grandense. Confusão esta justificada pelo fato de que, quando a bilha em

formato de galo caiu nas graças de folcloristas como Deífilo Gurgel (2010), por

exemplo, Seu Antônio Soares já era velho e havia passado o conhecimento a Dona

Neném que por sua vez, então por volta dos doze anos, aprimorou o acabamento da

peça, lhe conferindo características próprias. Assim, depois da morte de S. Antônio,

Dona Neném seguiu produzindo o galo ao longo de toda a sua vida. Desta forma, o

Galo Branco também ficou conhecido como Galo de Dona Neném, sem que seja

lembrado sequer o nome do verdadeiro precursor da peça.

No entanto, como esperar que o senso comum lhe confira os créditos de

sua obra ou, ao menos, de sua importância no desenvolvimento da arte de Dona

Neném, se nem sua família pode ser considerada segura de informações sobre ele?

Seus netos sequer sabem as datas de nascimento e morte, apenas estimam a data

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de morte e quantos anos ele tinha, possivelmente, baseados nas suas próprias

memórias. Tais condições tornam hercúlea a pesquisa sobre sua vida,

principalmente pelo fato da família de Antônio Soares não militar em prol da memória

de seu patriarca histórico, que mesmo morando toda a sua vida e constituído família

ainda hoje residente no distrito de Santo Antônio dos Barreiros – atual Santo Antônio

do Potengi. que é tradicional quando se fala em modelagem de barro - entre seus

descendentes não há mais ninguém que ainda trabalhe com o barro.

E mesmo quando partimos para as referencias bibliográficas, seu nome

aparece apenas nos livros dos antigos folcloristas como Borba Filho (08 jul 1917 –

02 jun 1976) e Deífilo Gurgel (22 out 1926 – 06 fev 2012), que atuaram na época do

então Prefeito de Natal, Djalma Maranhão, que foi um entusiasta militante da cultura

popular, responsável pela promoção de eventos sobre folclore e cultura nordestinos

nos anos 70, quando esteve à frente do poder executivo da capital. É o caso, por

exemplo, de Hermilo Borba Filho (1969) que nos anos 60 fez uma incursão pelo

Nordeste brasileiro numa pesquisa sobre a cerâmica nordestina e que originou o

livro “Cerâmica Popular do Nordeste”, que é o mais antigo registro bibliográfico sobre

Antônio Soares encontrado nesta pesquisa. Nele, Borba Filho afirma que Antônio

Soares é um ceramista de força no estado do Rio Grande do Norte e figura entre as

duas únicas exceções dentre todos os artistas populares pesquisados pelo nordeste

brasileiro, no que se refere ao tipo de peça produzida. Segundo Borba Filho,

somente Antônio Soares produz cerâmica figurativa dentro do território potiguar. A

outra exceção, das duas que foram encontradas, é Antônia Leão, de Goiana - que

também é figurativa. Neste mesmo trabalho também encontramos a primeira

referência à idade do nosso biografado, quando o autor cita que ele tem 74 anos.

Dessa forma, chegamos ao provável ano de nascimento: 1895 – isto tomando por

base de cálculo a data da publicação da pesquisa, que aconteceu no ano de 1969, o

que pode conferir certo atraso em relação à data real em que as informações foram

colhidas por Borba Filho.

De toda forma, essa observação simples já confirma o que foi dito

anteriormente sobre os possíveis motivos que fizeram Dona Neném ser a mais

citada quando se trata da criação do Galo Branco. E a respeito disso, também

podemos atribuir essa falta de reconhecimento, tomando por base a forma de

comercialização das peças que persiste até hoje entre a maioria dos artesãos do

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distrito de Santo Antônio do Potengi, onde morou Antônio Soares, e se caracteriza

pelo fato dos compradores irem buscar as peças na casa dos artesãos. E como, até

hoje, esses compradores são geralmente atravessadores, as peças que os artistas

populares da região distribuem chegam ao consumidor final praticamente sem

possibilidade de verificação de autoria, já que eles não costumam assinar suas

peças.

Ao usar como referência as declarações obtidas em entrevistas realizadas

no período de junho à dezembro de 2013 pelo Projeto Vernáculo– que pesquisa a

produção de arte popular do Rio Grande do Norte e é vinculado ao grupo de

Pesquisa em Cultura Visual – Matizes, do Departamento de Artes da UFRN,

podemos considerar que Antônio Soares, aos 74 anos de idade, já não produzia

muitas peças, já que é uma queixa comum entre os que trabalham com argila o fato

deste ser um trabalho extremamente difícil e cansativo, dadas as várias etapas até a

conclusão do trabalho. Muitos devem ao trabalho com argila vários problemas de

saúde, como os de coluna e nas articulações. Assim, não podemos deixar de

considerar que Antônio Soares possivelmente passou por semelhantes situações,

principalmente pelo fato de que, na década de 60, a cidade São Gonçalo do

Amarante, não contava com boa infraestrutura de saúde e transporte, o que

dificultava, e muito, o acesso a tratamentos que pudessem amenizar possíveis dores

causadas pela lida com o barro.

2.2 Dona Neném e o Galo Branco

Figura 3 Maria das Neves Felipe (Dona Neném). Acervo

Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarante/ RN

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Maria das Neves Felipe, mais conhecida como Dona Neném, nasceu no

dia 15 de abril de 1927 e já por volta dos doze anos começou a trabalhar com argila,

inicialmente fazendo cavalinhos. Em seguida, tornou-se aprendiz de Antônio Soares,

primeiro alisando as peças que o mestre fazia e, depois de adquirir experiência

suficiente, logo passou a fazer as próprias peças, se dedicando especialmente ao

acabamento, dando mais atenção à fase de alisamento da peça. De tal forma que

logo foi possível diferenciar as peças dela das de Antônio Soares, em virtude

principalmente da destinação que cada um pretendia que fosse dada às suas peças.

Enquanto o mestre se dedicava a peças voltadas para o utilitário – daí o Galo

Branco ter surgido como uma bilha para armazenar água – Dona Neném buscava a

perfeição no trabalho, voltando seus esforços para a cerâmica decorativa.

Depois da morte de Antônio Soares, Dona Neném continuou a feitura do

Galinho tal como tinha aprendido e desenvolvido sob a orientação do mestre. E

mesmo o Galo tendo sido “descoberto” quando ainda era feito por S. Antônio, com o

passar do tempo a peça foi tomando a identidade que Dona Neném lhe atribuiu de

uma forma tal que hoje já não se atribui a criação da peça ao mestre, sendo

identificado apenas como “Galinho de Dona Neném”. O que, é preciso que se diga,

não trouxe grandes mudanças na vida desta, que é tida como uma das

personalidades da cidade de São Gonçalo do Amarante. Dona Neném não teve

filhos, mas ensinou tanto a modelagem quanto a pintura em argila aos sobrinhos,

que até hoje são ceramistas. Seu Paulo hoje é responsável pela primeira fase do

processo, que é fazer os Galinhos de barro, e Dona Miraci – segundo ela própria -

assumiu a tarefa de pintá-los tanto com os azuis e branco de sua pintura

portuguesa, quanto de branco à maneira que sua tia aprendeu com Antônio Soares

e aperfeiçoou, com flores vermelhas no lugar das asas.

3. Os folcloristas e a ascensão do Galo Branco a ícone da arte popular norte-

rio-grandense.

18

Entre os anos de 1947 e 1965 houve no Brasil uma intensa

movimentação de intelectuais que acreditavam nas expressões artísticas populares,

então chamadas de folclore, como uma referência de identidade nacional e que, por

esse motivo, não se resumia apenas a uma área de estudo e pesquisa. Assim, com

a proposta de promover ações politicas e culturais que visavam proteger as

manifestações populares nacionais, foi criado o Movimento Folclórico Brasileiro -

MFB. E, a partir da intensa movimentação da rede nacional de folcloristas articulada

por todo o país, nasceu, em 1958, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, na

época vinculada ao então Ministério de Educação e Cultura – MEC que não

disponibilizou verba alguma para a causa, tendo em vista principalmente os objetivos

de modernizar o país em velocidade recorde, pretendidos por Juscelino Kubitschek.

E, por isso, o governo não podia investir em ações que não levassem o país para os

tais cinquenta anos em cinco.

É nesse contexto que, em 1969, Hermilo Borba Filho publica, sob o selo

da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, o que nesta pesquisa consta como o

primeiro registro formal do Galo Branco – que nessa época ainda era feito por S.

Antônio Soares. No entanto, o Galinho já havia sido “descoberto” há mais tempo

pelos intelectuais norte-rio-grandenses. Visto que ele foi usado como ícone da

cultura popular do estado ainda no período em que Djalma Maranhão foi prefeito de

Natal – o primeiro mandato de 1955 a 1959 e o segundo de 1960 a 1964, quando foi

deposto pelo Governo Militar. E há registros fotográficos da utilização do Galinho

Branco em palanques do então Prefeito por ocasião das atividades do projeto “De pé

no chão também se aprende a ler”, com o educador Paulo Freire.

Figura 4 Primeira Praça de Cultura – 1961

(Imagem: autor desconhecido)

19

Assim, tendo em vista a grande valorização das expressões artísticas

populares locais, realizadas enquanto ocupou o cargo de prefeito da capital, Djalma

Maranhão pode ser considerado o maior responsável pela elevação do Galo Branco

a ícone da cultura popular do Rio Grande do Norte. Inclusive porque, durante seus

mandatos (1956 – 1959), foram realizados Festivais Nacionais de Folclore, nos quais

todos os grupos de danças e demais artistas populares foram apresentados tanto à

sociedade norte-rio-grandense quanto a pesquisadores de todos os cantos do país

que vinham a Natal discutir e estudar as expressões do então chamado folclore

local. Estes eventos foram de tão grande importância para a apresentação de uma

identidade cultural potiguar que, na década de 70, por ocasião tanto da Festa do

Folclore Brasileiro, de 1975, e da II Semana de Cultura Nordestina, de 1979, o Galo

Branco apareceu ilustrando o material de divulgação dos eventos. Com estes

exemplos, podemos compreender o quanto aquela bilha, transformada em objeto de

decoração, tornou-se importante para a criação e apresentação da identidade

cultural do povo potiguar.

Figura 6 Cartaz da Festa do Folclore

Brasileiro de 1975

Figura 5 Cartaz da II Semana de Cultura

Nordestina de 1979,com o Galo Branco

estilizado.

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4. Galo Branco: memória e identidade na atualidade

Hoje, claramente, o Galo Branco de São Gonçalo do Amarante não tem

mais o mesmo destaque, nem tão pouco lhe é dada a mesma importância. As

pessoas sequer sabem o que é ou o que ele representa, até mesmo na cidade que é

seu berço. Até o ponto em que esta pesquisa chegou, não foram encontrados

registros de iniciativas por parte dos responsáveis pelas articulações culturais da

cidade que dissessem respeito a divulgação da história do Galinho Branco, ou de

atividades que ao menos o incluíssem como símbolo da arte popular da região. As

únicas oportunidades onde essa importância é lembrada, timidamente, são dadas

por ocasião de feiras nacionais e internacionais de artesanato realizadas

regularmente na capital como, por exemplo, a FIARTE. E, mesmo assim, não se

encontram mais elementos além do próprio Galo a falar por ele mesmo.

É possível que esse fenômeno se dê pela própria decadência da

produção de arte popular em cerâmica na cidade de São Gonçalo do Amarante,

visto que hoje essa prática não é mais passada às gerações mais novas. A

necessidade de estudo e melhores condições de trabalho empurram os filhos dos

artistas populares para a capital, principalmente em busca de uma rentabilidade

financeira que seus pais não alcançam na lida com o barro. E até mesmo os mais

experientes estão trocando de atividade em busca, na maioria das vezes, de direitos

trabalhistas que não veem possíveis seguindo com a atividade autônoma. Muito

embora esta seja a menor das dificuldades, em termos de obtenção desses direitos,

já que qualquer pessoa que trabalhe de forma independente pode ter acesso aos

mesmos direitos trabalhistas que os funcionários de empresas, apenas lhes falta

orientação adequada. E aqui já vemos o quanto as pessoas que produzem um

símbolo cultural tão importante para o estado inteiro são tão desvalorizados.

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5. Considerações finais

A partir deste breve levantamento histórico sobre o Galo Branco de São Gonçalo do

Amarante, podemos compreender o quanto a falta de iniciativas perenes de

valorização da Arte Popular podem por em risco elementos patrimoniais culturais de

todo um grupo social que, sem encontrar a sua volta elementos que o represente lhe

identificando culturalmente, busca fora das suas raízes algo que o faça. Assim,

podemos concluir que, tomando por parâmetro o tratamento dispensado ao Galinho

Branco de Dona Neném, muito da Arte Popular está prestes a se perder em meio a

políticas públicas insuficientes de valorização do Artista Popular e da pouca

importância que se dá a este tema no ensino escolar.

Por fim, percebe-se o quanto é imprescindível valorizar para que não seja preciso

recuperar o que foi perdido. O que seria do artesanato são-gonçalense se o Galinho

fosse devidamente conhecido e estudado nas escolas? Impossível dizer. Mas, com a

devida dedicação a causa do artesanato tradicional, por parte dos gestores de

cultura e educação, é possível que o galo de argila, pintado de branco e adornado

de flores vermelhas volte a seu posto com o respeito que lhe é devido.

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REFERÊNCIAS

BORBA FILHO, Hermilo; RODRIGUES, Abelardo. Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Cerâmica Popular do Nordeste. Rio de Janeiro: 1969.

BRITO, Iaponira Peixoto de. Aspectos socioeconômicos do município de São Gonçalo do Amarante-RN. São Gonçalo do Amarante: Solução Gráfica, 2012.

Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro: estratégias e redes de resistência na construção da memória da cultura popular brasileira. Disponível em: <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276722120_ARQUIVO_TextoANPUH2010-versaofinal.pdf>. Acesso em: 21 maio 2013. Galo Branco. Disponível em: <http://www.saogoncalorn.com.br/historia/galo_ branco> . Acesso em: 03 abr 2013. GURGEL, Deífilo. São Gonçalo do Amarante: o país do folclore: 300 anos de história. Natal: Prefeitura de São Gonçalo do Amarante, 2010.

GURGEL, Tarcísio; VITORIANO, Vicente; GURGEL, Deífilo. Introdução à cultura do Rio Grande do Norte. João Pessoa: Grafset, 2003.

LUCAS. In: Bíblia Sagrada: tradução da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2006. Maria das Neves Felipe (D. Neném). Disponível em: <http://www.saogoncalorn. com.br/cultura/personalidades#d_nenem_1>. Acesso em: 03 abr 2013. Nossa estrela do Galo Branco. Disponível em: <http://renanolliver.blogspot.com.br/ 2010/02/nossa-estrela-do-galo-branco.html>. Acesso em: 03 abr 2013.

O galo: símbolo francês. Disponível em: <http://br.franceguide.com/O-galo-simbolo-frances.html?NodeID=1&EditoID=241892>. Acesso em: 28 maio 2013

PERSONALIDADES. Sr. Antônio Soares. Disponível em: <http://www.saogoncalorn.com.br/cultura/personalidades#sr_antonio_1>. Acesso em: 03 abr 2013. Uma história natural do Galo de Barcelos. Disponível em: <http://www.historia.com.pt/barcelos/galo/textos/historia.htm>. Acesso em: 17 abr 2013. Conceito de Objeto Cultural. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/12673/conhecimento-e-linguagem#ixzz3TR7E8Ux3>. Acesso em: 4 mar 2015

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REFERÊNCIAS DAS IMAGENS

Figura 1 - Galo de Barcelos; Galo Clássico (cerca de 1950). Disponível em:

<http://www.historia.com.pt/barcelos/galo/textos/historia.htm>. Acesso em: 21

maio 2013.

Figura 2 - Galo Branco; Acervo particular de José Alaí de Souza. Disponível

em: <http://bsaudernontemehoje.blogspot.com.br/2011_08_19_ archive.html>.

Acesso em: 21 maio 2013.

Figura 3 - Antônio Soares ao lado de uma espécie de forno para queima

das peças. Disponível em: http://www.saogoncalorn.com.br/cultura/

personalidades#sr_antonio_1>. Acesso em: 21 maio 2013.

Figura 4 - Maria das Neves Felipe (Dona Neném). Disponível em:

<http://www. saogoncalorn.com.br/cultura/personalidades#d_nenem_1>.

Acesso em: 21 maio 2013.

Figura 5 - Primeira Praça de Cultura – 1961. Disponível em:

<http://www.dhnet.org.br/educar/penochao/disserta_isa_praca_cultura_djalma_

2008.pdf>. Acesso em: 21 maio 2013.

Figura 6 - Cartaz da Festa do Folclore Brasileiro de 1975. Fonte: GURGEL,

Deífilo. São Gonçalo do Amarante: o país do folclore: 300 anos de história.

Natal: Prefeitura de São Gonçalo do Amarante, 2010. P. 76.

Figura 7 - Cartaz da II Semana de Cultura Nordestina de 1979, com o Galo

Branco estilizado. Fonte: GURGEL, Deífilo. São Gonçalo do Amarante: o

país do folclore: 300 anos de história. Natal: Prefeitura de São Gonçalo do

Amarante, 2010. P. 93.