O Futuro da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas

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Neste texto são apresentadas sete propostas ao Secretário de Estado da Cultura (Jorge Barreto Xavier) para que o Estado possa iniciar o processo de transformação das bibliotecas públicas integradas na Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.

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O Futuro da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas*

(Rascunho de uma carta aberta para o Secretário de Estado da Cultura)

Por Filipe Leal

Estimado Jorge Barreto Xavier,

Dirijo-me a si através desta carta aberta. Faço-o porque dos dois anos que

trabalhámos juntos na Câmara Municipal de Oeiras (enquanto Vereador do

Pelouro da Cultura e enquanto Chefe da Divisão de Bibliotecas) me ficou a ideia

que é conhecedor e defensor do inestimável papel social desempenhado pelas

bibliotecas públicas.

Acredito que o sucesso das bibliotecas públicas se deve à confluência de três

fatores determinantes: vontade politica (materializada na aposta estratégica,

por parte dos autarcas, no desenvolvimento sustentável dos equipamentos e

dos serviços); competência técnica (materializada na existência de equipas

técnicas especializadas, com elevados níveis de empenho e de desempenho);

recursos estratégicos (materializada em edifícios funcionalmente adequados,

fundos documentais diversificados, meios tecnológicos atualizados, equipas

técnicas especializadas, recursos financeiros adequados). Em Oeiras, durante

alguns anos, esses fatores confluíram de modo a tornar as Bibliotecas

Municipais de Oeiras numa referência a nível nacional. Viveu-se um período

áureo. Em muitas bibliotecas municipais da Rede Nacional de Bibliotecas

Públicas (RNBP) aconteceu o mesmo.

Todavia, depois de 25 anos de implementação em todo o território nacional

(são cerca de 200 as novas bibliotecas municipais que já foram inauguradas), a

RNBP encontra-se perante um paradoxo: nunca como hoje, foi tão necessário e

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urgente transformar as bibliotecas públicas portuguesas adequando-as as

mudanças sociais ocorridas; nunca, como hoje, houve tanta dificuldade em

mobilizar a vontade política e os recursos estratégicos para o fazer. A urgência

de transformar as bibliotecas públicas portuguesas surge como resposta às

rápidas, profundas e irreversíveis, mudanças sociais ocorridas nos últimos anos

(com a emergência da internet e dos novos media); a dificuldade em mobilizar a

vontade política e os recursos estratégicos para a transformação decorre do

impacto da crise internacional em que estamos mergulhados.

Perante este paradoxo, resta-nos tão-somente dois caminhos: transformar ou

desaparecer. O fator decisivo que ditará o futuro das bibliotecas públicas

portuguesas tem a ver com o seu efetivo impacto social. Das duas, uma: ou as

bibliotecas públicas continuarão a acrescentar valor social e sobreviverão, ou as

bibliotecas públicas deixaram de acrescentar valor social e desaparecerão. O seu

desaparecimento não vai ser um processo imediato e evidente mas será sim um

processo de lenta decadência. Com o desinvestimento nos recursos estratégicos

e consequente incapacidade de dar resposta às mudanças sociais, as bibliotecas

públicas tornar-se-ão em instituições socialmente obsoletas e irrelevantes.

Pessoalmente acredito que temos todas as condições para transformar as

bibliotecas públicas portuguesas. Mas isso implica definir claramente qual o

caminho que queremos trilhar nos próximos anos. A vontade política será

determinante no desenvolvimento desse processo de transformação. E é neste

contexto que deixo aqui as minhas sugestões para si, enquanto responsável

governamental pela área da cultura. Passo a enunciá-las:

1. Realizar um diagnóstico da situação da RNBP – Este diagnóstico é

fundamental para conhecer a situação atual das bibliotecas municipais

que integram a RNBP, e, consequentemente, estabelecer uma estratégia

de desenvolvimento sustentável para os próximos anos. Para além da

realização de um inquérito extensivo a todas as bibliotecas, deverão ser

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também realizados estudos de caso e entrevistas com os atores-chave da

RNBP. Acima de tudo há que recolher dados quantitativos e qualitativos

dentro de uma matriz previamente definida, estabelecer um quadro de

referência nacional e mapear as diversas realidades regionais e locais.

Preferencialmente este diagnóstico deverá ser efetuado por uma

entidade independente, competente e experiente. Sugiro que essa

entidade seja o ISCTE, pelo histórico que esta instituição académica tem

na realização deste tipo de estudos na área das bibliotecas.

2. Formar um Grupo de Trabalho RNBP 2020 – À semelhança do que

aconteceu no passado (1986 e 1996) é fundamental criar um Grupo de

Trabalho que, de uma forma sistemática, apresente um conjunto de

propostas para o estabelecimento de uma estratégia, de medidas e de

ações estruturantes, para o desenvolvimento sustentável para a RNBP no

horizonte temporal de 2020. Esse GT deverá integrar um conjunto de

profissionais que, com o seu conhecimento e sua experiência, possam

pensar prospectivamente a RNBP. O processo reflexão deve também ter

uma componente de debate alargado com todos os profissionais da área

(via Fórum das Bibliotecas Públicas). O resultado desse trabalho deve ser

consubstanciado através da definição de Linhas de Orientação para a

RNBP. Esse documento deve ter um carácter orientador e não vinculador,

todavia a sua aplicação deve ser incentivada pelo Estado.

3. Criar um Fórum das Bibliotecas Públicas – Este Fórum será um espaço de

participação alargada a todos os profissionais da área das bibliotecas

públicas portuguesas. Tendo o carácter de um espaço de reflexão e de

debate permanentes e em aberto, este fórum será materializado de duas

maneiras: fórum presencial (reuniões mensais com duração de um dia),

onde serão abordados circunstanciadamente e em profundidade temas

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atuais (formas de financiamento, serviços inovadores, atualização

profissional, modelos de gestão, ferramentas do marketing, integração

dos ebooks, etc.); fórum virtual (suportado por um site com ligação às

redes sociais), esta componente do fórum permite que a reflexão e o

debate sejam ainda mais continuados, alargados e participados. Do

Fórum surgirão uma série de recursos e documentos que irão engrossar

um corpus técnico para a mobilização e atualização dos profissionais

(vídeos, recomendações, tutoriais, etc.).

4. Definir Linhas de Orientação para a RNBP – Com o Programa da RNBP foi

estabelecido um modelo para a criação e organização de novas

bibliotecas municipais. Esse modelo definia claramente (em função da

população servida): filosofia de organização e funcionamento, áreas dos

edifícios das bibliotecas, fundos documentais mínimos, infraestrutura

tecnológica básica, quadro de pessoal necessário. Ficou por definir no

Programa da RNBP um modelo para o funcionamento e gestão das novas

bibliotecas municipais. Esse modelo deverá definir claramente (em

função nas novas exigências sociais): portfolio de serviços mínimos,

métodos de envolvimento das comunidades, métodos de gestão

inovadores, fontes de financiamento adequadas, perfil de competências

dos profissionais, estratégias de funcionamento em rede. Estas

orientações devem ser operacionalizadas por programas governamentais

que incentivem a sua aplicação e prémios que reconheçam os resultados

alcançados.

5. Criar um programa de formação avançada para bibliotecários – Os

bibliotecários são os agentes da mudança e da inovação tão necessária à

transformação das bibliotecas públicas portuguesas. Atualizar os

conhecimentos e as competências técnicas dos bibliotecários que já

trabalham na RNBP é uma tarefa urgente e prioritária. O enfoque deste

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programa deve ser colocado nas seguintes temáticas: métodos de gestão

para a qualidade e para a inovação, liderança de equipas de trabalho e de

projetos inovadores, desenvolvimento de serviços inovadores de base

tecnológica, métodos de envolvimento das comunidades locais na

gestão. Financiado pelo Estado, sujeito a um rigoroso processo de

candidaturas, este programa deve ser desenvolvido em estrita

colaboração com a BAD (pela sua longa experiência de formação

profissional especializada). Acima de tudo este programa deve servir para

criar uma postura resiliente, proactiva e inovadora, por parte dos

bibliotecários da RNBP.

6. Criar um programa de inovação para a RNBP – O desenvolvimento

sustentável das bibliotecas públicas portuguesas depende, em grande

medida, da sua capacidade para respostar de forma rápida e eficiente

aos constantes desafios que as rápidas e profundas mudanças sociais

implicam. A inovação é pois uma estratégia determinante não somente

para melhorar a performance das bibliotecas públicas mas

essencialmente para garantir o seu impacto social. No entanto, a

inovação não deve ter a novidade tecnológica por motivação e

justificação. Inovar deve significar, antes de mais, tornar as bibliotecas

públicas mais adequadas às comunidades que servem. Assim sendo,

grande parte das inovações serão de ordem metodológica, levando a

novas formas de prestar serviços, de envolver as comunidades, de

promover a literacia, de gerar recursos, de organizar espaços, de motivar

equipas. O modelo a aplicar pode ser idêntico ao utilizado com grande

sucesso na Rede Internacional de Bibliotecas Públicas (financiada pela

Fundação Bertelsmann). Fase 1 – desenvolvimento de um novo conceito,

serviço ou metodologia; Fase 2 – aplicação num conjunto de bibliotecas

públicas de teste; Fase 3 – monitorização e avaliação dos resultados

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alcançados; Fase 4 – validação do novo conceito, serviço ou metodologia;

Fase 5 – disseminação alargada dos resultados alcançados.

7. Criar um prémio de boas práticas na RNBP – Dar a conhecer de forma

sistemática e alargada muito do trabalho anónimo mas altamente

meritório que já é realizado pelas bibliotecas municipais que integram a

RNBP é o grande objetivo deste programa. Passando por um processo de

avaliação de candidaturas (por um júri independente) as boas práticas

são avaliadas, validades e premiadas. O prémio deve ter duas

componentes: reconhecimento público das boas práticas; integração

prioritária no programa de inovação. Todas as boas práticas da RNBP

serão disseminadas pelas outras bibliotecas municipais através de vários

métodos: estudos de caso, entrevistas com intervenientes, organização

de seminários, organização de estágios, etc.

Estimado Jorge Barreto Xavier,

Concluo sublinhando três ideias centrais: acredito que a redefinição das

politicas estatais que estão na base da RNBP é urgente e inadiável; acredito que

essa será uma das preocupações prioritárias da SEC sobre sua liderança e

supervisão; acredito que os profissionais da RNBP estão interessados e vão estar

empenhados no processo de transformação das bibliotecas públicas

portuguesas. Está nas suas mãos (enquanto responsável governamental pela

área) desencadear esse processo de transformação. O repto fica aqui lançado,

espero que aceite o desafio.

Saudações cordiais

Filipe Leal

* Publicado originalmente no blog Edição Exclusiva (http://edicaoexclusiva.blogspot.pt/)