O Fundamentalismo Islâmico nos Jornais Brasileiros Após os Atentados no Charlie Hebdo
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IAGO LUIZ DE MORAIS
THIAGO HERNANDES RODRIGUES
O FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO NOS JORNAIS
BRASILEIROS APÓS OS ATENTADOS DO CHARLIE HEBDO
UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO
SÃO PAULO – 2015

IAGO LUIZ DE MORAIS
THIAGO HERNANDES RODRIGUES
O FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO NOS JORNAIS
BRASILEIROS APÓS OS ATENTADOS DO CHARLIE HEBDO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Nove de Julho - UNINOVE, como
requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel
em Comunicação Social - Jornalismo.
Orientadora: Profª Drª Rosângela Paulino de Oliveira
UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO
SÃO PAULO – 2015

Dedicado a todos que prezam por uma
cobertura jornalística mais plural e tolerante às
diferentes culturas e religiões.

AGRADECIMENTOS
Agradecemos o apoio de nossos colegas, familiares e aos professores Alexandre Barbosa, Ana
Lúcia Nishida Tsutsui, José Amaral, Rafael Iwamoto Tosi, Flávio Agnelli Mesquita, Odair
Ferreira e Rosângela Paulino pelos conhecimentos transmitidos ao longo do curso.

“A tolerância é a melhor das religiões. ”
(Victor Hugo)

1
RESUMO
O jornal francês Charlie Hebdo atuou de forma ácida na mídia alternativa europeia, publicando
charges e artigos de humor politicamente incorreto que criticavam diversas instituições e grupos
sociais. Por seu viés satírico, o jornal independente sofreu diversas ameaças ao longo de sua
história. Um ataque ocorrido em janeiro de 2015 fora arquitetado por quatro homens de origem
muçulmana, que diziam se vingar da publicação de caricaturas do profeta Maomé, e vitimou 12
pessoas desencadeando uma série de debates ao redor do mundo sobre liberdade de imprensa e
intolerância religiosa. Neste artigo, analisamos como os principais jornais brasileiros cobriram o
atentado, através de um estudo de caso que visou entender se houve pluralidade de abordagem e
como ela impacta na opinião pública sobre a religião islâmica.
PALAVRAS-CHAVE: Charlie Hebdo; atentado; intolerância religiosa; islamismo; liberdade de
imprensa.
1. Introdução - Charlie Hebdo: das ilustrações ao massacre
Há mais de 25 anos, o veículo satírico francês Charlie Hebdo atua na imprensa alternativa
francesa com charges e artigos de humor politicamente incorreto1, não temendo o impacto de
críticas a diversas instituições e grupos sociais, sejam eles franceses ou não. Presidentes,
empresários, líderes religiosos e variadas representações divinas não são poupados de piadas que
geram debates por seu cunho polêmico. Independente da aceitação das críticas, o Charlie Hebdo
preservou em suas décadas de publicação essa característica que provinha de seu cerne editorial.
O jornal foi fundado em novembro de 1970, surgindo como um sucessor espiritual de outro
veículo, a revista “Hara-Kiri”2, proibida de veicular naquele ano após satirizar a morte do
estadista aposentado Charles de Gaulle3.
O jornal se definia dentro da mídia francesa como um espaço libertário do pensamento da
esquerda. "Rimos de tudo. É nosso lema. Nenhum tema é poupado" foi a definição descrita pelo
cartunista Georges Wolinski [1934-2015] durante documentário (2015) que ilustrava a postura
do editorial francês perante a publicação de tiras que estampavam o profeta islâmico Maomé em
um jornal dinamarquês em 2006. Por este viés satírico desde sua criação, o jornal vivenciou ao
longo de sua história inúmeras ameaças e dois atentados. No primeiro em 2011, e, apesar de não
1 Trata-se de uma forma de expressão que procura externalizar os preconceitos sociais sem receios de nenhuma
ordem, e desta forma desafiar o status quo vigente através da ironia. Acaba por muitas vezes sendo confundido
com discurso de ódio. 2 Foi um jornal fundado em 1960 por iniciativa dos franceses François Cavanna e George Bernier, teve uma
circulação de cerca de 250 mil exemplares e, assim como o Charlie Hebdo, tinha como objetivo satirizar os regimes
de governo, organizações públicas e até mesmo religiosas. O jornal deixou de ser publicado em 1988. 3 Foi um general, político e estadista francês que liderou as Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra
Mundial. Mais tarde fundaria a Quinta República Francesa em 1958 se tornando o primeiro presidente de 1959 a
1969. Pôs fim ao caos político do país e controlou a inflação, instituindo uma nova moeda em território francês.
No Brasil, Gaulle ficou historicamente conhecido por ter afirmado que “O Brasil não era um país sério”.

2
ter deixado nenhuma vítima, a equipe foi colocada sob proteção policial. Já o massacre do dia 07
de janeiro deste ano, vitimou doze pessoas.
O massacre ocorrido na redação do Charlie Hebdo foi arquitetado por quatro homens que
invadiram e dispararam contra os policiais responsáveis pela segurança do prédio e membros da
equipe editorial do jornal. Entre as vítimas estavam os cartunistas Charb, Cabu, Philippe Honoré,
Tignous e Georges Wolinski. A motivação atribuída aos ataques foi uma retaliação a caricaturas
do profeta Maomé e líderes de vertentes fundamentalistas da religião islâmica. Esse fato
desencadeou uma série de debates em veículos de comunicação ao redor do mundo sob o
extremismo islâmico e a liberdade de imprensa.
Horas após os atentados, milhares de pessoas, incluindo líderes políticos, saíram às ruas
de diversas cidades ao redor do globo protestando contra os atentados. Muitos desses
manifestantes utilizavam em placas o mote “Je Suis Charlie”4 que demonstrava solidariedade às
vítimas. O slogan ganhou repercussão mundial sendo um dos tópicos mais citados nas redes
sociais. Simultaneamente, milhares de praticantes da religião islâmica também demonstraram
solidariedade e criticaram a ação dos terroristas em ferramentas digitais com o tópico
#NotInMyName5. Posteriormente, o Charlie voltou às bancas, com o auxílio de profissionais de
outros veículos franceses, na intitulada “Edição dos Sobreviventes”6 que dedicou todo seu espaço
para voltar a criticar os fundamentalistas e prestar homenagens a seus colegas mortos no atentado.
A partir desse fato levantamos alguns questionamentos: Como os jornais brasileiros
abordaram o massacre? Houve uma cobertura plural nos principais veículos impressos? Como o
veículo de imprensa alternativa abordou o fato? Há um discurso intolerante à religião islâmica
dentro dos principais jornais do país?
Pretendemos responder estas questões através de um estudo de caso que será salientado
por uma pesquisa descritiva bibliográfica dos assuntos referentes ao fato - tais como a história do
islamismo, o fundamentalismo religioso, os conceitos de liberdade de expressão e imprensa - e
realizando uma análise quantitativa, qualitativa e comparativa das edições posteriores ao
massacre em três dos maiores jornais brasileiros - Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O
Globo – e em um jornal de imprensa alternativa – Brasil de Fato.
2. A mídia e a construção da realidade em sociedade
4 “Somos todos Charlie”, em francês. 5 “Não em meu nome”, em inglês. 6 Ver anexo A.

3
A fim de facilitar a leitura e o entendimento do conteúdo, é elementar a contextualização
em nível histórico e conceitual de alguns temas que se mostrarão presentes ao longo do corpo da
análise. O primeiro ponto de destaque se refere à importância da mídia na construção da sociedade
a qual estamos inseridos e como a opinião pública é afetada pela veiculação das notícias.
Primeiramente é necessário definir que desde os primórdios da comunicação até a era da
Internet, as diferentes formas de comunicação estão associadas as transformações do homem, tal
como o mundo em que ele está inserido, conforme é descrito por Defleur e Ball-Rokeach:
[...]“Revoluções” da comunicação têm estado ocorrendo através de toda a
existência humana. Cada uma proporcionou um meio pelo qual significativas
mudanças poderiam ser trazidas para o pensamento humano, a organização
em sociedade e a acumulação de cultura. (DEFLEUR; BALL-ROKEACH,
1993, p. 41)
Apesar das evoluções no processo de comunicação ocorrerem durante toda a história
humana, o advento dos meios de comunicação de massa só surgiria há pouco mais de um século
devido ao crescimento das redações de jornal, da invenção do rádio, do cinema e da TV7. Tais
inventos definiriam todo o contexto sociopolítico no século XX, além de tornar os indivíduos
cada vez mais dependentes desses aparatos tecnológicos.
Esses meios de comunicação de massa, que já possuíam enorme poder ao dar voz à
revoluções e mudanças culturais, passaram a ser analisados por estudiosos de distintas áreas, que
aplicariam conceitos sociológicos e psicológicos para estudar o efeito desses meios na vida
cotidiana. Desta iniciativa surgiriam diversos conceitos essenciais para entender, não somente o
fenômeno da comunicação em si, mas também uma das suas mais importantes atividades: o
jornalismo. Os primeiros teoremas do Jornalismo surgiriam em meados do século XX, com a
Teoria do Espelho, que se inspirando no Positivismo8 do filósofo francês Auguste Comte [1798-
1857], acreditava que o jornalismo refletia a realidade como ela era, apresentando os fatos com
neutralidade de discurso, ou em outras palavras, imparcialidade. Mesmo que facilmente refutada,
esta visão de jornalismo perdura até hoje no senso comum.
Esse conceito de neutralidade jornalística foi rejeitado por teorias posteriores, tal como a
Teoria da Agenda que demonstrava, através de pesquisas, que a veiculação de notícias de
determinados candidatos influenciava em sua aceitação ou sua rejeição pela opinião pública
durante períodos eleitorais, além de permitir diferentes abordagens do mesmo fato com base em
7 Rádio, cinema e TV foram inventados nos seguintes anos respectivos: 1844, 1885 e 1923. 8 Trata-se de uma corrente filosófica surgida na França no começo do século XIX que defendia a ideia de que o
conhecimento científico era única forma de conhecimento verdadeiro, e que o progresso da humanidade dependia
exclusivamente dos avanços científicos.

4
seu enquadramento como evidenciado na seguinte citação do livro A Teoria da Agenda: A mídia
e a opinião pública:
[...] A Teoria da Agenda atribui um papel central aos veículos noticiosos por
serem capazes de definir itens para a agenda pública. [...]a informação fornecida
é pelos veículos noticiosos joga um papel central na constituição de nossas
imagens da realidade. E, além disso, é o conjunto total da informação fornecida
pelos veículos que influencia estas imagens. (MCCOMBS, 2009, p. 24)
E complementado, com:
[...] enquadramento é a seleção de – e ênfase nos atributos particulares de uma
agenda da mídia quando se tratar de um objeto. Por consequência, como
sabemos da evidência do agendamento de atributos, as pessoas também
enquadram objetos, colocando vários graus de ênfase nos atributos de pessoas,
nos temas públicos ou noutros objetos quando elas pensam ou falam sobre
eles. (MCCOMBS, 2009, p. 137)
Ou seja, independente de qual seja o meio jornalístico, a construção de um discurso de
ódio ou estereotipado nessa ferramenta pode gerar um impacto negativo na opinião pública e
impedir a formação de uma cultura de tolerância religiosa oriunda de uma reflexão crítica do
papel da crença islâmica na formação de eventuais grupos extremistas.
2.1. O jornalismo de humor e a fragilidade de suas interpretações
Essencialmente dentro da mídia há uma variedade de gêneros jornalísticos, que vão deste
a tradicional reportagem até modos mais descontraídos de informar e fomentar questionamentos
que venham a formar a opinião de seus receptores. Um desses gêneros que pouco a pouco ganha
notoriedade dentro da mídia mundial é o jornalismo de humor.
Dentro da mídia francesa, esse gênero se mostra presente há décadas, mesmo antes do
surgimento do Charlie, com o já citado Hara-Kiri. Este tipo de jornalismo obteve êxito em sua
abordagem por uma liberdade existente neste gênero, que apesar de utilizar do deboche e da ironia
leva o leitor a se questionar sobre o contexto em que está inserido. Ainda que esse tipo de
abordagem sirva também como um artifício estilístico para o jornalista realizar sua crítica, como
citado pelo professor Paulo Sérgio Pires em artigo ao Observatório de Imprensa:
Talvez hoje o humor seja também uma atenuante, um artifício, um recurso
estilístico e uma boa alternativa para o autor ser mais furtivo e evitar certos
processos judiciais que se avolumam nos tribunais, sem naturalmente deixar
de dar seu recado para a opinião pública? Afinal, humor ninguém leva muito
a sério. (PIRES, 2010, web)
No entanto é preciso ressaltar que, apesar do caráter especial desse subgênero jornalístico,
o humor é uma forma de expressão subjetiva que pode causa reações diferenciadas nos indivíduos

5
que são expostos a ele. Uma charge, ainda que seja apenas uma representação lúdica da realidade
por meio de um desenho, gera interpretações distintas que podem resultar em contra-ataques
desproporcionais à crítica.
No caso do Charlie Hebdo com a publicação de caricaturas de Maomé, esse estilo
jornalístico foi interpretado por uma minoria de extremistas como uma heresia à sua fé, visto que
dentro dos dogmas dessa religião é extremamente proibido a representação tanto de Alá quanto
de seu profeta por meio de imagens. Ainda que isso não seja um elemento que justifique o
massacre de pessoas inocentes no exercício de sua profissão.
3. Entendendo o Islamismo
O termo árabe islam simboliza o sentimento de “submissão”. “Percebe-se na raiz do nome
algo essencial nessa religião: o homem deve se entregar a Deus e se submeter a Sua vontade em
todas as áreas da vida" (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2008).
Sendo assim, como religião, o islã não se reporta apenas à vida espiritual do fiel, mas
também a tudo que o rodeia. O cerne religioso do islamismo denota Deus como centro de toda a
entrega do homem, por isso em uma sociedade tipicamente islâmica, a teocracia9 é uma prática
comum. Em uma visão geral, a religião divide-se em três principais itens: a) O credo monoteísta
na figura de Alá; b) Os deveres religiosos, que incluem a fé, as orações voltadas a cidade de Meca,
o ato de caridade (que não é uma tradução fiel da palavra árabe, pois é mais do que uma simples
boa ação, é um dever imposto sobre 2,5% de toda riqueza do fiel), o jejum no mês do Ramadam
(além da proibição do consumo de carne de porco e de álcool); c) Peregrinação a Meca, por pelo
menos uma vez na vida.
3.1. A propagação da religião islã
A religião se espalhou com certa rapidez no século seguinte à morte de Maomé. Com o
declínio dos impérios Persa e Bizantino, os árabes vieram a ocupar a lacuna territorial do que hoje
conhecemos pelo Oriente Médio e parte do norte da África. Dotados de uma nova doutrina
religiosa que guiava suas principais leis e éticas, os árabes começaram a tomar posse de territórios
a partir do norte da África, avançando para o sul da Europa, ocupando por bons anos parte da
França e da península Ibérica.
Mesmo durante toda a era de colonização europeia em território africano e de parte da
Ásia, a religião islã se manteve consistente e predominante nas regiões do Oriente Médio e do
norte da África e avançou em parte para a Índia e a Indonésia. Após a Índia se tornar independente
9 Sistema que fundamenta a governança do poder político em preceitos e diretrizes religiosas.

6
da colônia britânica os hindus e mulçumanos se separaram em dois estados: O Paquistão (maioria
mulçumana) e a Índia (maioria hindu).
Em meados de 1.500 d.C. mesmo com o crescimento social da China (região
predominantemente budista), a ascensão das grandes navegações comandadas pelos países
cristãos e o Renascimento que revitalizou culturalmente a liderança do Ocidente, a religião islã
tomou proporções gigantescas e conseguiu florescer em uma região estrategicamente forte com
relação ao comércio, se tornando uma das maiores comunidades religiosas do mundo.
Correspondiam a cerca de um, terço da população do globo, mas estavam tão
ampla e estrategicamente situados no Oriente Médio, na Ásia e na África que
compunham um microcosmo da história mundial, exprimindo as
preocupações da maioria das regiões civilizadas nos primórdios da
modernidade. Essa época também é empolgante e inspiradora para eles; no
começo do século XVI surgiram três novos impérios islâmicos: o Otomano,
na Ásia Menor, Anatólia, Iraque, Síria e norte da África; o Safávida, no Irã; e
o Mongol, no subcontinente Indiano. (ARMSTRONG, 2001, p. 49)
Os três principais impérios islâmicos da época comandaram uma nova força social que
fortaleceu ainda mais a comunidade mulçumana, pois eram instituições bem governadas e
organizadas. Porém, mesmo que modernizadas, as comunidades islãs mantinham uma postura
conservadora com relação a diversos assuntos. Enquanto o ocidente progredia em um sistema de
organização e governabilidade influenciada pelos princípios filosóficos da democracia, as
comunidades islãs se viam presas ao fundamentalismo religioso.
3.2. O Fundamentalismo dentro do Islã
A ideia do fundamentalismo está enraizada no que é tradicional, principalmente quando
seus conceitos e doutrinas estão ligadas à alguma religião. Na maior parte das vezes, os que são
mais fervorosamente adeptos aos fundamentos de uma religião, não hesitam em usar a violência
para carimbar, mesmo que de forma autoritária, suas visões e seus paradigmas. Mesmo os
fundamentalistas mais pacíficos não se assemelham a ideias e valores da sociedade moderna,
como a democracia, a liberdade de escolha, a ciência, a liberdade de expressão e a separação entre
o estado e a instituição religiosa.
Ao analisar o fundamentalismo na religião islã, vem-se ao caso identificar a disputa
religiosa e territorial que os mulçumanos travam com os judeus na região de Jerusalém. Apesar
de entender que esta é a principal “causa” na guerra religiosa do islã, os fundamentalistas do
Estado Islâmico promovem a controvérsia ao modo de vida ocidental. Para eles, o modo de vida
ocidental vai de encontro aos ensinamentos e a interpretação sobre o Alcorão, por isso, alguns
adeptos mais calorosos dos ideais islâmicos veem o ocidente como um outro grande inimigo dos

7
preceitos islâmicos, pois no mundo ocidental, o apego ao “mito” de Deus perdeu força com a
grande ascensão das ciências e da filosofia no século XX, ainda que seja notável a presença de
conceitos derivados da religião na cultura ocidental.
3.3. A intolerância religiosa em países do mundo ocidental
A partir da fundamentação dos princípios de democracia e liberdade no ocidente, criou-
se a ideia de que esta cultura deveria servir de exemplo ao resto do globo. Desta maneira, países
hegemônicos adotaram uma postura de doutrinação desses valores mesmo dentro de países que
tivessem uma formação histórica e cultural distinta.
Parte dos traços da cultura ocidental, partem do estabelecimento da fé cristã durante
séculos da história europeia e americana, e essa fé foi, por muitas vezes, imposta por meio do
medo e da guerra. Dessa forma, o islã, uma religião mais nova do que o cristianismo, e com alguns
valores dogmáticos distintos, se estabeleceu como um contraponto ideológico, ainda que ambas
religiões tenham a mesma origem nos povos abraâmicos.
Como consequência dessa contraposição de ideias que surgiram as manifestações de
intolerância religiosa, tanto da fé cristã para com a fé islâmica, quanto do contrário. Estas
manifestações de intolerância se dão na construção social estabelecida pelos valores adotados por
cada cultura e o choque cultural das mesmas. Ainda que, muitos países denominem dentro de
suas constituições como laicistas. Um país como o Brasil, que por lei é considerado laico, teve
sua construção histórica dentro dos valores cristãos, em alguns casos, a intolerância fomenta o
desrespeito à outras manifestações religiosas que existem no país, sejam elas do judaísmo, do
islamismo e de religiões de matriz africana.10
Pode-se estabelecer que há exemplos desses casos dentro dos meios de comunicação do
país, por terem como poder ajudar na construção da realidade, podendo expor religiões ditas como
diferentes de forma pouco condizente com a realidade vivida por seus praticantes.
3.4. A liberdade de imprensa e de expressão
O jornalista tem responsabilidade pela forma como veicula as notícias. Apesar de
assegurados, por constituição, os direitos de liberdade de expressão e imprensa, o contexto social
exerce peso sobre o modo como a mensagem é transmitida.
De um modo relativamente genérico podemos dizer que o jornalismo
desempenha uma tarefa fundamental no estabelecimento da agenda, formando
a opinião pública, impulsionando a formação de conhecimentos, reduzindo a
10 Ver anexo C e D.

8
complexidade social através da criação de temas comuns de conversação
(FONTECUBERTA, 1993, p. 35)
Observando a importância do jornalismo na formação da agenda noticiosa nos meios de
comunicação, cria-se uma expectativa diante do discurso de cada meio, pois a linha de
pensamento vigente é impulsionada pelas temáticas abordadas na imprensa. Tomando a premissa
essencial de liberdade de expressão e imprensa, o periódico Charlie Hebdo sempre criou um
ambiente satírico em todas as publicações, seja qual fosse o ‘alvo’ da vez. Apesar das fortes
críticas e comoção internacional, após uma publicação do periódico que retratou o profeta Maomé
de forma considerada proibida pela religião islâmica, a redação do Charlie Hebdo manteve a linha
editorial, impulsionando a intolerância de alguns praticantes da religião e da opinião pública
francesa.
4. Procedimentos metodológicos do estudo de caso
Estabelecidos estes conceitos, é necessário descrever como foi realizada a metodologia da
pesquisa. Inicialmente, coletamos as seguintes edições dos jornais: Folha de S.Paulo [edição de
08/01/2015], O Estado de S.Paulo (edição de 08/01/2015), O Globo [edição de 08/01/2015] e
Brasil de Fato [edição referente à semana de 15 a 21/01/2015]. Posteriormente realizamos uma
checagem dessas edições separando todos os textos que tratassem ou citassem o ocorrido.
Com esta etapa realizada, iniciamos uma análise quantitativa através dos seguintes
processos: classificação dos tipos de texto presentes em cada edição, verificação da proporção
física desses textos, calculo em porcentagem da proporção física ocupada pelo ocorrido e
verificação de palavras-chave (Ex: extremistas, islâmicos, profeta, Maomé, terroristas,
democracia, liberdade de expressão) dentro dos corpos de texto.
Em seguida, realizamos uma verificação dos adjetivos utilizados, classificamos qual foi o
objeto central de abordagem dentro dos conteúdos e separamos frases que denotassem este
aspecto textual. Por fim, averiguamos proporcionalmente todos os dados coletados nestas etapas
anteriores cruzando-os e fazendo a análise comparativa, a fim de chegar às respostas determinadas
por nossa hipótese, e assim expressá-las dentro das considerações finais desde estudo.
4.1. Cobertura Folha de S.Paulo
O principal destaque da edição nº 31.326 da Folha de S.Paulo, publicada no dia
08/01/2015, foi o Massacre ao Periódico Charlie Hebdo. São 12 páginas (equivale à 23% das
publicações) das 52, que citaram o ocorrido através de textos editorias, colunas, reportagens, notas
e painel do leitor. 53% dos textos tiveram um caráter informativo e 47% opinativo, tendo como

9
as principais palavras-chave os seguintes termos: terrorista, fundamentalista, Charlie Hebdo,
Maomé, islã e atentados.
Na primeira página, o atentado ocupou dois terços do espaço, com a estrutura de duas
grandes fotos, uma com imagens dos ataques e outra com imagens dos protestos em solidariedade
ao Charlie Hebdo, uma charge replicada do periódico francês, duas chamadas para as reportagens
informativas e uma chamada para um texto opinativo. Na chamada do texto opinativo, o colunista
Clóvis Rossi atribui o terror ao radicalismo e a islamofobia, fazendo uma comparação e indo de
contrapartida aos outros textos que somente destacam o lado do terrorismo islâmico.
O editorial “7 de janeiro“ se opõem veementemente ao atentado e diz que o acontecimento
é “inaceitável violência contra valores universais de liberdade e tolerância”. Faz uma comparação
do episódio com o iluminismo e a época na qual a igreja católica dominava a sociedade,
comparando o jornal com as publicações de Voltaire, que afrontava os dogmas da época.
Na sessão Painel do Leitor, das doze citações selecionadas pelo jornal quatro faziam
menção ao atentado ao Charlie Hebdo, sendo que todos os textos demostravam opiniões com a
visão ocidental, revelando a indignação das pessoas e afirmando que o Ocidente precisava se unir
e se livrar da dependência do petróleo árabe, principalmente para defender seus valores de
liberdade, de expressão e democracia.
O colunista Janio de Freitas faz uma dura crítica aos serviços de inteligência norte-
americanos e europeus. Para o jornalista, o Estado Islâmico “reduzem a lixo os bilhões de euros,
bilhões de dólares e gigantescos dispositivos policiais-militares destinados a imobilizar o
fanatismo terrorista”.
O caderno “Mundo” publicou uma reportagem especial que ocupou seis páginas, mais
uma publicação opinativa do colunista Clóvis Rossi. Com o título de “Terroristas matam 12 em
jornal de Paris para ‘vingar’ Maomé”, a reportagem começa com um texto informativo, que
descreve o ataque e as manifestações em prol do periódico, publica algumas charges polêmicas
do jornal francês, mostra como a polícia está trabalhando para identificar os responsáveis pelo
ataque, faz um ‘raio-x’ do Charlie Hebdo, um artigo opinativo que constata historicamente como
o semanal zomba de tudo e de todos em suas edições, um passo a passo do ataque, exibindo um
infográfico cronológico com as fotos do ataque e as principais polêmicas acerca do evento, um
artigo sobre os cartunistas e os editores chefes do jornal e um depoimento de Adão Iturrusgarai,
cartunista da Folha, falando sobre como suas obras são influenciadas pelo Charlie Hebdo. O
especial contou também com uma cobertura das manifestações pós ataques, um texto opinativo
que descrevia o atentado como um dos principais ataques à mídia na história, cinco charges de

10
brasileiros sobre os atentados e uma análise crítica de Diogo Bercito, que denuncia a integração
de mulçumanos à Europa, como alvo de manipulações de grupos extremistas islâmicos.
Na terceira página, o texto opinativo de João Batista Natali é um dos únicos no jornal
inteiro que promove um debate sobre a liberdade de expressão e o teor satírico do Charlie Hebdo.
Implicava com o catolicismo conservador, com o Partido Comunista,
com a hierarquia judaica, com a extrema direita e com o terrorismo
islâmico. Por mais que nunca tenha sido um jornal de ampla circulação,
era por meio dele que sobrevivia na mídia, o pensamento crítico. (A
FOLHA DE S.PAULO - EDIÇÃO 31.326, 2015, p. A10)
Os textos informativos descrevem como aconteceram os ataques, como a polícia conduziu
as investigações sobre os acusados e, principalmente, contextualiza o brasileiro sobre o teor
noticioso das publicações do Charlie Hebdo. O jornal ainda trouxe quatro charges famosas e
polêmicas do jornal francês. Na primeira, mostra a capa de novembro de 2011, na qual o Charlie
Hebdo trouxe uma charge do profeta Maomé beijando um cartunista do jornal. Na segunda, uma
sátira à escolha do Papa em fevereiro de 2013, traz uma capa com cardeais católicos em um
deboche com o público gay. Na terceira, a capa de outubro de 2014 faz uma charge em alusão às
decapitações da facção radical Estado Islâmico. Na quarta, a capa de setembro de 2012, satiriza
o filme francês ‘Os Intocáveis’.
Na última página da reportagem o jornal Folha traz uma lista de charges que
homenageiam os cartunistas mortos na França. Na lista, os cartunistas Laerte, Adão, Orlando,
Jean Galvão, Renato Machado e Montanaro trazem um humor que criticam os ataques e exaltam
o direito de liberdade de expressão e imprensa.
4.2. Cobertura O Estado de S. Paulo
A edição nº 44277 do Estado de S.Paulo, publicada no dia 08/01/2015, teve o Massacre
ao Charlie Hebdo como principal destaque. Das 48 páginas da edição, 10 páginas (que equivale
à 21% da publicação) citaram o ocorrido através de 47 textos sendo eles editorias, colunas,
reportagens e notas. Estes textos se dividiram em 34% de caráter informativo e 66% de cunho
opinativo, tendo como as principais palavras-chave os seguintes termos: Charlie Hebdo,
terroristas, liberdade de expressão, humor, civilização e islâmicos.
O atentado ocupou dois terços da primeira página, sendo estruturada com um texto sobre
o ocorrido, chamadas para três colunas opinativas e dois textos informativos, além disso expôs as
declarações de dois importantes líderes da cultura ocidental: o presidente americano Barack
Obama e o líder da igreja católica, o Papa Francisco. Trouxe ainda duas imagens, com uma maior
mostrando os manifestantes em solidariedade às vítimas e um mosaico menor ilustrando as ações

11
dos terroristas no periódico francês, com o propósito de criar uma relação contrastante entre o ato
de paz e a violência praticada pelos radicais.
O editorial intitulado “A primeira vítima é o humor “ descreveu o atentado ao jornal como
um ato contrário à ironia, que ele descreve como o espírito da modernidade: “Movidos por uma
verdade absoluta qualquer, eles pretendiam silenciar e exterminar a ironia. ”. Ainda estabeleceu
um pequeno debate sobre a liberdade de expressão e imprensa, que segundo ele, vivem sob
censura, ainda que não estão muito distantes, trazendo o debate ao âmbito nacional.
Na sessão de Fórum dos Leitores, dos dez textos selecionados pelo jornal cinco faziam
menção ao Charlie Hebdo, com três desses demonstrando opiniões semelhantes, mostrando
indignação ao atentado e afirmando que o Ocidente (representado por estes como a civilização)
precisava se unir para defender seus valores de liberdade de expressão e democracia. Os outros
dois textos utilizavam o caso francês para evidenciar problemas no próprio Brasil, fazendo críticas
ao atual governo federal.
O caderno de notícias internacional do jornal ganhou um especial que ocupou seis
páginas, denominado como “Liberdade sob Ataque” que viria expor a ideia mais presente durante
os textos: o ocidente e o jornal como símbolos da liberdade. O especial contou em sua primeira
página com três textos informativos, sendo dois deles para contextualizar o leitor nos fatos e um
fazendo uma contextualização histórica de atentados anteriores no território francês.
A partir da segunda página do especial, o jornal passou a evidenciar no topo da publicação
algumas declarações (doze no total) de autoridades importantes no cenário político ocidental
(como os primeiros ministros da Espanha, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca e Itália, e o
presidente da Comissão Europeia). Trouxe ainda declarações de outras figuras com
representatividade como o Papa Francisco, a presidente do partido de ultradireitista francês (que
faz oposição ao atual governo francês), um porta-voz da Chancelaria iraniana (com o propósito
de representar a opinião do oriente), dois dos mais importantes cartunistas brasileiros (Maurício
de Souza e Ziraldo) com um discurso uníssono de repúdio ao atentado e estabelecendo-o como
uma ferida à liberdade de expressão e a democracia. Também apresentou a seguinte declaração
do autor britânico Salman Rushdie11: “Religião, uma forma medieval de irracionalidade, quando
combinada com armamento moderno torna-se uma ameaça real às nossas liberdades. ”
Os demais textos informativos do especial apresentaram mais detalhes sobre os atentados,
com um infográfico demonstrando o passo a passo da ação, um texto sobre os suspeitos que
11 Autor do livro “Os Versos Satânicos”, que se refere a alguns versos do Corão, conhecidos por versículos
Gharanigh. O livro foi amplamente criticado por militantes muçulmanos e o autor foi sentenciado de morte por
um líder aiatolá em 1989.

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faziam parte de redes terroristas islâmicas, outro sobre as características editoriais do Charlie
Hebdo afirmando que apesar do jornal criticar o Islã outras religiões também não eram poupadas.
Trouxe também uma série de outros textos mostrando repercussão dos atentados em
órgãos de imprensa ao redor do mundo, a reação do presidente americano Barack Obama e dos
manifestantes, que trouxe uma declaração não identificada de um homem que acreditava que a
França deveria fechar suas fronteiras para os estrangeiros e restabelecer seus antigos valores,
sendo contraposta por palavras de líderes franceses que afirmaram que a comunidade muçulmana
não deveria ser veiculadas aos radicalistas, uma das poucas desse caráter durante a publicação.
Apresentou ainda um espaço para falar sobre as vítimas exaltando suas características
humanitárias, libertárias e os estabelecendo como mártires.
Somente durante uma pequena entrevista com o Samuel Feldberg, professor de Relações
Internacionais da USP, que as consequências ao povo islâmico foram citadas. Segundo o
estudioso com o atentado haveria uma “reação à percepção de que o ataque foi motivado por
razões religiosas islâmicas e os preconceitos, ninguém pode negar, aflorarão. ”. Nenhum outro
religioso ou estudioso do Islã foi chamado para declarar sua opinião ao fato.
4.3. Cobertura O Globo
Na edição nº 29.739 do jornal O Globo, publicada no dia 08/01/2015, o massacre ao jornal
francês Charlie Hebdo teve o destaque principal. Na edição, o jornal teve 42 páginas, sendo que
11 (26% das publicações) citaram o ocorrido através de textos editorias, colunas, reportagens,
notas e opiniões do leitor. 44% dos textos eram de caráter informativo e 55% opinativo, tendo
como as principais palavras-chave os seguintes termos: Charlie Hebdo, Atentados,
Terrorismo, Democracia e Massacre.
Na página principal o atentado ao jornal Charlie Hebdo ocupou 80% do espaço de
publicações. Uma foto principal mostrou imagens dos manifestantes no protesto em prol do jornal
e da liberdade de expressão e imprensa, uma charge com a cabeça da estátua da liberdade
decepada por um extremista islâmico, uma foto de um policial sendo morto pelos terroristas, as
fotos dos cartunistas e editores mortos no ataque e partes dos textos opinativos de colunistas do
jornal O Globo.
Na página quatro, uma opinião do colunista Merval Pereira expõe um debate sobre a
violência e o conceito de liberdade. Merval coloca o atentado como uma tentativa de o Estado
Islâmico impor a violência sobre a liberdade de expressão e mostra também o impasse ideológico
entre o ocidente e oriente. Na página 16, em uma área de opinião, o jornal expressa o sentimento

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de asco aos ataques e põem em questionamento a relação entre o terrorismo e a liberdade de
expressão e imprensa que é característica de um regime democrático, como o ocidental.
O caderno internacional veiculou uma reportagem especial que ocupou seis páginas.
Mesmo sendo uma reportagem informativa, fica bem claro o posicionamento do jornal, pois
algumas palavras-chaves como: massacre, extremista, chacina, ataque à democracia, são
vistas com certa frequência nos textos e títulos das reportagens. Na primeira página do caderno,
o jornal mostra imagens do atentado e das vítimas sendo atendidas pelos médicos, com textos que
descrevem o atentado e a investigação policial. Na segunda página, um infográfico mostrando o
passo a passo do ataque e uma reportagem sobre as manifestações procedentes ao ataque. Na
terceira página, um texto que mostra um pouco da trajetória dos cartunistas dentro e fora do
periódico Charlie Hebdo, explicando e contextualizando a vida de todos os chargistas mortos no
ataque, um box que mostra o histórico de polêmicas do Charlie Hebdo, colocando três charges
que chamaram a atenção, uma que satiriza o filme ‘Os Intocáveis”, outro que retrata Maomé de
forma irônica e um que questiona a história de Jesus.
Na página 28, O Globo retrata o repúdio internacional que o ataque gerou, com
depoimentos de líderes de países e chefes de organismos internacionais. Nesta reportagem, o
jornal mostrou também alguns depoimentos de chefes da comunidade mulçumana que também
rechaçaram o terrorismo. Um box com o depoimento de um brasileiro que mora próximo aos
arredores onde aconteceu os ataques mostra um pouco da opinião dos brasileiros que residem em
Paris e a visão deles sobre o atentado. Em uma entrevista, Fernando Eichenberg mostra como o
pensador francês Michel Maffesoli afirma que “pode haver uma reafirmação do radicalismo”.
Para o pensador, a França tem dificuldades para lidar com religiosos.
Ainda na página 29, mais duas entrevistas mostram os dois lados da mesma moeda. No
primeiro texto, François-Bernard Huyghe alerta que a extrema direita francesa será favorecida,
pois a população francesa está com medo e espera uma reação. No outro, o escritor paquistanês
Tariq Ali diz que os terroristas prejudicam os mulçumanos pois, para ele, os ataques é um
incentivo à Islamofobia.
Na página 30, além de um texto opinativo de Luis Fernando Verissimo que traz o choque
entre as culturas, o modo como o jornal publica suas charges e a intolerância dos extremistas
islâmicos, outro de Chico Caruso que expõem o terrorismo como uma “covardia transvestida de
religião” e mais um texto opinativo de Helena Celestino que critica com veemência os ataques e
defende a alegria e a liberdade do periódico, além de mostrar que não concorda com a visão de
que o ataque foi motivado por razões políticas “O atentado é acima de tudo, um ato selvagem.
Não dá para falar em motivações políticas. ”

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A última página da reportagem especial traz também homenagens de cartunistas aos
artistas mortos no atentado, trazendo os desenhos de Jean Jullien, Loïc Sécheresse, Cyprien,
Satish Acharya, Joep Bertrams, Macleod e do brasileiro Cláudio Páiva.
4.4. Cobertura Brasil de Fato
A edição nº 620 do jornal alternativo Brasil de Fato referente ao período de 15 a 21 de
janeiro de 2015 trouxe discussões e a repercussão de assuntos da política brasileira e
internacional, do qual se incluiu o Massacre ao Charlie Hebdo. Contando com 16 páginas na
edição, destinou 7 páginas (cerca de 44% da publicação) para tratar o assunto através de oito
textos, que em sua maioria tinham caráter opinativo (cerca de 62,5% dos textos que discutiam o
fato). As palavras chave mais citadas na publicação foram: Charlie Hebdo, terrorismo,
imperialismo, humor, mídia e linha editorial.
O fato não ganhou o maior espaço na primeira página da publicação, ocupando cerca de
um sexto do espaço, com o uso de uma imagem dos manifestantes e uma chamada - Terrorismo
na França: Je suis Charlie? - que ilustra o caráter questionador escolhido pela linha editorial do
veículo.
O texto editorial se apresentou solidário as vítimas e trouxe à tona um breve quadro das
opiniões sobre a linha editorial do Charlie Hebdo, estabelecendo que independente de julgar o
jornal tudo que ele publicou foi no exercício de seu direito à liberdade de expressão e que não se
devia culpar as vítimas pelo massacre. Para o jornal, tal evento tem sido apropriado por forças
conservadoras de diversas partes do mundo para fortalecer suas propostas políticas através da
demonização do islã. A partir disso, o editorial questiona o exercício jornalístico em casos onde
os direitos de liberdade de expressão do povo árabe e muçulmano foram desrespeitados, trazendo
esta crítica diretamente ao jornal brasileiro Folha de S.Paulo e à cobertura da Rede Globo.
A coluna assinada por Beto Almeida, utilizou o atentado como gancho para trazer à tona
uma série de questionamentos sobre a postura dos países com herança histórica imperialista em
eventos relacionados a chamada Guerra ao Terror. Outra coluna assinada por Bráulio Tavares,
homenageou uma das vítimas, o Cartunista Wolinski, ressaltando que durante 50 anos ele
satirizou Deus e o Mundo, e que infelizmente acabou sendo vítima de assassinos que ou eram
fáticos ressentidos ou enviados para causar uma crise geopolítica.
O primeiro texto informativo do jornal destacou a atitude de alguns jovens islâmicos que
não aceitaram realizar um minuto de silêncio pelas vítimas por não quererem defender uma revista
que satirizava sua fé, ainda que achassem o atentado um ato equivocado, pois um verdadeiro
muçulmano não deveria matar ninguém. Outro ponto retratado no texto foi um movimento que

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se apropriou da hashtag #JeSuisPasCharlie para criticar a postura da revista que teria ultrapassado
os limites do bom senso e que a liberdade de expressão não justificava desenhos ofensivos.
Em seguida, a coluna escrita por José Antonio Gutiérrez Danton criticou seriamente o
semanário francês o considerando um monumento à intolerância, ao racismo e à arrogância
colonial. Conforme trecho destacado abaixo:
Não se trata de inocentes caricaturas feitas por livres-pensadores, mas sim de
mensagens, produzidas a partir dos meios de comunicação de massas (sim,
embora pose de alternativo, o Charlie Hebdo pertence aos meios de massas),
carregadas de estereótipos e ódios, que reforçam um discurso que entende os
árabes como bárbaros aos quais há que se conter, desraigar, controlar,
reprimir, oprimir e exterminar. Mensagens cujo propósito implícito é justificar
as invasões a países do Oriente Médio assim como as múltiplas intervenções
e bombardeios que a partir do Ocidente se orquestram na defesa da nova
repartição imperial. (BRASIL DE FATO – EDIÇÃO 620, 2015, p. 15)
O autor também fez críticas à mídia ocidental, que segundo ele, com o acontecimento
pregaria a retórica pró-liberdade enquanto estes países se consomem em uma espiral de ódio
xenófobo. Na sequência, o jornal publicou uma coluna que afirmava que o fato só beneficiaria os
governos ocidentais, que estariam interessados em demonizar o Islã, e com isto, continuar
praticando atos de guerra em território oriental. Por fim, encerrou sua cobertura com duas notícias,
a reação de um importante nome do cartum sobre os atentados e os ataques do Boko Haram na
Nigéria, que ocorreram no mesmo dia que o massacre ao semanário francês, mas que não foram
noticiados com a mesma intensidade.
5. Considerações finais
Observando o caráter geral dessas análises, notamos que os veículos de grande circulação
(Folha, Estado de S.Paulo e O Globo) optaram por uma abordagem centralizada na ideia de que
os atentados contra o jornal feriram os direitos de liberdade de expressão e a democracia dos
países ocidentais, considerando os atentados terroristas como atos bárbaros de povos não
civilizados. Além disso, estes veículos estabeleceram o periódico francês como um símbolo da
liberdade e as vítimas como mártires desse conceito, demonstrando ao longo de seus especiais a
linha editorial do Charlie Hebdo, mas fazendo poucos questionamentos ao caráter de suas
charges, sempre justificando que apesar das pesadas críticas aos islâmicos e seus símbolos, o
jornal também fazia o mesmo com outras manifestações religiosas.
Ainda que dentro das edições os jornais da grande mídia brasileira tenham destinado espaço
a textos que discutiam o impacto do atentado à vida das comunidades muçulmanas e
questionavam um eventual crescimento da islamofobia, estes ocuparam um espaço reduzido em

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meio a uma maioria com foco nos temas propriamente “ocidentais”, também exponenciando o
conceito de choque de civilização existente nas mídias de nosso polo global e observado no artigo
“Oriente, Ocidente e Ocidentalização: Discutindo Conceitos”:
[...] a julgar pelos discursos construídos e veiculados pela mídia televisiva de
escala global, se digladiam numa interminável batalha que opõe civilização e
barbárie, progresso e retrocesso, modernização e arcaísmo, Ocidente e
Oriente. Caricaturas, portanto, de discursos construídos e que dão visibilidade
a relações de dominação global forjadas no âmbito da própria historicidade
das duas metades do mundo, a ocidental e a oriental. (MACEDO, 2006. p.4)
Já na cobertura do Brasil de Fato, pode-se perceber que o jornal alternativo se apresentou
como oposição à cobertura dos grandes meios de mídia, publicando textos e opiniões críticas que
ressaltassem perspectivas que não se mostraram presentes nestes veículos de maior circulação. A
publicação fez ferrenhas críticas ao editorial francês e buscou demonstrar o ponto de vista de
grupos da comunidade muçulmana. Este veículo também evidenciou a construção da guerra entre
Ocidente contra Oriente, se posicionando criticamente a esta prática. No entanto por ser um
veículo alternativo, sem receita publicitária, o espaço de discussão do fato é pequeno em
comparação aos grandes veículos.
Pode-se concluir que a cobertura dos grandes jornais do país se mostrou deficiente de uma
abordagem plural por utilizar maior parte de seu espaço para a manutenção dos conceitos
historicamente estabelecidos de que os valores de democracia, liberdade e civilização estavam
interligados à cultura ocidental, e salientar pouco que a comunidade islâmica não deve ser
confundida com braços fanáticos da religião que diariamente ganham espaço nos noticiários.
Ainda que exista uma mídia que faça a contraposição a esta abordagem, sua circulação é
menor, circunstância que é responsável pela fomentação de uma visão pouco embasada
criticamente na opinião pública, o que acaba por transformar a ânsia pela defesa desse idealismo
ocidental descrito nestes veículos como uma justificativa de atos tão bárbaros quanto dos
terroristas, como o impedimento do exercício de manifestações culturais e a estereotipação dessas
comunidades. Fato do qual, alimenta o ciclo sem fim do terrorismo e da guerra ao terror.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no
cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Tradução por
Hildegard Feist.
CHARBONNIER, Stéphane. Carta aos croques da islamofobia que fazem o jogo dos
racistas. São Paulo: Casa da Palavra, 2015. Tradução por Sara Spain.
CHARLIE HEBDO - ANTES DO MASSACRE. Direção de Jérome Lambert e Philppe
Picard. Produção de Stéphanie Colaux e François Landesman. Paris: The New York Times,
2015. (6 min.), son. Color. Legendado. Disponível em:
http://tv.estadao.com.br/internacional,charlie-hebdo-antes-do-massacre,366821. Acesso em:
11/10/2015.
FONTCUBERTA, Mar de La noticia. Pistas para percebir El mundo. Barcelona: Paidós,
1993.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São
Paulo: Schwarcz Ltda., 2008. Tradução por Isa Mara Lando.
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Oriente, Ocidente e Ocidentalização:
Discutindo Conceitos. Revista da Faculdade do Seridó, Currais Novos, RN, v. 1, n. 0, p.1-22,
jan. 2006. Disponível em:
<http://www.faculdadedoserido.com.br/revista/v1_n0/helder_alexandre_medeiros_de_maced
o.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2015.
MCCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: A mídia e a opinião pública. 1. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2009. Tradução por Jacques A. Wainberg.
PIRES, Paulo Sérgio. Difíceis delimitações no ‘jornalismo humorístico’. 2010. Disponível
em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/dificeis-delimitacoes-no-
jornalismo-humoristico/>. Acesso em: 13 nov. 2015.

ANEXOS
ANEXO A – Capa da edição “dos Sobreviventes” do Charlie Hebdo
A capa da edição publicada em 14 de janeiro de 2015 ilustrava o profeta Maomé com a placa “Je Suis Charlie/Eu
sou Charlie” e uma chamada em francês que diz “Tudo está perdoado”.

ANEXO B - Capas dos Jornais Analisados

ANEXO C – Artigo: Perseguição aos Muçulmanos e ao Islã
Artigo desenvolvido por Hussein Mohamad Taha, pós-graduado em Geopolítica e Relações
Internacionais, para o portal Oriente Mídia em 27 de novembro de 2013. No texto, o autor
demonstra sua insatisfação com o tratamento que a religião islâmica é retratada pela Mídia,
citando as caricaturas que foram publicadas pelo Charlie Hebdo.
Perseguição aos Muçulmanos e ao Islã
O Islamismo é a religião que mais cresceu nas últimas duas décadas duplicando o
número de fiéis nesse período e ainda cresce. Esse fato está incomodando a muitos e gerando
uma propaganda de desconstrução do Islamismo.
Como se não bastasse a divulgação de mentiras como a submissão de mulheres, o
casamento de crianças com adultos, insinuações que os muçulmanos são terroristas, entre outras,
estão agora denegrindo a imagem do Profeta Mohammad (Deus o abençoou e a sua Família e os
saudou) cometendo o crime de reproduzir a fisionomia do Mensageiro de Deus (s.a.a.a.s.).
No Islamismo a reprodução da imagem do Profeta é considerada crime, pois esse fato
pode gerar idolatria e isso não é permitido na Religião Islâmica.
Com um filme mal feito e com charges que mostram o Islamismo como uma religião de
terroristas, de violência e de intolerância, demonstram a total falta de conhecimento aos
preceitos e leis islâmicas.
O Sagrado Alcorão diz que deve haver a tolerância religiosa, o respeito aos outros, o respeito
às mulheres, o respeito às crianças, e principalmente a não violência, a não ser que seja em legitima
defesa. Aí nos perguntamos: O que aconteceria se fizéssemos um filme onde fosse mostrado o
Profeta Jesus (a paz esteja sobre ele) em um casamento com Maria Madalena e com filhos?
O Islamismo respeita o Profeta Jesus (a.s.) e considera sua importância ao trazer a
mensagem da unicidade Divina, pregada por vários profetas como Adão, Abraão, Moisés,
Ismael, Isaque, Noé, José, Jacó, Davi, Salomão, Zacarias (a paz esteja sobre eles). Maria,
escolhida por Deus (Elevado e Exaltado seja), para ser mãe de Seu mensageiro, tem um capítulo
(Surata) no Alcorão em respeito a ela.
Infelizmente, esse respeito não é recíproco, considerando os últimos acontecimentos.
Vemos pastores e soldados queimando o Sagrado Alcorão nos E.U.A., mesquitas profanadas
na França, direitos das mulheres muçulmanas desrespeitados, além de mentiras e desrespeito
ao Profeta (s.a.a.a.a.s) com charges e filmes.
E, quando os muçulmanos se revoltam, reivindicando respeito, são tratados como
vândalos, violentos e radicais, mas faço um questionamento para sua reflexão: Até onde pode

ir a “liberdade de expressão”? Será que em nome desse direito devemos zombar, fazer piadas de
mau gosto, inventar fatos ou divulgar filmes que denigrem a imagem de uma religião pacifica?
A liberdade de expressão é uma ferramenta indispensável para a democracia, mas deve
haver um limite, um limite que deve respeitar a individualidade religiosa e cultural de cada
povo ou nação.
Quando o filme dos Simpsons fez sátiras ao Brasil, os brasileiros protestaram e exigiram
pedidos de desculpas formais. Quando filmes que mostram o profeta Jesus (a.s.) diferente
daquilo que os cristãos acham condizente, solicitam retratação e são atendidos, então por que
não atendem as reivindicações dos muçulmanos?
Outro fato que assusta é que as monarquias absolutistas da região do Oriente Médio, tais
como Arábia Saudita, Bahrein e Qatar, alinhadas aos Estados Unidos, não fizeram qualquer
solicitação ou crítica em relação ao filme, tampouco solicitaram retratação. Já países
considerados inimigos, como Irã, Egito – que agora é governado pela Irmandade Muçulmana –
Síria, Paquistão e Afeganistão fizeram essas solicitações e não foram atendidos, aumentando
ainda mais o desagrado com as potências europeias e estadunidense.
Isso faz com o que a população muçulmana seja ainda mais hostil em relação a esses
países, o que pode gerar consequências à Primavera Árabe, fazendo com que grupos radicais
tentem assumir o poder, alegando que a democracia imposta pelos americanos denigre e difama
o Islamismo.
<Reprodução de texto disponível em: http://www.orientemidia.org/perseguicao-aos-
muculmanos-e-ao-isla/. Acesso em 29/11/2015>

ANEXO D – Matéria: Islamofobia no Brasil: muçulmanas são agredidas com cuspidas e
pedradas
Matéria publicada por Carolina Garcia para o portal Último Segundo do IG em 25 de janeiro
de 2015. O texto relata casos de intolerância religiosa sofridos por mulçumanas em território
brasileiro após os atentados ao jornal satírico francês.
Islamofobia no Brasil: muçulmanas são agredidas com cuspidas e pedradas
Ataques de grupos extremistas pelo mundo despertam onda anti-islã nas ruas do País; leia os relatos
das vítimas
A recente chacina na sede do jornal Charlie Hebdo, em Paris, transformou, para muito
pior, a vida de brasileiras muçulmanas. Religiosas de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso
sofreram violências de diferentes níveis - foram apedrejadas, cuspidas, ignoradas no transporte
público e alvos de piadas maldosas nas ruas -, nos dias seguintes ao ataque em uma onda de
islamofobia que se opõe frontalmente à imagem brasileira de país multireligioso e pacífico.
Um dia após a invasão do jornal parisiense, os ataques ganharam força similar aos
milhares de compartilhamentos “Je suis Charlie” nas redes sociais. A Mesquita Brasil, maior
templo da religião no País, amanheceu pichada na capital paulista. Horas depois, no interior de
Minas Gerais, A.P.B., de 27 anos, foi cuspida por uma pessoa enquanto brincava com o filho
de seis anos no clube da sua cidade. “Assassina! Ninguém quer você aqui”, gritou o agressor.
Assim como em outros ataques diários, A. abaixou a cabeça e ouviu aos xingamentos calada.
Apenas uma semana depois, Sarah Ghuraba, de 27 anos, caminhava para uma consulta
médica na periferia de São Paulo quando sentiu um forte impacto na perna. “Muçulmana
maldita”, disse um desconhecido. A frase veio acompanhada com uma grande pedra.
"Alhamdulillah [graças a Deus] pegou na minha perna", pensou a mulher. Ao iG, ela garantiu
que não foi seu primeiro ataque - e imagina que não será o último. “Será que uma muçulmana
brasileira precisa morrer para entenderem que existe islamofobia no Brasil? ”, questionou,
ressaltando que o tema deveria ser tratado com a mesma importância dada aos casos de
xenofobia e homofobia.
Sarah divulgou o ocorrido em sua página do Facebook para alertar outras irmãs que
costumam sair sozinhas porque “cuidamos uma do caminho da outra”. “Recebi muitas
mensagens solidárias, mas também recebi um monte de ameaças. Falaram que eu deveria ter
levado um tijolo na cabeça e outros prometeram terminar o trabalho. É assustador”. Para ela, as
pessoas não conhecem o islã, mas acreditam fielmente que é uma religião de terroristas e
assassinos. “O problema são as pessoas mais desinformadas, que desconhecem nossa religião
e formam opinião pelo que assistem na televisão”, avaliou A.

Halimah Farah, de 26 anos, aderiu ao islamismo há um ano, mas já coleciona
experiências de intolerância religiosa em Cuiabá, no Mato Grosso. Apedrejada em abril do ano
passado, à época do sequestro de 276 alunas na Nigéria, protagonizado pelo grupo extremista
Boko Haram, a vendedora entrou em estado de alerta após a chacina em Paris. Uma corriqueira
ida à escola para buscar o filho mais velho virou um pesadelo. Halimah e os pequenos Marcelo
e Gabriel, então de 8 e 6 anos, viraram alvos da ignorância.
“Só abaixei a cabeça, protegi meus filhos e saí correndo. Daquela vez foram pedras,
amanhã pode ser um tiro ou atropelamento”, disse ela, comentando que Marcelo chegou a ser
atingido na cintura. O episódio marcou a família ao ponto de a vendedora desistir de caminhar
400 metros com o filho até a escola novamente. A saída foi contratar o serviço de van para
evitar “toda a provação e provocação” nas ruas.
Olhares tortos, piadas e ‘Namastê’
A., Sarah e Hamilah têm endereços diferentes, mas em comum carregam as crenças no
profeta Muhammad (Maomé) e despertam a atenção nas ruas pelas vestes hijabs e abayas, os
véus e túnicas que cobrem o corpo, que é sempre guardado aos maridos, como Allah [Deus, em
árabe] orientou no sagrado livro Alcorão. "A beleza da mulher muçulmana é a sua fé, não as
características externas", pondera Halimah. Caminhar pelas ruas e lidar com olhares tortos já
faz parte do cotidiano de muçulmanas, e muitas vezes, não é mais percebido. Eles só
incomodam quando acompanham barulhos e gritos de Insha'Allah [se Alá quiser], que ficaram
famosos na novela “O Clone”, produzida pela TV Globo, em 2001.
O trio acredita que as pesadas críticas contra ao islamismo são reflexos da
desinformação da população. “Muitos não sabem que brasileiros podem aderir ao islã. Muitos
pensam que só árabes são muçulmanos”, contou A., convertida há dez anos e que ainda estuda
a religião para se tornar uma melhor divulgadora do islamismo. Ela relatou que foi confundida
inúmeras vezes como estrangeira por usar o véu. “Sempre recebo Namastê [saudação usada por
budistas] ou sou atendida com um português extremamente lento. Aviso que sou brasileira e
ficam chocados. Já até perguntaram se eu estava virando uma mulher-bomba. ”
Sarah falou que a curiosidade na rua não incomoda e que até gosta quando
desconhecidos perguntam educadamente sobre suas vestes. Afinal, segundo todas as
entrevistadas, a pergunta pode ser uma abertura para o ensino do verdadeiro islamismo. “O islã
é uma religião monoteísta. Nós amamos Jesus Cristo e esperamos o seu retorno. Maria, a mãe
de Jesus, é uma das cinco mulheres mais importantes no paraíso. Quem fala que o islamismo é

terrorismo deveria conviver conosco”, sugeriu Sarah, revelando que conceitos básicos do
cristianismo são respeitados pelos seguidores de Maomé.
Segundo ela, que dá aulas de teatro em uma escola a jovens do Jardim Ibirapuera,
periferia paulistana, se a sua religião pregasse apenas o terrorismo, o mundo seria tomado pelo
caos e guerra. “Somos 1 bilhão pelo mundo. Islã é paz, sossego e felicidade”, explicou com tom
alegre na voz. A professora criticou ainda o radicalismo no Oriente Médio, pois isso mancha a
comunidade. E completou: “O que eles fazem é proibido e chega a ser um haraam [pecado]”.
Preconceito dentro e fora de casa
Escolher o islamismo como nova religião foi uma afronta para as três famílias católicas.
Tanto Halimah como A. conheceram os ensinamentos do profeta ainda muito jovens, com 12 e
17 anos, respectivamente, pelos amigos da escola. Já Sarah deixou os estudos para virar freira
há quatro anos por não ter respostas sobre o Alcorão das lideranças na igreja. As três
encontraram forte resistência e preconceito dentro de casa.
A., por exemplo, começou a usar o véu e quase foi proibida pela mãe de prestar a
segunda fase do vestibular. O momento não era o mais apropriado, ela reconheceu. O atentado
de 11 de setembro havia acabado de completar um ano. “Foi o momento mais difícil para ser
uma muçulmana. ”
Aos poucos, as três conquistaram os respeitos dos familiares mais próximos e cortaram
a relação com outros que ainda as descriminam. “O sheik me ensinou a lidar com a rejeição da
minha família. Quando ela reclamava do véu ou das orações, eu a abraçava. Nunca rebatia.
Allah não estima agressores. Mostrei para a minha família como o islã realmente é. Os mais
próximos aprenderam e hoje respeitam”, comemorou A.
Quando a submissão e os abraços não encerram as críticas, a solução é se afastar. "Eu
até ria no começo, quando falavam que eu estava louca e tinha virado terrorista. Mas cansei de
ouvir isso. A muçulmana enfrenta o pior dentro e fora de casa", desabafou Halimah.
<Reprodução de texto disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-01-
25/islamofobia-no-brasil-muculmanas-sao-agredidas-com-cuspidas-e-pedradas.html. Acesso
em 29/11/2015>
