O Feiticeiro e o Pássaro da Morte Frank Pires
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O FEITICEIRO
E O
PÁSSARO DA MORTE
Frank Pires
2012
6
DEDICATÓRIA
Dedico este livro a minha esposa Elziane Pires
Teixeira, companheira e amiga de todas as horas. Aos meus
filhos, Wesley, Palloma, Matheus, Marcela e Vitória. Amo
vocês! A meus pais Francisco e Sirley, meu amor e meu
respeito eterno a vocês. E meus irmãos, Marcelo e Cristiane
que são parte de mim para todo o sempre.
Frank Pires.
7
DEDICATÓRIA ESPECIAL
À memória de meu irmão, o grande guerreiro
André Pires Teixeira.
(1974-1993)
8
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor Deus Todo Poderoso, por sua infinita
bondade e compaixão em minha vida. Agradeço também a
todos, parentes e amigos, que acreditaram e apoiaram a
realização desse sonho. E por fim, agradeço de todo o coração
ao amigo e Jornalista Walrimar Santos, Assessor de
Comunicação da Polícia Civil do Estado do Pará. Muito
obrigado.
9
SUMÁRIO
1. Dedicatória ...........................................................6
2. Nota do autor........................................................12
3. O ritual das cabeças..............................................17
4. A grande festa......................................................29
5. Os Maués..............................................................40
6. As sete provas.......................................................47
7. O Ataque..............................................................64
8. O Santuário...........................................................74
9. A vingança............................................................83
10. A morte.................................................................96
11. A transformação...................................................103
12. A redenção...........................................................113
10
“Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da
floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do
homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que
pudesse crer ter primeiro entrado, aonde nenhum importuno viesse
interpor-se entre mim e a natureza.” (J.J. Rousseau – O Encanto
da Solidão)
11
“Só depois que a última árvore for derrubada, o último peixe for
morto, o último rio envenenado, vocês irão perceber que dinheiro
não se come” (provérbio indígena)
12
☼
◊
NOTA DO AUTOR
◊
“Viva sua vida de forma que o medo da morte nunca possa
entrar em seu coração.” (Provérbio indígena)
É sempre um imenso prazer escrever sobre a rica e
bela cultura amazônica, poder mostrar suas riquezas através
das palavras, sentindo a responsabilidade de alertar para a
preservação do nosso meio ambiente.
“O conjunto de condições, leis, influências, interações
de ordem física, química e biológica, que permita, obriga e
rege a vida em todas as suas formas”. Assim a lei brasileira
define o meio ambiente.
A Constituição o chama de “um bem de uso do povo”.
13
A Amazônia é um imenso e complexo ecossistema,
provavelmente o mais variado e rico do nosso planeta.
Nenhuma outra vegetação do mundo possui tanta
variedade de espécies como a floresta amazônica; nenhuma
outra bacia hidrográfica possui tantos tipos diferentes de
peixes. Podemos assim, dizer o mesmo, em relação aos
pássaros, insetos e outros seres da nossa fauna.
Lenda, ficção, aventura, realidade, romance, mistério,
terror, ação: a Amazônia é assim.
O livro “O Feiticeiro e o Pássaro da morte”, mostra
uma porção mágica de encantamento da Amazônia, com uma
abordagem na vida e costumes dos nossos índios, mexendo
com o imaginário do leitor, conduzindo-o a uma viagem
através dos séculos, a vasta região banhada pelo belíssimo rio
Tapajós, revelando ao leitor a saga de um índio solitário e
obcecado pela missão de proteger a natureza e perseguir os
destruidores da floresta, desvendando como nunca antes a
origem do mito, revelando a face de um herói originalmente
do folclore brasileiro.
No atual território brasileiro, já existiram mais de cinco
milhões de indígenas antes da colonização, hoje subsistem
pouco mais de 340 mil, de aproximadamente 220 etnias,
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concentrados principalmente na Amazônia. Esses povos lutam
todos os dias corajosamente para sobreviver e conservar suas
terras, seus costumes e suas crenças, pois na história do nosso
querido País, os mais prejudicados foram justamente eles que
chegaram aqui primeiro.
Nessa batalha desleal, os povos indígenas ainda são
vítimas da escravidão, mortalidade infantil e doenças, como
malária, gripe, febre amarela, hepatite e também a AIDS. Se
não bastasse, também são vítimas da desagregação social e da
perda da identidade cultural, responsáveis pelo seu decréscimo
histórico, além de sofrerem nas mãos de traficantes de drogas,
madeira e biodiversidade.
A natureza sempre encontrará formas de lutar e reagir
aos ataques cometidos contra suas riquezas. E o Grande
Espírito da Floresta continuará sua luta contra aqueles que
insistem em destruir, degradar, desmatar e matar em nome da
ambição desenfreada e da ganância cega.
Seja você leitor, um aliado nessa guerra, seja um
guerreiro do Grande Espírito em defesa do nosso meio
ambiente. Que esta obra possa ser a voz de todos os “povos da
floresta”, não somente do Pará e da Amazônia, mas sim de
todo esse imenso Brasil, além daqueles que lutam
15
incansavelmente para que todos os homens possam ser um dia
ecologicamente corretos.
Frank Pires
16
Selva amazônica, Estado do Pará, meados do século XVII.
17
☼
◊
O RITUAL DAS CABEÇAS
◊
"As leis dos homens mudam de acordo com o seu
conhecimento e compreensão. Apenas as leis do Espírito
permanecem sempre as mesmas." (Provérbio indígena)
No curso superior do rio Tapajós, homens e mulheres
andavam completamente nus; com as cabeças raspadas e
pintadas, tendo no alto apenas um tufo de cabelos.
Os Munduruku já estavam prontos para celebrar a
grande festa, aguardando apenas a chegada dos seus
destemidos guerreiros, que há dias partiram para enfrentar os
índios inimigos, os Maués.
Tribo valente e destemida, que habitava a outra
margem do rio Tapajós, os Maués eram inimigos mortais dos
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Munduruku há muito tempo, por isso a peleja entre eles era
constante e habitual.
Os Munduruku, descendentes mesclados dos Tupi,
eram os mais temidos índios da região. Chamados de “os
cortadores de cabeça”, após matá-los, decapitavam os rivais.
Eram os mais hábeis no ornato de penas;
extremamente vaidosos, durante as festas enfeitavam a cabeça
com o cocar de penas, com borlas de palha que caíam ao
longo das faces.
Seus vestiários eram pomposos, com enfeites, pulseiras
e na cintura um saiote com quatro caldas de araras, pássaros
muito importantes para eles; criavam araras na aldeia, para
obterem a plumagem de seus enfeites.
Com todo o cerimonial preparado, o tuxaua Jarí, estava
ansioso para receber aqueles que seriam homenageados.
__ Os guerreiros já estão chegando, pude ver alguns subindo o
curso do rio, logo eles estarão aqui, grande tuxaua. __ avisou
o mensageiro ao grande chefe que já estava impaciente.
Jarí apressou-se então para avisar ao povo. Queria uma
festa inesquecível, afinal homenagearia também seu
primogênito Jurupari, líder dos guerreiros Munduruku.
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__ Preparem-se para os cânticos e as danças! Vamos receber
nossos guerreiros com festa! __ ordenou o tuxaua, causando
grande alvoroço na aldeia.
O grande combate com os Maués finalmente
terminara, os guerreiros Munduruku subiam lentamente o
curso do caudaloso rio Tapajós. Sete deles foram à frente e
apresentaram-se ao tuxaua, entoando cânticos de vitória. Nas
mãos de cada um, cabeças cortadas de guerreiros Maués,
seguras por varas que entravam pela boca, passando pelo
pescoço, As cabeças eram empunhadas para o povo ver e se
alegrar.
À frente do grupo Jurupari, “o filho do sol”, como era
chamado pelos outros guerreiros se pôs diante de seu pai Jarí e
apresentou os louros da batalha.
__ Meu pai e grande tuxaua. Aqui estamos de volta da grande
batalha contra os nossos inimigos.
__ O que tu me trazes, Jurupari? O que tens para ofertar ao teu
povo que está diante de ti? __ perguntou o chefe, orgulhoso de
ver o grande guerreiro que o filho se tornara.
20
__ Trago muitas alegrias. __ referindo-se a quantidade de
Maués mortos no combate. __ E trago também tristezas, meu
pai. Perdoe-me e que meu povo não me despreze.
Visivelmente abatido ao falar das mortes dos amigos,
Jurupari se ajoelhou em reverência aos guerreiros que
tombaram durante a peleja, profundamente comovidos pelas
famílias que chorariam seus mortos, um gesto de respeito
seguido por todos os outros guerreiros. No entanto, ele já era
um guerreiro experiente e sabia que mortes eram inevitáveis
em guerras, não seria a primeira nem a última vez que
encararia a morte no campo de batalha.
__ Levantem-se guerreiros! Maiores são as alegrias que as
tristezas. Agora é hora da grande festa, depois choraremos os
mortos e as viúvas serão consoladas. __ ordenou o chefe.
21
●
Quando Jarí anunciou o início dos festejos, Jurupari
recebeu um forte abraço de Jacamim, seu irmão mais novo.
Apesar de sua baixa estatura, motivo pelo qual recebera o
nome “Jacamim”, “aquele que tem a cabeça pequena”, o
filho caçula do tuxaua, tinha pensamentos grandes e uma
imensa vontade de um dia ser respeitado como o irmão.
__ Meu irmão! Que saudade! Que bom que voltou, eu estava
tão preocupado. __ falou Jacamim ao ver seu herói de volta
são e salvo.
__ O que foi? Achou que eu não voltaria? __ brincou Jurupari.
__ É que eu fico com medo dessas guerras.__ respondeu o
jovem Munduruku.
__ Medo? Pois te digo que não há Maués suficientes nesta
terra para nos derrotar. Não confia em mim?
__ É claro que confio.
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__ Do que tens medo então?
__ Tenho medo de te perder, perder nosso pai, nossa mãe...
__ Você não vai perder ninguém e ainda será o maior
guerreiro que este rio já viu.
__ Não entendo porque temos que nos matar uns aos outros.
Por que precisamos enfrentar os Maués, o que eles fizeram a
nós? Gostaria que parassem todas as lutas e vivêssemos todos
em paz. Assim, eu não teria mais medo. __ as palavras de
Jacamim penetraram como uma flecha o coração de Jurupari.
Mas o guerreiro dizia a si mesmo que o irmão não sabia o que
o que estava falando. É claro que tinham que lutar.
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O guerreiro olhou nos olhos do irmão e disse-lhe:
__ Você tem um grande espírito irmão. Mas é muito jovem
para entender a importância de ser um guerreiro, então não
diga o que não entende.
__ Por que não tenta me explicar então? Caiuá disse que não
precisamos nos matar; que nossos verdadeiros inimigos não
são os Maués. Ele me disse que o “olho que tudo vê”, o
Pássaro Sagrado vai nos mostrar o novo inimigo__ insistiu
Jacamim.
__ Caiuá não sabe nada de guerras. É apenas um Pajé, um
feiticeiro muito velho. Quer que eu explique porque lutamos?
Pois então vou te explicar: Lutamos para proteger nosso povo,
nossas terras, nossa caça, nosso rio, nossa comida e para
proteger inclusive Caiuá, que fala muita bobagem. Por isso
lutamos. Não temos e não precisamos ter medo de nada, de
ninguém e muito menos da morte. Eu lutarei até com a morte
se preciso for para te proteger.
__ Se é assim fico mais aliviado. __ disse-lhe Jacamim.
__ E quando é que você vai ter coragem de participar do ritual
dos guerreiros com a gente? __ perguntou Jurupari.
__ Quando eu for um guerreiro.
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__ Não vai ser preciso esperar tanto, você vai hoje comigo.
__ Posso participar então?
__ Não. Mas pode olhar. __ respondeu Jurupari ao irmão em
meio a risadas.
O jovem Jacamim tinha apenas dezessete anos e apesar
de admirar os atos heróicos do pai de do irmão, tinha uma
natureza pacífica, não gostava nem um pouco de guerras e
sabia quanta tristeza e sofrimento uma guerra podia trazer a
todos, tanto Munduruku como Maués.
Foram então para o local do ritual e enquanto Jacamim
ascendia o fogo, Jurupari e os outros arrancavam os dentes dos
vencidos.
Extraíram os olhos e finalmente os ossos, tudo sob o
olhar atento e curioso do jovem aprendiz.
No ritual da mumificação das cabeças, os Munduruku
eram excelentes cirurgiões. Reviraram as cabeças pelo
avesso, usando facas de taquara para cortar e retirar toda a
musculatura mergulhando então o resto em óleo de andiroba.
Recomporam então as cabeças, empalhando-as e
incrivelmente as feições dos Maués permaneceram fiéis.
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Enquanto Jurupari colocava cabeça por cabeça numa
espécie de grelha para secar, os outros retiravam o
enchimento, fazendo com que a contração fosse total.
__ Jacamim, traga as agulhas. __ pediu Jurupari, ao que
imediatamente o jovem obedeceu.
Com as agulhas de taquara e tecido de algodão,
costuraram os beiços, deixando longos fios pendurados,
matizando-os com o urucum.
Devido a fumaça, as cabeças tomaram a cor negra e
ficaram reduzidas ao tamanho da cabeça de um macaco
comum.
Uma a uma as cabeças foram atravessadas por um
longo cordão de baixo para cima e foram finalmente
penduradas às costas dos vencedores.
Estavam prontos os pariuá-á.
Jurupari e os guerreiros se puseram a dançar e cantar
diante do olhar encantado de Jacamim.
Quando terminaram, Jurupari levou os pariuá-á a
maloca de Caiuá, o tão temido pajé, que já aguardava sua
chegada.
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Diante do grande feiticeiro, que nunca em hipótese
alguma tirava sua máscara, o guerreiro cortador de cabeças
prestou reverência.
Caiuá olhou fixamente o rosto do filho do sol.
__ Entre, jovem Jurupari. Eu o aguardava ansioso. __ disse o
feiticeiro sem tirar os olhos dos pariuá-á.
__ Eu trouxe as cabeças dos nossos inimigos.
__ O que o aflige, guerreiro? Sinto que tua alma está
angustiada. __ ao ouvir isto Jurupari mostrou-se agressivo.
__ Nada! Não há nada me afligindo. Porque você está dizendo
isso? Porque vive inventando essas coisas, enchendo a cabeça
de meu irmão com bobagens?
__ Acha mesmo que eu sou louco, velho e que falo bobagens?
Você não pode mentir pra mim Jurupari, eu vejo a alma dos
homens e vejo que a sua está manchada. E essa mancha está te
matando guerreiro.
__ Já disse que não há nada comigo. Quero apenas festejar
com meu povo a vitória sobre os malditos Maués. __
desabafou Jurupari.
__ Hum. Malditos Maués? Odeia tanto assim os Maués,
jovem guerreiro?
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__ É claro que sim! Os Maués são nossos maiores inimigos.
__ E você não gostaria de ter nascido um deles?__ Caiuá
estava conseguindo deixar o guerreiro nervoso.
__ Que pergunta absurda! __ gritou Jurupari.
__ Responda a pergunta, filho do sol.
__ Espero que isso responda essa maldita pergunta. __ então
jogou as cabeças aos pés do feiticeiro.
__ Jurupari. Você precisa entender que o nosso maior inimigo
não está nas aldeias dos Maués.
__ Como assim? Que outro inimigo nós temos?
__ Existe um povo desconhecido. Uma tribo de demônios que
cospem fogo. Inimigos dos Munduruku, inimigos dos Maués,
e de todos os povos da grande selva. Um dia eles virão para
destruir nossos sonhos, nossa casa, nosso povo.__ Jurupari
ouvia atento.__ E você meu jovem, você não desistirá e unirá
sua alma ao Pássaro Sagrado e cumprirá o seu destino.
__ E nós? Nós venceremos esses demônios? __ perguntou o
guerreiro, ainda descrente daquilo tudo que ouvira.
__ Nossa guerra com eles nunca terá fim, e você ainda sofrerá
muito por aqueles que você fez sofrer.
__ E o que acontecerá com nosso povo?
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__ Eu vi você nascer, vi seu pai nascer e vi o pai de seu pai
nascer. Olhe pra mim Jurupari. Ainda verei muitos
Munduruku nascerem e Tupã triunfar sobre os maus, pois eu
sempre existirei. Sabe quem me mostrou? O olho que tudo vê.
Isso mesmo guerreiro incrédulo: o Pássaro Sagrado. Agora vá
e cumpra seu destino, me deixe em paz. __ as palavras do pajé
deixaram o guerreiro em silêncio por alguns segundos e antes
de sair ainda fez um pedido a Caiuá.
__ Mostre-me o teu rosto! Tire a máscara. __ o feiticeiro
então, diante do pedido de Jurupari, soltou gargalhadas,
zombando do pedido do jovem, que mais uma vez aborreceu-
se e foi embora.
29
☼
◊
A GRANDE FESTA
◊
"Que os meus inimigos sejam fortes e corajosos, para que ao
ser vencido não me sinta envergonhado." (Provérbio
indígena)
A aldeia então se dividiu em três famílias: a preta
(iasum paguarte), a vermelha (ipacacate) e a branca (arichá).
Nos enfeites da primeira família predominava o azul; nos da
segunda o vermelho; na terceira o amarelo.
Durante a festa todos se confraternizavam com os
guerreiros, que orgulhosos exibiam seus pariuá-á, as cabeças
penduradas às costas. Os feridos e as viúvas foram aclamados
pelo povo e agraciados pelo tuxaua com uma cinta de algodão
preparada pelo próprio chefe e enfeitada com os dentes
extraídos dos inimigos.
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Toda a tribo assistiu atentamente quando Jarí sentou-se
para preparar as cintas.
Num certo momento, Jurupari tomou a frente e
mandou os guerreiros formarem-se em alas, para a
condecoração. Ele era respeitado por toda a aldeia, não só por
ser o sucessor de Jarí, mas porque sabiam o grande guerreiro
que ele era, que estava pronto para morrer por eles.
Enquanto os bravos guerreiros eram homenageados, o
povo aclamava ao Pássaro Sagrado, o Urutau, uma espécie de
ave de canto sombrio, que assustava a qualquer um dentro da
selva. Seu canto mais parece um lamento e os Munduruku o
tinham como um deus.
Durante o ritual sagrado, formou-se então uma grande
passeata, indo à frente as viúvas agraciadas, que choravam de
porta em porta a perda dos maridos, enquanto toda a aldeia
cantava canções tristes e de lamentações, batendo forte com os
pés no chão, produzindo um ruído que ao longe se ouvia.
No dia seguinte, ainda como parte do ritual, o tuxaua
cortou os cabelos de todos os feridos e a festa continuou por
seis dias, ou seja, tantos dias quanto foram os feridos a
recompensar.
31
Quando os festejos terminaram, Jarí chamou o filho
mais velho para uma conversa em particular.
Ele queria saber se Jurupari já havia escolhido uma
esposa e tentou lhe falar sobre a importância do casamento,
assunto que Jurupari mantinha bem longe de sua realidade.
__ Estou velho, meu filho. Logo morrerei. Teu irmão ainda é
muito jovem e...
__ Pai. Não quero falar nisso agora. __interrompeu o
guerreiro.
__ Precisamos falar sobre isso sim. __ respondeu o tuxaua ao
filho relutante.
__ Não me casarei para agradar ninguém, pai.
__ Sei por que não quer falar sobre isso. Maldição! É isso que
você vai trazer sobre ti e sobre nosso povo.
__ Do que o senhor está falando? Que maldição é essa que eu
vou trazer? Não sei de nenhuma maldição.
__ Estou falando da maldita filha dos Maués que você insiste
em sonhar todas as noites. Por que meu filho? Com tantas
moças aqui pra você escolher. Mas você tinha que amaldiçoar
nosso povo. Tenho vergonha e medo que alguém descubra e
você perca a confiança e o respeito de nossa gente.
32
__ Como você sabe disso? Alguém mais sabe disso? __
perguntou Jurupari preocupado.
__ Eu sei de tudo o que se passa com meu povo. Você não
precisa roubar essa moça para provar que é um grande
guerreiro meu filho. Nosso povo respeita você, seguem você e
não fazem isso por que és meu filho e sim por que te admiram.
Não estrague isso meu filho.
__ Eu não quero provar nada pra ninguém. O que eu faço, faço
por mim e por mais ninguém.
__ Mesmo contra minha vontade?__ perguntou Jarí, como que
testando a lealdade do filho.
__ Pai, eu não quero decepcioná-lo. Mas eu já desci o rio
várias vezes só para olhá-la. Eu sei que ela já me viu e à noite
o seu olhar me procura na escuridão da mata. Eu a quero e a
terei, pode acreditar nisso, ela será minha, nem que...__
Jurupari parou de falar e ficou pensativo.
__ Nem que o quê, Jurupari? __ perguntou Jarí, como que
desfiando o filho.
__ Nem que eu tenha que entrar lá e roubá-la de Piatã. E...
Vamos mudar de assunto. Isso é assunto meu e eu vou
resolver
33
__ Meu filho, Caiuá me falou que um novo inimigo virá.
Estou preocupado com isso. __Jarí Pôs as mãos nos ombros
do filho, entristecendo o semblante do rosto, enquanto falava
da nova profecia do pajé.
__ Pai... Quantas vezes eu preciso dizer que Caiuá está velho e
tem delírios. Não acredito num homem que se esconde atrás
de uma máscara.
__ Não fale assim meu filho. Caiuá é um grande feiticeiro. O
pai do meu pai nasceu e Caiuá já existia, meu pai nasceu e
Caiuá já existia, eu nasci e hoje estou velho e Caiuá não. Ele
sempre existirá e Tupã está com ele, o que ele fala, eu
acredito.
__ Pai, nossos guerreiros estão preparados para enfrentar
qualquer inimigo que a imaginação de Caiuá possa criar. Não
se preocupe. __ contestou Jurupari, demonstrando descrença
ao que acreditava serem delírios do Pajé.
__ Você zomba de nossas crenças Jurupari. Um dia o Grande
Espírito irá te mostrar que o que eu digo é a verdade. Cuidado
com o seu orgulho, ele pode envenenar seu espírito.
Naquela noite, Jarí não conseguiria dormir preocupado
com a profecia do pajé. Sem o tuxaua imaginar, atrás da
34
maloca o jovem Jacamim ouvira toda a conversa que teve com
Jurupari.
35
●
Jurupari caminhou na mata durante horas, depois se
sentou a beira de um igarapé e se pôs a pensar no que fazer. A
moça que roubara seu coração era Janaína, filha de Piatã, o
temido chefe dos Maués. Ela seria disputada pelos maiores
guerreiros da aldeia inimiga, juntamente com outras moças
solteiras, na famosa festa das “veaperiás”, a festa das
tucandeiras, uma espécie de formiga negra avermelhada, do
tamanho de um marimbondo, as tucandeiras eram festejadas
todo ano pelos Maués, por ocasião da grande colheita do
guaraná.
Seria a oportunidade ideal para Jurupari roubar
Janaína, embora ele ainda não soubesse que ela seria uma das
moças disputadas.
Não havia ato de bravura e valentia maior, do que
invadir a aldeia inimiga e raptar uma jovem para se casar com
ela. Imagine a filha do próprio tuxaua.
36
O homem que cometia tal feito era aclamado pelos
guerreiros de sua tribo e conseqüentemente jurado de morte
pelos inimigos, o que para Jurupari não seria novidade, já
estava jurado de morte mesmo. A cabeça do “cortador de
cabeças” já estava a prêmio há tempos, ele era sem dúvida o
inimigo mais perseguido por aldeias dos Maués espalhadas
por toda aquela região.
“Os festejos dos Maués começam amanhã, preciso
aproveitar que todos estarão ocupados e raptar Janaína.
Depois que ela for minha, nenhum homem se atreverá a tentar
pegá-la de volta.”
Pensou o líder Munduruku, convicto da idéia de raptar
a moça, tentando bolar um jeito de entrar lá e ainda continuar
vivo.
O calor da noite o levou pra dentro da água fria do
igarapé, onde o guerreiro pôde relaxar um pouco sem desviar
seus pensamentos da loucura que estava para fazer. De repente
ele levantou-se decidido: Precisava vê-la, mesmo que de
longe.
Jurupari conhecia a floresta como ninguém, todos os
caminhos, todos os atalhos, e quando o dia estava para
amanhecer ele já estava observando de dentro da mata a aldeia
37
dos Maués. Com todo o cuidado para não ser percebido ele
procurou, mas não a encontrou.
Não conseguiu ver a moça e o céu ainda estava escuro.
Ele imitou uma coruja, ela entendia o sinal e se ela estivesse
por perto apareceria com toda a certeza e ele a veria mesmo
que de longe. Mas dessa vez a jovem índia não apareceu.
Jurupari ficou nitidamente desapontado, repetia o som
da coruja e nada. Quando de repente ecoou na mata o canto de
um pássaro, era um canto lindo. O cantar mais belo de todos
os pássaros. O canto do uirapuru. Jurupari ouviu em silêncio e
esperou. Então ouviu um barulho vindo de trás e virou-se. De
dentro da escuridão ela surgiu linda, com um sorriso radiante,
fazendo o guerreiro “cortador de cabeças”, parecer um
menino.
__ Pensa que só você sabe imitar pássaros? __ falou-lhe
baixinho, quase que sussurrando. __ mas Jurupari não tinha
palavras, sua garganta estava seca, não conseguia nem sequer
piscar os olhos, estava literalmente enfeitiçado e pela primeira
vez, os dois estavam tão próximos, ele tentou falar, mas não
conseguiu. Não sabia o que dizer.
__ Eu...
38
__ Não precisa dizer nada.__ interrompeu Janaína. __ Vim lhe
pedir que não se arrisque mais para me ver. O meu povo quer
matar você.
__ Eu farei qualquer coisa por você. Venha comigo. __ disse
Jurupari.
__ Não! Não posso fazer isso com meus pais, com meu povo.
Não desonre o nosso amor. __ implorou Janaína.
__ É por esse amor que farei isso. É pelo nosso amor que
sempre vou lutar por você.
__ Nosso amor é impossível guerreiro. Somos inimigos.
__ Eu não sou teu inimigo. Eu... Eu te amo. __ disse o
guerreiro vencido.
__ Mas não ama o meu povo.__ e continuou.__ Assim como
meu povo não ama o teu povo. Nunca haverá paz, então nunca
ficaremos juntos. Desista, antes que seja tarde.
__ Já disse que farei qualquer... __ enquanto tentava explicar
seu amor, Jurupari foi interrompido por Janaína em tom de
despedida:
__ Não fará nada. Meu pai nunca aceitará uma traição assim,
por isso, vá embora.
39
Jurupari se aproximou, tocou seus cabelos e alisou seu
rosto, sem conseguir parar de olhar para seus lábios que
brilhavam refletindo a luz da lua no molhado de seu salivar.
Lábios tão convidativos e irresistíveis que num ímpeto
ele a puxou e a beijou, deixando Janaína sem condições de
esboçar qualquer reação. Parecia um sonho. Era um sonho que
ele queria que nunca tivesse fim.
__ Preciso ir.__ ela falou, afastando-o e deixando-o aflito.
__ Fuja comigo, por favor. __ implorou o guerreiro. __ Vamos
embora daqui, procurar um novo caminho, uma nova terra.
Seremos só você e eu: o sol e a lua.
__ Não posso. Não seria correto. Devo honrar meus pais e o
meu povo. Siga seu destino, eu seguirei o meu.
__ Não desistirei de você Janaína. Lutarei por você até o fim.
__ Não consegue ver que mais guerras só me magoariam
mais, só nos afastaria mais um do outro. Não quero mais ver
meu povo morrendo em suas mãos. Não quero ver você
morrer também e nem os que você ama, pois são importantes
pra você. __ Depois de dizer essas palavras em meio às
lágrimas, a jovem correu, o deixando lá, paralisado,
embriagado de paixão, vendo-a sumir na mata.
40
☼
◊
OS MAUÉS
◊
“Os pensamentos são como flechas, uma vez lançadas
alcançam o seu alvo. Seja cauteloso ou poderá um dia ser sua
própria vítima.” (Provérbio indígena)
Cultivar o guaraná. Essa era a principal atividade dos
vizinhos hostis dos Munduruku.
Os povos Maués desfrutavam das águas tanto do rio
Tapajós como do rio Madeira.
Na aldeia tudo estava pronto para a tão esperada festa
das veaperiás. Apesar da grande quantidade de mortos e
feridos, em conseqüência da última peleja contra o inimigo
vizinho, comemorariam a colheita do guaraná normalmente.
Para os Maués, o guaraná tinha uma grande
importância e um significado muito especial. Acreditavam
41
que prolongava a vida e com muito carinho produziam uma
espécie de elixir da longevidade que era saboreado por todos.
Tinham a crença na lenda de que o guaraná havia brotado dos
olhos de um indiozinho morto pelo deus do mal que se
transformou em serpente para matar a criança. Os Maués
então enterraram os olhos do menino e meses depois brotou
um pé de guaraná, um presente de Tupã.
42
Enquanto a aldeia se preparava para o início dos
festejos, Jurupari não fora embora e aguardava escondido na
mata, observando de longe os passos dos Maués, ao mesmo
tempo em que pedia proteção ao Pássaro Sagrado.
“Pássaro Sagrado, tu que conheces o passado, o presente e o
futuro de todos, ajude-me a triunfar e conseguir minha
Janaína.”
Seus pensamentos foram interrompidos pelo som
alguém que caminhava na mata e estava bem próximo. O
guerreiro então, como uma onça, se preparou para atacar o
suposto inimigo empunhando sua faca e esperou.
O vulto estava cada vez mais próximo fazendo com
Jurupari segurasse mais firme a faca afiadíssima, respirou
fundo e segurou o ar nos pulmões.
Jurupari sabia que qualquer barulho chamaria a
atenção dos Maués e isso significaria sua sentença.
O guerreiro procurou manter-se em silêncio e aguardar
o desconhecido que se aproximava. De repente o intruso
passou pela árvore e Jurupari o atacou.
43
O guerreiro rapidamente tapou sua boca e quando ia
desferir o primeiro golpe certeiro, olhou em seu rosto e se
espantou. Era Jacamim.
O irmão o seguira o tempo todo desde que ouvira a
conversa dele com o pai. Estava pálido e tremendo sem parar.
Dava pra ver a expressão da morte em seus olhos.
__ Jacamim, o que está fazendo aqui? Você perdeu o juízo?
Quase mato meu próprio irmão. Volte já pra casa!__
desabafou Jurupari.
__ Não. Vou ficar aqui e te proteger. __ rebateu Jacamim, sem
se importar com as ordens do irmão.
__ Não diga bobagens. Volte agora! Aqui não é lugar para
crianças. __ ordenou mais uma vez o guerreiro, sem sucesso.
__ Eu não sou criança e sei muito bem o que você veio fazer
aqui.
__ Sabe o quê? __ perguntou surpreso Jurupari.
__ Isso mesmo. Eu ouvi toda a conversa que você teve com
nosso pai. Por isso vim te ajudar. __ insistiu Jacamim.
__ Quer ajudar? Então fique quietinho aqui e não se mova.
44
Movido por uma força estranha, Jurupari aproximou-se
da aldeia, escondendo-se por trás da vasta plantação dos
Maués. Mil pensamentos o atormentavam, pensou em desistir,
retroceder, mas já era tarde.
Precisava daquele beijo mais do que tudo. Não havia
guerra, honra ou medo, não havia mais nada, apenas a
lembrança viva dos lábios de Janaína encostados nos seus num
beijo inocente e cheio de descobertas. O guerreiro estava
rendido.
“E se eu fosse lá e pedisse ao..., não, não posso fazer isso.
Jamais me deixariam sair vivo.” __ pensou por um instante.
Jacamim observava do alto de uma grande árvore os
passos do irmão, ao mesmo tempo em que no fundo de seu
coração admirava a coragem de Jurupari, o achava um louco
por tentar ficar com Janaína dessa forma.
De onde vinha tanta bravura, arriscar a vida por uma
mulher, um amor proibido, impossível. Correr um risco
desses, com a possibilidade de perder a posição de guerreiro, o
prestígio, os amigos, o respeito da tribo, perder os pais. Por
um instante o jovem se perguntou: “será que vale a pena?”.
45
Com tantas moças lindas em sua aldeia, pra quê um
desafio tão grande?
Desafiar os Maués, sozinho, parecia uma grande
burrice. Mas ele estava lá e morreria por Jurupari, se fosse
preciso, lutaria, enfrentaria qualquer um que tentasse ferir seu
herói.
46
●
Enquanto Jacamim viajava em seus pensamentos
tentando decifrar a mente do irmão guerreiro, Jurupari foi em
busca do seu sonho suicida. O guerreiro rastejava entre a
vegetação, espreitava, buscando uma forma de se aproximar
cada vez mais sem ser notado, precisava ser um fantasma. E
de onde estava conseguiu ver quando o povo começou se
reunir no centro da aldeia: A festa estava para começar.
Não podia se aproximar muito naquele momento.
Resolveu esperar o início da festa, onde todos estariam
distraídos, envolvidos nas comemorações, para se aproximar e
contemplar sua amada. Por enquanto, sua tentativa de vê-la
era vã.
47
☼
◊
AS SETE PROVAS
◊
“Quanto mais esperto o homem se julga, mais precisa de
proteção divina para defender-se de si mesmo.” (Provérbio
indígena)
Dores intensas, náuseas, inflamações, calafrios, febre e
até a morte. Estas eram algumas das conseqüências das
picadas da tucandeira, mas os Maués pareciam ignorar e a
tratavam como uma divindade.
Admiravam seu estilo de vida e sua sabedoria, diziam
que as tucandeiras compreendem o mundo melhor do que os
homens, pois se reuniam para construir no mundo subterrâneo
enormes palácios, onde acumulavam em depósitos alimentos
necessários para todas durante o inverno.
48
E por essa admiração os Maués faziam a festa anual
de veaperiás, juntamente com a festa da colheita do guaraná
que também já era tradição, com cantos de exaltação lírica
para o trabalho e o amor, e cantos épicos ligados às guerras.
Da maloca de Piatã partiu o primeiro sinal. A este
aviso começou a caçada às formigas venenosas, onde
mulheres e crianças se empenhavam em caçar o maior número
de formigas possíveis. Era uma verdadeira corrida onde o
objetivo era conseguir mais e mais tucandeiras para as provas.
Após a caçada, as formigas foram jogadas num
recipiente com água para ficarem meio que entorpecidas e
somente depois seriam colocadas numa espécie de luva feita
de palha urdida, de modo que incrivelmente, só os ferrões
ficassem para o lado interno da luva.
Então, durante os festejos se realizariam as sete provas
de valentia, onde os grandes guerreiros e os aspirantes a
guerreiro da aldeia participariam.
O teste consistia simplesmente em por uma das mãos
na luva cheia de tucandeiras e agüentar as conseqüências
firmemente. Os casados participavam para mostrar coragem às
esposas, já os solteiros para impressionar uma pretendente,
que o escolheria para marido pela sua bravura.
49
Nas três primeiras provas as formigas, ainda
adormecidas, ficavam em contato com as palmas e as costas
da mão, nas três seguintes, braços e antebraços.
A última prova era a mais impressionante e cruel, pois
as tucandeiras ficavam soltas dentro da luva, que ficava
amarrada na mão do candidato a valente, o tuxaua então
puxava de seu cigarro uma baforada e soprava dentro da luva,
desesperando as formigas e daí por diante só os mais fortes e
valentes suportavam tamanha dor, o que causava grande
euforia na aldeia.
50
●
A noite chegou e uma grande fogueira iluminava a bela
aldeia dos Maués. Jurupari observava o movimento festivo de
longe. De repente viu quando Janaína passou em direção à
maloca de seu pai. Lá estava a belíssima jovem, toda
enfeitada, com adornos e grandes penas. Estava mais linda
ainda.
A festa estava começando: era chegada a grande hora.
O guerreiro Munduruku sabia por que estava ali, mas
ainda não sabia o que fazer para sair dali levando a moça.
Piatã deu o segundo sinal e os cânticos começaram,
com tambores e apitos de taquara anunciando a apresentação
dos candidatos a valente.
Os homens, cada um com seus enfeites de guerreiro,
com adornos, penas e pinturas, formaram uma grande
circunferência em volta da maloca do tuxaua; no círculo
ficaram as mulheres e no centro o chefe com as luvas.
51
Os candidatos se apresentaram para dançar no interior
do círculo, enquanto Jurupari se aproximava mais e se
escondia por trás duma maloca. Foi quando se deu conta do
que estava pra acontecer.
Piatã chamou as moças solteiras que seriam disputadas
pelos candidatos, e no meio delas estava sua amada.
Jurupari tomou um grande susto. Não estava
acreditando no que via: sua amada estava para ser disputada
juntamente com as outras moças e poderia vir a ser de
qualquer um daqueles homens que estavam ali. O que ele
faria?
Então, naquele momento, o maior de todos os
guerreiros Munduruku se desesperou, não podia deixar passar
aquela oportunidade. Seus pensamentos foram interrompidos
pelos gritos da multidão.
O ritual prosseguia e um guerreiro mais afoito se
apresentou ao tuxaua e estendeu o braço, começavam então as
sete provas. Janaína mostrava-se triste e preocupada e Piatã
queria encontrar logo um genro valente para dar continuidade
a sua geração.
52
Um a um os guerreiros se apresentaram para pôr a
coragem à prova. Desistir nem pensar. Além de vergonhoso,
era ultrajante e humilhante um homem desistir antes do
término das provas. Mas as tucandeiras também cumpriam seu
papel muito bem e começaram a se ouvir os gritos.
A sétima prova era a mais cruel. O candidato colocou a
luva, as formigas estavam soltas quando o chefe deu uma
baforada no cigarro e soprou dentro, foi quando o homem
começou uma dança diabólica dando urros e saltos.
O povo gritava e vibrava. Jurupari estava pasmo,
impressionado com aquilo, pois já havia sido picado por uma
tucandeira e sabia o quanto doía, imaginou então dezenas
delas.
O candidato desmaiou e só então Piatã mandou tirar a
luva e levá-lo para a maloca. O povo ria e se divertia, a
colheita do guaraná tinha sido farta e todos estavam
satisfeitos.
__ O próximo! __ gritou o chefe.
Fez-se um silêncio por alguns minutos na aldeia, o
povo todo quieto aguardava ansioso para ver o próximo
candidato a valente. Eles sabiam que a luva só poderia ser
53
tirada por uma das jovens que gostando do candidato, se
oferecesse para livrá-lo do sofrimento, escolhendo-o para
esposo. Caso contrário, a agonia só terminava com a ordem do
chefe, que era impiedoso.
Os Maués maravilhavam-se com a festa, adoravam
tudo aquilo e divertiam-se com as provas.
Piatã não pretendia casar a filha com qualquer um,
afinal de contas, seu outro filho só tinha doze anos e o chefe
temia pelo futuro dos Maués, caso a morte o levasse.
__ O próximo! __ insistiu o chefe. __Será que não temos mais
valentes?
__ Eu! __ alguém gritou. Todos procuravam ver quem era o
tal candidato, já que o grito não saíra do círculo.
__ Quem falou? Apresente-se! __Ordenou o tuxaua.
__ Eu. Jurupari. O filho do sol.__ gritou o guerreiro, fazendo
com que todos se espantassem e Jacamim quase cair da
árvore.
__ O que o louco do meu irmão está fazendo? __ perguntou a
si mesmo o jovem Jacamim enquanto descia desesperado para
conseguir ajuda.
54
Jurupari então saiu do esconderijo e aproximou-se da
multidão. De repente alguém gritou:
__ É o “cortador de cabeças”! Segurem-no! Pegue esse
maldito cortador de cabeças.
__ Estou desarmado Piatã. Eu venho em paz. __ Disse
Jurupari enquanto levantava as mãos.
__ Parem! __ gritou o tuxaua. O que veio fazer aqui
desarmado, maldito guerreiro Munduruku? __ enquanto isso
os Maués procuravam ao redor por mais inimigos, temendo
estar havendo uma invasão.
__ Eu estou só e desarmado. Já disse que vim em paz.
__ O que você quer? Veio se entregar para morrer? __ a essa
altura Jurupari já estava sendo rodeado pelos guerreiros que
estavam ávidos por matá-lo.
__ Quero apenas participar da prova. __ respondeu Jurupari ao
tuxaua.
__ Não pode participar, pois não és um dos nossos. Não és um
guerreiro Maués e sim um maldito inimigo, um maldito
Munduruku. O mais procurado cortador de cabeças,
estávamos ansiosos por esse dia. __ disse a Jurupari que
estava cercado por guerreiros prontos para acabar com ele ao
primeiro sinal de Piatã. Mas o chefe precisava ser justo.
55
__ Vamos acabar logo com isso Piatã. Deixe-me cortar a
cabeça desse infeliz. __ disse o líder dos guerreiros Maués.
__ Calma! Não matamos homens desarmados. Os Maués não
são covardes. __ respondeu o chefe. Janaína não sabia o que
fazer, estava atônita.
__ O que quer provar, Jurupari? __Piatã lhe perguntou.
__Quero apenas participar da prova. Eu amo sua filha e quero
ser o escolhido dela.
__ Mate-o Piatã. Ele veio aqui afrontar nosso povo, afrontar
nossa honra. __ gritou um guerreiro.
Os Maués estavam indignados, mas jamais
contestariam a decisão do tuxaua.
__ E por que não tentou roubá-la de mim Jurupari?
__ Porque não seria correto. Eu estaria desonrando a sua casa.
Somos inimigos, mas o respeito como guerreiro e como
grande tuxaua dos Maués. __ o chefe precisava tomar uma
difícil decisão, não podia simplesmente matar Jurupari de
forma covarde.
__ Porque acredita que não irei matá-lo? Está vendo esses
homens, todos eles, sem exceção, todos eles adorariam ter a
honra de cortar sua cabeça.
56
__ Ainda que me mate, grande chefe dos Maués, eu morrerei
por algo em que acredito e não carregarei o arrependimento de
não ter tentado. Deixemos a guerra de lado neste momento e
tudo que eu peço é a chance de uma disputa justa por sua filha.
Se ela não me quiser, eu desistirei. Você me tem nas mãos,
você julgará se eu mereço ou não.
__ O deixem passar. Muito bem, façamos o seguinte: se você
agüentar a sétima prova, sem gritar ou desmaiar, será então o
guerreiro das veaperiás e sairá daqui vivo, porém se fracassar,
nós cortaremos a sua cabeça e com certeza saberemos muito
bem o que fazer com ela.
__ E quanto a Janaína? __ perguntou Jurupari.
__ Preocupe-se primeiro com sua vida. Primeiro você tem que
continuar vivo. Você está aqui lutando para continuar
vivendo. __ Jurupari calou-se.
Os olhos da moça brilhavam em direção ao guerreiro.
Piatã parecia ter a certeza que o Munduruku não venceria as
provas.
Jurupari então começou uma dança estranha, sobre o
olhar atento de toda a aldeia, fazendo com que o círculo se
abrisse cada vez mais ao seu redor.
57
Enquanto o “novo candidato” a valente batia forte com
os pés no chão, o jovem Jacamim remava a favor da maré com
todas as suas forças para buscar ajuda.
58
●
O guerreiro Munduruku mais uma vez surpreendeu a
todos os presentes, dançando e cantando. Sua dança parecia
coreografar um pássaro alçando vôo, batendo suas asas num
vôo ora rasante, ora entre as nuvens mais altas:
“Eu vou cantar como o urutau,
ele é o Pássaro Sagrado
todos temem ao seu canto,
um dia eu aprenderei a língua da selva,
um dia eu aprenderei a língua dos animais,
eu aprenderei a língua dos pássaros,
eu aprenderei a língua dos peixes,
um dia eu voarei,
um dia eu verei a alma dos homens,
como o olho que tudo vê,
um dia eu voarei e cantarei como o urutau.”
59
Jurupari parou de dançar, virou-se para Janaína e
gritou com todas as suas forças para que os Maués ouvissem:
“Teu olhar é fogo
Que ilumina meu ser
Teu olhar me guarda
Então o mal posso ver
Teu olhar me fortalece
“Então eu sei que posso vencer.”
Janaína sorriu para o rapaz, sentindo-se a mulher mais
amada do mundo. Mas ao mesmo tempo em que estava feliz
por sentir tanto amor, estava insegura e com medo do que
poderia acontecer.
A coragem de Jurupari não impressionava só ao
tuxaua, mas principalmente a Janaína que jamais poderia
imaginar que aquela troca de olhares, um dia fosse tomar
tamanhas proporções.
Jurupari se aproximou de Piatã. Aquele dia entraria pra
história dos Maués para sempre e muitos não acreditariam que
isso realmente aconteceu.
60
__ Está pronto, cortador de cabeças? __ perguntou o tuxaua.
__ Estou pronto. E se eu fracassar, não cortem só a minha
cabeça, cortem todo meu corpo e joguem os pedaços às onças.
__ falou enquanto estendia a mão direita.
__ As duas mãos, Jurupari. Serão duas luvas. Se o tal “pássaro
sagrado”, a quem você vive rezando, pode ajudar você com
uma, poderá então com as duas luvas também.
O chefe arrancou risos da platéia. Jurupari estendeu as
duas mãos e sentiu as formigas andando lentamente dentro das
luvas, ainda tontas por causa da água.
Ele olhou mais uma vez para Janaína, que estava
abraçada à sua mãe que tentava acalmar a jovem que se
encontrava aflita.
__ Quanto tempo eu ficarei com as luvas? __ perguntou
Jurupari ao tuxaua.
__ O tempo que eu julgar necessário. Por acaso quer desistir?
__ ironizou Piatã.
__ Não tenho medo de onças, por que teria de formiguinhas?
__ rebateu Jurupari.
61
Mas as tais “formiguinhas” começaram a acordar.
Piatã acendeu o cigarro enquanto Jurupari olhava ao redor e
percebia que os guerreiros já estavam se preparando para
massacrá-lo caso ele falhasse. As formigas acordavam aos
poucos, a medida que os efeitos anestesiantes da água ia
passando, fazendo com que uma sensação estranha deixasse
Jurupari preocupado.
“Vou até o fim.” Pensou o guerreiro Munduruku,
enquanto sentia as mãos fervilhando. “Eu não sentirei a dor.”
62
Jurupari tentava se concentrar, enquanto o chefe dava a
primeira baforada. Piatã soprou a fumaça primeiramente na
mão direita, fazendo com que as tucandeiras ficassem
enlouquecidas.
Então começou: Uma picada, duas, três... O guerreiro
segurou o grito, fechou os olhos, instintivamente contorcendo
o corpo como se fosse abaixar e nessa hora se lembrou das
palavras do feiticeiro: “sofrerá pelos que fez sofrer.”
As dores eram mais intensas, mas Jurupari resistia
firme.
Piatã soprou a fumaça na mão esquerda e as picadas
aumentaram nas duas mãos.
“A dor é para os fracos, eu sou o filho do sol, ela não
existe pra mim.”
O guerreiro ficou tonto e sentiu quando as malditas
tentavam sair por causa da fumaça e subiam pelo antebraço.
Sua cabeça rodou, seu corpo amoleceu; outra picada e
mais outra. Jurupari rangia os dentes, deixando transparecer a
intensidade das dores que sentia.
63
Era, sem dúvida, o maior desafio de sua vida e não
sabia quanto tempo mais agüentaria. Por um instante ele se
arrependeu de ter menosprezado o ritual dos Maués. Agora
sabia que pra agüentar as sete provas, tem que ser realmente
um bravo.
Eram muitas picadas, nas duas mãos e antebraços,
fazendo com que os efeitos da picada da tucandeira ficassem
visíveis no corpo de Jurupari. Ele começou a sentir calafrios,
suava sem parar e parecia sentir quando cada ferrão era
introduzido em sua carne causando uma reação imediata em
todo o corpo. O pretendente a valente precisava manter-se
consciente, lúcido e principalmente vivo, ainda não era hora
de morrer, não assim, sem ao menos lutar.
64
☼
◊
O ATAQUE
◊
"Quando compreendermos profundamente a verdade dos
nossos corações, saberemos louvar, amar e agradecer ao
Grande Espírito." (Provérbio indígena)
Jurupari caiu de joelhos com os olhos fechados. A essa
altura, as incontáveis lágrimas já molhavam sua face. Nenhum
guerreiro até aquele dia agüentara tanto tempo e com duas
luvas. Piatã era impiedoso. Janaína, abraçada a mãe chorava
por ele.
O guerreiro Munduruku pôs o rosto no solo e esfregou
com força, mas de sua boca não saiu uma só palavra, nenhum
gemido.
65
Eram muitas formigas e ele começou a rolar pelo chão,
estava quase para sucumbir sob os olhares famintos dos
guerreiros Maués que sonhavam com aquela vingança.
__ Pare! __ o grito de Janaína se ouviu na aldeia. __ Pare
papai. Eu vou soltá-lo agora. __ disse Janaína, desafiando o
tuxaua diante de todo o povo.
__ Ainda não! Só quando eu mandar. __ retrucou Piatã.
__ São as regras papai. Nem você, nem ninguém podem
quebrá-las. Se eu quiser me casar com o valente, posso livrá-lo
da dor. E eu quero!
__ Não minha filha, fique aqui. __ disse-lhe Jací, sua mãe.
__ Não posso mais deixá-lo sofrer mamãe. Ele já agüentou
mais que qualquer um. Quero que isso pare agora. Eu posso
fazer parar as provas, posso parar o sofrimento do valente se
eu o escolher. Eu o escolho.
Piatã silenciou-se perante o argumento da filha, não
podia quebrar as regras e mudar a tradição e Jurupari tinha
provado que merecia viver. Janaína começou a desamarrar as
luvas sob os olhares revoltosos do povo e dos guerreiros.
66
O guerreiro a olhou nos olhos com o rosto molhado de
lágrimas e suor, já não sentia mais as mãos, ela alisou sua
fronte tentando confortá-lo. Jurupari sentiu que ia desmaiar,
mas tentou com todas forças manter-se lúcido.
__ Eu serei tua, guerreiro dos guerreiros. Meu coração
pertence a ti. __ disse-lhe, enquanto ele tentava se levantar.
Piatã se aproximou.
__ Você pode viver. E é só! Para ficar com minha filha, você
teria que ser um dos Maués e você não é. Você é e sempre
será um maldito Munduruku e não vai levar minha filha.
Jurupari ainda estava tonto e desnorteado, mas ouvia
atentamente o que o chefe dizia, não poderia se casar com
Janaína, tanto sacrifício por nada, tanta dor, tanta coragem e
agora não tinha forças para lutar com eles e levar a moça.
__ Papai. Deixe-me ir com ele. Será que teremos que viver
sempre nessa guerra maldita?
__ Chega Janaína! __ gritou o tuxaua. __ Eu já decidi, se ele
quer minha filha, se realmente quer você, não irá embora, terá
de se tornar um dos nossos. Aceitará ser mais um de nós, um
67
Maués e passará a morar aqui em nossa aldeia, cortando
relações com o povo dele. E se o fizer, será um maldito
traidor. Não se pode mudar o destino minha filha.
Janaína ficou quieta e abraçou Jací. Sabia que Jurupari
não trairia seu povo, que não aceitaria tal proposta.
Numa última tentativa, ele rastejou pelo chão em
direção ao tuxaua, esforçou-se um pouco mais e levantou-se,
olhou para Piatã com um olhar decidido.
__ Eu aceito! __ disse sem pensar. __ Eu fico aqui. Aceito
qualquer coisa para ficar com ela.__ Piatã não acreditou no
que ouvira. Janaína correu em sua direção e o abraçou.
De repente, Jurupari ouviu uma forte e extensa risada
ecoar pela aldeia. Era a risada de Caiuá, martelando forte em
sua cabeça. Jurupari lembrou-se mais uma vez das palavras do
pajé: “gostaria de ser um deles?”.
O feiticeiro parecia atormentá-lo, sua consciência
pesou, sentiu medo e sentiu-se envergonhado por renegar a
seu próprio povo. Sentiu-se um traidor e jamais receberia o
perdão de seu pai, seus amigos, seus guerreiros. Mas já estava
feito e o pajé continuava a atormentá-lo em seus pensamentos:
68
“odeia tanto assim os Maués?”
“gostaria de ser um deles?”
Por um instante isso o torturou tanto que sentiu seu
coração espremer dentro do peito, fazendo-o esquecer da dor
que sentia nas mãos.
O cortador de cabeças, o mais temido de todos os
guerreiros Munduruku, estava ali, humilhado e implorando
para ser um dos Maués.
Sem conseguir se levantar e tentando se livrar da voz
do feiticeiro que continuava a persegui-lo sem parar sentiu-se
o maior dos traidores e o mais fraco dos homens.
Por um instante chegou a conclusão que melhor seria
ter matado Piatã e ter levado Janaína na marra, assim pelo
menos ainda teria o respeito do seu povo.
Mas já era tarde para se arrepender e precisava encarar
os fatos: Estava nas mãos dos Maués.
69
●
Enquanto o povo se agitava na aldeia para saber o que
o tuxaua faria com Jurupari, o irmão do guerreiro continuava
sua corrida em direção ao território Munduruku. Era uma
caminhada longa e ele não conhecia todos os atalhos que o
irmão dominava.
Jacamim só conseguia pensar no que estava
acontecendo naquele exato momento com seu irmão no meio
de tantos índios inimigos. Se tomara a decisão correta em ir
atrás de ajuda para resgatá-lo, se é que ele ainda estava vivo,
ou se devia ter ficado lá e lutado para morrerem juntos.
Enquanto isso na aldeia dos Maués, um barulho
enorme se ouviu por todos, como uma explosão de um trovão.
Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, e a
aldeia estava completamente desprotegida.
70
__ O que está acontecendo aqui? __ perguntou o chefe.
__ Estamos sendo atacados. Corram, protejam-se todos. __ os
guerreiros Maués gritavam alertando o povo, enquanto
tentavam coordenar uma resistência, mas não sabiam sequer
de onde vinha o ataque.
Janaína continuou tentando desamarrar as luvas, mas
não conseguiu. Jací a puxou pelo braço, para que pudessem
fugir.
Jurupari caiu ao chão ainda tonto. Foi quanto abriu os
olhos e viu que os homens que atacavam a aldeia eram
diferentes. Eram guerreiros brancos.
Os inimigos brancos eram muitos e os guerreiros
Maués tentavam resistir. Tudo em vão.
Os homens brancos puseram fogo nas malocas,
mataram os animais, os guerreiros, velhos e crianças. Os
Maués lutaram bravamente, com flechas e facas, mas nada se
comparava com a força daqueles invasores.
Os novos inimigos eram cruéis e impiedosos, tinham
armas que cuspiam fogo e matavam a todos que estivessem no
caminho.
71
__ Janaína, Janaína. __ Jurupari procurava por sua amada no
meio do caos, mas não conseguia ver muita coisa.
Também sabia que se ficasse ali morreria e procurou
correr até a margem do rio. Correr era praticamente
impossível, os efeitos das inúmeras picadas das tucandeiras
estavam apenas começando.
Durante o trajeto, Jurupari tropeçou e caiu mais uma
vez, foi quando viu ao seu lado Piatã, o tuxaua tinha sido
atingido e tinha dificuldades pra respirar. Piatã estendeu-lhe a
mão e o guerreiro segurou-a forte.
O tuxaua estava muito ferido e com dificuldade tentou
proferir algumas palavras antes de morrer.
72
Olhou Jurupari nos olhos e falou:
__ Quem são eles?
__ É uma tribo de demônios. São demônios que vieram de
longe para destruir os povos da floresta. __ respondeu Jurupari
lembrando-se da profecia do pajé.
__ Guerreiro, você agora é um dos nossos, salve minha filha e
proteja nossa terr...__ Piatã não conseguiu terminar a frase e
morreu, segurando o braço de Jurupari.
O guerreiro, caído ao chão pensava no que fazer,
porém não podia fazer nada, a aldeia estava sendo destruída,
queimada, havia muita fumaça e a única esperança era
conseguir chegar ao rio.
Num último raio de força ele correu, correu muito, sem
olhar para trás, e numa força sobre-humana, pisou em uma
pedra e saltou para se jogar nas águas. As luvas ainda estavam
em suas mãos, frouxas, pois Janaína havia tentado soltá-las,
num ultimo ato consciente, enquanto pulava, num lapso de
segundo, ainda no ar, o guerreiro olhou para a aldeia e viu
quando Jací, Janaína e Guaraci eram amarradas, era como se
aquele momento parasse no tempo.
73
Uma fila de homens, mulheres e crianças foi feita.
Todos amarrados pelo pescoço e mãos uns aos outros, como
animais.
Os que se renderam foram separados, os que lutaram
foram mortos. Poucos se rendiam. Só os mais jovens, os
bravos guerreiros das tribos eram logo mortos.
Os guerreiros brancos eram comandados por um
homem alto, de barbas longas, mas Jurupari olhou bem para
ele, jamais esqueceria aquele rosto. Porém um detalhe chamou
a sua atenção, um detalhe muito estranho: o homem branco
carregava às costas um pariuá-á, uma cabeça mumificada e
essa cabeça ele só podia ter conseguido em um lugar.
Enquanto fitava o inimigo, sua cabeça rodou e ele se
deixou cair no rio, ao mesmo tempo em que pensou: “como
ele conseguiu esse pariuá-á?”. Depois desmaiou e as águas
do rio o levaram, fazendo com que as luvas se soltassem de
suas mãos.
74
☼
◊
O SANTUÁRIO
◊
“Tudo está ligado, como o sangue que une uma família.
Todas as coisas estão ligadas. O que acontece a Terra recai
sobre os filhos da Terra. Não foi o homem que teceu a trama
da vida. Ele é só um fio dentro dela. Tudo o que ele fizer à
teia estará fazendo a si mesmo." (Provérbio indígena).
Quando Jacamim chegou próximo à aldeia, ele já
quase não tinha forças, seu coração estava acelerado, e sua
respiração ofegante. Remara e correra horas sem parar um
minuto sequer. O jovem nem imaginava o que havia
acontecido no território dos Maués.
Ele abria caminho dentro da mata quando, de repente,
avistou fumaça vinda da aldeia. Correu um pouco e parou
estarrecido sem acreditar no que via. Tudo estava
75
completamente destruído, as malocas queimadas, animais
mortos e corpos por toda parte.
Ele ainda ouvia gemidos, mas não era possível
identificar de onde vinham. O choro era inevitável enquanto
corria até a maloca de seus pais e logo na entrada da casa
queimada contemplou o corpo do pai.
Jarí estava estendido com os braços abertos e um
ferimento mortal no peito.
Imaginou a cena em sua mente: o pai tentou proteger o
lar. Então um pavor tomou conta dele, entrou em prantos ao
pensar que os corpos da mãe e dos irmãos mais novos estavam
carbonizados no interior da maloca quase que totalmente
destruída.
Ele agarrou-se ao corpo do pai e chorou, tentando
imaginar quem poderia ter feito tamanha atrocidade; sabia
apenas que tal tragédia não era obra dos Maués e sim de
algum inimigo maior e mais forte.
Tudo estava destruído e Jacamim se viu diante de seu
maior medo: perder tudo.
Jacamim se lembrou de Caiuá o feiticeiro e se dirigiu
até sua maloca. Ele caminhou aterrorizado por entre corpos
76
lentamente até a maloca do pajé; olhou dentro dela e
encontrou apenas uma das máscaras de Caiuá.
Mas ainda lhe restara o irmão, que ele nem sequer
sabia se estava vivo ou não.
“Preciso ser forte. Preciso encontrar Jurupari e lhe
contar o que aconteceu com nosso povo.” __ pensava o jovem
Jacamim desconsolado.
Sem perder tempo Jacamim rapidamente preparou a
canoa para voltar sozinho ao território dos Maués em busca do
irmão.
Enquanto o menino Munduruku remava, uma chuva
fina começou a cair, fazendo com que a água que molhava seu
rosto se misturasse com as lágrimas que brotavam de seus
olhos.
“Pássaro Sagrado, maior é a minha dor que este rio,
maior é a minha dor que esta selva. Porque não salvastes meu
povo? Onde está o olho que tudo vê?”.
Seus pensamentos eram de ódio, indignação e revolta.
A chuva ficou mais forte e por diversas vezes a canoa quase
virou por causa da força das águas.
77
Seguindo os poucos atalhos que conhecia o jovem se
apressava em percorrer o trajeto de volta. De repente,
Jacamim tomado pela revolta de seu coração, parou de remar e
olhou para o céu.
__ Maldito seja o urutau! Eu te odeio pássaro maldito. Onde
está tua força? __ bradou o jovem com toda a força de sua
alma.
Quando a canoa se aproximou do seu destino, Jacamim
diminuiu o ritmo das remadas e começou a parar.
Ele procurou se aproximar com cuidado de um ponto
da mata onde pudesse ter uma visão privilegiada da aldeia dos
Maués. Mas a visão que o jovem teve, além de aterrorizante,
lhe parecia bem familiar.
A aldeia dos Maués, tomada pela fumaça das malocas
incendiadas, também estava completamente destruída, com
corpos espalhados por toda parte.
Desesperado e desnorteado com a visão do caos,
Jacamim achou que Jurupari também estava morto e não teve
coragem de procurar o corpo do irmão.
78
A chuva ficava cada vez mais forte e parecia que o
céu queria desabar em sua cabeça.
Caminhou por entre mortos mais uma vez, já cansado e
perdido no caos de tanta desgraça caiu de joelhos diante
daquele terrível pesadelo.
Estava só. E a solidão era um inimigo cruel e
invencível para alguém tão inseguro como ele. Seu espírito já
não agüentava tanta desgraça.
O irmão de Jurupari levantou-se e tomou o rumo de
volta. Corpos queimados, animais mortos, gemidos e gritos
atormentavam sua mente, mas ele continuou dessa vez por um
caminho diferente por dentro da selva.
Jacamim tinha um destino certo e já não tinha mais
medo, era como se estivesse anestesiado pelos sentimentos
que o assolavam e não conseguia pensar com coerência. Não
tinha mais nada, apenas a certeza de que estava só. Perdera a
esperança e também a fé, a ponto de amaldiçoar a figura do
urutau, tão sagrado e especial para o seu povo.
Para Jacamim era o fim de tudo, da honra e da história
do seu povo, tudo estava perdido. Mesmo assim ele ainda
caminhava, abrindo caminho por entre árvores, igarapés,
trilhas, ele seguia firme.
79
Movido pelo ódio, o jovem Jacamim seguia em direção
ao grande santuário dos Munduruku: a Pedra do Pássaro
Sagrado.
80
●
O local sagrado era usado pelos índios das aldeias
Munduruku há séculos, um lugar que só eles sabiam chegar,
com trilhas escondidas e até armadilhas secretas para proteger
o lugar de adoração e culto a Tupã e ao urutau.
O menino Jacamim conhecia o caminho muito bem,
todos os atalhos que o levariam para cumprir o seu destino;
desde muito jovens, os índios aprendiam tudo a respeito do
santuário e se reuniam para ouvir as palavras do pajé.
Caiuá adorava falar às crianças e aos jovens sobre os
costumes dos ancestrais, dos grandes guerreiros do passado,
das lendas, das crenças nas palavras do Grande Espírito e de
como Tupã criou todas as coisas; depois os via crescer,
envelhecer e morrer.
No dia seguinte quando Jacamim chegou ao local
sagrado, seus olhos se voltaram para a grande pedra de quase
81
vinte metros de altura. Lá no topo estava uma imagem
esculpida em pedra, o urutau.
A chuva insistia em castigar a floresta, e Jacamim
resolveu fazer o que nenhum índio Munduruku tinha feito até
aquele fatídico dia: desafiar o urutau.
Tomado de uma ira incontrolável, ele subiu devagar
até o cume e pôs-se de pé ao lado da estátua que tinha quase
sua altura. Jacamim começou a insultar o urutau, o culpando
por toda a desgraça que havia acontecido com todos de sua
aldeia. Até que tomado pelo ímpeto do desespero, o jovem se
apoiou na pedra e empurrou a imagem lá de cima.
__ Que morra o urutau! __ gritou, empurrando a imagem com
toda sua força, fazendo com que ela despencasse até o chão
sob seu olhar de ódio, sem, no entanto, que a imagem do
urutau se quebrasse.
A chuva caia intensamente, tomando o aspecto de
tempestade. O rapaz olhou mais uma vez para baixo, tentando
ver o fim que a imagem teve ao despencar daquela altura,
puxou o ar para os pulmões, abriu os braços e deu outro grito
dessa vez mais alto, que ecoou por todo o santuário.
82
__ E que morra Jacamim! __ e sem titubear soltou o corpo do
alto da pedra. E com os olhos bem abertos, mergulhou em
direção a morte.
83
☼
◊
A VINGANÇA
◊
“Jamais chore por algo que não pode chorar por você.”
(Provérbio indígena).
Jurupari acordou com o sol já batendo forte em seu
rosto, pendurado em galhos de uma árvore caída na entrada de
um igarapé.
Suas mãos estavam muito inchadas e ele mal podia
mexer os dedos resultado da prova do guerreiro das
tucandeiras.
Tentou se localizar e viu o quanto estava longe da
aldeia. Entrou na mata e apanhou algumas plantas e esfregou
nas mãos que estavam inflamadas. Tomando em seguida o
84
rumo de sua aldeia em busca de ajuda para vencer o guerreiro
branco e salvar Janaína.
Seria difícil convencer os Munduruku que deviam lutar
para salvar os Maués. Mas isso não o preocupava, pois sabia
que tinha amigos fiéis que não lhe negariam ajuda. Ele só não
imaginava que todos estavam mortos.
O grande guerreiro branco, o homem com cabelos no
rosto, era Fernando Souza de Alcântara Ferreira, o capitão
Ferreira, conhecido mercador de índios que já havia dizimado
tribos no Maranhão e agora buscava novos escravos, ou seja,
fortuna.
Os prisioneiros foram enjaulados não muito longe dali,
num acampamento que fora montado para uma verdadeira
caçada aos índios. Depois de aprisionados, eles eram enviados
para trabalhos em minas, onde morriam mais pela saudade e
tristeza, que pela dureza dos trabalhos.
O capitão Ferreira não levava os índios que lutavam,
ele os matava. Preferia as mulheres para os serviços
domésticos, crianças e jovens que eram mais fáceis de
domesticar para o trabalho escravo.
Um homem frio, extremamente sem coração, que
usava o chicote para impor respeito e sua arma contra os que
85
ousavam desobedecê-lo ou enfrentá-lo. Matava os pais na
frente dos filhos e os filhos diante dos pais. Assim era o
“capitão”.
Muitos já tinham tentado liquidá-lo, inclusive alguns
de seus homens, que não viveram para tentar novamente.
Entre eles haviam boatos e a lenda de que Ferreira
tinha pacto com diabo, o que lhes causava grande temor,
imaginando que se alguém planejasse sua morte, o próprio
diabo o avisaria.
Para justificar sua atitude covarde, Ferreira alegava
que os indígenas eram assassinos cruéis e comiam a carne de
suas vítimas, por isso levara consigo a cabeça mumificada da
aldeia Munduruku, para que todos tivessem medo dos índios.
86
●
Jurupari finalmente chegou a sua aldeia e a visão que
teve foi chocante, o guerreiro sentiu-se totalmente destruído.
Lembrou-se do “pariuá-á” que o guerreiro branco
levava às costas: “foram eles”. Pensou, enquanto um desejo
de vingança envenenava sua alma.
Seu único objetivo seria destruir o responsável por
tudo aquilo, iria farejar o rastro dos inimigos pela selva até
encontrá-los, e na selva, ninguém podia com ele.
Mas Jurupari precisava de forças para seu espírito e
seguiu para o único lugar onde encontraria o poder que
precisava: o santuário.
Quando chegou ao local, mais tristeza o aguardava. A
imagem do irmão morto entre as pedras perfurou-lhe o
coração como uma flecha envenenada e reduziu sua alma ao
pó.
87
Ainda teve forças para enterrar o irmão antes de pintar-
se para a guerra.
O urucum avermelhava sua pele e as penas enormes de
araras presas aos braços o faziam parecer um deus voador.
Pegou arco e as flechas, faca e seu afiadíssimo machado que
os Maués já conheciam bem e começou a dançar e emitir sons
estranhos e indecifráveis.
__ Grande urutau. Hoje quero cortar muitas cabeças para
vingar meu povo. __ e continuou com a dança, dando pulos e
urros, gritos e gargalhadas assustadoras ecoavam pela selva
sombria, numa mistura de ódio, lamento e dor.
Enquanto o guerreiro dançava e pedia forças ao
Grande Espírito ouviu uma voz lhe chamando, uma voz que
lhe era familiar e vinha de dentro de uma pequena caverna.
__ Filho do sol! __ Jurupari abaixou um pouco até o buraco e
assustou-se.
__ Quem está aí?
__Sou eu! __ uma luz forte saiu de dentro da caverna cegando
o guerreio. __ Sou eu, Caiuá, o feiticeiro.
__ Não pode ser! Você está morto!
88
__ Não estou não. Guerreiro tolo! Estou vivo, como sempre
estive e sempre estarei. O lugar sagrado foi manchado com o
sangue do teu irmão e do teu povo. __ Jurupari tentava ver
Caiuá, porém uma luz forte o impedia.
__ Eu vou me vingar! Destruirei toda a tribo dos brancos e
salvarei o que sobrou do nosso povo.
__ Ninguém pode destruir os demônios brancos, eles virão de
toda a parte. Quer vingança? Você a terá, mas outros virão e
continuarão a destruição de nossa casa. O que você vai poder
fazer contra eles?
__ Combaterei a todos, enquanto houver vida em mim. Ajude-
me feiticeiro!
__ Vá guerreiro. Voe filho do sol, voe e cumpra o teu destino.
__ E quanto a você?
__Eu sempre estarei aqui. Para sempre! __ e desapareceu
diante do “cortador de cabeças”.
89
O guerreiro se misturava com a mata, era parte dela
numa caçada sinistra, rastejava como uma sucuri atrás de suas
vítimas, Jurupari farejava como uma onça em busca do
alimento, como se sentisse o cheiro dos malditos ele
continuava no rastro de sua vingança.
Aos arredores do acampamento homens montavam
guarda.
Um a um eles começaram a tombar, a faca do guerreiro
os encontrava sem que ao menos percebessem de onde vinham
os golpes.
Jurupari rastejava até os inimigos com uma destreza
que só ele possuía e só aquietava sua alma quando sentia o
sangue escorrer em sua mão. Eram presas fáceis para o
Munduruku.
Em frente a uma das cabanas montadas no
acampamento, três homens bebiam e conversavam e o
guerreiro, como uma sombra, pulou diante deles que não
tiveram tempo de reagir, tamanha a surpresa e o espanto;
numa piscar de olhos, Jurupari passou a faca no pescoço de
dois deles que caíram ensangüentados. O terceiro ainda tentou
correr, mas o índio enrolou um cipó em seu pescoço e o
enforcou.
90
Ainda abaixado olhando os corpos, ele avistou no fim
do acampamento, as jaulas improvisadas.
Aproximou-se do local e ficou estarrecido ao ver
mulheres, jovens e crianças, de várias aldeias, várias tribos,
alguns conhecidos que se alegraram ao vê-lo, outros
desconhecidos que apenas choravam sem parar.
Jurupari chorou.
Chorou por ver os povos da Grande Floresta, tratados
como animais, e percebeu que não havia mais diferenças entre
os Munduruku e os Maués, eram todos um só povo, uma só
tribo, uma só gente. Todos precisavam dele.
Ele cortou as cordas que os prendiam e viu um por um
correr em direção a escuridão da mata.
Finalmente viu Jací e Guaraci, mas Janaína não estava
lá. Eles a haviam levado para uma das cabanas, juntamente
com outras jovens índias tão belas quanto ela. A mãe de sua
amada implorou para que ele a salvasse.
__ Não descansarei. __ disse ele. __ Não descansarei enquanto
não a encontrar, atravessem o rio e sigam sempre em frente,
não parem até chegarem num local seguro. Reúna aqueles que
sobreviveram e busquem um lugar seguro pro seu povo. O
91
meu povo fará o mesmo, não desistam, busquem forças dentro
de cada um. Vou atrás do maldito que fez tudo isso. __
prometeu a mãe de sua amada.
Após a fuga de todos, Jurupari foi à procura de sua
Janaína. Armado com sua faca e machado, ele avançava pelo
acampamento fazendo novas vítimas, de forma que o suor de
seu corpo se misturava com o vermelho do sangue inimigo.
92
●
Jurupari parou atrás de uma cabana maior e ouviu
gritos, eram gritos e choro de meninas. Olhou por uma fresta
na cabana e pode ver o capitão com seus capangas violentando
as meninas índias. Janaína estava caída ao chão, estava pálida.
Jurupari não se conteve e acabou por involuntariamente fazer
barulho do lado de fora, chamando a atenção dos homens de
Ferreira.
__ Tem alguém lá fora. __ um dos homens alertou.
Ferreira se vestiu e pegou a arma sem imaginar que era
observado o tempo todo pelo bravo guerreiro Munduruku, que
não iria embora sem cumprir sua saga.
“É agora!“. Pensou jurupari.
93
Jurupari invadiu a cabana numa rapidez
impressionante, desferindo golpes em todos os que apareciam
em sua frente.
Um luta corporal intensa se travou no interior da
cabana, algumas meninas tentavam correr, outras
simplesmente gritavam, encolhidas no chão. Um verdadeiro
banho de sangue acontecia naquele local,
Jurupari era impiedoso com os brancos assassinos, sua
faca era infalível e seus golpes eram certeiros e mortais.
De repente, o capitão disparou sua arma. Um único tiro
acertou o guerreiro nas costas, próximo ao ombro direito. Ele
caiu.
__ Alguém pode me dizer quem é esse maldito? __ disse o
capitão.
__ Ele deve ter fugido durante o ataque capitão. __ um dos
capangas respondeu, enquanto outro entrou na cabana
desesperado.
__ Capitão, os índios fugiram. Todos eles. Foram todos soltos
por esse aí. __ apontando Jurupari.
__ Você vai pagar caro por isso desgraçado. Vou fazer você
desejar nunca ter nascido, e nunca ter me conhecido.
94
Enquanto Ferreira falava, Jurupari rastejava em direção
a Janaína, queria tocá-la, senti-la, ouvir sua voz doce. Pegou
sua mão fria e então percebeu que sua amada estava imóvel.
Tudo sob o olhar atento do Capitão Ferreira.
__ Então é ela que você quer? Por isso você veio aqui e fez
esse estrago todo. Tarde demais, seu índio burro. Ela está
morta! Consegue entender o que eu digo? Está morta! Ela até
que resistiu muito e tentou me morder.
Jurupari não entendia a língua dos brancos e não fazia
idéia dos planos do capitão, mas entendia de morte e ao ver
aquela moça que tanto amava morta, tentou levantar-se para
continuar sua vingança, porém um chute forte na barriga o fez
se contorcer de dor no chão.
__ Não se preocupe! Você logo vai estar com ela. Mas
primeiro vou fazer você sofrer. Você vai conhecer o que é dor
de verdade e vai entender porque eu sou o maior caçador de
índios que já existiu. __ disse Ferreira ao guerreiro, enquanto
pisava seu rosto.
95
Jurupari já não se importava com mais nada e em sua
mente, apenas implorava aos deuses a oportunidade de vingar
o seu povo e Janaína.
96
☼
◊
A MORTE
◊
“Para conheceres o centro do coração onde reside o Grande
Espírito terás de ser bom e puro e viver da forma que o
Grande Espírito nos ensinou. O homem que for assim puro
contém o Universo no espaço do seu coração.” (Provérbio
indígena)
O guerreiro foi surrado até a fronteira da morte,
ninguém podia salvá-lo do capitão Ferreira. Não havia mais
forças no corpo e na alma de Jurupari.
A dor da morte de Janaína era maior que qualquer dor
física que a tortura praticada pelo capitão pudesse causar. Seu
coração espremido pela dor do desencanto e desespero o fazia
querer o mais rápido possível encontrar a morte, pois ao
menos assim, no mundo dos mortos, poderia continuar a sua
97
procura por Janaína. Um busca que, se dependesse dele, não
acabaria nunca.
Depois de dezenas de açoites, o capitão mandou que
os homens o deitassem de bruços e pisassem em suas costas.
Ferreira se aproximou do índio indefeso e
inesperadamente pegou sua perna direita, segurou firme em
seu tornozelo e o torceu para trás até quebrar-lhe os ossos,
fazendo com que Jurupari usasse o que lhe restava de fôlego
para gritar.
Logo depois, Ferreira repetiu o ato, dessa vez no pé
esquerdo e o grito do guerreiro não foi mais tão alto.
Jurupari caído ao chão quase inconsciente pedia a Tupã que
acelerasse sua morte e lhe poupasse de mais sofrimento.
Seus pés estavam virados para trás, suas costas
estavam ensangüentadas e marcadas pela fúria do chicote de
Ferreira.
__ Quero ver você fugir de mim agora. Se tentar correr, vai vir
direto pra mim. __ Ironizava o homem branco, sob o som das
risadas de seus comparsas.
98
Jurupari sentia seu corpo adormecido, já não mais
sentia dor. Queria morrer logo, mas uma faísca de vida insistia
em permanecer acesa dentro do coração do Munduruku.
Foi quando que já quase inconsciente, ouviu um som
martelando seus ouvidos. Um som bastante familiar aos seus
ouvidos. No meio de tantos sons, risadas, gritos, pranto, ele
ouviu nitidamente o canto de um pássaro. Um som sombrio,
aterrorizante, como um lamento agonizante.
Era o canto do urutau.
Aquele som que a tantos amedrontava o tranquilizou.
Parecia lhe renovar o espírito guerreiro e acalmava sua alma
cansada e aflita.
Os homens do capitão estavam assustados e
procuravam por toda parte, de onde vinha o canto da ave
fantasma. Era sinal de mau agouro, e eles sabiam que alguma
coisa muito ruim estava para acontecer naquele lugar.
__ Capitão, mata logo ele. Esse canto do pássaro fantasma não
é nada bom. __ disse um dos homens. __ Mata logo esse índio
desgraçado e vamos embora daqui, esse lugar está
amaldiçoado.
99
__ Estão com medo de quê? De um pássaro? Vocês têm que
temer a mim. Eu sou o diabo! Sou o mal em pessoa e ninguém
vai embora daqui. Vamos acabar com isso e vamos atrás do
meu dinheiro. Quero aqueles índios de volta.
__ E ele? O que vamos fazer com ele? __ perguntou um dos
capangas preocupado.
__ E quanto a você, índio valentão, você nasceu na selva e vai
morrer na selva. Amarrem-no pelos pés e pendurem naquela
árvore. __ ordenou impiedoso o capitão Ferreira, apontando
para a maior árvore que havia nas proximidades do
acampamento, uma sumaúma que embelezava as
proximidades do acampamento.
__ Sim senhor, capitão. __ responderam os homens.
100
Eles amarraram os pés de Jurupari e jogaram a corda
por cima de um dos galhos gigantes da árvore com certa
dificuldade por causa da altura. Puxaram e puxaram até o
guerreiro ficar pendurado de cabeça para baixo.
__ Pronto capitão! __ apresentou-se um capanga.
__ Tragam fogo! __ ordenou Ferreira, obrigando a todos a
assistirem ao martírio de Jurupari, pois assim seria mais
temido ainda.
Nesse momento, Jurupari entregou seu espírito a Tupã
e pediu ao Pássaro Sagrado que seu sacrifício não fosse em
vão e que os homens maus pagassem por seus crimes.
Quase que imediatamente o som do canto sombrio do
urutau ecoou pela floresta escura novamente. O pavor tomou
conta do bando. As aves mágicas começaram a sobrevoar o
local e cantavam sem parar. Os sons eram como de gritos de
pavor.
Um dos homens trouxe uma tocha acesa e entregou ao
capitão Ferreira. Jurupari permanecia imóvel e ainda
respirava.
101
__ O que foi? Estão com medo de um pássaro? Vocês são
mesmo uns covardes. __ disse o capitão.
O malfeitor não temia nada e ainda zombava do medo
dos bandidos que o serviam, desafiando qualquer tipo de
crença ou superstição da cultura regional.
Como prova de seu poder, Ferreira aproximou a tocha
de foto do tufo de cabelos de Jurupari.
O urutau gritou mais alto. Havia pássaros por todos os
lados, cantando sem parar, um canto de lamento, de dor, de
quem agonizava.
__ Queime índio maldito! __ gritou o capitão.
E o fogo tomou os cabelos, os enfeites, as penas
fazendo com que o guerreiro Jurupari se contorcesse e soltasse
um gemido entre os dentes. Não tinha mais forças para gritar.
Jurupari parou.
__ Deixe-o queimar para que toda essa floresta sinta o cheiro
de sua carne e saibam quem sou eu. Vamos enterrar os corpos
e recuperar os índios fujões, o trabalho não pode parar. __
disse o capitão.
102
Os capangas de Fernando Ferreira correram em direção
ao acampamento e quando lá chegaram foram tomados de
surpresa e espanto: Não havia mais corpos.
Procuraram por toda parte, dentro das cabanas e
nenhum dos corpos dos mortos estavam mais ali. Apenas
rastros de sangue.
__ Capitão, os corpos sumiram! É melhor fugirmos daqui
enquanto é tempo. Este lugar capitão. Este lugar está
amaldiçoado. Vamos todos morrer. __ implorou um dos
homens ao capitão.
__ Ninguém vai à parte alguma. Vamos ficar aqui mesmo e
amanhã logo cedo vamos atrás dos que fugiram. Os animais
devem ter levado os corpos, poupando-nos o trabalho.
103
☼
◊
A TRANSFORMAÇÃO
◊
"Dentro de mim há dois cachorros: - Um deles é cruel e mau.
O outro é muito bom. Os dois estão sempre em guerra. O que
sempre ganha é aquele que eu alimento mais vezes."
(Provérbio indígena)
Quando a chuva caiu, o corpo do guerreiro parou de
queimar, uma brisa suave agitava lentamente as folhas da
árvore e o silêncio foi quebrado mais uma vez pelo canto da
ave maior, que alçou um vôo rasante e pousou sobre o galho
da arvore onde o corpo jazia.
O pássaro mágico cantou novamente, dessa vez, mais
alto, mais forte e mais mágico. O urutau abriu suas asas e
começou a brilhar, irradiando uma intensa luz azul que
iluminou toda a floresta.
104
O pássaro então tomou a forma de um índio com asas
que flutuou em direção ao corpo de Jurupari e parou em sua
frente. Era o Grande Espírito.
__ Grande guerreiro Jurupari, eis que te devolvo a vida. Tu
habitarás as árvores, os rios, os animais, as florestas. Tua
missão será protegê-los, preservá-los e defender aqueles que
amam a grande floresta. Perseguirás os destruidores e
inimigos da mata. Serás temido por todos e te dou o poder da
ilusão. Os homens não te verão senão pela tua vontade. Teus
olhos verão a alma dos homens. Teus cabelos serão fogo
consumidor e teus pés guiarão os maus para a morte. Filho
do sol, tu serás um deus na grande selva, protetor e vingador.
Veloz e dono da força, quem te buscar não te achará, pois a
partir de agora, tu és o Curupira.
O corpo de Jurupari explodiu e seu espírito foi sugado
para dentro da grande árvore fazendo com que os galhos se
tremessem, o tronco enorme estufou-se ainda mais tomando
várias formas, como se estivesse derretendo e transformando-
se aos pouco em forma humana. E de dentro da grande árvore,
o Curupira saltou para a vida.
105
O Grande Espírito se transformou novamente em
pássaro e voou em direção aos céus. Enquanto isso o Curupira
se preparava para o acerto de contas com os inimigos da
grande selva.
Seus olhos se direcionaram ao acampamento onde
alguns homens do capitão já tinham adormecido.
A cada passo do Curupira, suas pernas giravam ao
redor do seu corpo como um redemoinho fazendo com que
flutuasse e à medida que seus pés tocavam o chão ficavam
completamente virados para trás.
Era alto e forte, seus cabelos eram fogo de um colorido
esplendoroso, nos braços enormes, penas azuis, vermelhas e
alaranjadas, como se estivesse vestido para a guerra. E estava.
Ele tinha a velocidade do vento e seus olhos eram
como os olhos do urutau, como brasas flamejantes, uma
espécie de chama encantada o fazia reluzir como um ser
divino. O Curupira virou-se em direção ao acampamento e
uniu suas mãos como num gesto de oração, aproximando-as
da boca, soprou.
Eram centenas, milhares, centenas de milhares de
insetos voando em direção ao acampamento. Por todos os
106
lados animais rastejantes surgiam e direcionavam-se as
cabanas, era como se toda a selva estivesse viva.
A magia do Grande Espírito tomou conta do lugar e
enquanto os homens do capitão dormiam, subitamente eram
atacados por todo tipo de praga.
A ordem do Curupira era que fossem impiedosos,
atacassem e exterminassem a todos os malfeitores, numa
vingança avassaladora, porém com uma observação: que
deixassem o capitão Ferreira para que o próprio rei da grande
floresta o punisse por seus crimes contra os povos indígenas.
O urutau cantou forte: um canto sombrio, de morte,
amedrontando os homens de Ferreira. Seu canto foi
acompanhado de outros, por todos os lados, por toda a densa
floresta ecoavam os gemidos aterrorizantes das aves
fantasmas, com os olhos enormes e brilhantes.
107
●
O capitão não dormira e preparava seu armamento para
voltar à expedição de recaptura dos fugitivos, não podia ter
prejuízos e sua fama de caçador de índios dependia do
resultado dessa expedição, não podia voltar de mãos vazias.
Enquanto estava concentrado em sua cabana, ele ouviu
gritos desesperadores ecoando pelo acampamento; Ferreira
pegou sua arma e correu para ver o que significava aquilo.
A visão que teve foi assustadora, até para ele que não
costumava ter medo de nada.
As cabanas estavam cercadas por cobras de todos os
tipos, os homens corriam com os corpos cobertos por vespas
enormes, um a um iam caindo mortos por toda a extensão do
lugarejo.
Os gritos eram ensurdecedores e Ferreira não sabia o
que fazer. Correu em direção à mata e empunhou sua espada
para abrir caminho. Visivelmente tomado pelo pavor e
108
desespero, Ferreira corria o mais depressa que podia
impulsionado pela certeza de que nada e nem ninguém o
impediria de completar sua missão.
Era experiente nas expedições e já havia desbravado
terras hostis em diversas regiões do imenso Brasil. Já havia
passado fome nas muitas vezes em que o alimento acabara
antes do fim das expedições e precisou se alimentar de caça e
pesca, ou frutos desconhecidos que encontrava nas florestas,
além de escapar de sucessivos ataques de animais que por
vezes precisou espantar usando fogo, pedras ou a própria
espada.
O capitão correu pra fora do acampamento o mais
rápido que conseguia com suas roupas pesadas e armas, ele
usava um colete de pele de anta que servia de proteção e o
cansaço era visível pelos dias e noites acordado na caçada aos
novos escravos. De repente ele parou.
109
Olhou em sua frente e lá estava a árvore onde deixara
pendurado o corpo do índio que o desafiou, olhou de novo e o
corpo não estava mais lá. “Algum animal o levou”. Pensou
enquanto procurava a direção a seguir.
Ferreira continuou correndo, não sabia o quê ou quem
havia atacado o acampamento e não pretendia esperar para
descobrir. Buscava fôlego e forças de onde não tinha, quando
outra vez parou. E simplesmente não acreditava naquilo.
Estava novamente diante da mesma árvore. “Não pode ser!
Isso é impossível!”
Tentou outra direção e tinha a certeza absoluta de que
estava correndo em linha reta, mas novamente não pode
prosseguir, pois bem a sua frente, diante de seus olhos
incrédulos, a árvore o aguardava. Era loucura, inacreditável.
Faltou-lhe o ar. Sua vista ficou turva e ele caiu de joelhos e
esfregou os olhos.
Olhou a sua volta e era como se a vegetação estivesse
se derretendo diante de seus olhos.
__ Estou enlouquecendo. Isso deve ser algum tipo de
bruxaria.__ falou para si mesmo naquele momento de terror.
Levantou-se sem saber o que fazer, pois percebera que
qualquer direção que tomasse, pra onde corresse, o fim seria
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sempre o mesmo: aquela árvore. O mesmo local onde horas
antes ele havia incendiado o corpo de Jurupari.
Ferreira estava completamente desnorteado e andava
de costas, olhando pra toda a direção, o medo de um ataque
surpresa, seja lá de quem fosse, tomava conta dele. Foi quando
inesperadamente ele teve a visão mais assustadora de sua vida.
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O Curupira lhe apareceu com sua face mais
monstruosa e emitiu um som aterrorizante.
O capitão se tremia todo e ao tentar fugir caiu em
buraco coberto pela vegetação.
Tentou levantar-se com muito esforço, mas quando
olhou suas mãos, estavam cobertas de tucandeiras, começou a
tirá-las, mas eram muitas, tomaram os braços, pernas,
entrando pelas roupas e subindo pelo pescoço.
Ferreira se debatia, gritava, mas elas não paravam de
se multiplicar. No auge do desespero, o capitão se agarrou a
uma raiz e saiu do buraco. Eram centenas de mordidas das
formigas assassinas por todo o seu corpo, fazendo com que ele
rolasse pelo chão.
Quase desfalecendo e anestesiado, pode ver os pés do
curupira diante do seu rosto, ergueu o olhar e viu um índio de
costas, contradizendo os pés virados em direção ao seu rosto.
O índio então se posicionou de frente para Ferreira e
seus pés ficaram virados para trás.
A lembrança nítida de quando quebrou as pernas de
Jurupari estava viva em sua memória.
O Curupira olhou nos olhos do capitão e ele não pode
encará-lo, mas ainda viu quando o rei da grande floresta se
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afastou num redemoinho enquanto emitia um assobio
ensurdecedor que se espalhou por toda a mata.
Enquanto era devorado pelas incontroláveis e famintas
tucandeiras, o capitão ainda ouviu outro som, mas dessa vez,
era um som bem familiar. Era rugido de onça, ou melhor, de
onças.
E ali, na escuridão daquele pedaço de selva, o tão
temido capitão Ferreira, considerado o próprio filho do diabo,
virara comida de onças e tucandeiras. O que sobrou de seu
mutilado corpo foi devorado pela grande selva e nunca foi
encontrado. Uma morte horrível para um homem horrível.
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A REDENÇÃO
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"Lembre-se de que seus filhos não são sua propriedade!... eles
foram apenas confiados à sua guarda pelo Grande Espírito"
(Provérbio indígena)
O Curupira cuidadosamente pegou o corpo de Janaina
e ao pé da sumaúma. Fitou-o por um instante e seguida saltou
pra dentro da grande árvore desaparecendo, minutos depois, o
guerreiro Munduruku Jurupari sai lentamente de dentro do
tronco como um ser iluminado, visivelmente acometido por
uma profunda tristeza ele se aproxima do corpo de Janaina.
Ele se ajoelhou, estendeu suas mãos em direção a sua
amada e pediu ao Grande Espírito que fizesse cumprir o
destino de Janaína.
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O corpo da jovem se iluminou e foi sugado pra dentro
da sumaúma.
Jurupari logo retornaria ao tronco da árvore, mas não
para ficar ao lado de Janaína, mas para cumprir seu destino
como um ser iluminado de inúmeros poderes mágicos para
proteger o seu povo, muito maior que a nação Munduruku: os
povos da floresta.
O guerreiro direcionou seu olhar à grande árvore e
novamente se transformou no Curupira. E enquanto se
preparava para assumir definitivamente sua nova missão,
como um ser divino e iluminado, ouviu uma gargalhada
familiar.
Olhou para trás imediatamente e para sua alegria,
alguém que ele conhecia muito bem estava lá, rodeado por
uma áurea de magia, o observando. Era o grande feiticeiro
Caiuá.
__ Caiuá, é você mesmo? Que surpresa boa.
__ Sim, jovem guerreiro. Sou eu mesmo. __ disse o Pajé ao
guerreiro Munduruku. ___Vejo que você finalmente cumpriu
seu destino. Agora está em suas mãos o poder de proteger a
todos os povos da grande floresta.
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__ Você tinha razão sobre o novo inimigo. Eu fui um tolo,
Caiuá.
__ Hum. Não, não, Jurupari. Tudo está apenas começando.
Veja como você está diferente agora. __ disse Caiuá.
__ Como assim?
__Isso mesmo que você ouviu guerreiro. Tudo começou!
Sempre haverá um novo começo. Tudo se transforma. Lembra
quando você era criança e não entendia o mistério das
borboletas? Assim é a vida em toda a grande floresta. Tudo
muda. Você cumpriu o seu destino e todos nós cumprimos o
nosso ciclo.
__ Os demônios brancos estão mortos e não mais farão mal
aos povos da grande floresta. __ disse Jurupari ao feiticeiro.
__ Engana-se, espírito guerreiro! Eles virão novamente. Em
maior número, com mais força e serão vencidos de novo. E
novamente virão mais e mais vezes. E nunca desistirão, assim
como nós sempre resistiremos. __ respondeu-lhe o sábio Pajé.
__ E quanto a nós? __ perguntou o guerreiro.
__ Nós estaremos sempre aqui. E ele nos mostrará qual o
caminho a seguir. __ respondeu o grande feiticeiro. __
Estaremos sempre cumprindo o nosso destino.
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__ Caiuá. Eu fui muito injusto com você muitas vezes. Não
acreditei em suas palavras sábias, não enxerguei a verdade
diante dos meus olhos. O Grande Espírito é contigo!
Desculpe-me a ignorância. Você é um grande mestre.
__ Lembre-se, você tem uma missão. Cumpra-a e quando
precisar de mim basta me chamar.
__ Caiuá! Por favor, deixe-me ver o seu rosto. Tire a máscara.
__pediu, aproximando-se do feiticeiro.
Caiuá pôs as mãos no rosto para tirar a máscara, sob o
olhar atento de Jurupari. Ele sabia que desde criança o
guerreiro ansiava por desvendar esse mistério e não lhe
negaria a realização desse desejo.
__ Tem certeza que quer ver meu rosto?
__ Tenho sim. Mostre-me agora. Sei que ninguém o
contemplou até hoje. Sempre ouvi de meu pai histórias sobre
você.
__ Então veja! __ o Pajé então tirou a máscara e mostrou o
rosto ao guerreiro que o fitava incrédulo:
Era o rosto de uma criança. O guerreiro levou um
susto com a visão que tivera. Ficou perplexo ao ver um rosto
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infantil, não conseguia esboçar nenhuma reação, era como se a
face do Pajé representasse a continuidade da vida na floresta.
O feiticeiro ao ver a reação do guerreiro,
completamente estarrecido e atônito, soltou mais uma de suas
gargalhadas e desapareceu, deixando ecoar sua voz pela
floresta:
__ Eu estarei sempre lá guerreiro, vendo tudo o que se passa
com meu povo. E quando ouvir o canto mágico do urutau, esta
será minha voz, alertando a todos que estou de olho. Quando
quiser me achar eu estarei lá. Na pedra do pássaro sagrado.
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F I M
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