O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspirações

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

    Nhe vai hegui Mba'evyky

    O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes

    Luiz Gustavo S. Pradella

    Porto Alegre2006

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    Luiz Gustavo Souza Pradella

    Nhe vai hegui Mba'evyky

    O fazer, o falar e o ser Guarani de outras inspiraes

    Monografia apresentada no curso deCincias Socia i s , da Univers idadeFederal do Rio Grande do Sul, comorequisito parcial para a obteno dograu de Bacharel em Cincias Sociais.

    Orientador: Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva

    Porto Alegre, 2006

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    Nos tempos de antes, no mundo de antes, o mbii (a lagarta) era um

    av (humano-guarani) seguidor de Nhanderu, que se tornou mal efoi transformado em mbii por Nhanderu. Depois com o mbiiNhanderu fez a alma dos Juru (dos brancos).

    Jovem Mby - Caderno de campo (09/05/2005)

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    Lista de Ilustraes

    Figura de capa: Colagem feita a partir das fotografias de folhas de yvyr vaku (plantamaligna) e yvyr raku (agulha de madeira), dispostas em forma concntrica. Fotos emontagem de autoria prpria...............................................................................................01

    Figura 01: Fotografias do vixrang indaj (imagem da guia). Anexada ao caderno de

    campo em (24/10/2006). Autor da pea desconhecido, fotos de autoria prpria................37

    Figura 02: Desenho da tat u peku (bolsa de tatu) Anexado ao caderno de campo em(13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mby..............................................41

    Figura 03: Foto das rplicas yvyrraku (agulhas de madeira). Anexada ao caderno decampo em (24/10/2006) Autoria de um dos meus interlocutores Mby, foto de autoriaprpria................................................................................................................................. 44

    Figura 04: Foto de rosto entalhado em tronco de rvore. Anexada ao caderno de campo em(07/11/2005) Autor do entalhe desconhecido, fotografias de autoria prpria.................... 52

    Figura 05: Foto de folhas de yvyr vaku (planta maligna) coletada a pedido por um demeus interlocutores. Anexada ao caderno de campo em (24/10/2006) Imagem de autoriaprpria................................................................................................................................. 55

    Figura 06: Desenho de folha de yvyr vaku (planta maligna) Anexado ao caderno decampo em (13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mby............................55

    Figura 07: Grande rocha. Anexada ao caderno de campo em (07/11/2005). Imagem deautoria prpria.....................................................................................................................56

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    Sumrio

    Agradecimentos....................................................................................................................07

    Resumo..................................................................................................................................08

    Convenes........................................................................................................................... 09

    Prlogo.................................................................................................................................. 10

    Os primeiros contatos...................................................................................................... 10

    Os Guarani....................................................................................................................... 11

    Feitiaria em Campo: Falando sobre feiticeiros.............................................................. 12

    Introduo............... ............................................................................................................. 16

    Mtodo de anlise............................................................................................................ 17

    Feitio............................................................................................... ............................... 19

    1. Xamanismo na bibliografia.............................................................................................21

    1.1 Legado Colonial.........................................................................................................21

    1.2 Outros etnlogos, outros guarani............................................................................... 21

    1.3 A etnologia ps-holista.............................................................. ............................... 23

    2. Imbavy'ky va' hegui kara......................................................................................... 26

    2.1 Denominaes do feiticeiro.................................................... .................................. 26

    2.2 Os lderes religiosos e suas denominaes............................................................... 29

    2.3 Os que sabem e os que fazem................................................................................... 31

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    3. Os caminhos do feiticeiro................................................................................................ 36

    3.1 O teko a'.................................................................................................................. 36

    3.2 O desafio do caminhar-viver.....................................................................................39

    4. Tatu pek: Os artefatos da feitiaria........... ...................................................................41

    4.1 Nhe va: Palavras ruins........................................................................................... 42

    4.2 Yvyrraku.................................................................................................................44

    4.3 Ka'av........................................................................................................................ 47

    5. Op marang....................................................................................................................49

    5.1 Os angu, os mba'e poxy e os anh.............................................................................49

    5.2 Yvyranhe vaku...................................................................................................... 54

    5.3 Mba'evyky hegui -J................................................................................................... 56

    6. Mba' va ombojaity........................... ............................................................................. 59

    6.1 Tendo nomes como alvos........................................................................................ 59

    6.2 Ayvu rei.......................................................................................................................60

    6.3 Limpando o mal.......................................................................................................... 60

    6.4 O fim do feiticeiro....................................................................................................... 64

    Consideraes finais............................................................................................................ 68

    Glossrio............................................................................................................................... 71

    Referncias............................................................................................................................74

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    Agradecimentos

    Agradeo primeiramente aos Guarani pelas valiosas lies de humanidade que me

    permitiram enxergar, atravs de outros olhares, as possibilidades contidas na magnificncia

    do (con)viver. Especialmente aos meus interlocutores agradeo pela pacincia exemplar,

    pela disposio ao dilogo graas as quais este trabalho se tornou possvel.

    Agradeo a todos os professores da graduao com os quais tive a oportunidade de

    dialogar, dentre eles agradeo especialmente ao Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva sempre

    presente e atuante na edificante tarefa de orientar, bem como Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul agradeo pelos suportes pedaggicos, burocrticos e materiais

    indispensveis.

    Aos amigos Rebeca Hennemann Vergara, Amanda Kizzy Nicolle Schimidt dos

    Santos, Maria Paula Prates, Andr Sarmento, Joo Maurcio Farias, Joo Rodrigo Pereira

    Saldanha, Luiz Felipe Rosado, Mrcio de Azeredo Pereira, Diego Eltz, Larusha Sanjur Krs

    Borges, Airan Milititsky Aguiar e Luiz Fernando Fagundes pelo dilogo imprescindvel e

    pela presena de esprito junto aos quais muito aprendi.

    Agradeo a Juliana por todo amor e carinho.

    Aos meus avs, ao meu irmo e ao meu pai, agradeo tanto o apoio inestimvel,como a afeio insubstituvel ao longo destes anos.

    Sou grato, sobretudo minha me, cuja presena, assim como a ausncia, to

    grande naquilo que sou.

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    Resumo

    Este trabalho trata dos elementos vinculados ao tema da feitiaria entre os Mby e os

    Nhandeva. Estas duas extensas redes de grupos, organizadas por parentesco e afinidade,

    atualmente compartilham o mesmo espao em aldeias permanentes e acampamentos

    provisrios no leste, no sul e no sudeste do Brasil; o territrio ocupado por essas populaes

    perpassa as fronteiras nacionais de diversos pases do cone sul. Fundamentado na

    experincia de aproximadamente trs anos de campo junto a comunidades Mby e

    Nhandeva-Guarani, o presente trabalho tem por objetivo tratar das prticas e percepes dos

    elementos do complexo xamnico Guarani em torno da feitiaria e do feiticeiro, buscando

    estabelecer linhas de dilogo entre as informaes, frutos d e minhas etnografias e das

    referncias bibliogrficas.

    Palavras-chave: Mby-Guarani, Nhandeva-Guarani, feitiaria, scio-cosmologia Guarani,

    xamanismo.

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    Convenes

    Todas as palavras escritas em Guarani esto grafadas em negrito tal qual me foram

    apresentadas por meus interlocutores, salvo as denominaes das parcialidades e a prpria

    palavra Guarani. No caso das citaes, por fidelidade s fontes documentadas, optei por

    preservar as formas grficas originais. Todas as palavras esto seguidas de suas tradues

    colocadas entre parnteses ou aps barra (/) ou, de forma inversa, contidas entre parnteses

    ou aps barra, salvo quando fazem parte do ttulo; nestes casos fiz uso de notas de rodap.

    Em parte dos ttulos esto sendo utilizadas palavras em Guarani, tendo em mente a

    preservao das referncias simblicas prprias desses termos. Algumas palavras foram

    modificadas em sua acentuao e esta se deve s limitaes impostas pela fonte utilizada na

    digitao. As vogais nasaladas esto grafadas com til ou trema. Nenhuma das palavras em

    Guarani ter qualquer classe de flexo (gnero ou nmero) a no ser quando constarem nos

    relatos ou em citaes bibliogrficas. Todas as citaes em outras lnguas que no o

    portugus foram traduzidas.

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    Prlogo

    Os primeiros contatos

    Durante a segunda metade do ano de 2003, tive a oportunidade de tomar parte como

    bolsista-pesquisador no projeto Corpora da cultura Guarani1 coordenado pelo professor

    Srgio Baptista da Silva, no Ncleo de Antropologia das Sociedades Indgenas e

    Tradicionais (NIT). Foi a partir da insero nesta pesquisa que iniciei os primeiros trabalhos

    de campo junto s terras indgenas guarani localizadas na grande Porto Alegre e arredores.

    Tmidos, srios, distantes e desconfiados: foi assim que me pareceram os Guarani naqueles

    dias.

    Durante a etapa etnogrfica do projeto Corpora da cultura material Guarani,

    integrei o projeto de extenso Formao de professores Guarani, no qual foram organizados

    seminrios em conjunto com os professores de diferentes terras indgenas para se pensar o

    ensino diferenciado e material didtico especfico para as escolas Guarani do Rio Grande do

    Sul. O projeto resultou na publicao de um livro didtico2 escrito e ilustrado pelos prprios

    professores, todo em Guarani, lanado na 51 Feira do Livro de Porto Alegre.

    Em Janeiro de 2005, a equipe de bolsistas do NIT realizou, sob a orientao doprofessor Sergio Baptista, o registro audiovisual no Puxirum (a tenda indgena do V Frum

    Social Mundial). Como resultado foram produzidos dois curtas-metragens exibidos na V

    RAM (Reunio de Antropologia do Mercosul), sendo um deles sobre as manifestaes e

    participaes dos Guarani no V FSM. Neste mesmo ano, como tentativa de estabelecer

    relaes de reciprocidade, realizamos oficinas de vdeo semanais junto a algumas Terras

    Indgenas nas proximidades de Porto Alegre. Dois anos e meio e alguns projetos depois, a

    minha impresso dos Guarani outra.

    O procedimento de insero em campo entre os Guarani caracteriza-se,

    1 O projeto em questo consistiu na catalogao sistemtica (atravs de fotografias e desenhos) dos objetos pertencentes cultura material (Proto) Guarani (cermica arqueolgica, instrumentos musicais, armas e adornos corporais), comnfase nos objetos portadores de grafismos junto a museus e acervos de universidades. Num segundo momento, essecorpus construdo (fotografias e desenhos) foi apresentado aos Guarani das aldeias do Rio Grande do Sul. A partirdisso, foram registradas suas memrias e percepes (discursos) relacionadas aos grafismos e objetos etnicamenteidentificados.

    2 Ayvu anhetengu Diversos Autores. Porto Alegre: Secret aria de Estado da Educao : UFRGS. Pr-Reitoria deExtenso. 2005, 75 p.

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    evidentemente, em um processo de longa durao. Se durante o primeiro ano persistiu o

    distanciamento, ultimamente, com a intensificao da convivncia, essa insero se deu de

    forma completamente diversa, fato evidenciado na recusa durante quase dois anos e meio

    das temticas relacionadas cosmologia que, nos ltimos meses tornaram-se freqentes.

    Os Guarani

    Divididos em quatro grupos sub-tnicos Kaiow, Mby, Nhandeva e Chiriguano -

    Os Guarani atualmente ocupam um territrio descontnuo que vai do estado brasileiro do

    Esprito Santo (ao Norte), passa por toda a costa sudeste e sul do Brasil (limite Leste),

    abrange todo territrio uruguaio at as margens do Rio da Prata (ao Sul)3. Estende-se ainda

    pelo territrio paraguaio, ocupando a poro norte do territrio argentino e grande parte das

    terras bolivianas at o sop das montanhas andinas (limite Oeste).

    Diversas comunidades compostas por grupos Mby e Nhandeva esto localizadas no

    Rio Grande do Sul, compartilhando espaos nos diferentes contextos, das reas indgenas

    aos acampamentos, e por vezes estabelecendo significativos laos de parentesco entre si. Em

    relao constituio da pessoa de um modo geral os Guarani compreendem-se enquanto

    seres essencialmente divisos, compostos por trs almas4 de caractersticas marcadamente

    distintas.

    A primeira e principal delas chamada nhe ou nhe por. um nome prprio,

    uma palavra e, ao mesmo tempo, alma, que constitui a parcela de deidade, bem como um

    potencial para a superao da condio humana em vida. Imortal e perfeita, nhe a

    origem do corpo5. Este em parte seu reflexo imperfeito, um lugar onde a alma deve

    assentar para assumir a condio humana. Na morte a nhe volta a habita r o yamb

    (santurio o u espao sagrado6 por vezes traduzido como paraso) de sua divindade

    3 Atualmente existem grupos familiares Mby Guarani habitando territrios at mesmo no estado do Par, logo suaterritorialidade fluda no nos permite uma exatido com relao aos pontos limtrofes. Desta forma os dados aquiapresentados devem ser entendidos mais como referncias do que fronteiras propriamente ditas.O nmero de almas varia significativamente de sub-etnia para sub-etnia, no caso, estou dando um tratamento genrico apartir do observado, em grande parte, junto aos Mby.

    5 Tratarei, brevemente, sobre este assunto posteriormente em um dos planos formadores do cosmo guarani.6 Sagrado sempre que referido aos elementos prprios do xamanismo Guarani deve ser entendido no seu sentido mais

    amplo e diverso das noes de sagrado vinculadas tradio judaico-crist.

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    correspondente, e pode voltar a renascer em outro corpo se assim desejar.

    Ag (tambm grafada ng) considerada uma alma telrica. Surge e se desenvolve

    com o corpo e, vinculada s paixes humanas, tambm o espao da animalidade. Se a

    pessoa tomada pelo mba'e poxy (substncia/estado/ente de fria) pode acabar em epot

    (estado de animalidade ou lado animal) e se transformar em um animal.

    A terceira alma, chamada angu (ou mbogu), o resultado da transformao da

    segunda alma (ag) nos casos em que os mortos tenham pautado suas vidas num teko'axy

    (modo de ser e de proceder incorreto) ou terem sido mortos atravs de feitiaria. O angu

    a alma telrica transformada em apario, tornada assombrao a vagar entre o mundo da

    vida e os espaos dos mortos7. Algumas leituras, dando maior nfase continuidade,

    consideram angu e ag como uma mesma alma que em condies diferentes anterior ou

    posterior a morte apresentam caractersticas distintas.

    Por um vis sociolgico, a n o o de pessoa guarani estende-se tambm a

    instrumentos rituais, msicas, adornos corporais, armas e objetos estimados. Estende-se

    ainda a redes de parentesco, mais ou menos segmentadas nas diferentes sub-etnias, a partir

    da proximidade ou distncia geogrficas. Em suma, a pessoa guarani compe-se a partir do

    dilogo permanente entre as especificidades sociais da rede e a compreenso cosmolgica

    ambas (re)atualizadas no grupo familiar e afetivo no qual esta pessoa se insere.

    A feitiaria e campo: Falando sobre feiticeiros

    Meus primeiros contatos com os Guarani ocorreram em decorrncia de outros

    projetos de pesquisa e extenso. Em conseqncia destes, as incurses junto s teko

    tomaram a forma de visitas freqentes, atravs das quais me foi apresentado de formaabreviada o modo de ser Guarani. Dois anos depois comecei a elaborar o projeto para uma

    possvel monografia. Todavia, este projeto, apesar de ter como objeto de pesquisa estes

    mesmos grupos, pouco tinha a ver com a temtica aqui abordada, focando o papel das

    lideranas estr itament e poltic as (caciq ues) e as e strat gias de empoderamento e

    7 Nimuendaju (1987, p.37-40) registra todos os nomes equivalentes prprios dos Apapocva: Ayvuce equivale a Nhepor , acyigu o mesmo que ag, angury o equivalente a angu.

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    desempoderamento assumidas (ou refutadas) na relao entre lderes e liderados.

    Com a intensificao do campo nos anos de 2004 e 2005, e tambm como reflexo do

    contexto vivido nestas comunidades, deparei-me com informaes sobre feitiaria. Meus

    interlocutores, trs jovens Mby aparentados, na ocasio habitando as terras indgenas

    prximas a Porto Alegre, voluntariamente abordaram aspectos superficiais sobre este esta

    temtica. Esse foi o ponto de partida para meu interesse no assunto.

    Assim, por ocasio da realizao das disciplinas Antropologia da Religio8 e

    Etnologia e Etnografia do Brasil9, escrevi um artigo intitulado O curto caminho do feiticeiro

    que apresentei como trabalho de concluso de ambas. Sinttico e , em certa medida,

    exploratrio, o artigo em questo trazia alguns elementos que me pareceram indito, ouainda pouco aprofundado, sobre a feitiaria entre os Guarani.

    Diante da avaliao positiva do artigo, e tambm por sugesto do Professor Sergio

    Baptista, decidi modificar meu projeto de monografia e voltar a campo com o objetivo de

    dar continuidade a etnografia das particularidades relacionadas feitiaria.

    No entanto, desde o princpio do campo ficaram evidentes as dificuldades

    decorrentes da improbabilidade de dialogar diretamente com algum que de fato faz uso de

    tcnicas de feitiaria ou assistir um ritual desta ordem: obter informaes diretamente de um

    feiticeiro em certo sentido, a figura central deste trabalho se revelou algo invivel.

    Conseqentemente, o mtodo em campo restringiria-se a entrevistas semi-estruturadas

    buscando restabelecer (e desenvolver) dilogos sobre os assuntos anteriormente referidos,

    unto aos jovens com os quais j vinha dialogando.

    Inicialmente, estas estratgias e temores no permitiram a abertura de espaos para

    abordar essa temtica. Este sempre foi considerado um assunto desagradvel, algo a ser

    evitado. Entre os Mby-Guarani comum a crena de que falar ou mesmo escrever sobre

    porova (trabalho xamnico prejudicial feito ao corpo) uma forma de invoc-lo.

    Tanto Nimuendaj entre os Apapcuva (Nhandeva-Guarani) como Schaden e

    Cadogan entre os Mby apontam para estratgias de ocultao intencional das prticas e

    8 Ministrada pelo prof. Dr. Ari Pedro Oro.9 Ministrada pelo prof. Dr. Sergio Baptista.

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    conhecimentos relativos as prticas de feitiaria.

    Ningum admite ser mojary (senhor dos venenos / feiticeiro), mas

    h certas pessoas, ou as houve, que todos sabem s-lo (...) O temordos ndios quanto ao mboraa (canto maligno) dos feiticeirosestrangeiros desmesurado. Mesmo entre si relutam em tocar noassunto pois sabido que no se deve pintar o diabo na parede10.

    No fcil obter explicaes sobre as prticas de feitiaria e muitomenos assistir a elas, pois ningum quer que sobre ele venha cair asuspeita de lanar mo dessa ordem de recursos. Os mais retradosneste sentido so os Mb11.

    difcil obter dados fidedignos, pois ningum quer ser consideradocomo conhecedor de tais coisas12.

    No entanto, em ocasies fora da aldeia, longe de outros Guarani, relatos sobre

    feitiaria por vezes se fizeram presentes: assunto nosso [delimitava um de meus

    interlocutores], os outros no precisam saber. Mesmo o silncio com relao ao tema me

    foi explicado: Trabalho ruim [feitio] no se fala, tambm no se fala dos oapva va'

    (os que fazem trabalhos prejudiciais ao corpo). Se tem feiticeiro na famlia, ningum fala

    nada13.

    De fato, no ltimo ano minhas observaes ampliou-se em direo a outros espaos

    que no os das terras indgenas. Tambm os espaos urbanos, quando visitados por meus

    interlocutores, tornam-se pontos de observao. Minha prpria residncia passou a ser

    freqentada como ponto de paragem. As esferas domsticas e profissionais eclipsaram-se,

    tornando difcil, muitas vezes, saber quem est na posio de nativo e quem o pesquisador.

    Sem esta proximidade e confiana mtua certamente teria sido impossvel tocar em

    assuntos sob segredo, conversar sobre xams e feiticeiros. Mas, longe de ser instrumental, a

    proximidade afetiva. O campo tambm serviu como espao de domesticao para os Mby

    que po r me io de categorias de parentesco apropriadas do mundo uru (compadrio,

    apadrinhamento) nos colocaram, eu e meu companheiro de campo Luis Fernando Fagundes,

    a meio caminho do tratamento dispensado a um parente14. Assim sendo, apesar de ser uru

    10 Nimuendaju (1987, p. 93 e 95).11 Schaden (1974, p. 126).12 Cadogan (1959, p.141).13 Trecho de fala de um jovem mby, registrado em caderno de campo (07/11/2005).14 Este meio-parentesco foi de certa forma oficializado pelo convite que nos tornasse padrinhos de filhos de nossos

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    (ocidental / no-indgena), tornamo-nos assunto pertinente no s aos nossos interlocutores

    diretos como tambm de sua rede de parentesco.

    Se estas pessoas nos possibilitam conhecer alguns dos aspectos sagrados to caros ao

    seu modo de ser que em tantas outras ocasies so vetados para os no-Guarani, no

    somente devido a uma postura de simples tolerncia com a diversidade; , principalmente,

    graas ao reconhecimento do respeito e partilha aos preceitos identificados pelos Guarani

    em seu modo de ser ideal: -mbojerovi A confiana que vem do interior; e mboray

    entendido de muitos modos diferentes por autores distintos: Reciprocidade15, justia16,

    compartilhamento pleno, solidariedade tribal profunda17, ou ainda (naturalizando tradues

    mais crists) amor recproco18, amor e bondade19.

    Se existiu uma preocupao por parte dos Mby ao falar sobre feitiaria, houve igual

    compromisso da minha par te ao escrever sobre seus relatos. Foi necessrio proteger a

    identidade daqueles com os quais dialoguei. Logo, ao longo do texto, opto por uma certa

    impreciso no que se refere s informaes que poderiam identific-los: todos os nomes

    citados por meus interlocutores foram trocados por pseudnimos. Tornar uma etnografia

    impessoal faz com que as pessoas sobre as quais escrevemos sejam, em grande medida,

    descaracterizadas. Neste processo, infelizmente, a etnografia perde muito de sua cor. Noentanto, considero este um preo a ser pago ao se tratar de um assunto considerado to

    delicado e ao mesmo tempo to instigante.

    interlocutores.15 H Clastres (1987 , p.94), Montardo (2002, p.58), Assis (2006, p. 21, 22, 87).16 H. Clastres (1987, 96)17 P Clastres (1990, p 29), H Clastres (1987, p.100).18 Pissolato (2006, p. 164)19 Cadogan (1959, p.19, 20 e 26), Dooley (1998, p.71), Pissolato (2006, p.175, 330 e 343).

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    Introduo

    O xamanismo, em to do o Novo Mundo, segue constituindo um dos traos mais

    marcantes das populaes amerndias. Mediadores entre os humanos e os seres de outros

    nveis de existncia, presentes em uma extensa gama de grupos tnicos diferentes, de formas

    e papeis igualmente distintos, os xams so os detentores de um amplo conjunto de

    habilidades, capacitados para o deslocamento ent re os d iferentes plano s do cosmos,

    detentores de meios que podem ocasionar ou solucionar problemas no mbito de suas

    comunidades.

    De acordo com Langdon, o xamanismo pode ser definido pelas seguintes

    caractersticas:

    1 A idia de um universo de mltiplos nveis onde a realidadevisvel supe sempre uma outra invisvel. 2 Um princpio geral deenergia que unifica o universo (...) em que tudo relacionado aosciclos de produo e reproduo, vida e morte, crescimento edecomposio. 3 Um conceito nativo de poder (...) com o homemcomum, com o xam e com os espritos [e cuja configurao varia]de cultura para cultura (...) 4 Um princpio de transformao, deeterna possibilidade das entidades do universo de se transformaremem outras. Assim, os espritos adotam formas concretas, humanas ouanimais. Xams tornam-se animais ou assumem formas invisveis

    com as dos espritos (...) O que separado pode ser unificadoatravs da metfora (...) 5 O xam como mediador que ageprincipalmente em benefcio de seu prprio povo 6 Experinciasextticas com base no poder xamnico, possibilitando seu papel demediao (...) Talvez [com] o uso do tabaco (...) , mas tambm[atravs de] sonhos, dana, canto e outras tcnicas [que] podem serempregadas em conjunto ou em separado para atingir a mediaoxamnica20.

    Apesar das diversas particularidades do complexo xamnico Guarani, grande parte

    das caractersticas apontadas pela autora pode ser observada entre estas populaes. Ocomplexo xamnico Guarani semelhante a uma religio na medida em que estabelece

    atravs das formas, normas e rituais poderosas, penetrantes e duradouras disposies e

    motivaes nos homens [atravs das quais os conceitos e concepes formulados so] de

    uma ordem de existncia geral [revestidos] com a tal aura de factualidade, que as

    20 Langdon (1996, p.27 e 28).

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    disposies e motivaes parecem ser singularmente realistas21.

    Assim sendo, no h qualquer inteno de contraposio ou estabelecimento de

    gradaes resqucios das leituras evolucionistas etnocntricas entre as noes de religio

    (ou religiosidade), crena, xamanismo, feitiaria e magia, apesar das diferenas existentes

    entre estas categorias. Um complexo cosmolgico (religioso ou xamnico) considerado

    aqui como um universo discursivo no qual disposies parciais (muitas vezes universalistas

    e universalizantes) interagem, acionando elementos simblicos compartilhados a partir de

    seus posicionamentos diferentes22.

    Complexos xamnicos como dos Guarani distinguem-se ainda das religies (ou dos

    complexos religiosos) stricto senso pela ampli tude de sua abr angn cia: Falar de

    xamanismo em vrias sociedades, implica em falar de poltica, de medicina, de organizao

    social e de esttica23.

    O presente trabalho tem como principal objetivo compreender o ponto de vista

    mico24, as perspectivas simblicas relacionadas feitiaria Guarani. Feitiaria deve ser

    entendida aqui como um conjunto diverso de prticas e discursos que, integrados ao

    complexo xamnico Guarani movimentam energias destrutivas e invisveis por trs do

    cotidiano atravs de ataques xamnicos. Estes ataques so considerados perigosos e

    negativos. Conseqentemente, tabus no mbito destas populaes.

    Mtodo de anlise

    Buscando evidenciar as diferentes posies no extenso quadro referencial Guarani,

    faz-se necessria a contextualizao das fontes e do tratamento despendido s informaes

    coletadas.Meus interlocutores so jovens mby-guarani que no presente etnogrfico habitam

    aldeias prximas cidade de Porto Alegre. Em funo das polticas de confinamento

    21 Langdon (1996, p.26)22 Barth (2000, p.137).23 Langdon (1996, p.27).24 Obviamente a apreenso do ponto de vista mico entendido como a compreenso total das particularidades tal qual

    compreendidas pelos atores sociais um ideal de pesquisa que obviamente s pode atingido em termos.

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    historicamente empreendidas pelo Estado, os Mby foram paulatinamente forados a dividir

    territrios indgenas demarcados e acampamentos com grupos Xirip (Nhandeva-Guarani) e,

    em casos mais raros, com os pongu (Kaingang - J Meridionais). Com ambos os grupos h

    um escalonamento que vai do compartilhamento de princpios comuns (com os Xirip) ao

    relativo estranhamento (com relao aos Kaingang). Esto ainda em contato permanente

    com as populaes no-indgenas (Ju ru) membros da sociedade envolvente vendedores,

    burocratas, filantropos, polticos, estudiosos e vizinhos que visitam suas aldeias com

    freqncia.

    Por vezes em meu texto acabo incorrendo numa certa generalizao em prol do

    modo de ser Mby ao me referir genericamente a um modo de ser supostamentehomogneo guarani. Isto se deve certamente ao fato daqueles com os quais mais dialogo

    serem membros desta parcialidade.

    Apesar disto reconheo uma srie de distines (que no anulam as similaridades)

    entre as parcialidades apresentadas a mim atravs da bibliografia, levando em conta tambm

    o fato de que no mbito de uma nica parcialidade podem existir variaes a serem

    consideradas. Uma das propostas de Barth reconsiderar o papel da variao no mbito do

    mtodo comparativo.

    Trabalhando com os termos de uma moderna concepo de cultura,no pode haver um mtodo comparativo para as comparaes feitasentre os objetos mais distantes e contrastivos (geralmente chamadade comparaes entre culturas ou sociedades) e outro mtodo (quepoderamos chamar de anlise detalhada) para comparaes feitasentre diferentes casos e vozes de um grupo designado (...) Sereconhecermos a natureza contnua da variao na cultura e o carterarbitrrio das nossas distines entre sociedades, as prprias idiasde dentro e entre parecem perder sua fora e utilidade25.

    Atravs desta perspectiva, as variaes, longe de serem problemas, so encaradas

    como elementos a serem considerados em uma configurao to complexa quanto quela

    assumida pelos grupos, pelas redes e pelas parcialidades que compem o que denominamos

    homogeneamente de etnia Guarani.

    A diferena e a diversidade podem ser conceptualmente

    25 Barth (2000, p.197).

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    t ransformadas em um campo de var iabi l idade, l evandoprogressivamente construo de um conjunto de dimenses devariao para facilitar a descrio de qualquer forma observada26.

    Tanto as variaes quanto as semelhanas presentes nas categorias micas

    relacionadas a cada parcialidade, nos procedimentos rituais e nos elementos mitolgicos,

    apresentam valiosas evidncias com relao s caractersticas distintas ou compartilhadas

    destas populaes.

    Feitio

    A pa lav ra feiti e sua s der iva das so evidentemente exgenas ao universo

    lingstico guarani. Enquanto traduo das prticas relacionadas aos ataques xamnicos

    inferidos, a palavra em questo no s assumida como vlida pelos prprios Guarani,

    como tambm contm em sua etimologia propriedades pertinentes para o seu emprego como

    conceito etnolgico-cientfico.

    No primeiro captulo de seu livro Reflexo sobre o culto moderno dos deuses

    fe(i)tiches, Bruno Latour reconstitui a origem do termo feiti no contexto de contato entreos portugueses catlicos e os africanos da costa da frica Ocidental. Ocultando a certeza da

    legitimidade de suas crenas em detrimento de todas as demais, os portugueses interrogaram

    os africanos sobre a origem e divindade dos objetos de sua adorao:

    Vocs fabricaram com suas prprias mos os dolos de pedra, deargila e de madeira que vocs reverenciam?, os guianeensesresponderam sem hesitar que sim. Intimados a responder segundaquesto: Esses dolos de pedra, de argila e de madeira soverdadeiras divindades? (...) obstinam-se a repetir que fabricaramseus dolos e que, por conseqncia, os mesmos so verdadeiras

    divindades. Zombarias, escrnio, averso dos portugueses frente atanta m f (...) Para designar a aberrao dos negros da Costa daGuin e diss imul ar o m al-entendido, os portugueses (muitocatlicos, exploradores, conquistadores, at mesmo mercadores deescravos) teriam utilizado o adjetivo feitio, originrio de feito,particpio passado do verbo faze , forma figura, configurao, mastambm artificial. Fabricado, factcio, e por fim, fascinado,encantado27.

    26 Barth (2000, p. 193).27 Latour (2002, p.15 e 16).

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    Ao contrrio da mentalidade portuguesa moderna que concebia a divindade (apesar

    de sua influncia) como exterior e separada da natureza dos homens (da provavelmente se

    origina o termo sobrenatural), o vis Guarani compreende a pessoa como entidade

    segmentada em diferentes domnios; composta por potencialidades inerentes a suas distintas

    almas, tanto para a animalidade (sombra) como para a divindade (iluminao). Cada pessoa,

    em sua partcula divinal, criao/desdobramento da prpria divindade (mbojer28). Dessa

    forma, igualmente imbuda da capacidade de capacidade criadora, a partir de suas aes e

    principalmente atravs de cantos/palavras que guardam em si a sabedoria das divindades

    (aran d por) e possibilidade de inspirao necessrias para criar29.

    Tal qual para os Guianeenses, a etimologia (do termo) feiti recusa-se a escolherentre o que toma forma atravs do trabalho (ou do falado/cantado) e o artifcio fabricado 30.

    Assim como feiti , a expresso guarani Joapva, uma das denominaes dada ao ataque

    xamnico, evidencia seu carter de produo atravs do trabalho. Joapva traduzido

    pelos Guarani como trabalho maligno feito no corpo.

    Os Guarani assim como entre os africanos da costa ocidental na poca do contato com os

    portugueses no reconhecem qualquer oposio ou contradio entre a idia de se produzir

    algo (atravs do trabalho ou da fala) e o fato deste algo ser dotado de poder. As duas razesda palavra indicam bem a ambigidade do objeto que fala, que fabricado ou, para reunir

    em uma s expresso os dois sentidos, que faz falar31.

    A palavra inspirada, pautada nas referncias scio-cosmolgicas que lhes so

    particulares, investida de anima produzido e orientado na intencionalidade e na sabedoria

    daquele que a profere e a executa. Fabricado e ao mesmo tempo encantado, os sentidos

    etimolgicos da palavra feiti tornam possvel seu emprego no contexto da etnologia

    Guarani, vinculando-o especificamente a uma das formas de xamanismo existentes.

    28 Cadogan (1959, p. 17).29 Segundo um dos meus interlocutores, este criar deve ser entendido em seu sentido estritamente divino, traduzido

    pelos Mby como criar a partir do nada, igual a Nhanderu, ou ainda criar a partir de si, de sua prpria sabedoria.Caderno de Campo (17/04/2006).

    30 Latour (2002, p.16).31 Idem (2002, p. 17).

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    1. Xamanismo na bibliografia

    1.1 Legado colonial

    O xamanismo amerndio vem sendo objeto de curiosidade desde o momento do

    contato at a atualidade. Da aurora da invaso europia nos sculos XVI e XVII, ficaram os

    inmeros relatos dos primeiros cronistas: Jesutas como Antnio Ruiz de Montoya e Pedro

    Lozano, alm de viajantes como Jean de Lry, Andrea Tevet e Han Staden registraram suas

    impresses, algumas vezes de forma to densamente detalhada que poderiam ser

    considerados os fundadores de uma 'etnografia colonial'32. Em meio s informaes contidas

    em suas crnicas, existem referncias feiticeiros poderosos e profetas caminhantes.

    Seja junto aos grupos Guarani no interior do continente, seja entre os Tupinamb na costa,

    as imagens evocadas nestes relatos tornaram-se constituintes no processo de formao do

    estereotipo do paj, gravadas no imaginrio ocidental.

    J nos sculos XVIII e XIX, alguns estudos faro uso dessas crnicas, ligados

    principalmente a pesquisas etno-lingusticas de base documental. Na maioria destes estudos

    no havia contato direto com os povos amerndios. Assim, seu legado para a compreenso

    da cosmologia e das formas de xamanismo tupi-guarani mnimo, seno, inexistente.

    1.2 Outros etnlogos, Outros guarani

    Somente no sculo XX, com a extensa etnografia de Kurt Unkel Nimuendaju e a

    publicao de As Lendas de Criao e Destruio do Mundo como Fundamentos da

    Religio dos Apapcuva-Guarani33 surgiram outras perspectivas relacionadas temtica do

    xamanismo. Alm de ser pioneiro no desenvolvimento do mtodo de investigao de campo

    (observao participante)34

    , Nimuendaju tambm o primeiro a descrever a mitologiaGuarani, assim como os cerimoniais dos Apapcuva (andeva-Guarani).

    Outra figura de destaque foi Egon Schaden, etnlogo cuja teoria, essencialmente

    32 Tambm em P.Clastres (2003, p. 95).33 Nimuendaju ([1914]1987).34 O campo de Kurt Nimuendaju iniciado em 1905 junto aos Apapocva-Guarani, antecipa o trabalho de campo de

    Bronislaw Malinowski (em 1915) junto o povo Mailu e os trobianeses em dez anos. tambm um dos primeirosetnlogos a abandonar as visitas em formato de expedies, optando por conviver com os grupos estudados in solo.

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    funcionalista, estava vinculada s escolas americana e britnica. Esse autor o responsvel

    pelo modelo de classificao de trs dos quatro grupos sub-tnicos Guarani existentes que

    vem servindo de base para estudos posteriores desde ento Mby, Nhandeva (ou Xirip no

    Paraguai e Rio Grande do Sul) e Kaiow (ou Pa no Mato Grosso do Sul e no Paraguai). Em

    Aspectos fundamentais da cultura guarani35, Schaden pesquisa os contextos de contato e

    intercmbio cultural nos quais as diferentes sub-etnias encontram-se inseridas em sua poca.

    Como defensor da teoria da aculturao, anunciava um futuro terrvel mais ou menos

    semelhante para as diferentes parcialidades, dando como certo e prximo seu etnocdio.

    Schaden foi, sem dvida, um antroplogo de seu tempo.

    Somente em 1959, com a publicao do livro Ayv Rapyt36: Textos mticos de losMby-Guarani del Guair parte considervel dos preceitos cosmolgicos dos Guarani so

    revelados atravs da etnografia de Len Cadogan. De excepcional contedo e profundidade,

    n o Ayv Ra py t e nc on t ra m-s e r e g i st r a dos , pel a p r i mei r a ve z , inme r os

    cantos/meditaes/ensinamentos sagrados atravs dos quais os poetas-profetas Mby

    apresentam as propriedades centrais de sua cosmologia, cantando o fundamento da palavra,

    o bom modo de ser, a primeira terra, o grande dilvio e a nova terra.

    Um dos principais colaboradores de Cadogan na dcada de 50 e 60, BartolomeuMeli, possui uma ampla gama de trabalhos etnolgicos (etno-histricos e etno-lingusticos),

    resultados de mais de quarenta anos de pesquisas de campo, principalmente junto s

    parcialidades Guarani. Segundo sua interpretao, em grande parte baseada nas leituras de

    Cadogan, os elementos cosmolgicos so preponderantes sobre o social, estabelecendo uma

    relao de assimetria entre o cotidiano e os momentos rituais-cerimoniais constituinte do

    modo de ser Guarani37.

    Proporcionando novas interpretaes, as obras de Hlne e Pierre Clastres fazemreferncia aos elementos cosmolgicos com as particularidades polticas dos grupos Tupi-

    Guarani. Nas obras Sociedade Contra o Estado38, Arqueologia da Violncia39 e Terra Sem

    35 Schaden (1974).36 Cadogan (1959).37 Meli (1989, p.293)38 P.Clastres (2003).39 Idem (2004).

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    Mal40, os autores apontam para a efetivao processual do profetismo Tupi-Guarani como

    parte de um mecanismo reagente ao empoderamento das lideranas polticas, ou seja,

    contrrio reordenao (diviso) da sociedade entre governantes e governados. As

    migraes profticas historicamente observadas nas crnicas do perodo colonial so aqui

    compreendidas como parte de um mecanismo cultural capaz de impedir o estabelecimento

    de preceitos de autoridade e comando, desempoderando lideranas e condicionando seu grau

    de influncia sua retrica e ao seu prestgio.

    1.3 A etnologia ps-holista

    A segunda metade do sculo XX est marcada pelo aumento significativo na

    quantidade de pesquisas etnolgicas, seja entre os grupos Tupi-Guarani do ramo amaznico,

    seja diante da emergncia tnica entre os indgenas do nordeste. Esta ampliao da prtica

    antropolgica tem frutos significativos nos quadros tericos e epistemolgicos atuais.

    Expoente de uma antropologia consciente das dimenses histricas das populaes

    indgenas, a etnologia de Joo Pacheco de Oliveira contraps-se ao fixismo e ao

    essencialismo de certas anlises, que, segundo o autor, desconsideram estes grupos enquanto

    "sujeitos histricos plenos", condenando suas culturas a uma esttica que remete sempre ao

    purismo primitivista de uma leitura evolucionista. Oliveira critica ainda outra implicao

    deste tipo de anlise: o engessamento resultado da estrita vinculao entre os grupos

    amerndios e os espaos geogrficos dentro das fronteiras historicamente registradas pelas

    sociedades ocidentais envolventes em que estes grupos habitavam. Sua contribuio de

    grande importncia para os estudos antropolgicos, principalmente no que se refere s

    sociedades em situao de contato intenso com as sociedades nacionais41.

    O perspectivismo, teoria sintetizada por Eduardo Viveiros de Castro, a partir de seu

    campo entre os Arawet42, somado ao dilogo com outros autores, entre estes Bruno Latour,

    Philippe Descola e Aparecida Vilaa, certamente uma das teorias de maior influncia na

    etnologia nas ltimas dcadas. A abordagem perspectivista entende o pensamento amerndio

    0 H.Clastres (1987).1 Oliveira (1999).2 Povo Tupi-Guarani nas margens do rio Ipixuna, afluente do mdio Xingu.

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    como pautado por uma leitura multinaturalista do cosmos, no qual muitas naturezas

    partilham os mesmos atributos culturais. Dessa forma, o pensamento amerndio contrape-se

    cosmoviso multiculturalista, prpria do pensamento moderno, que, de forma sinttica,

    pensa uma mesma natureza compartilhada por muitas culturas43.

    A ob ra Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas, compilao feita por Jean

    Langdon, formada de um conjunto de artigos abordando o fenmeno do xamanismo, tanto

    entre as populaes amerndias quanto relacionadas s religies ayahuasqueiras e a estudos

    neurolgicos. Com artigos assinados por diversos antroplogos, entre estes, a prpria

    organizadora e Dominique Gallois, esta compilao elucidativa na medida em que um

    amplia o universo do xamanismo ao mesmo tempo em que aponta para algumas de suascaractersticas elementares44.

    Parte significativa dos elementos de feitiaria Guarani que busco tratar neste trabalho

    est presente, ainda que de maneira breve, nas fecundas etnografias de Deisy Montardo,

    Valria de Assis, Celeste Cicarone e Elisabeth Pissolato.

    O impacto da leitura de outros autores na compreenso do observado em campo

    estabelece-se do meu contato com as obras de Clifford Geertz45, Fredrik Barth46, Gilles

    Deleuze e Flix Guattari47, quando se fazem presentes na escolha das preposies (de lugar

    ou de posse), bem como na leitura das formas de parentesco e da territorialidade.

    O n ma de n o tem pontos , t ra je tos , nem ter ra , emboraevidentemente ele os tenha. Se o nmade pode ser chamado de odesterritorializado por exce lncia, justamente porque areterritorializao no se faz depois, como no migrante, nem emoutra coisa, como no sedentrio (...) Para o nmade, ao contrrio, adesterritorializao que constitui sua relao com a terra, por isso elese reterritorializa na prpria desterritorializao 8.

    A partir de algumas destas leituras, a identidade torna-se compreensiva de um modo

    3 Viveiros de Castro (2002).4 Langdon (1996).5 GEERTZ (1989).6 Barth (2000).7 Deleuze & Guattari (1995, vol. V, p.53). Apesar dos Guarani no serem nmades stricto senso, sua relao com a

    espacialidade pode ser considerada desterritorializada se levarmos em conta a importncia do caminhar em sua scio-cosmologia.

    8 Deleuze & Guattari (1995).

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    rizomtico e f lu ido: suas fronteiras desterritorializaram-se em redes de parentesco ,

    procedimentos, objetos rituais, emaranhados de referncia que ora se contrapem, ora

    convergem, por vezes se anulam e em outros casos se reforam. J no resiste mais a nfase

    esttica n os conceitos dicotmicos tais como tradio/inovao, ou ent re sociedades

    simples/complexas, e mesmo o monismo de categorias como sociedade e cultura, tornou-se

    algo questionvel49.

    9 Barth (2000, p.109).

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    2. Imbavy'ky va' hegui Kara

    50

    Se o interesse com relao ao xam guarani plural, as leituras so as mais diversas,

    sendo identificvel uma clara diviso na bibliografia no que se refere aos aspectos do

    xamanismo Guarani. Enquanto parte da bibliografia aponta para o carter homogneo do

    xam, outra parcela defende a existncia de uma especializao que distingue os lderes

    religiosos dos feiticeiros. Esta diviso no mais das vezes pode ser evidenciada nas

    denominaes assumidas (ou evitadas) pelos estudiosos51.

    Qualquer tentativa de anlise da feitiaria guarani apresenta uma srie deconsideraes tericas e metodolgicas a serem levadas em con ta: quais so as

    possibilidades de generalizao ou particularidade dos elementos relacionados ao complexo

    xamnico se tratando das diferentes parcialidades? Quais so os pressupostos a serem

    assumidos em uma comparao entre o observado em campo e os dados sobre as populaes

    Guarani e Tupi antigos presentes nos relatos coloniais? Com o intuito de perceber as

    semelhanas e diferenas destas formas de xamanismo busco dados comparativos tanto nas

    etnografias contemporneas quanto nas crnicas coloniais, confrontando-os com os dados da

    minha prpria etnografia.

    Se em alguns momentos as fronteiras mesmo que fluidas apresentam distines nas

    formas de xamanismo, estas parecem coexistir e dialogar no complexo socio-cosmolgico

    guarani. Ainda no so to claros para mim os limites das especificidades e generalizaes

    relacionadas ao estudo das diferentes parcialidades (Guarani) e grupos (Tupi e Guarani),

    sej am ele s h ist r ico s o u e tn ogrficos. Evidentemente, devido caracterstica

    descentralidade atravs da qual se organizam estes grupos, existem diferenas que podem

    ser observadas mesmo no interior de uma parcialidade tnica. A meu ver esta diversidade

    por vezes se assemelha a um c aleidoscpio de possibilidades que ora convergem, ora

    divergem, numa dinmica prpria e difcil de ser acompanhada pelos mpetos do etnlogo.

    50 Traduzido por o feiticeiro e o lder religioso.51 Paj, xam, feiticeiro e curandeiro so algumas das denominaes mais comuns.

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    2.1 Denominaes do feiticeiro

    Entre os Mby nas terras indgenas ao leste do Rio Grande do Sul, as denominaes

    mais comuns referentes aos feiticeiros so oapva va' (os que fazem trabalhos no corpo),

    porovaky' (os que ferem furtivamente aos prximos)52 e a mais freqente delas,

    imbavy'kyva'53 (os que brincam com a vida). J os Apapcuva (Nhandeva-Guarani) da

    obra de Nimuendaju54 utilizavam a palavra mojry (senhor do veneno55) ao se referirem ao

    feiticeiro. Ainda outra denominao utilizada pelos Nhandeva (Xirip) para designar o

    feiticeiro, opongava, foi registrada por Chase-Sardi56. H de se notar tambm alguma

    semelhana entre esta palavra e a expresso Mosseu y gerre documentada em 1557 pelo

    viajante francs Jean de Lri57 junto aos Tupinamb. Em seu glossrio constitudo emfrancs quinhentista a partir da fontica das palavras Tupi Lri registra:

    Mosseu y g err e. Siginifica guardador de remedio; ou a quempertence o remedio; e uzam dessa expresso, quando querem xamaruma mulher feiticeira, ou que est possessa do espirito mo; poismosseu remedio; e gue rra pertenas(grifo meu)38.

    Para os atuais Mby-Guarani, mojry em si no possui sentido negativo, sendo

    compreendido por eles simplesmente como av dos remdios. Assim, elucidativo que

    uma parte dos significados do termo registrados por Lri no sculo XVI seja semelhante

    quela encontrada entre os Mby da Teko Jata' ty no incio do sculo XXI.

    O termo pay (ou abape) registrado por Montoya58 no sculo XVII como sendo o

    equivalente guarani a feiticeiro, possui outro sentido para os Mby atuais do Sul do Brasil.

    No sendo qualquer denominao ligada ao xam, lder religioso ou feiticeiro, paj59 uma

    categoria mica referentes potncia (saberes-armas), os preceitos da feitiaria, conhecidos

    no s necessariamente pelos feiticeiros, mas colocados em prtica apenas por estes.

    52 Meli, (1985, p. 317).53 Este o motivo pelo qual opto por empregar no mais das vezes esta denominao.54 Nimuendaju (1987, p. 63 e 93).55 Idem (1984, p. 73). Em nota, os tradutores Viveiros de Castro e Charlote Emmerich registram que Nimuendaju em seu

    texto original faz clara distino entre duas classes de xams: O Medeizimnann quando se refere ao principal/curador eo zauberer remetendo-se ao feiticeiro. Infelizmente estas distines se perderam na traduo para o portugus.

    56 Chase-Sardi apud Pissolato (2006, p.168 e 169).57 Em Istria de uma viagem feita terra do Brazi por Joo de Leri traduzida em linguagem verncula por Tristo de

    Alencar Araripe. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro n.52 (80), 1889 p. 111 - 372.58 Montoya (1876, p. 261).59 Kracke apud Langdon (1996, p.27) utiliza o conceito de possuidor de poder como traduo para a palavra paj.

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    Rejeitando o uso do termo paj, Toninho definia-o comoinominvel, afastando-o de seu universo verbal, como palavra debranco e lado ruim do curandeiro. Meu interlocutor explicou-me

    que o f eiticeiro era um grande sbio, um xam, que adquirindoconhecimentos-fazeres malficos a fim de combat-los e domin-los, utilizava-os para propsitos benficos, atingindo os indivduos ea sociedade60.

    Considera-se um feiticeiro todo aquele que faz uso das palavras malignas e das

    magias prejudiciais. O simples conhecimento dos procedimentos da feitiaria por parte de

    uma pessoa no encarado como algo essencialmente ruim, que est es so de

    conhecimento mais ou menos comum dos kara e, inclusive, empregado nos procedimentos

    de cura, principalmente, inclusive ao mesmo tipo de mal que podem causar61

    . No entanto,quando algum faz uso desses conhecimentos torna-se agente e tambm vtima de seus atos,

    deixando-se levar pelo yvy te ko axy (os caminhos/modos imperfeitos de um mundo

    imperfeito).

    Entre os Guarani (ao menos entre estes Mby e Nhandeva com os quais realizei meu

    campo), os feiticeiros existem para alm dos sistemas de acusaes 62 instaurados nos

    momentos de tenso social.

    O Julio muito meu amigo, meu amigo mesmo, mas ele faz coisaruim. Todos sabem que ele faz. Ele um porovaky', apesar de sermeu amigo, eu sei. Uma vez ele quis me ensinar. Ele disse se vocquiser, voc vai aprender tudo como se faz. Eu no quis, no gostodessas coisas, no trazem coisas boas. Ele nunca pra, est sempreindo embora, ningum sabe onde ele foi parar63.

    Atravs de relatos, alguns pressupostos com relao feitiaria so colocados

    prova: o feiticeiro longe de ser uma pessoa anti-social, encontra-se integrado nas redes de

    parentesco e afinidade. Apesar do tabu da feitiaria, algumas pessoas entre aquelas quelhes so mais prximas podem ter mais ou menos noo dos feitios lanados por este64;

    60 Cicarone (2001, p. 210).61 Nesse sentido um feiticeiro s seria capaz de curar os males provenientes de ataques considerados feitiarias, no

    estando apto para realizar outras formas de cura.62 As questes referentes ao sistema de acusaes entre os Guarani sero abordadas posteriormente no sub captulo 6.2

    desta mesma monografia.63 Trecho do relato de um jovem Mby registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome original da pessoa citada

    foi substitudo por um pseudnimo.64 Outro relato registrado (11/07/2005), um de meus informantes narra a ocasio em que o mesmo feiticeiro citado acima

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    - 2 9 -

    longe de ser uma figura restrita a um passado remoto, quase mtico, o feiticeiro guarani pode

    ser encontrado tanto nas alde ias mais afastadas, como naquelas prximas aos grandes

    centros urbanos.

    2.2 Os lderes religiosos e suas denominaes

    As crnicas coloniais no deixam dvidas em relao influncia de alguns xams

    no contexto colonial, uma vez que esto repletas de relatos nos quais xams poderosos e

    profetas peregrinos, atravs do poder das palavras, atraiam multides em suas andanas.

    Carahbas, caravas e caras estes homens que estavam presentes tanto entre os

    Tupinamb quanto entre as populaes Guarani continente adentro possuem certo

    destaque nos relatos de Yves d'Evreux, Montoya, Lozano, Nobrega, Tevet e Lri, alguns dos

    quais consideraram to grande e to ameaadora sua fora que no poupavam esforos

    contra estes arautos do demnio.

    Ironicamente, alguns grupos Guarani e Tupi atriburam aos europeus reconhecendo

    nestes ltimos, talvez, uma origem divina os mesmos nomes pelos quais chamavam seus

    grandes profetas que estes europeus tanto demonizaram.

    Os brasileiros [entenda-se: os tupi] chamavam carayba queles quetem virtude de fazer milagres, por isso deram esse nome aoseuropeus recm-chegados, j que viam aqueles a rtefatos, an tesdesconhecidos por eles e que lhes pareciam superar as foras danatureza. Por aqui tambm os guaran, cuja lngua muito parecidacom a brasile ira [entenda-se: tupi], aos espanhis, assim comoquaisquer europeus os chamam at hoje caray65.

    Ainda ho je entre o s Aw Guaj e o s Tenetehara, grupos Tupi no estado do

    Maranho, assim como entre os Pa Tavyter (Kaiow-Guarani) no Mato Grosso do Sul,

    Kara compreendido como sinnimo de homem branco, ocidental. Para os falantes do

    guarani paraguaio, ka ra uma forma respeitosa de tratamento significando senhor. Este

    fato ltimo denota a forma como as elites coloniais se aproveitaram das categorias mais

    caras aos indgenas a fim de garantir sua dominao sobre estes.

    se gaba junto a amigos e parentes do modo como asfixiou at a morte um importante kara por meio de agulhas demadeiras introduzidas atravs de feitios em sua garganta.

    65 Dobrizhoffer apud Meli (1981, p. 165).

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    Os ndios, batizando-se ganhavam o nome de Kara, mas narealidade no entravam na sociedade dos novos kara [entenda-se osocidentais], os quais j haviam conseguido reter para si o significado

    exclusivo que no desejavam compartilhar com os outros: o de sersenhor, o de merecer respeito, o de ser superior e o de ter e poder,exigir submisso e o trabalho necessrios para eles

    66.

    Diferentemente do s Pa Tavyter, os Mby-Guarani no Guair cujos cantos e

    palavras inspiradas foram objeto de estudo para Cadogan67 , assim como os atuais Guarani

    do leste do estado do Rio Grande do Sul, reconhecem a palavra kara como denominao

    referente aos Opygu (os que habitam a casa de cerimnias), seus respeitados lderes

    religiosos. Entre os Mby o termo parece ter mantido parte de sua semntica pr-colonial,

    no possuindo qualquer vnculo com a figura do homem-branco ao qual chamam uru.

    Ao se referirem s denominaes de seus lderes religiosos, os Apapocuva dividem-

    nos hierarquicamente da seguinte forma: Os a nd er (nosso pai) e seu equivalente

    feminino, andec (nossa me) e os pa68. Os ander e andecy so os dirigentes das

    danas-cantos rituais, reconhecidos no espao ritual pela posio dianteira que tomam com

    relao as suas fileiras69. Pa aquele denominado (na traduo de 1987) paj-principal, o

    grande entre os ander, e o nico capaz de realizar o emongara ou Nimongara70

    (longo canto solo ritual).

    Em A Experiencia religiosa Guarani, Bartolomeu Meli refere-se igualmente

    palavra pa', dando-lhe, no entanto, outro significado. Ele o vincula figura do lder (pai) de

    uma famlia extensa, um homem de respeito, talvez ancio, com algo de xam e de profeta

    (...) que rene em sua casa numerosos genros e outros parentes chegados71. Meli registra

    tambm o termo Kara , s que neste contexto referindo-se ao grande lder religioso de

    vrias famlias extensas, sinnimo de pa' guau72; profeta-vidente capaz de entrar em

    contato com as deidades na busca pelos nomes das crianas. Dessa forma,

    66 Meli (1981, p. 167).67 Cadogan (1959)68 No entanto, alguns autores entre estes Nimuendaju, traduzem-no como 'pai'.69 Idem (1987, p. 74).70 Nimuendaju (1987, p. 80).71 Meli (1989, p. 341).72 Tambm na crnica de Eve D'Evreux registra-se o termo 'pagy guau' traduzindo-o como 'grande xam' (os mesmos

    que recebiam o ttulo de cara) D'Evreux Apud Clastres (1975, p . 37), da mesma forma em Bartolom (1991, p.135)entre os Av Katu Et (Nhandeva-Guarani no Paraguai).

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    As duas figuras pa' e kara apesar de tudo, no se contrapemnecessariamente; juntas representam uma forma de sociedade e umideal de pessoa em que a reciprocidade econmica serial geral e

    plena e cada qual possa alcanar o estado de perfeio, numa terraonde no h males nem morte73.

    Pissolato identifica quatro tipos distintos vinculados funo de liderana religiosa

    entre os Mby, no excludentes entre si. o kara o principal opora' i va'e (cantor-rezador)

    da comunidade (no sendo necessariamente o nico); tambm o opita'i va'e (curador

    atravs do cachimbo) e o nico xam capaz de realizar o batismo das crianas. Auxiliar dos

    Kara, o yvyraija74 (senhor dos bastes-insgnia de madeira) o principal tocador do

    popygu (bastes-insgnias) e o principal tocador do popygu (bastes-insgnias), bemcomo outros instrumentos sagrados; os que assumem esta funo, por vezes esto em estgio

    de preparao para serem os prximos kara75. Existem ainda os especialistas em curas a

    partir dos remdios da mata que podem ou no se r k unh kara ou kara: estes so

    denominados Ipa kaaguy va'e (aqueles que curam atravs dos remdios da mata).

    2.3 Os que sabem e os que fazem

    Assim como o termo shaman originalmente tunguska-siberiana, paj uma palavra

    de origem tupi-guarani que aps ter sido ressignificada, foi incorporada s formas ibricas (e

    eurocentradas) de classificao como denominao prpria a diversas formas de

    sacerdcio76, papis religiosos observados na frica, na sia, na Amrica e na Oceania.

    Co m o incio dos estudos acadmicos nesse campo, tanto a palavra paj como

    shaman foram assumidas como conceitos analticos pelos pesquisadores, que inicialmente

    no compreenderam o carter generalizante de suas utilizaes. Deste uso decorre uma srie

    de mal-entendidos permeando centenas de anos de registros escritos relacionados ao

    xamanismo.

    Apresentando uma heterognea do fenmeno do xamanismo j no perodo colonial,

    73 Idem (1989, p. 342).74 Tambm registrado por Montardo (2002, p. 259).75 Pissolato (2006, p. 288).76 Este termo deve ser entendido no seu sentido mais amplo.

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    Losano distingue os xams guarani do perodo colonial em trs categorias: os curandeiros,

    os profetas e os feiticeiros.

    Os curandeiros possuem a arte de chupar [fingindo] possuir o poder de curar as

    doenas chupando as partes doentes [retirando o] espinho, fragmento de osso ou verme que

    trazia escondido em baixo da lngua77. J os profetas, que detinham autoridade muito

    maior que todas as outras (...), tentavam persuadir a populaa de que eram de origem

    suprema (...) Passavam por autnticos profetas (...) Eram considerados como santos,

    obedecidos e venerados como deuses78. E, por fim, os feiticeiros, de ao mais perniciosa,

    pois os que a exercem so familiares do demnio (...) consultam essa apario quando

    querem enfeitiar algum; para faz-lo procuram diversos objetos suscetveis de provocar omal (...) para trespassar o corpo de dores79.

    Tambm Lry divide pajs e carabas entre os Tupinamb...

    preciso saber que eles acolhem certos falsos profetas a quemchamam Carabas, que andam de aldeia em aldeia (...) e assim fazemcrer que, por se comunicarem com os espritos, podem no apenasdar fora a quem desejarem (...), mas ainda que so eles que fazemcrescer as grossas razes e os frutos que, como eu disse em outrolugar essa terra produz. E toma a precauo de explicar que no sedeve confundir os carabas com ... uma espcie de embusteiros que

    tm entre si chamados Pajs que equivale a barbeiro ou mdico80

    Na mesma obra Lry registra ainda um outro termo em seu glossrio, mossou y

    gerre81, segundo ele empregado como denominao do feiticeiro, bem como referncia a

    algum (uma mulher) que se encontra em estado de possesso por um esprito maligno.

    Ambos os autores traam distines claras ao tratarem das prticas dos diferentes

    tipos xams, diferentemente de boa parte da literatura jesutica deste perodo, na qual os

    xams so genericamente tratados por feiticeiros.A etnografia de Miguel Alberto Bartolom entre os Ava Kat u Et (Nhandeva-

    Guarani) do Paraguai, aponta igualmente para um carter 'homogneo' e ambguo do

    77 Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 37).78 Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p.39).79 Idem (1975, p. 37).80 Lry Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 38)81 Previamente citado na pgina 27.

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    xam82. Segundo este autor no existem outras distines que no as de cunho hierrquico.

    Assim sendo, o xam Nhandeva considerado como tipicamente ambivalente. Por outro

    lado, Bartolom reconhece uma disparidade entre a forma de atuao dos xams de menor

    hierarquia e as posies tomadas pelo pa' guasu. O emprego de ataques xamnicos entre

    estes grandes lderes xamnicos descrito como rarssimo pelo autor, deixando clara a

    improbabilidade que um pa' guasu atue desta forma83.

    Outros autores como Meli, Grnberg e Grnberg84 entre os Kaiow, e Cadogan85

    unto aos Mby, identificam uma relao de oposio entre os Pa'/anderu e Kara em

    frente aos pay'va. Este ltimo chega ainda a situar o feiticeiro Mby como uma classe

    separada, inspirada pelo mba'e poxy (ser furioso, substncia de fria), arand va (que usaa m cincia) em detrimento de seus semelhantes.

    Se h mdicos que curam pela palavra com suas rezas e cantos, htambm os sabidos (mba'ekua), que usam seus conhecimentospara fazer o mal (...) Muitos deles usam elementos de magia negra(...) para surtir os preteridos efeitos daninhos fazem-se acompanhartambm de rezas de fazer mal86.

    Os dados que obtive em campo referentes a este aspecto do xamanismo apontam

    para uma terceira possibilidade diversa da bibliografia, contrapondo-se tanto noo de umxam homogneo, quanto quela posi o que def end e a e xis tn cia de papis

    marcadamente distintos: esta terceira possibilidade pautada no princpio de transformao

    caracterstico dos complexos xamnicos, a partir do qual o lder religioso e o feiticeiro,

    compartilhando alguns preceitos em comum, podem ser compreendidos e distinguidos com

    base na inclinao conseqente de seus atos e escolhas que toma em vida. Esta inclinao

    delimita as possibilidades de converso de um kara em feiticeiro ou, na situao oposta, de

    um porovaky' em um lder religioso.

    As categorias de distino entre o feiticeiro e a liderana religiosa no esto dadas no

    nvel dos conhecimentos que seriam particulares a cada um. No considerado um feiticeiro

    82 No mesmo sentido algumas observaes de Nimendaju (1987, p. 63) sobre o feiticeiro anderyquyn.83 Bartolom (1991, p. 135).84 Meli, Grnberg e Grnberg (1976, p. 221-222, p. 249-251)85 Cadogan (1959, p.91).86 Meli (1989, 317).

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    aquele que meramente conhece a cincia maligna (paj va ou arandu va). Espera-se

    inclusive que os prprios kara dominem os saberes referentes feitiaria com a finalidade

    de combat-la antes de se aprofundarem em outros saberes inspirados.

    Nhander quer que ele aprenda, no pra fazer, mas pra cuidar.Cuidar dos parentes. Ento o kara sabe como faz com a agulha eouve o canto do paj'va. Mas no canta igual, mas no faz igual.Kara no pode ser bravo (...) Mas no usa, se usar pega outrocaminho. (...) Desde o comeo, quem no pega o caminho certo jera. (...) Se eles cometem umas 2 ou 3 vezes os erros, j era87.

    considerado um feiticeiro todo aquele que para alm de conhecer, emprega a m

    cincia contra as outras pessoas, atacando-as furtivamente. A distino entre a lideranareligiosa (kara) e o feiticeiro (imbavy'kyva') reside justamente na ao, no modo de

    proceder. J que ambos conhecem/possuem o paj vai 88 (saber/meio maligno), so

    considerados ipaj va'e89 (aqueles que dominam/sabem fazer paj) e mbaekua90 (os

    sabidos, conhecedores).

    Munidos desta sabedoria, ambos esto preparados para limpar os males que so

    potencialmente capazes de inferir. No entanto, o conhecimento de limpeza do feiticeiro est

    limitado a estes mesmos males , enq uanto o pod er de cura d o kara geralmenteconsiderado muito mais vasto, abrangendo todas as chamadas doenas de guarani ou

    doenas de ndio91.

    Idealmente, espera-se que um kara jamais utilize seu conhecimento para inferir o

    mal. No entanto, o uso dos saberes referentes aos ataques xamnicos parece ser sempre

    empregado de forma relacional. Conseqentemente, em contextos de grande discrdia, a

    figura do kara torna-se motivo de grande desconfiana. Tambm lideres religiosos no

    esto isentos e nem lhes parecem vetados de sentimentos de averso, dio e vingana, jque so considerados igualmente como parte da yvy rupre koax: a terra de princpios

    87 Trecho da fala de um de meus interlocutores Mby, registrada em caderno de campo (09/05/2005).88 Meli (1989, p. 317), Pissolato(2006, p. 166) e grafado ainda pay va - por Meli & Grnberg (1976, p. 221-222; 249-

    251). Este termo parece ter se constitudo em contraposio ao ka'av (tambm chamado mbaj e paj) uma classe defeitios considerados lcitos e relativamente inofensivos. Ver pg 41.

    89 Dooley (1998, p. 138).90 Schaden (1974, p. 126), Meli, (1985, p. 317).91 Assis (2006, p. 133 e 134) e Pissolato (2006, p.170).

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    enganosos, feia, doente, imperfeita, mortal.

    Se todo kara um feiticeiro em potencial, o contr rio no necessariamente

    verdade; o feiticeiro pode ser qualquer um (at mesmo um jovem ou uma criana) que,

    conhecendo apenas os saberes primrios da constituio de um kara justamente queles

    referentes aos atributos da feitiaria , passa a inferir o mal, sendo motivado pela inveja,

    dio e/ou desejo de poder, inspirando-se por entidades que no as divindades do panteo

    Guarani92. Logo, as preocupaes no seriam decorrentes da ambigidade da liderana

    religiosa, mas das possibilidades de feitio inerente a todos os Guarani, potencializadas

    pelos saberes do kara.

    Desta forma, reconhecida em toda a liderana religiosa a potencialidade para se

    tornar um feiticeiro. Entretanto, os kara que fazem uso desse conhecimento de forma

    negativa so tidos como raros, na medida em que seus feitos acabariam por distanci-lo da

    busca pelo estado de ikandire (imortalidade), aguyje (perfeio). Ou seja, do estado de

    divindade.

    Tm uns que querem chegar antes, querem alcanar aguyje, mas noalcanam, passam bem longe, se perdem muito cedo no caminho.(...) s vezes eles nem sabem, acham que esto no caminho certo,

    mas no esto. D pra saber quando isso acontece, a pessoa vaificando brava, ficando brava por qualquer coisa93.

    Apesar de improvvel, possvel tambm que um(a) imbavy'kyva' abandone a

    prtica da feitiaria e aceite seguir o longo caminho do aprendizado e da inspirao junto s

    divindades, vindo a se constituir enquanto kara ou kunh kara. Tambm no parece

    existir qualquer tipo de veto este processo de transformao, a no ser a aquele enunciado

    pelas lembranas de suas possveis vtimas e os parentes destas.

    No tive contato com nenhum relato sobre as implicaes cosmolgicas destas

    converses, no entanto possvel supor que exista algum tipo de conseqncia, j que

    fabricar ataques mgicos contra outras pessoas considerado pelos Mby uma violao

    grave dos bons preceitos de conduta. Os homens e as mulheres que fazem uso de feitios

    sendo ou no lderes religiosos provavelmente sofrem restries na busca do aguyje.

    92 Pretendo tratar este aspecto de forma mais aprofundada nos captulos posteriores.93 Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mby, registrada em caderno de campo (09/05/2005).

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    3 Os caminhos do feiticeiro

    3.1 O teko a'

    Qual mais rpido, o caminho bom ou o caminho ruim? Esta pergunta retrica foi

    a resposta dada por um de meus interlocutores diante dos meus questionamentos sobre como

    se constitui um feiticeiro.

    Para os no familiarizados com as metforas relacionadas cosmologia Guarani, esta

    pergunta necessitaria ainda de alguma contextualizao. No entanto, para um Mby, o

    questionamento faz referncia direta a aspectos scio-cosmolgicos prprios do teko (modo

    de ser e proceder guarani)94, estritamente vinculados ao ideal de sua religiosidade: Na busca

    em vid a pelo estado de deidade (ou de semelhana aos deuses) tornar-se ikandire(imortal)95, potencialidade inerente a todos os seres humanos , o caminho a ser percorrido

    no o mais reto, nem o mais curto e no deve nunca se bifurcar96 nem ceder aos obstculos

    criados a fim de testar a mby'aguaxu (fortaleza espiritual) daquele que opta por trilh-lo.

    No mito de criao mby, Nhander Pap (Nosso nico Pai) caminha para fora da

    Yvy Tenond (a Primeira Terra) aps o conflito com Nhandexet (nossa me verdadeira).

    Esta, grvida, percorre uma longa jornada buscando por Nhander Pap, guiada por seu

    filho Nhamand (o Deus Sol), que ainda no nascido lhe indica os bons caminhos. Eis queNhamand, da barriga de sua me, deseja uma flor surgida na beira do caminho. Ao peg-

    la, Nhandex acaba sendo picada por uma vespa, tornando-se rspida com seu filho que

    desde ento se cala. Em seu caminhar, Nhandex toma o rumo errado, afasta-se das pegadas

    de Nhander Pap e caminha em direo a casa da av das onas, onde acaba sendo morta.

    Nhamand, nascido de Nhandexet j morta, cria seu irmo Jaxy (o Deus Lua) e com ele

    caminha pela terra primeira nomeando as coisas, povoando os espaos e guaranicizando o

    mundo para, ao fim de sua jornada, encontrarem o grande Pai e receberem deste as insgnias

    dos kara97.

    94 Nimuendaju (1914, p. 28).95 Cadogan (1959, p.18), Clastres (1987, p. 85).96 Em alguns trechos dos cantos coletados e traduzidos por Lon Cadogan, presentes em seu Ayvu Rapyt, existem

    referncias a preocupao com a possibilidade da bifurcao do amor que impossibilita alcanar valor e fortaleza(Cadogan (1959, p. 92). A palavra amor tal qual empregada na traduo de Cadogan, busca dar conta do conceitoguarani de mbyaguaxu ou mboray, ambos os termos sero abordados futuramente neste texto.

    97 Meli (1985, p. 326).

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    Figura 1: Vixrang Indaj (imagem de madeira da guia) Em sua base trsreferncias simblicas. Do lado esquerdo a l etr a A apropriada do alfabetoocidental. No centro, um grafismo relacionado ao teko a' e, direita, o desenhode uma palmeira Pind, smbolo das divindades, da imortalidade, presente nocentro de cada um dos yambs (cidades das nhe ou 'paraso'), formando, assim,o eixo em cruz responsvel pela sustentao do mundo. Lido da esquerda para adireita (forma comum na tradio ocidental) simboliza a trajetria daqueles queaceitam trilhar o teko a' na busca pelo aguyje. Existe somente um meio de sealcanar a deidade pelo teko a': buscar entre os muitos caminhos (modos de ser ede proceder) o tek por (belo caminho sagrado revelado pelas divindades).

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    Ao pedir a flor na qual se escondia a vespa, Nhamand estabelece uma espcie de

    teste/obstculo no qual sua me se perde ao tornar-se rspida com o filho devido a picada.

    Nhandex deixa, ento, de ouvir as palavras de Nhamand, que se cala. sua frente, o

    caminho se bifurca, e ela acaba por escolher, entre as duas possibilidades, aquela que a

    levar em direo a morte. Esta a descrio do surgimento do primeiro teko a' ainda na

    terra primeva (yvy tenond). Desde ento todo aquele que busca se tornar uno com sua

    partcula divina deve passar pelos obstculos do longo caminho tortuoso em direo

    Nhander.

    Apontado como central na cosmologia guarani, o termo teko a' me foi apresentado

    atravs de inmeras tradues: desafio ou prova98, a sombra do modo de ser, a vida dedifcil compreenso/aceitao e ainda o caminho dos obstculos. Cada humano possui seu

    prprio teko a, um t rajeto por entre as imperfeies (-eko va), riscos e provaes

    distintas de todas as outras.

    No existe no teko a' uma rota especfica a ser aprendida; chega-se ao fim na

    medida em que aquele que trilha o caminho se esquiva da multiplicidade de obstculos. Em

    contrapartida, os obstculos tornam-se mais difceis e numerosos na medida em que o fim se

    aproxima. Assim, o caminho sempre construdo por seu caminhante nas escolhas que faz,nas posies que escolhe em referncia a outras humanidades, mantendo vigilncia

    permanente para que o caminho no se bifurque.

    Meu av Marcelino estava quase alcanando [o aguyje]. Ele cantavae danava. E na palma da sua mo caia orvalho e caia umandal[granizo na fala sagrada e secreta dos Kara] e ele sabia como equando iria chover. Minha av possua um tata'y [madeira em fogo]que nunca se apagava. Mas ento meu av se perdeu no teko a.Uma outra mulher entrou na vida dele e ele se deixou perder, ento

    ele no alcanou [o aguyje]99.

    Percorrer o teko a nos preceitos do teko por (sagrado/belo modo de ser) um

    98 Dooley (1998, p.32) registra -eko a' v. t. direto. Por prova: jajoeko a' provamos, desafiamos uns aos outros. (De -a'.).

    99 Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mby, registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome originalda pessoa citada foi substitudo por um pseudnimo.

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    empreendimento na busca por um maior estado de compreenso e perfeio, o aguyje. Uns

    poucos aps uma vida de caminhar, poucos mesmo entre os kara, que atravs de suas

    ornadas espirituais por outros nveis do cosmos na infra-humanidade100 (animal) ou na

    meta-humanidade (divina)101 - conseguem seguir os passos deixados pelas divindades.

    3.2 O desafio do caminhar-viver

    So muitos os caminhos curtos presentes no teko a'. Ao se enveredarem por estes

    outros caminhos, as pessoas se distanciam igualmente das divindades. A metfora do

    caminho ilustrativa, tratando-se de um povo que tem em sua tradio o caminhar como um

    meio de se distanciar/resolver os problemas. A vida caminhar, para superar a condio de

    mortal necessrio se distanciar o mximo possvel da yv rupre kax na constante

    busca pela Terra sem males (yvy maraey)102.

    Nesta busca a qual constitui o caminhar, os humanos so constantemente ameaados

    por sua parcela de imperfeio, pelas paixes da carne e do sangue que podem o levar ao

    epot (animosidade) e a ak te' (avareza); pela fria que ao mesmo tempo substncia e

    entidade (mba'e poxy); pela morte do corpo e suas conseqncias sobre a alma telrica

    (angu). Superar esse caminho de provaes, eliminar os traos de imperfeio, tornar-se

    uno com seu nhe (alma-palavra-divina), estrutura leve (esqueleto) que ergue (anima) os

    corpos, alcanar em vida um estado meta-humano de concretude transcendente da yvy

    marae'y seria atingir ao fim do caminho o status de deidade.

    Compreende-se o lugar aparentemente paradoxal ocupado pela vidasocial no pensamento dos guaranis, ao mesmo tempo como signo desua desgraa e signo de sua eleio: define-se como a mediao

    100 Opto aqui por ut iliza r os conceitos meta-humanidade (metacultural), humanidade (cultural) e infra-humanidade(infracultural) na diviso dominial do cosmos, buscando assim abarcar a idia de muitas naturezas e uma nica cultura,de humanidades existentes lcus apartados, compartilhando formas de socialidade semelhantes. Desta forma, ahumanidade (Ava-Mby) encontra-se no entre-lcus em contraposio s outras humanidades. (Viveiros de Cast ro1986 Apud, 2002).

    101 Em sua cosmologia, os Mby-Guarani apontam para a existncia de sete ou mais domnios (celestiais) sobrepostos.Estes so reconhecidos como os domnios das divindades, dos anh, dos senhores guardies dos elementos daexistncia, em uma traduo cultural, Parasos. Cadogan (1959, p. 29).

    102 A gua parada denominada gua morta tambm entre os Mby. Esta gua atrairia ou possuiria angu, da mesmaforma que os cemitrios. Dessa forma, considerada viva e boa toda gua que percorre um caminho, toda guacorrente. Em consonncia com o que afirma Assis (2006, p.127).

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    necessria entre um aqum (a natureza, que imediatez) e um alm(o sobrenatural que ultrapassagem). Seu ser duplo situa destamaneira os homens entre duas negaes possveis de sociedade103.

    Hlne Clastres compreende que a natureza (que opto por tratar como infra-

    humanidade) por excelncia o espao/tempo do imediatismo, o alm (ou meta-

    humanidade) o espao/tempo da deidade que se caracteriza pela transcendncia. Nesse

    sentido, a humanidade (o que a autor a chama de socia l) compreendida como um

    locus/processo em disputa entre o imediatismo e a transcendncia.

    Afastar-se dos preceitos da transcendncia, no entanto, no transforma uma pessoa

    em feiticeiro. A prevalncia do teko axy ku (...) manifestada por um comportamento

    [considerado] despido de justia (mborayu), despreocupado com as regras de

    reciprocidade104, mesmo se contrapondo aos princpios da religiosidade guarani, no

    implica necessariamente em inferir o mal atravs de feitios.

    apenas ao realizar os trabalhos ocultos, somente empregando o mal-dizer inspirado

    que algum passa a ser considerado um porovaky'. O feiticeiro no somente aquele que

    se distancia do teko por (belo modo de ser e de proceder); tambm um cmplice

    consciente das foras consideradas responsveis por esta transgresso. As palavras ruins, os

    cantos de dio inspirados/orientados pelos imba'e poxy (furiosos), pelos angu (espritos

    dos mortos) e pelos anh (demnios) so as armas das quais dispe contra aqueles que

    considera seus inimigos.

    As relaes entre o feiticeiro e essas entidades auxiliares so sempre ocultadas.

    Geralmente, quem emprega a feitiaria o faz s escondidas, dissimulando suas reais

    intenes e os mba'evyky (objetos que brincam [ameaam] a vida/objetos de feitios) as

    insgnias do feiticeiro, provas materiais de sua ao so escondidos e jamais exibidos de

    boa vontade a outras pessoas.

    103 H.Clastres (1987, p . 94).104 Idem (1987 p. 96).

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    4 Tatu pek105: Os artefatos de feitiaria

    Os Guarani nas aldeias do Rio Grande do Sul afirmam que o imbavy'kyva' pode

    ser reconhecido ainda nos dias de hoje, na Argentina e no Paraguai, assim como nos tempos

    antigos, por portarem sua tatu pek, uma bolsa confeccionada com carapaa de tatu

    costurada e sustentada por tiras de couro106, na qual guardam seus mba'e 'va (objetos de

    maldade) ou mba'evyky .

    A opinio mais comum sobre a origem das enfermidades a de queindivduos maus, especialmente feiticeiros de tribo estranha ou atda prpria gente, abusam de suas faculdades e foras extraordinriaspara fazerem entrar, por via mgica no corpo de outrem um objetoou substncia responsvel pela molstia o quid malignum (...) Seentrou no corpo em conseqncia de magia negra, o curador nadaconsegue fazer enquanto no descubra o responsvel, a fim de atac-lo por meio de contrafeitio107.

    To perigosos quanto os seus artefatos e empregados em conjunto com os mesmos,

    nhe va (os cantos e palavras malignas) com as quais o feiticeiro busca atacarfurtivamente suas vitimas108 - so reveladas queles que tem paj (saber/arma mgica), que

    possuem ar and va (sabedoria maligna).

    105 Traduo: bolsa de carapaa de tatu.106 O Mby autor do desenho acima, afirma ter visto uma destas bolsas de carapaa de tatu, objeto particular do feiticeiro,

    em fotografias coloridas trazidas do Paraguai terra indgena de Guarita, no incio da dcada de 1990.107 Schaden (1974 p. 124).108 Cadogan (1959, p.90).

    Figura 2: Desenho de Bolsa confeccionada com a carapaade tatu de cemitrio, um dos smbolos do feiticeiro. Ondeeste guarda seus objetos de maldade.

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    4.1 Nhe va109

    Para o guarani a palavra tudo. E tudo para ele palavra 110. No tarefa fcil

    reconhecer a amplitude desta afirmao no mbito destes grupos. Se o prprio segmento

    divino contido em cada homem e mulher so palavras e ao mesmo tempo almas, no seria

    absurdo afirmar que outras palavras tambm podem se torna r substancialmente algo

    prximo a espritos.

    O mal-dizer entre os Guarani supera a esfera de uma simples ofensa comunicada. Tal

    qual as divindades, as palavras proferidas pelos humanos tambm so gerativas. Todo mal-

    dizer por si s uma espcie de maldio, causando um impacto considervel no cotidiano

    guarani. No sendo do controle de nenhum especialista, o mal-dizer proferido por qualquer

    um, mesmo sem a intencionalidade de uma agresso mgica ilcita, pode ser considerado

    uma forma de ataque oculto.

    Ao escutar a narrativa do filho, dona Odlia disse-lhe que j sabia,que no estava bem. Falou em fofocas e mentiras. Silvano, ento,pediu-me desculpas e esclareceu que viera ali justamente para isso,para desculpar-se por sua me , pelas coisas que ela no estavapodendo me falar. Coisas s quais era melhor eu no ter acesso (...)Falou que sua me estava sendo vtima de fofocas e de malfalares...111

    Estas maldies so potencialmente menos perigosas que um outro mal-dizer, aquele

    considerado inspirado e passvel de ser transformado, animado, tornado vivo e guiado pela

    vontade daquele que o profere/invoca.

    Bem conhecidas e consideradas so as palavras dos kara, frutos da inspirao

    divina, recebidas dos pais e mes primordiais. Estas, no entanto, no so as nicas formas de

    palavras inspiradas, nem so os deuses os nicos capazes de enviar aos humanos suas

    palavras/cantos. Os angu112 (alma telrica que depois da morte por vezes se converte em

    109 Assis (2006, p.141) traduz e' va como alma telrica. J Montardo (2006, p.54) traduz e' va fa lar mal oufalar ruim como um tipo especfico de feitio.

    110 Meli (1991, p.306).111 Montardo (2006, p.54). A autora em nota explicita ainda a utilizao da expresso e' va fala r mal ou falar

    ruim que entre os Guarani caracteriza um tipo de feitio, em virtude do qual a vtima dos comentrios sofremconseqncias malficas.

    112 Chamado angury entre os Apopcuva. Nimuendaju (1987, p.43-45).

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    assombrao), os anh (demnio) e mba'e poxy113 (objeto de fria) tambm possuem a

    capacidade de inspirar