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    Encontro Regional Nordeste de Histria Oral ESPAO, MEMRIA E NARRATIVA: em busca dos dilogos possveis

    UFCG, Campina Grande, 23 a 26 de setembro de 2003

    Mesa-redonda Histria oral: questes terico-metodolgicas

    O fascnio do vivido, ou o que atrai na histria oral

    Verena Alberti

    A histria, como toda atividade de pensamento, opera por descontinuidades:

    selecionamos acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para conhecer e explicar o

    que se passou. Com a histria oral no diferente. Mas uma entrevista de histria oral

    tem uma vivacidade especial. da experincia de um sujeito que se trata; sua narrativa

    acaba colorindo o passado com um valor que nos caro: aquele que faz do homem um

    indivduo nico e singular, um sujeito que efetivamente viveu e, por isso d vida a

    as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem to distantes. Ouvindo-o falar,

    temos a sensao de ouvir a histria sendo contada em um contnuo, temos a sensao

    de que as descontinuidades so abolidas e recheadas com ingredientes pessoais:

    emoes, reaes, observaes, idiossincrasias, relatos pitorescos. Que interessante

    reconhecer que, em meio a conjunturas, em meio a estruturas, h pessoas que se

    movimentam, que opinam, que reagem, que vivem!

    Esse fascnio do vivido sem dvida em grande parte responsvel pelo sucesso

    que a histria oral tem alcanado nos ltimos anos sucesso que pode ser atestado pelo

    nmero crescente de pesquisadores, professores e estudiosos fascinados pela

    metodologia, que freqentam os congressos e seminrios de histria oral em todo o

    mundo e no Brasil especialmente.

    importante contudo saber que o que atrai, na histria oral, no lhe exclusivo e

    muito menos novo no mundo de hoje. Neste trabalho procurarei situar a histria oral

    em relao a dois paradigmas que podem explicar o fascnio que ela exerce: a

    hermenutica e a idia do indivduo enquanto valor.

    ALBERTI, Verena. O fascnio do vivido, ou o que atrai na histria oral. Rio de Janeiro: CPDOC, 2003. 4 [f]

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    Hermenutica: compreender reencontrar o eu no tu

    O filsofo Wilhelm Dilthey (1833-1911), um dos principais responsveis, no final

    do sculo XIX, pelo surgimento das cincias humanas como universo distinto das

    cincias naturais, teve influncia decisiva nas formas de estudar o passado que

    relacionam temas e acontecimentos s condies histricas de seu aparecimento e

    desenvolvimento. A hermenutica era, para ele, o fundamento das cincias humanas,

    baseadas na compreenso. Para compreender o homem, dizia Dilthey, necessrio

    compreender sua historicidade noo estranha s categorias estticas das cincias

    naturais, cujo fundamento no era a compreenso mas a explicao. O modo de pensar

    hermenutico, que no se resume obviamente filosofia de Dilthey, consiste em

    valorizar o movimento de se colocar no lugar do outro para compreend-lo e em

    acreditar que as coisas (o passado, os sonhos, os textos, por exemplo) tm um sentido

    latente, ou profundo, a que se chega pela interpretao.1

    Um dos pontos de contato mais claros entre hermenutica e histria oral a

    categoria da vivncia para Dilthey, a menor unidade das cincias humanas, que so

    epistemologicamente atreladas vida. A vivncia concreta, histrica e viva o prprio

    ato, no algo de que estejamos conscientes. Ela um dos termos da frmula que,

    segundo Dilthey, torna acessveis os objetos das cincias humanas: vivnciaexpresso

    compreenso. As produes humanas exprimem a vivncia e cabe ao hermeneuta

    compreender essas expresses, de tal forma que a compreenso seja o mesmo que

    tornar a vivenciar. Compreender, diz Dilthey, reencontrar o eu no tu.2 alargar

    nossos horizontes em relao s possibilidades de vida humana, vivenciar outras

    existncias. E ele d um exemplo, o de vivenciar o religioso: Posso no ter, durante

    minha existncia, a possibilidade de experimentar o religioso. Mas, medida que leio as

    cartas e os escritos de Lutero e de seus contemporneos, vivencio o religioso com uma

    energia e fora tais que hoje em dia seriam impossveis. 3

    Ora, podemos dizer que a postura envolvida com a histria oral genuinamente

    hermenutica: o que fascina numa entrevista a possibilidade de tornar a vivenciar as

    experincias do outro, a que se tem acesso sabendo compreeender as expresses de sua

    1 Ver, a respeito da hermenutica e de Dilthey, Alberti, Verena. A existncia na histria: revelaes e riscos da hermenutica. Estudos Histricos. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v.9, n.17, 1996, p.31-57 (disponvel para download no Portal do CPDOC: www.cpdoc.fgv.br). 2 Entwrfe zur Kritik der historischen Vernunft (Esboos para a crtica da razo histrica), Dilthey, Wilhelm. Gesammelte Schriften. Stuttgart, Teubner Verlagsgesellschaft, 1959-1962. v. VII, p.191. 3 Dilthey, Gesammelte Schriften, VII, p. 214.

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    vivncia. Para compreender, diz Dilthey, indispensvel um trabalho histrico e

    gramatical prvio, que nos coloque na posio de um leitor da poca no nosso caso,

    podemos dizer: que nos transforme em interlocutor altura de nosso entrevistado, capaz

    de entender suas expresses de vida e de acompanhar seu relato. Essa preocupao

    condio sine qua non para a interpretao.

    Indivduo como valor

    O segundo paradigma claramente infiltrado na histria oral, a idia do indivduo

    como valor, tambm est relacionado com a compreenso hermenutica. Quando

    Dilthey fala que compreender tornar a vivenciar, claro que pressupe o indivduo

    como locus das vivncias (as originais e as depois compreendidas) de outro modo,

    parece difcil reencontrar o eu no tu. Esse indivduo, assim como a hermenutica

    como modo de pensar, especfico cultura ocidental moderna. Tomar o indivduo

    como valor no apenas consider-lo uma entidade valorizada em nossa cultura

    individualista. verificar que a crena no indivduo autnomo e igual perante os

    outros, que tambm o indivduo nico e singular, o ser psicolgico, d sentido a uma

    srie de concepes e prticas em nosso mundo. Basta ver que, em outras culturas,

    igualdade, liberdade, singularidade psicolgica etc. no do sentido a prticas e modos

    de ser, para reconhecer que esse indivduo um valor em nossa cultura, no tendo nada

    que ver com uma suposta natureza humana.4

    No difcil perceber como a histria oral est ligada a esse paradigma. Muitos

    autores atribuem a ela uma capacidade de totalizao, principalmente quando

    confrontada com a fragmentao de documentos escritos que, hoje em dia, teriam cada

    vez menos contedo sendo, por isso, menos teis para conhecermos o passado. Uma

    entrevista de histria oral teria a vantagem de falar, de sada, sobre o passado,

    interpretando-o logo em densidade. Isso pode ser visto, como efetivamente por alguns

    autores, como um paradoxo: quanto mais moderna a sociedade, quanto mais rpida e

    fragmentada a comunicao, tanto mais precisamos, para entend-la, de formas

    tradicionais de explicao: narrativas orais, transmitidas de geraes mais velhas para

    4 Sobre essa discusso, ver: Duarte, Luiz Fernando. Trs ensaios sobre pessoa e modernidade. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, (41), 1983; Dumont, Louis. Homo hierarchicus. Paris, Gallimard, 1966, e Essais sur lindividualisme. Paris, Seuil, 1983; Castro, Eduardo Viveiros de & Arajo, Ricardo Benzaquen de. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: Velho, Gilberto (org.). Arte e sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.

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    mais novas, de modo a conservar a identidade e a construir os significados da

    sociedade. H um detalhe crucial, porm e a entra o paradigma de que estamos

    tratando: o fato de o sentido e a identidade de sociedades modernas pressuporem o

    indivduo como ncora e elemento constitutivo. Ao tempo indistinto, linear e racional

    do mundo moderno contrape-se a densidade de significados da biografia, capaz de

    sintetizar os significados do passado. Se a histria oral representa uma opo

    totalizadora frente fragmentao de documentos escritos porque ela est centrada no

    indivduo, que funciona, em nossa cultura, como compensao totalizadora

    segmentao e ao nivelamento em todos os domnios.

    Prticas e valores muito infiltrados em nosso modo de ver o mundo correm o

    risco de parecer coisa dada, verdades absolutas, comuns a todas as culturas. o que

    acontece com os dois paradigmas aqui destacados. O modo de pensar hermenutico, que

    privilegia a interpretao do mundo com vistas busca de um sentido profundo das

    coisas, inclusive da histria e das biografias, to difundido nos livros, nos filmes,

    nos meios de comunicao, na academia, nas terapias etc. que mal podemos imaginar

    que possa haver outras possibilidades. O mesmo se passa com o indivduo como valor.

    Ambos so totalizadores, fixam snteses e sentidos.

    O campo da histria oral acentuadamente totalizador; entrevistado e

    entrevistadores trabalham conscientemente na elaborao de projetos de significao do

    passado.5 O esforo muito mais construtivista do que desconstrutivista (inmeras

    vezes ouvimos, com efeito, que o entrevistado constri o passado), e tem como base a

    experincia concreta, histrica e viva, que, graas compreenso hermenutica,

    transformada em expresso do humano. importante ter conscincia dessa vocao

    totalizante da histria oral, em um mundo em que a fragmentao e a dissipao de

    significados, o desaparecimento do sujeito e o privilgio da superfcie (em detrimento

    da profundidade) tambm esto na ordem do dia.6

    5 Nesse contexto, bastante til a noo de projeto desenvolvida por Gilberto Velho, como sendo uma elaborao consciente e uma tentativa de dar sentido experincia fragmentada. Ver Velho, Gilberto. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 6 Aqui penso especificamente em movimentos opostos aos do paradigma hermenutico que surgiram a partir de fins do sculo XIX e mais acentuadamente no sculo XX, s vezes chamados de ps-modernos, e que tem em autores como Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Jean Franois Lyotard, entre outros, seus expoentes.