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RESENHA o FAScíNIO DE SCHERAZADE OS USOS SOCIAIS DA TELENOVELA "Uma experiência transmitida de boca a boca - é nessa fonte que se abeberaram todos os narradores. De todos os escritores que recolheram histórias, os maiores são aqueles cuja narrativa é a menos infiel à tradição oral dos contadores anônimos. De resto, é mister distinguir, dentre esses mesmos contadores, dois grupos entre os quais interferências não faltam. (...) Se remontarmos aos seus protótipos arcaicos, a fim de definir essas duas categorias de narradores, poder-se-á dizer que o lavrador sedentário representa a primeira; o navegador mercante, a segunda. (...) O senso prático é traço característico em muitos contadores natos. (...) Aí reside um fato revelador quanto à natureza mesma de toda verdadeira narrativa. Explícito ou implícito, ela apresenta sempre um aspecto utilitário. Este se traduz às vezes por uma moralidade, às vezes por uma recomendação prática, alhures por um provérbio ou uma regra de vida - em todo caso o narrador é um homem de bom conselho. (...) Mnemósina, "aquela que lembra", era para os Gregos a musa da epopéia. Seu próprio nome remete a um cruzamento de vias de decisiva importância para a história do mundo .... aquela dessas formas mais antigas, a epopéia propriamente dita, contém, por uma espécie de indistinção, ao mesmo tempo a narrativa oral eo romance. (...). A "lembrança" [Mnemósina] funda essa corrente de tradições que transmite os acontecimentos passados de geração a geração ... É ela que tece a malha formada em conjunto por todas as histórias. Cada uma se liga a todas as outras, como sempre gostaram de mostrar os grandes contadores de histórias, sobretudo os Orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade para quem cada episódio de uma história evoca logo uma outra história." [Grifado por mim]. Walter BENJAMIN, Le Narrateur 1 E is uma obra inspi- rada por essa Di- vindade - menci- onada na epígrafe que abre esta resenha - da memória e da narra- tiva, condições especí- ficas da construção his- tórica do ser humano como singular animal simbólico e autoconsciente. Seu influxo atravessa, incólume, os séculos, per- petuando-se em manifestações do gênero, porém a metamorfosear-se numa infinita mitopoíesis. Com efeito, eis uma bela obra que fusiona admiravel- mente relato e análise. Posto tenha nascido de uma tese de doutorado, ela já trazia em si, em germe, a textura de um bom livro, por seu estilo fluente, por sua boa escritura, por sua escolha temática e a consistência do argumento, apoiado em ampla li- teratura especializada de primeira ordem. Coisa rara nesses arraiais, onde soem predominar a má escrita e o estilo de jargão pretensamente chama- do de acadêmico. Logo, não foi por acaso que a autora o pôs sob o signo de Scherazade. Posto não haja explicitado POR EOUAROO DIATAHY B. DE MENEZES isso, deixando ao leitor a intuição semântica. Assim, ao fazer a pon- te entre o passado his- tórico da narratividade DE ROBERTA MANUELA BARROS DE ANDRADE O Fascínio de Scherazade - Os usos sociais da Telenovela São Paulo: Annablume, 2003 * Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal e da Universidade Estadual do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto Histórico do Ceará. em sua permanente se- dução sobre os huma- nos e seu continuado prestígio do presente, isso orientou suas escolhas temáticas, a adoção da perspectiva e do nível analíticos, bem como a deli- mitação do objeto de estudo e do suporte empírico amostral do universo sociocultural aí envolvido, tomando a telenovela como matriz mediadora da percepção da realidade e até como modo de autocompreensão, e entendendo sua recepção como negociação. Por outro lado, ciente de que toda mensagem e mais especialmente todo bem cultural complexo permitem sempre uma pluralidade de leituras, a orientação-chave desta pesquisa centra-se em duas questões básicas: a. como as pessoas atuam na produção social do sentido dos textos? (aqui tomados não na acepção corrente de páginas escritas, mas em seu significado hermenêutico genérico); e MENElES, EDUARDO DIATAHY B. DE: O FASCíNIO DE SCHERAZADE - Os Usos SOCIAIS DA TElENOVELA. p. 113 a 118 113

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RESENHA

o FAScíNIO DE SCHERAZADEOS USOS SOCIAIS DA TELENOVELA

"Uma experiência transmitida de boca a boca - é nessa fonte que se abeberaram todos os narradores. De todos os escritores querecolheram histórias, os maiores são aqueles cuja narrativa é a menos infiel à tradição oral dos contadores anônimos. De resto, é misterdistinguir, dentre esses mesmos contadores, dois grupos entre os quais interferências não faltam. (.. .) Se remontarmos aos seusprotótipos arcaicos, a fim de definir essas duas categorias de narradores, poder-se-á dizer que o lavrador sedentário representa aprimeira; o navegador mercante, a segunda. (...) O senso prático é traço característico em muitos contadores natos. (...) Aí reside umfato revelador quanto à natureza mesma de toda verdadeira narrativa. Explícito ou implícito, ela apresenta sempre um aspecto utilitário.Este se traduz às vezes por uma moralidade, às vezes por uma recomendação prática, alhures por um provérbio ou uma regra de vida- em todo caso o narrador é um homem de bom conselho. (.. .) Mnemósina, "aquela que lembra", era para os Gregos a musa daepopéia. Seu próprio nome remete a um cruzamento de vias de decisiva importância para a história do mundo .... aquela dessasformas mais antigas, a epopéia propriamente dita, contém, por uma espécie de indistinção, ao mesmo tempo a narrativa oral e oromance. (...). A "lembrança" [Mnemósina] funda essa corrente de tradições que transmite os acontecimentos passados de geraçãoa geração ... É ela que tece a malha formada em conjunto por todas as histórias. Cada uma se liga a todas as outras, como sempregostaram de mostrar os grandes contadores de histórias, sobretudo os Orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade paraquem cada episódio de uma história evoca logo uma outra história." [Grifado por mim].

Walter BENJAMIN, Le Narrateur1

Eis uma obra inspi-rada por essa Di-vindade - menci-

onada na epígrafe queabre esta resenha - damemória e da narra-tiva, condições especí-ficas da construção his-tórica do ser humanocomo singular animal simbólico e autoconsciente.Seu influxo atravessa, incólume, os séculos, per-petuando-se em manifestações do gênero, poréma metamorfosear-se numa infinita mitopoíesis. Comefeito, eis uma bela obra que fusiona admiravel-mente relato e análise. Posto tenha nascido de umatese de doutorado, ela já trazia em si, em germe, atextura de um bom livro, por seu estilo fluente,por sua boa escritura, por sua escolha temática e aconsistência do argumento, apoiado em ampla li-teratura especializada de primeira ordem. Coisarara nesses arraiais, onde soem predominar a máescrita e o estilo de jargão pretensamente chama-do de acadêmico.

Logo, não foi por acaso que a autora o pôssob o signo de Scherazade. Posto não haja explicitado

POR EOUAROO DIATAHY B. DE MENEZES

isso, deixando ao leitora intuição semântica.Assim, ao fazer a pon-te entre o passado his-tórico da narratividade

DE ROBERTA MANUELA BARROS DE ANDRADE

O Fascínio de Scherazade - Os usos sociais da TelenovelaSão Paulo: Annablume, 2003

* Professor Titular de Sociologia da Universidade Federale da Universidade Estadual do Ceará. Membro da Academia Cearense

de Letras e do Instituto Histórico do Ceará.

em sua permanente se-dução sobre os huma-nos e seu continuadoprestígio do presente,

isso orientou suas escolhas temáticas, a adoção daperspectiva e do nível analíticos, bem como a deli-mitação do objeto de estudo e do suporte empíricoamostral do universo sociocultural aí envolvido,tomando a telenovela como matriz mediadora dapercepção da realidade e até como modo deautocompreensão, e entendendo sua recepçãocomo negociação. Por outro lado, ciente de quetoda mensagem e mais especialmente todo bemcultural complexo permitem sempre umapluralidade de leituras, a orientação-chave destapesquisa centra-se em duas questões básicas:

a. como as pessoas atuam na produção socialdo sentido dos textos? (aqui tomados não naacepção corrente de páginas escritas, mas emseu significado hermenêutico genérico); e

MENElES, EDUARDO DIATAHY B. DE: O FASCíNIO DE SCHERAZADE - Os Usos SOCIAIS DA TElENOVELA. p. 113 a 118 113

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b. de que modo estes guiam e restringem suasinterpretações?Após a delimitação conceptual e de méto-

do, os dois capítulos da primeira parte fundamen-tam seu ângulo teórico, enquanto os dois outrosque compõem a segunda examinam seus achadosde investigação. O livro conclui significativamen-te num tom narrativo, intitulado "Últimas Palavras",cujo tópico final realiza "a viagem interior" da auto-ra por esse território.

Todas as civilizações que conheceu a Histó-ria se fundam e se configuram em grandes narrati-vas, que buscam transcender e compensar airrevogável finitude da humana condição: taiscomo o I-Kinge o San-kuoh-chi-ien-i (a Ilíada chine-sa), os Vedas e o Mahabhárata, o Gilgamesh, o LivrodosMortos, a Ilíada, a Thorah, o Livro deJob, o Cânticodos Cânticos e os Evangelhos, As Mil e Uma Noites, ADemanda do Santo Graal, Lancelot ou ainda Tristão eIsolda, etc.. Algumas dessas grandes narrativas -tais, por exemplo, A Divina Comédia, D. Quixote,Os Lusiadas, etc. - passaram a identificar um povoou uma nação. E, sobretudo, mitos, contos e len-das populares, romanceiros, folhetins, novelas eromances, e mesmo os filmes como os de 007 ouas aventuras de heróis das histórias em quadrinhos,todos são fontes a alimentar a caudal de nossoimaginário sociocultural". Trata-se, conforme as-severa Campbell, de um como monomito, fonte ematriz da criação simbólica do homem em todasas áreas: literatura, artes, filosofia, ciência, religião" .Aristóteles acrescentaria o riso como o própriodo homem, isto é, de sua singularidade ou dife-rença específica, além da razão. É, porém,indubitavelmente, essa inexaurível capacidade defabulação que nos caracteriza como humanos.

Bons estudiosos desse fenômeno danarratividade são unânimes em registrar nossa re-corrente capacidade de espantarmo-nos ecomovermo-nos diante de tais produções simbó-licas. Aliás, aí reside o próprio dos grandes tex-tos: sua inesgotável carga de surpresa, mesmo emface de releituras sucessivas. Numa nota préviade apresentação do notável estudo de Marlyse

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Meyer sobre o [romance-)folhetim, AntonioCandido assinala esse fato pela relação entre aqualidade da obra e o seu efeito sobre o leitormediante a atração exercida por seu enredo, quesão maneiras de satisfazer fundamental necessi-dade do homem de mergulhar no mundo da fan-tasia através de histórias ficcionais, narrativas quepropiciam ao receptor o sentimento da vida e deseus labirintos, impulso fabulador que atendenossa exigência de absorver mundos imaginári-OS4. Mas que são também estratégias simbólicascom que tentamos dar conta das aporias funda-mentais que o real nos impõe.

Façamos um pouco o exercício de rastrearfragmentos que compõem a tessitura desse fio his-tórico que vem de tempos imemoriais e perduraaté nossos dias, sem sinal de que possua um pon-to final. Na perspectiva do objeto de estudo espe-cífico deste livro - a telenovela - penso não forçaro sentido dos fatos ao afirmar que seu ancestralmais primordial é talvez o desempenho deScherazade como contadora de histórias, de queAs Mil e Uma Noites constitui seu tesouros. Essacoletânea de contos da literatura árabe, elaboradaentre o século IX e o XVI, inclui, na verdade, umaespécie de Suma da sabedoria ancestral, expressamediante contos hindus, persas, babilôniosiraquianos, sírios, judeus, egípcios e helenísticos.Conforme se sabe, o enquadramento dessas nar-rativas nasce da história de Schariar, Sultão dasÍndias, da Pérsia e do Turquestão, que é informa-do por seu irmão - Imperador da Grande Tartária- que ambos foram traídos por suas respectivasmulheres. Schariar, em sua profunda desilusãoamorosa, propõe ao irmão que abandonem seusestados e saiam pelo mundo para esconder tal in-fortúnio. O irmão o aceita, com a condição deretornarem se acharem alguém mais infeliz do queeles. Nessa errância, deparam-se um dia com a belamulher de um gigante, que a mantinha presa numcofre no fundo do mar e mesmo assim, quandoliberada o enganava às escondidas, como de fatoocorre também com eles, cujos anéis vão para co-leção de tais objetos que ela guardava, de uma

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centena de amantes. A conclusão estava formada:todas as mulheres são pérfidas e inclinadas à infâ-mia. Retomaram aos seus reinos com tal convic-ção. Schariar formula então o plano para preser-var sua honra: passaria a dormir a cada noite comuma virgem que, na manhã seguinte, mandariamatar por seu grão-vizir. Diante da desolação queaí se instala, das duas filhas do grão-vizir,Scherazade e Dinerzade, a primeira, além de suagrande beleza, era culta, tinha muita leitura e boamemória; possuindo imensa coragem e desejan-do pôr termo a essa barbárie, comunica ao paiseu intento de tornar-se mulher do Sultão. Sob opretexto de desejar passar sua última noite com airmã, solicita que pudesse esta dormir tambémno quarto nupcial, pois conforme combinara, umahora antes do amanhecer, a irmã deveria acordarScherazade e pedir-lhe que contasse uma de suashistórias. Assim se deu. Só que rompido o dia epara respeitar os hábitos do Sultão, ela suspendeo final da história, e quando a irmã a consideramaravilhosa, Scherazade afirma ser a continua-ção mais encantadora ainda e, se o Sultão lhe per-mitisse mais um dia de vida, ela a terminaria nanoite seguinte. Deslumbrado com a narrativa, eleo concede. E desse modo os episódios vão se su-cedendo por mil e uma noites. Ao final desse tem-po, o Sultão se transformara, desistindo de seuplano funesto e preservando a companhia de suaencantadora esposa. Portanto, há algo de épicono gesto dessa contadora de histórias que arriscasua própria vida por crer no poder da Palavra.Scherazade é assim a precursora do suspense, esseestratagema, político no seu caso - visto que, apoi-ando-se na Memória (Mnemósina, mãe das 9 Musas)e lidando com o tempo, vai estimulando a curio-sidade e o desejo mediante a astúcia e a magia desua imaginação, a fim de reeducar o tirano" eabrandar os costumes de seu reino -, mas que étambém recurso das narrativas em série, como atéhoje o fazem nossas telenovelas 7 •

Mas tomemos outros exemplos dessa fun-ção fundamental de fabulação. Na Idade Moder-na, quando o romance começa a se constituir e vai

ocupando os espaços literários das epopéias e nar-rativas orais, Cervantes, um de seus fundadores,no pórtico de sua genial criação, apólogo do espí-rito ocidental, nos informa com saborosa ironiaque o Engenhoso Fidalgo de Ia Mancha, nos in-tervalos que tinha de ócio (que eram os mais doano) se dava a ler novelas de cavalaria, com tantaafeição e gosto, que esqueceu quase de todo doexercício da caça, e até da administração de seusbens; e a tanto chegou sua curiosidade e desatinoneste ponto, que vendeu muitas de suas terras cul-tivadas para comprar livros do gênero. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nesses livros;e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação serverdade toda aquela máquina de sonhadas inven-ções que lia, que para ele não havia históriamais certa no mundo" . Tomo esse delicioso tre-cho romanesco como metáfora do mesmo fascí-nio de Scherazade.

Cheguemos mais perto de nós. Publicadopostumamente por seu filho Mário de Alencar [Riode Janeiro: Tipografia de G. Leuzinger &Filhos,1893], raro ensaio de José de Alencar, intituladoComo e Porque sou Romancista, nele, este extraordi-nário escritor, cuja obra ficcional constituía notá-vel projeto de construção da nação ainda por fa-zer-se, apenas saída do exclusivo colonial portu-guês, relata curioso episódio de sua infância, deque reproduzo pequeno trecho para ilustrar e en-riquecer esse fio narrativo de que venho tratando:

"Era eu quem lia para minha boa mãe, nãosomente as cartas e os jornais, como os vo-lumes de uma diminuta livraria românticaformada ao gosto do tempo. Morávamosentão na Rua do Conde n" 55. Ai nesta casapreparou-se a grande revolução parlamentarque entregou ao Sr. D. Pedro II o exercícioantecipado de suas prerrogativas constituci-onais. (...) Uma noite por semana, entravammisteriosamente em nossa casa os altos per-sonagens filiados ao Club Maiorista, de queera presidente o Conselheiro Antônio Carlose secretário o Senador Alencar [seupaz]. (...)

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Afora os dias de sessão, a sala do fundo eraa estação habitual da família, Não havendo

visitas de cerimônia, sentava-se minha boamãe e sua irmã Dona Florinda com os ami-gos que apareciam, ao redor de uma mesaredonda de jacarandá, no centro da qual ha-via um candeeiro. Minha mãe e minha tia seocupavam com trabalhos de costuras, e asamigas para não ficarem ociosas as ajuda-vam. Dados os primeiros momentos à con-versação, passava-se à leitura e era eu cha-mado ao lugar de honra. (...) Lia-se até a horado chá, e tópicos havia tão interessantes queeu era obrigado à repetição. Compensavamesse excesso as pausas para dar lugar às ex-pansões do auditório, o qual desfazia-se emrecriminações contra algum mau persona-gem ou acompanhava de seus votos e sim-patia o herói perseguido. Uma noite, daque-las em que eu estava possuido do livro, liacom expressão uma das páginas maiscomoventes da nossa biblioteca. As senho-ras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto,e poucos momentos depois não puderamconter os soluços que rompiam-lhes o seio.Com a voz afogada pela comoção e a vistaempanada pelas lágrimas, eu também, cer-rando ao peito o livro aberto, disparei empranto, e respondia com palavras de conso-lo às lamentações de minha mãe e suas ami-gas. Nesse instante assomava à porta umparente nosso, o Reverendo P. Carlos Pei-xoto de Alencar, já assustado com o choroque ouvira ao entrar. Vendo-nos a todos na-quele estado de aflição, ainda mais pertur-bou-se: - Que aconteceu? Alguma desgra-ça? perguntou arrebatadamente. As senho-ras, escondendo o rosto no lenço para ocul-tar do P. Carlos o pranto, e evitar os seusremoques, não proferiram palavra. Tomei eua mim responder: - Foi o pai de Amandaque morreu! disse mostrando-lhe o livroaberto. (...) Foi essa leitura contínua e repeti-da de novelas e romances que primeiro im-

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primiu em meu espírito a tendência para essaforma literária ... Nosso repertório românti-co era pequeno: acompanha-se de uma dú-zia de obras, entre as quais primavam aAmanda e Oscar, Saint Clair das Ilhas, Celestinae outros ..."9 •

Não será difícil ao leitor atento identificar,nesse testemunho do passado, opiniões e atitudesque a autora recolheu na pesquisa que deu supor-te à elaboração deste livro que comento.

Era, então, a época da grande expansão doromance-folhetim - de que Joaquim Manuel deMacedo, o próprio Alencar, Machado de Assis, etc.,foram mestres entre nós -; inicialmente publica-dos em episódios em rodapés de jornais, antes dese tornarem livros, daí a razão do nome!". O jor-nal foi o propulsor dessa nova relação entre escri-tor e leitor, com forte influência sobre o padrãonarrativo. A nossa atual novela de televisão, tele-novela (ou «feuilleton télévisé», como dizem osfranceses) é herdeira, passando antes pela radio-novela, dessa avassaladora presença do romance-folhetim em nossa produção e consumo de narra-tiva ficcional. Folhetim significa aqui história re-cortada em segmentos mais ou menos espaçados:escritos, filmados, televisados, desenhados ou fo-tografados, todos eles se assemelham no projetode intensificação do suspense, expandindo assim aduração da história.

Num importante colóquio internacionalsobre o folhetim na televisão, realizado em Veneza,em 1977, Violette Morin sublinhava que a dife-rença fundamental entre o folhetim impresso e otelevisado reside no recorte episódico deste últi-mo e na sua duração estendida, que acarretamimportantes mutações em seu estilo narrativo, in-clusive permitindo que a reação do público inter-venha no seu desdobramento. Da minha parte, euacrescentaria como dimensão diferencial adramaturgia e os recursos cinematográficos que atelevisão implica: o prestígio e o desempenho dosatores, os cenários, a ação e o movimento, asonoplastia, a cinestética (fotografia, imagens, co-

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res, iluminação e sombra), para não falar dareconstituição de época, da perspectiva histórica eda complexidade de equipamentos necessários aofuncionamento dessa fábrica de sonhos. MasViolette Morin assinala ainda a fragilidade do sen-tido de cada episódio: se a telenovela possui umsentido no seu conjunto, é mister supor que cadasigno narrativo é deixado no seu estado de não-senso de um episódio, por estar carregado de sen-tido que vem dos episódios precedentes, a saber,aquilo que não quer dizer nada para quem nãoviu o que precedeu é o que mais significa paraquem o viu!",

Numa das melhores intervenções no referi-do colóquio, no intuito de acentuar a raiz históri-ca da teledramaturgia atual, Paul Weyer a iniciapor esta hipótese provocadora: a telenovela nas-ceu por volta de 1830 ou, mais exatamente, ela é oderradeiro avatar de uma forma narrativa do sé-culo XIX, tendo assim o folhetim saído não daliteratura, porém da imprensa. O modismo se im-põe quando, em 1836, a nova imprensa modernapublica, recortados em fatias quotidianas, roman-ces dentre os quais La Vieil/e Fil/e de Balzac. Até oano de 1848, tem-se a idade de ouro da primeirageração de folhetinistas: Honoré de Balzac, Ale-xandre Dumas, Frédéric Soulié, Eugêne Sue,George Sand ... - essa fórmula jornalística insti-tuía um novo gênero, de que se podem assinalaralguns traços definidores. Sociologicamente, estabe-lecia-se novo tipo de relação entre produtor e con-sumidor, e, sobretudo, da parte dos leitores, umaadmiração passional de uma amplitude jamais vis-ta. O caso de E. Sue foi exemplar: durante dezesseismeses, desde junho de 1842, o evento mais impor-tante da vida francesa foi a publicação diária dosMistérios de Paris no [carnal des Débats. ThéophileGautier comentava então: « o dia em que o fo-lhetim faltava, havia uma como depressão intelec-tual em Paris. (...) Doentes esperaram para morrerno fim dos Mistérios de Paris; O mágico "a seqüên-cia amanhã" os mantinham a cada dia e a mortecompreendia que não estariam em paz no outromundo se não conhecessem o desfecho dessa bi-

zarra epopéia» Mas a acrimônia dos críticos nãose fez esperar; ao passo que os leitores exigiam oseu prazer numa copiosa correspondência quechegava ao jornal. Tecnicamente, os processos nar-rativos se impuseram desde logo: profusão da in-triga com a regra das três multiplicidades (de tem-po, lugar e ação); ritmo que segura o fôlego pelomovimento, a extensão, o suspense, a surpresa e adecepção; enfim, a célebre arte do corte, com oanúncio da seqüência no próximo número; o fo-lhetim é em si mesmo sua própria paródia.Tematicamente, o folhetim se abebera em fontes di-versas: folhetos populares, histórias de malfeito-res e aventureiros famosos, romances picarescos,processos judiciais, romance gótico inglês, melo-dramas, etc.; seus elementos, vindos de horizontesvariados do imaginário romântico, definem-se pelalei do excesso comum, do paroxismo permanente.O folhetim se apresenta então superando a imagi-nação e rigorosamente codificado, porém furiosa-mente vivaz. As transformações políticas são acom-panhadas por suas metamorfoses e, de Flaubert aSartre, os maiores escritores publicam suas obrasem jornais e revistas. E a ascensão inexorável dacultura de massa vai propiciar-lhe novas mutaçõese o surgimento de coleções populares por todaparte: romances de amor, de aventuras, de capa eespada, de ficção científica, romance negro, poli-cial, etc. Mutações que acompanham também osnovos meios de difusão até o advento da televisão.Antes de encerrar sua exposição, Paul Weyer põeem destaque o fato de que, de 1840 aos nossosdias, só se escreveu sobre o folhetim para dizermal dele do ponto de vista estético, moral e políti-co, como ficção de qualidade inferior, de mau gos-to, sem estilo, degradante, alienadora, etc .. Opini-ões tão unânimes na hostilidade e no desprezo,diz ele, provocam o seu devaneio: jamais busca-ram perscrutar de perto os motivos desse podero-so fascínio permanente, que remete a ele imensopúblico de todas as classes sociais. E conclui:

"Poder-se-ia supor, simplesmente, que o fo-lhetim aciona estruturas narrativas mais efi-

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cazes, que enriquece os arquétipos do ima-ginário ao mesmo tempo em que deles senutre e que, enfim, toca em pontos sensí-veis da psique profunda. Deixo aossemiólogos, aos sociólogos e aos psicólogosesse rico terreno de escavações.Enquanto aguardamos, não deixemos mor-rer Scherazade.?"

Notas

1 Cf.: CEtlvres,tome II. Paris: Denoêl, 1971,pp. 139-169.2 Ver bom repositório de reflexões sobre alguns as-

pectos dessa temática, em especial no que tangeaos níveis culturais das sociedades complexas, so-bretudo nisso que se convencionou chamar de cul-fura de massa, em ECO, Umberto: .Apocalipticos e Inte-grados. São Paulo: Perspectiva, 1970.

3 Cf. CAMPBELL, Joseph: The Hero with a tbousandFaces. New York: Bolligen Foundation, 1949.

4 Cf. CANDIDO, Antonio: «Nota Prévia», inMEYER, Marlyse: Folhetim - uma bistôria. São Pau-lo: Companhia das Letras, 1996, pp. 13-16.

5 Refiro-me à versão de Antoine GALLA D (pri-meira edição: Paris, Barbin, 1704), reproduzida nacoleção «Classiques Garnier»: Les Mi/le et Une Nuits,2 tomes. Paris: Éditions Garnier Frêres, 1960.

6 De certo modo, Scherazade fornece ao Sultão umdiscurso novo que lhe altera visão e sentimentos,como numa psicanálise. Eis por que, num ensaioerudito sobre «Los Traductores de Las 1001Nocbes», Jorge Luis BORGES observa agudamentequão portentoso é o fato de que o rei Schariar, nanoite 602, ouça da boca da rainha a sua própriahistória. [In Historia de Ia Eternidad (1936), ObrasCompletas, v. I. Buenos Aires: Emecé, 1997].

7 Veja-se o estudo pioneiro de M~rie LAHY-HOLLEBECQUE: Schéhérazade ou l'Education d'tonRoi, Puiseaux: Pardês, 1987 [1a edição: 1927]; ou obelo ensaio de Adélia Bezerra de MENESES:«Scherazade ou do poder da palavra», em seu livroDo Poder da Palavra - ensaios de Literatura e Psica-nálise, S. Paulo: Duas Cidades, 1995, pp. 39-56.

8 Cf. CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel: EI

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Ingenioso Hidalgo Don Quijote de Ia Mancha. Madrid:Aguilar, 1951, pp. 228-230. [Edición preparada porJusto García Soriano y Justo García Morales].

9 Cf.: ALENCAR, José: «Como e Porque sou Ro-mancista», Ficção Completa e Outros Escritos, voi. I.Riode Janeiro: Aguilar, 1965, pp. 105-107.

10 ° termo folhetim, antes de ser associado a umsubgênero de narrativa (i. é: o romance-folhetim)e muito antes da acepção contemporânea adquiri-da, primeiro, na comunicação radiofônica e, depois,na televisiva, serviu a designar certos textos deimprensa afinados com temas culturais (criação li-terária e artística, crítica, ensaio, polêmica, etc.) esobretudo identificáveis por marcas formais e grá-ficas. Tem origem em França, em fins do séculoXVIII e desenvolve-se amplamente na imprensado século XlX, como prática cultural complemen-tar da função primordial de informar. Esse caráterse reflete em sua localização gráfica, situando-seno rodapé do jornal, distinguindo-se de outras ma-térias e permitindo ser destacado e colecionado.Era com essa acepção mais geral que Littré o defi-nira em seu monumental Dictionnaire de LangueFrançaise (1863-1873). Mas já no século XlX elefoi sendo especificado com a significação domi-nante que interessa à teoria da narratividade e talcomo o conhecemos hoje, multiplicando-se emformas variadas segundo o veículo (folhetim im-presso, radiofônico, fotonovela, filmes, história emquadrinhos, telenovelas, etc.). Para maiores escla-recimentos dessa evolução, cf. REIS, Carlos eLOPES, Ana Cristina M.: Dicionário da Narraiologia,7ª edição. Coimbra: Almedina, 2000; desses mes-mo autores há um Dicionário de Teoria da Narrativa[São Paulo: Ática, 1988], de feição mais teórica ede formato temático.

11 MORIN, Violette: «Le feuilleton télévisé: um ralentide Ia vie», in Actes dll Congres sur le Feuilleton enTélévision, 2 vols. Torino: ERI - Edizioni RAIRadiotelevisione Italiana, 1978, tome I, pp. 25-36.

12 Cf.: «Feuilleton: du télévisuel avant Ia lettre», inActesdu Congres..., op. cit., pp. 97-102. Devo assinalar queno último parágrafo acima não fiz mais do que resu-mir a segura exposição de Paul Weyer, acrescentan-do-lhe apenas uma outra idéia ou pormenor.

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