O evangelho de Lucas em tópicos · Os biblistas são unânimes em afirmar que o Evangelho e Atos...

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Bruno G.Glaab Página 1 O evangelho de Lucas em tópicos Bruno Godofredo Glaab

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Visão geral

E evangelho de Lucas aparece em terceiro lugar em nossas Bíblias, depois de Mateus

e de Marcos. É o mais extenso dos evangelhos, embora tenha apenas 24 capítulos, quando

Mateus tem 28. Ele, ao que se supõe, é o único livro, juntamente com Atos dos Apóstolos,

que foi escrito por um não judeu. Estamos diante de um autor, simpatizante do judaísmo, mas

oriundo do paganismo, provavelmente convertido ao cristianismo pelo apóstolo Paulo. Ao

que tudo indica, Lucas não conheceu pessoalmente a Jesus de Nazaré, mas assim como Paulo,

se converteu a Jesus. Ele tinha um bom nível intelectual e, por isto mesmo, escreve de forma

elegante e sabe expor a doutrina de Jesus para que seus leitores não judeus pudessem

solidificar a sua fé a aderir a Jesus com clareza e maturidade. Por isto mesmo, Lucas é para

nós, hoje, uma verdadeira catequese. Para que também nós possamos entender a pessoa de

Jesus, sua missão e o reino por ele instaurado.

Introdução

O Evangelho de Lucas, bem como Atos dos Apóstolos, vem do mesmo autor, que

desde o século II é chamado de Lucas, embora não apareça assinatura em nenhum dos dois

livros. Tanto o Evangelho como Atos dos Apóstolos são destinados a um certo Teófilo (Lc

1,3 e At 1,1). Não se sabe quem era este Teófilo. Para alguns estudiosos, Teófilo seria um

mecenas (padrinho financiador). Para outros, Teófilo seria protótipo de todas as pessoas que

são amigas de Deus, uma vez que, Teófilo, em grego, significa “amigo de Deus”.

Lucas é citado nas cartas paulinas: Cl 4,14; 2Tm 4,11 e Fm 24. Alguns biblistas creem

que Lucas seja o mesmo Lúcio de Cirene, mencionado em At 13,1 e talvez ainda em Rm

16,21. Em Cl 4,14 ele é chamado de “médico”. Mas não há provas de que o autor seja este

mesmo Lucas citado por Paulo e em Atos dos Apóstolos, menos ainda que tenha sido médico.

Não se deve confundir médicos daquela época com os médicos de hoje. Eles não dominavam

as ciências da medicina, antes eram pessoas que tinham carisma de cuidar de doentes e

entendiam de ervas medicinais.

Seja quem for, o autor do referido Evangelho e de Atos dos Apóstolos, desde o século

II é citado como Lucas pelos escritores de então. Isto não é prova, mas pode perfeitamente ser

verdade que de fato seja ele o homem referido nas cartas paulinas. Lucas era companheiro de

Paulo e em At 16,1ss; 16,10ss; 20,7ss ao descrever a missão de Paulo, ele repentinamente usa

o pronome “nós”, quando antes sempre escrevia na terceira pessoa. Parece que foi

companheiro das missões de Paulo e, com base nisto escreveu Atos dos Apóstolos. Mas nem

todos os estudiosos concordam com isto. Alguns creem que o autor de Atos dos Apóstolos se

valeu de um diário da missão e por isto teria copiado o “nós”.

Os biblistas são unânimes em afirmar que o Evangelho e Atos dos Apóstolos são obras

de um cristão não judeu, provavelmente convertido por Paulo. Também se crê que o mesmo

Evangelho seja destinado a cristãos gentílicos (não judeus). Provavelmente Lucas seria, então,

o único hagiógrafo (autor de livros bíblicos) não judeu.

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O que é um evangelho?

O leitor menos avisado abre os livros bíblicos e os lê julgando tratar-se de biografias.

É muito importante ter clareza que não temos, nos evangelhos, atas da vida de Jesus, mas

antes, interpretações teológicas da pessoa e da missão de Jesus, feitas à luz da ressurreição.

Com isto não queremos afirmar que se trata de mera montagem teológica. Jesus nasceu num

lugar concreto, viveu num determinado tempo, numa determinada cultura, teve uma vida

missionária, foi crucificado, morto e ressuscitado. Mas enquanto ele esteve aqui na terra,

ninguém fez atas, nem anotou sua vida. O que hoje lemos nos evangelhos, são interpretações

feitas a partir da experiência da ressurreição, baseadas na memória histórica dos apóstolos e

demais discípulos. Assim sendo, vamos deixar claro: não podemos ler os evangelhos como

biografias, nem pensar que neles não há nada de histórico. A interpretação teológica tem por

base a pessoa histórica de Jesus, que é apresentada a partir da experiência da ressurreição. Isto

é facilmente constatado quando comparamos textos entre os diversos evangelistas, quando um

mesmo fato é narrado por mais de um evangelista. Veremos abaixo que às vezes há diferenças

enormes que dão um sentido diferente a um mesmo texto nos diversos evangelistas. Assim

sendo nem tudo o que se lê nos evangelhos são verdades históricas, mas tudo o que se lê são

verdades salvíficas, ou ainda, verdades teológicas. Os escritores dos tempos do Novo

Testamento não tinham a intenção de descrever pormenorizadamente os fatos, tais quais os

nossos biógrafos modernos gostam de fazer, hoje.

Os evangelhos, na origem, eram apenas um evangelho. Tratava-se do anúncio da

pessoa e da missão de Jesus. Este anúncio era oral, era testemunhado pelos apóstolos e

pregado aos povos pelas testemunhas oculares. As cartas paulinas, escritas entre 48 e 63 d.C,

já falam de evangelho (Gl 1,6.11; Rm 1,16, etc.), sem no entanto falar de um evangelho

escrito. Quando estas cartas usam a palavra evangelho, referem-se ao conteúdo da pregação

sobre a pessoa de Jesus. Quem por primeiro escreveu um livro com nome de evangelho foi

Marcos (Mc 1,1). Marcos o fez, nos anos 70 para fazer frente a certas tendências de seu

tempo: os cristãos vindos do judaísmo guardavam na memória e davam muito destaque ao

ensino de Jesus: parábolas, dizeres, lições de sabedoria, etc. Isto era muito bom, pois Jesus de

fato ensinou, proferiu parábolas e suas palavras eram palavras de vida e de sabedoria. Porém,

havia um perigo. Lembrando apenas o ensino de Jesus e seus discursos, este corria o perigo de

ser transformado em mais um rabino (mestre) como já havia tantos no judaísmo. Jesus é mais

do que isto, embora também seja o mestre por excelência. Mas se os leitores vissem nele

apenas um mestre, a figura de Jesus estaria truncada. Não corresponderia à verdade. Já as

comunidades paulinas tinham uma preocupação muito viva na morte e ressurreição de Jesus.

Paulo pouco fala da vida histórica de Jesus em suas cartas. Tem raríssimas referências à

história de Jesus. Encontramos algumas poucas em 1Cor 11,23-24 quando fala da instituição

da eucaristia e em Gl 4,4 fala do nascimento de Jesus. Quando fala da morte, nunca a

descreve historicamente. Apenas a menciona. Destacando muito a morte e a ressurreição,

estas comunidades podiam esquecer a historicidade de Jesus. Isto permitia que se visse Jesus

como alguém sem história, caído do céu, como algumas figuras míticas gregas. Mas isto

também seria empobrecer a pessoa de Jesus. Ele, de fato passou pela morte e ressurreição,

mas antes, ele teve uma história. Esquecer a encarnação na história concreta e toda a sua ação

e ensino, seria tirar dele o verdadeiro sentido. Havia ainda os cristãos sírios que estavam

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muito apegados aos milagres. Davam exagerada ênfase aos milagres de Jesus. Esta tendência

era perigosa, pois transformaria Jesus num milagreiro, sem história e sem ensino. Seria um ser

misterioso, quase uma lenda como é hoje a lenda de Papai Noel, super-homem, Zorro, etc.

Ora, esquecendo a história concreta de Jesus, seu ensino, a paixão, morte e ressurreição, já

não teríamos uma verdadeira visão dos fatos.

Marcos, conhecendo todas estas tendências com seus perigos, escreve um evangelho,

onde ele não esquece a história de Jesus, nem seu ensino, nem os milagres, nem a paixão,

morte e ressurreição, mas ele faz uma dosagem correta, pois deseja que seus leitores tenham

uma verdadeira imagem de Jesus em suas vidas. Dez anos mais tarde, Lucas retoma a missão

de Marcos e reescreve o evangelho de Marcos e o completa para os seus leitores. Ele tem uma

preocupação maior, pois em Marcos Jesus já um homem adulto, nas primeiras linhas. Em

Lucas, assim como em Mateus, encontramos os evangelhos da Infância (Lc 1-2 e Mt 1-2).

A questão sinótica

O Evangelho de Lucas é uma segunda versão do Evangelho de Marcos. Lucas, ao

escrever seu evangelho, tinha sobre a mesa o evangelho de Marcos. Ele o reescreveu e o

ampliou, uma vez que Marcos é bastante reduzido. Neste trabalho de reescrever o evangelho

de Marcos, ele também usou outras fontes para se inspirar. Tanto Lucas como também

Mateus reescreveram o evangelho de Marcos. Mateus o faz em vista de evangelizar cristãos

vindos do judaísmo e Lucas faz o mesmo em vista de evangelizar cristãos vindos da

gentilidade, isto é, não judeus. Eles reescrevem o evangelho de Marcos e o ampliam e

adaptam aos seus destinatários. Assim percebemos que a estrutura é quase a mesa nos três

evangelhos. Mas Lucas e Mateus têm textos em comum que não estão em Marcos. Logo, os

biblistas supõem que para isto se valeram de uma fonte desconhecida, talvez anotações de

algum apóstolo sobre os ensinamentos de Jesus. Chama-se esta suposta fonte de Quelle, ou

simplesmente Q (fonte em alemão). Poder-se-a fazer uma comparação em dois textos: Mt 5,1-

11 com Lc 6,17-26, ou ainda Mt 6,9-13 com Lc 11,2-4. Parece que Lucas e Mateus

recolheram estes textos de uma mesma fonte. Estes textos não se encontram em Marcos. Cada

um escreveu à sua maneira, sem se importar em detalhes. Note-se que em Mateus o sermão é

proferido no monte, em Lucas o mesmo sermão é proferido na planície. Além do mais, as

frases das bem-aventuranças são diferentes. Já se compararmos Lc 9,28-36 com Mt 17,1-9,

veremos que o mesmo texto se encontra em Mc 9,2-9. Neste caso concluímos que Mateus e

Lucas copiaram Marcos, embora também encontremos diferenças. Cada um manteve suas

peculiaridades. Mas Lucas, assim como Mateus, tem conteúdo exclusivo que não se encontra

em nenhum outro evangelho. Por exemplo: a parábola do Filho Pródigo (Lc 15,11ss) só se

encontra em Lucas e o relato sobre o julgamento final (Mt 25,31-46) só se encontra em

Mateus. Assim, pensam os estudiosos, além da fonte Q os dois referidos evangelistas tinham

acesso a outras fontes, que para nós, hoje são desconhecidas. Devido à semelhança existente

entre os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, os três recebem o nome de Evangelhos

Sinóticos, quer dizer, de um mesmo ponto de vista.

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Época da redação

Boa parte dos especialistas no Novo Testamento crê que o Evangelho de Lucas foi

escrito por volta do ano 80 da era cristã. Portanto, o referido evangelho teria sido escrito uns

50 anos após a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Até então os evangelhos, ou melhor, o

evangelho, era transmitido de forma oral. Neste processo de transmissão oral, a pessoa de

Jesus foi lida e interpretada à luz da experiência da ressurreição. Nos anos 80 Lucas e Mateus

reescrevem Marcos, completando-o e adaptando-o para as suas comunidades.

Supõe-se que Lucas vivia em Antioquia, na Síria e, ao que parece, antes de se tornar

cristão, já tinha aderido ao judaísmo como prosélito, ou temente a Deus. Era bastante comum

que gentios idólatras aderissem ao judaísmo, tornando-se assim, monoteístas. Mas, por não

serem judeus de nascimento, nunca seriam judeus plenamente. Não podiam participar das

cerimônias do templo, nem mesmo podiam entrar nele. Eram judeus pela metade. Diríamos,

simpatizantes da religião, mas nunca do grupo étnico judeu. Com o surgimento do

cristianismo, muitos destes prosélitos e tementes a Deus, se tornaram cristãos. Pensa-se que

Lucas era prosélito, pois conhece muito bem o Antigo Testamento, o que não seria comum

para um gentio. Lucas seria um líder religioso, que nos anos 80 quer preservar o testemunho

dos apóstolos (Lc 1,2-3). Por isto mesmo se dedica à investigação cuidadosa para que Teófilo

tenha solidez na fé.

Por que?

Como já foi dito, Lucas escreveu para cristãos vindos da gentilidade, isto é do

paganismo, ou não judeus. Grande parte destes gentios estava descontente com as religiões

gregas, romanas e outras devido a seu politeísmo e também pelo fato de estas religiões, na

maioria, não terem uma moral nos costumes. Já o judaísmo tinha um só Deus e uma moral

rígida. Mas a questão racial os impedia. Paulo lutou para derrubar o muro que separava judeus

e pagãos (Ef 2,11-15; Gl 3,28). Com isto, os gentios que aderiram ao judaísmo viram uma

nova possibilidade: passar do semi-judaísmo para o cristianismo. Estes gentios convertidos

podem ser os “teófilos” (amigos de Deus, a quem Lucas escreve seus dois livros). A grosso

modo, Lucas quer responder a dois problemas:

1) Acalmar a tensão entre cristãos vindos do judaísmo e cristãos vindos do paganismo.

Como os primeiros cristãos eram todos judeus, não havia problema racial. Mas quando, aos

poucos alguns gregos aderem ao cristianismo, surge um conflito cultural e religioso. Os

judeu-cristãos não querem abrir suas assembleias aos demais (At 6,1ss; Gl 1,6ss; Ef 2,11ss;

Rm 3,9ss). Lucas quer encorajar os gregos e romanos a terem solidez na fé (Lc 1,1ss). Lucas

fala do bom samaritano (Lc 10,29ss) e dos dez leprosos (Lc 17,11ss). Nestes relatos, os

estrangeiros são os modelos, enquanto os judeus são indiferentes. Isto encorajava os não-

judeus. No livro de Atos dos Apóstolos, a partir do capítulo 13, sempre que surge um conflito

na missão de Paulo, Lucas mostra a intransigência dos judeus e a bondade dos romanos.

Então se pode ver em Lucas a tentativa de valorizar os não judeus para que eles não

desanimem diante da resistência dos cristãos oriundos do judaísmo.

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2) Tensão entre ricos e pobres. Os primeiros cristãos eram, na maioria, pobres. Aos

poucos, entram também alguns ricos. Estes reproduziam, nas comunidades aquilo que era

comum na sociedade, o desprezo pelos pequenos e fracos. Lucas quer fazer frente a estes

abusos. Em Lc 4,18ss Jesus lança seu programa contra a exploração, a escravidão e as

injustiças. Em Lc 6,20ss se posiciona a favor dos pobres e contra os exploradores. Em Lc 11,4

condiciona o perdão dos pecados ao perdão das dívidas e, em Lc 16,19ss mostra o que

acontece com o rico insensível diante do sofrimento do pobre faminto. A intuição lucana

perpassa toda sua obra.

A teologia de Lucas aparece: na disposição geográfica; na força criadora da palavra de Deus; na

proeminência do Espírito Santo como guia da Palavra de Deus, na humanidade de Jesus, muito voltada

para os outros, e na ênfase a temas como compaixão, misericórdia, oração, discipulado, universalismo,

relacionamento com bens materiais (pobreza versus riqueza), liderança feminina nas comunidades

cristãs, enculturação, solidariedade gratuita e libertadora (MOREIRA, 2012, p.9-10).

Alguns estudiosos classificam Lucas como o evangelista dos pequenos (4,18ss), dos

fracos (16,19ss), dos pecadores (18,9ss), das mulheres (8,1-3), etc. Talvez ele mesmo, por não

ser judeu, tenha experimentado a exclusão, como acima afirmamos. Entende perfeitamente a

sorte das pessoas, que como ele, carregam a chaga da exclusão racial.

Diante destas situações, Lucas faz uma pesquisa em Marcos e em outras fontes e

dispõe tudo numa estrutura que, embora semelhante a Marcos, lhe é própria, não como uma

ata da vida de Jesus, mas como uma interpretação de Jesus para a vida de suas comunidades.

Percebemos que Lucas, como os demais evangelistas, têm a liberdade de mudar as palavras e

os gestos de Jesus, conforme as necessidades de seus leitores.

Aqui sugerimos que os leitores façam uma parada e abram a sua Bíblia. Comparem

um mesmo assunto em três evangelistas: Mc 10,35-45; Mt 20,20-28 e Lc 22,24-27. Se

possível, leiam o que vem antes e o que vem depois. Verifiquem como mudam os detalhes e

em Lucas até muda o contexto.

Estrutura do evangelho de Lucas

Há muitas tentativas de descrever a estrutura do evangelho de Lucas. Não existe

unanimidade entre os estudiosos. Aqui optamos por uma estrutura apresentada por Casalegno

(2003, p.35).

Antes da Vida Pública: infância, João Batista, tentações (Lc 1,1-4,13).

Missão na Galileia (Lc 4,14-9,50).

Viagem para Jerusalém (Lc 9,51-19,44).

Paixão, morte e ressurreição em Jerusalém (Lc 19,45-24,53).

Nesta perspectiva vamos fazer dez lições para termos uma visão geral do evangelho de

Lucas e assim vivenciarmos melhor a mensagem salvífica que o referido evangelista nos

oferece.

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1 - A infância de Jesus

Temos em nossa memória belas recordações do natal: presépio, animais, neve,

pastores, etc. aqui, no entanto, queremos fazer outra leitura. Os relatos da infância de Jesus

(Lc 1 e 2), mais do que atas do nascimento, são o programa do que será desenvolvido no

evangelho. Lucas, à luz da ressurreição de Jesus, faz uma interpretação. O Antigo Testamento

cumpriu seu papel na pessoa de João Batista. Agora, Jesus o suplanta. Tudo desemboca na

pessoa de Jesus, ou seja, em Jesus se realiza tudo o que iniciou desde Moisés. João Batista faz

a ponte entre o Antigo Testamento e Jesus.

Introdução: O texto de Lc 1 e 2 narra dois nascimentos: o de João Batista e o de

Jesus. João é o último personagem do Antigo Testamento, que de forma simbólica, volta ao

deserto e faz passar pela água (batismo), como Moisés e os escravos libertos depois de

passarem pelas águas. Jesus é o início da nova realidade. Assim dividiremos o texto em dois

ciclos:

1) O ciclo de João Batista (Lc 1,5-25 mais Lc 1,57-80): O relato do nascimento de

João Batista é mais teológico do que histórico. Seus pais, Zacarias e Isabel são da casta

sacerdotal e rigorosos observantes da lei, representantes do Antigo Testamento. Apesar de

sua função, são estéreis. São a figura de uma religião petrificada. Zacarias oferece

sacrifícios, mas lhe falta a fé. Ele cumpre um ritualismo frio que já não produz nada. Não é

apenas a esposa que é estéril, o próprio Zacarias também é estéril, pois não crê no anjo e por

isto fica mudo. A religião do Antigo Testamento não tem mais nada a dizer.

O nascimento de João Batista é simbólico. Ele é a ruptura do antigo, é concebido

quando já não há as mínimas condições, não recebe o nome de seu pai, rompe a tradição.

Sendo seu pai sacerdote, também o menino deveria ser sacerdote, uma vez que o sacerdócio

era hereditário. Mas o menino vai para o deserto, viver a vida de profeta. O Antigo

Testamento iniciou no deserto (Ex 19-24), mas depois entrou na terra prometida e se

institucionalizou e se tornou uma religião do templo (1Rs 6,1ss). Agora, em João Batista o

Antigo Testamento volta às suas origens, o deserto. O batismo que João pratica é uma figura

da passagem pelo Mar Vermelho (Ex 14). Em João, o Antigo Testamento cumpriu seu

papel.

2) ) Ciclo de Jesus (Lc 1,26-56 mais Lc 2,1-52). No sexto mês de Isabel (sexto dia da

criação – Gn 1,26s) começa o novo Adão (o anjo anuncia a Maria). Tudo agora será

contraposição a João Batista. O nome João significa Deus faz graça. O nome Jesus significa

Deus salva. João é anunciado no templo, centro da antiga aliança. Jesus é anunciado em

Nazaré, periferia. Os progenitores de João são de família sacerdotal, casados. A progenitora

de Jesus é uma moça da periferia, virgem, sem convivência com homem. João é da linhagem

de Aarão, Jesus é da linhagem de Davi. João é filho de mãe estéril e idosa, Jesus é filho de

virgem e nova. Zacarias não crê nas palavras do anjo. Maria crê e dá seu Sim. João recebe o

Espírito Santo no sexto mês quando Maria visita Isabel, Jesus é concebido pelo Espírito

Santo.

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Lucas mostra a superioridade de Jesus sobre João, pois nos anos 80, alguns batistas

pensavam que João seria o messias. À luz da páscoa, Lucas põe em Jesus os títulos da fé que

a igreja nos anos 80 professava: “grande”, “filho do Altíssimo”, “rei para sempre”, “santo”,

“Filho de Deus” (Lc 1,32ss). Com isto Lucas mostra que em Jesus se realiza a grande

novidade. Os planos de Deus se realizam. O que aconteceu no Antigo Testamento foi

preparação. São Paulo vai apresentar Jesus como plenitude dos tempos (Gl 4,4). Jesus é a

revelação máxima de Deus. Tudo o que vem antes é aperitivo daquilo que se realiza na

pessoa de Jesus. Logo, nos relatos da infância Lucas coloca o fim do Antigo Testamento e o

início do Novo Testamento, ou da plenitude dos tempos que se realizam na pessoa de Jesus.

Questões

1) Que comparação podemos fazer entre Jesus e João Batista?

2) Será tudo histórico o que é narrado em Lc 1 e 2?

3) Onde encontramos a plenitude da Revelação de Deus?

2 - As tentações de jesus

As tentações de Jesus, mais do que um fato acontecido num dia, são a materialização

da realidade vivida diariamente por ele. Sendo igual a nós em tudo, menos no pecado (Hb

4,15), teve de fazer opções todos os dias para ser fiel ao Pai e ao Reino de Deus. Jesus era

Deus, mas enquanto homem estava sujeito a seguir um projeto de vida que não fosse de

fidelidade, satisfazendo seus interesses pessoais. O texto faz um paralelo com as tentações do

antigo Israel, quando saiu da escravidão do Egito (Ex 16ss). O velho Israel foi fraco. Jesus

deu a resposta fiel, não repetiu o antigo fracasso. Estamos diante de um fato teológico e não

diante de um fato histórico acontecido num determinado dia.

Introdução: Para compreender as tentações de Jesus (Lc 4,1-13) deve-se ler toda a

unidade de Lc 3,1 até 4,13: Pregação de João Batista (Lc 3,1-20), Batismo de Jesus (Lc 3,21-

38) e as Tentações de Jesus (Lc 4,1-13), pois sem ler o que vem antes o texto das tentações

fica incompleto.

As Tentações ( Lc 4,1-13).

1) Ter todo o pão - transformar pedra em pão (Lc 4,3-4). Há um paralelo entre o Povo

de Deus, escravo no Egito, animado por Moisés que passa o Mar Vermelho e vai ao deserto

(Ex 14). Jesus passa pelas águas do batismo e também vai ao deserto (Lc 3,21-38 e 4,1ss). O

povo no deserto sofreu a grande tentação, pois não tinha pão (Ex 16,1ss). Jesus no deserto

também é tentado pela forme (Lc 4,1ss). O povo de Israel é tentado e quer acumular o pão (Ex

16,20). Jesus é tentado a transformar pedra em pão, mas, pelo contrário, não acumula o pão:

“nem só de pão vive o homem”. Ter excesso de pão requer tirar o pão da mesa do irmão. E

isto é negar o Reino de Deus, pois Deus quer a vida para todos. Jesus, o novo Israel não repete

o pecado do velho Israel.

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2) Ser o senhor deste mundo (Lc 4,5-8): para entender esta tentação, vamos lembrar a

história do povo de Israel. Depois de sair do Egito, no deserto, Moisés acaba centralizando

todo o poder em suas mãos, ou seja, ele, que antes lutou pela libertação do povo, agora se

tornou o novo faraó (Ex 18,13ss). Ele sozinho julgava todas as coisas e o povo colaborou para

isto, submetendo tudo a ele. Desta forma o povo não assumia seu papel, esperava tudo de

Moisés e este se tornou um novo faraó. O mesmo acontece mais tarde com os reis de Israel:

Saul, Davi, Salomão, etc. Estes afastaram a nação do plano de Deus. O rei vivendo no luxo

(1Rs 10,14ss), na licenciosidade e na idolatria (1Rs 11,1-8) e o povo chorando na amargura da

opressão (1Rs 12). Ora, quando uma única pessoa detém o poder, o povo fica infantilizado.

Facilmente acontecem as explorações, as injustiças e a prepotência. Quem domina se torna

tirano e os dominados se tornam escravos. “Os reis das nações agem com elas como

senhores” (Lc 22,25). Isto não é Reino de Deus. Jesus, ao contrário do antigo povo, coloca a

vontade de Deus acima de sua própria vontade. Ele não veio para se fazer servir, mas para

servir (Mc 10,45 e Jo 13,1-17). O Reino de Deus só acontece quando as pessoas servem, não

quando se fazem servir.

3) Ter um Deus fácil (Lc 4,9-12). Aqui devemos ler Ex 17,1-7 e Dt 6,16. O povo sofre

por não ter água e tenta a Deus. O povo quer soluções fáceis. Ao invés de se tornar servo de

Deus, quer Deus como seu servo, ou ainda, um Deus para satisfazer interesses pessoais. Hoje,

tantos líderes religiosos prometem milagres em nome de Jesus. Querem burlar os caminhos

normais da vida e resolver seus problemas forçando Deus a agir de forma milagrosa. Jesus

como nós hoje, se viu tentado a submeter Deus ao tamanho de seus interesses. Ou seja, quis

tornar Deus seu servo. Isto seria negar o reino de Deus, pois servir-se de Deus não é realizar a

justiça de Deus. Jesus dá um solene Não às três tentações.

Conclusão: as três tentações não aconteceram num determinado dia, mas foram as

tentações de toda vida de Jesus. Como ele veio para instaurar o reino de Deus na terra, teve de

fazer opções: não podia ter acúmulo de pão, outros ficariam sem alimento. Não podia ser o

dono deste mundo, outros ficariam escravos. Não podia usar Deus para seus interesses, outros

seriam manipulados.

Questões

1) O que é hoje a tentação de transformar pedras em pão?

2) Pregadores que oferecem milagres fazem a vontade de Deus, ou estão submetendo

Deus aos seus caprichos?

3) Com a ilusão dos milagres, as pessoas se aproximam de Deus, ou se afastam Dele?

3 - O programa de Jesus

Jesus, como o antigo povo de Israel, passou pela água, foi para o deserto. Agora ele

está apto para iniciar sua missão. Sua primeira preocupação é apresentar seu projeto de vida,

sua missão. Poderíamos pensar que Jesus quisesse apenas salvar almas, mas não é isto o que

veremos na lição de hoje. Ele se preocupa com os pobres, os endividados, os sem liberdade,

os despossuídos. Ele quer mudar a mentalidade daquelas pessoas que já não ficam indignadas

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diante das injustiças. Por isto fala em recuperar a vista aos cegos. Ele retoma um texto de

Isaías e lança seu programa de ação. A missão de Jesus é totalmente voltada para Deus, mas

ao mesmo tempo, totalmente voltada para as pessoas, principalmente as excluídas.

Introdução

O texto que vamos estudar hoje faz parte da Missão de Jesus na Galileia (Lc 4,14 até

9,50). A grosso modo Lucas copiou esta unidade de Mc 1,9 até 9,50, mas acrescentou partes

tiradas da fonte Quelle: Q. a Missão na Galileia se divide em três partes: 1) Lc 4,16 até 6,11:

texto copiado de Marcos, mas não literal, 2) Lc 6,12 até 7,50: texto tirado da fonte Q. 3) Lc

8,1 até 9,50: cópia não literal de Marcos. Em nossas próximas lições tomaremos um texto de

cada uma destas partes. Nossa lição de hoje será da primeira parte.

O Programa de Jesus (Lc 4,14-30)

Depois de Jesus ter sido batizado, lembrando o Mar Vermelho (Lc 3,21ss), depois de

passar pela tentação como outrora o povo de Israel no deserto (Lc 4,1-13), ele inicia a missão,

mas não repetindo os pecados do antigo povo.

Jesus age pelo Espírito Santo (Lc 4,14ss) e inicia a pregação. Na sinagoga lê o texto de

Is 61,1-2 misturado com Is 58,6, mas altera levemente o conteúdo. O texto foi copiado de Mc

6,1-6, mas com alterações. Além dos vs. 17-21 ele também acrescenta os vs. 25-27. Nestes

versículos Lucas mostra que Jesus realiza as antigas promessas, conforme Is 61,1-2.

O que mais importa para a nossa lição de hoje são os vs. 18 e 19. Analisaremos seu

conteúdo, a seguir:

“O espírito do Senhor está sobre mim” (4,18). Como os antigos reis são ungidos com

o óleo: Saul (1Sm 10,1ss), Davi (1Sm 16,1ss), assim também Jesus é ungido. Não com óleo,

mas pelo Espírito Santo. Os reis foram ungidos para a missão, também Jesus é ungido para a

missão, para dar uma Boa Notícia (evangelho) aos pobres. A comunidade que segue Jesus,

através de sua prática (At 2,42ss; 4,32ss: 5,12ss) alegra os pobres, pois nela suas necessidades

são supridas pelo compromisso de todos.

“Proclamar aos cativos a libertação”(4,18). Quando um pobre não pudesse saldar

suas dívidas, era encarcerado (Mt 18,23ss). Numa comunidade onde se partilhava os bens,

ninguém sofria ameaça de prisão. É vontade de Jesus que todo ser humano tenha vida plena

(Jo 10,10). Perder a liberdade é uma afronta aos planos de Jesus.

“Proclama aos cegos a recuperação da vista” (4,18). As pessoas estavam tão

condicionadas ao mundo de então que já nem se davam conta de que havia algo errado em

escravizar o pobre. Devolver a vista, mais do que um milagre era mudar a maneira errada de

ver a realidade social. Muitos ricos escravizavam (cf. lição 2) e pensavam que estavam agindo

bem. Isto é cegueira. A prática de Jesus abre os olhos. Ensina ver toda pessoa como imagem e

semelhança de Deus.

“Proclamar um ano de graça do Senhor” (4,19). Em Lv 24,10ss e 258ss se fala do

Ano da Graça, ou ano jubilar. Neste ano as dívidas eram perdoadas e quem perdeu terras por

dívidas as recebia de volta.

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Conclusão

O programa de Jesus, seguido pelos discípulos, é um compromisso com os irmãos,

principalmente com aqueles, cuja dignidade foi roubada por uma sociedade que se rege por

critérios contrários ao evangelho. Jesus quer que seus discípulos tenham critérios baseados

naquele que criou o ser humano à sua imagem e semelhança. É uma outra maneira de dizer:

“eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10).

Este programa é uma consequência da firmeza de Jesus diante das tentações (Lc

4,1ss). Quem resiste às tentações liberta o ser humano. Isto será desenvolvido por Lucas até o

fim de seu evangelho. Toda ação de Jesus é em vista da libertação do ser humano.

Questões

1) Os cristãos, hoje, devem se preocupar com questões políticas, ou apenas com

questões espirituais?

2) Jesus queria que todas as cadeias fossem abertas, quando fala em libertar os

cativos?

3) O que é hoje abrir os olhos aos cegos?

4 - O sermão da Planície

Uma nova ordem social está por se instalar a partir da prática de Jesus e dos seus

discípulos: o amor que resulta em solidariedade. Esta prática é uma boa notícia, faz as pessoas

felizes ou bem-aventuradas. Quem vivia na angústia, na miséria e na exclusão, encontra na

comunidade cristã uma maneira de se realizar como ser humano, pois a solidariedade dá um

lugar para todos. Mas para que este lugar para todos aconteça, é preciso mexer nos privilégios

de alguns. Por isto o texto de Lucas fala em Bem-aventurados e em mal-aventurados. É

impossível continuar a lógica comum da saciedade. A partilha é uma boa notícia aos

sofredores, mas é uma má notícia aos avarentos e egoístas. Ainda hoje percebemos a reação

imediata dos opulentos quando se fala em justiça social.

Introdução

A lição de hoje ainda está dentro da Missão na Galileia (Lc 4,14-9,50). Como vimos

na lição 3, esta missão se divide em três partes: 1) 4,14-6,11 copiada de Marcos, 2) 6,12-7,50

tirado da fonte Q, 3) 8,1-9,50 novamente copiado de Marcos. Hoje vamos estudar um texto

extraído da segunda parte (Lc 6,12-7,50).

O sermão da Planície (Lc 6,20-26)

Sermão da planície, o que é isto? Conhecemos o sermão da montanha (Mt 5,1-12),

mas não da planície. Vamos comparar com Mt 5,1-12 e notar as diferenças. Mateus fala em

monte, Lucas diz que Jesus desceu à planície (Lc 6,17). Mas não apenas isto é diferente.

Também as frases são elaboradas de forma diversa. Este texto só se encontra em Mateus e em

Bruno G.Glaab Página 12

Lucas, portanto, eles o copiaram da fonte Q. Mas copiar, não se quer dizer fotocópia, pois

cada evangelista usa o mesmo material e o adapta aos seus leitores. Mateus é judeu e escreve

para evangelizar cristãos judeus. O monte lembrava o Sinai (Ex 19-24) onde Deus fez a antiga

aliança. Lucas é grego e escreve para cristãos gregos que não conheciam o monte Sinai. Lucas

sabe que na planície estão os grandes latifundiários que se apropriam das terras do povo. Por

isto Lucas aplica o remédio para a situação concreta. Além das Bem-aventuranças (Lc 6,20-

23), Lucas traz também as Mal-aventuranças (Lc 6,24-26). Podemos traduzir bem-

aventurados e mal-aventurados por felizes e infelizes.

Grande multidão de estrangeiros e judeus seguem a Jesus (Lc 6,17). A mensagem de

Jesus é universal, mas começa com os últimos. São as pessoas que sofrem e não tem a quem

recorrer. No comum da sociedade é feliz quem tem posses, quem frequenta os melhores

restaurantes, têm boa fama. Mas Jesus vem trazer nova prática. Entre os discípulos de Jesus

conta o amor e a solidariedade com todo tipo de gente (At 2,42ss; 4,32ss). Isto tira o

miserável de uma situação de penúria. Assim, felizes, os pobres, pois na comunidade dos

seguidores de Jesus tem lugar para todos. Havendo solidariedade e amor, os pobres terão sua

fome saciada, seu choro vira em sorriso, e sua tristeza vira alegria.

Mas, para que os pobres possam ser felizes, alguém vai perder. É preciso tocar na

ferida, ou seja, naqueles que são a causa do sofrimento do pobre, naqueles que vivem às

custas do sofrimento do povo. E quem são eles? Os latifundiários da planície (Lc 6,17). Eles

se valem da situação de miséria do povo e vivem às custas do sofrimento do pobre. Para eles,

a prática de Jesus não é uma Boa Notícia (evangelho), mas uma má notícia. Quem vivia na

fartura da exploração, vai dividir. Quem vivia na ociosidade, vai trabalhar, quem explorava,

vai viver como irmão. Isto é má notícia para quem se acostumou a viver desta forma.

As Bem-aventuranças têm um sentido para hoje. Grande parte do sofrimento do nosso

povo é causado pela injustiça de quem não segue os passos de Jesus. O sofrimento vem como

fruto da ganância, da falta de amor e da falta de solidariedade. Pessoas que sobem na vida

pisando sobre o pequeno e o fraco.

Jesus não se posicionou contra nenhuma pessoa com posses, mas contra aquelas

pessoas que enriquecem às custas da miséria alheia. As Bem-aventuranças são uma

reviravolta nos critérios de felicidade que consistem apenas em acumular bens, fama, posição

social, sem se importar com as pessoas, com a natureza e com tudo o que se refere ao bem

comum.

Questões

1) Quem segue a Jesus também deve ter preocupações sociais, políticas e

econômicas?

2) Por que as Bem-aventuranças são diferentes em Lucas do que em Mateus?

3) As Bem-aventuranças ainda têm sentido para nós, hoje?

Bruno G.Glaab Página 13

5 - Os e as colaboradores/as de Jesus

Todas as pessoas com um mínimo de bom senso, hoje percebem que ainda somos

muito injustos para com as mulheres, pois Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e

semelhança, mas nós olhamos com desdém para elas. Nas igrejas, no mundo do trabalho, na

política, etc. elas ainda não têm o mesmo lugar que os homens. Como Jesus se relacionava

com as mulheres? Sabemos que entre seus discípulos há homens e mulheres. Na hora da cruz

as mulheres estão mais próximas do que os homens e na experiência da ressurreição, são elas

novamente as privilegiadas. Tanto assim que são elas que têm a incumbência de levar a

notícia da ressurreição aos apóstolos. Está claro que Jesus não fazia a distinção

preconceituosa que ainda hoje nós fazemos.

Introdução

O texto que vamos estudar hoje, ainda faz parte da Missão de Jesus na Galileia (Lc

4,14 até 9,50). Como vimos nas aulas anteriores, esta unidade tem três subdivisões: cópia de

Marcos (Lc 4,14 até 6,11), tirado da fonte Q (Lc 6,12 até 7,50), cópia de Marcos (8,1 até

9,50). Nosso estudo, hoje se baseia nesta última parte, ou melhor, um texto que, embora faça

parte de uma unidade copiada de Marcos, é exclusiva de Lucas. Nesta lição vamos perceber o

papel da mulher junto de Jesus, em sua missão.

As mulheres companheiras de Jesus (Lc 8,1-3)

O relato lido fora de contexto pode parecer de pouca importância. Parece algo muito

normal que Jesus saia a pregar e leve junto os Doze e a algumas mulheres. Hoje isto não seria

nenhum problema, pois estamos acostumados a trabalhar juntos e conviver diariamente. Mas

nos tempos de Jesus isto era bem diferente. A cultura judaica não permitia tal coisa. A mulher

vivia enjaulada. A solteira era propriedade dos pais e a casada, do marido. Não era permitido

a uma mulher falar com homens e menos ainda, andar junto com eles. Mulher era reclusa na

sua família. Na rua, os homens de bem não saudavam as mulheres e os mestres não lhe davam

nenhuma instrução. Não dirigiam a palavra às mulheres. Um célebre rabino ensinava que,

quem ensina a Bíblia para a mulher estava adulterando a Bíblia e a mulher. Ela não devia

receber nenhuma instrução além do cuidado da cozinha e das crianças. “Homem de bem” nem

sequer olhava para seu rosto.

Em Lucas Jesus assume postura bem diferente diante da mulher. Até a mulher

pecadora foi acolhida por ele (Lc 7,36ss). Jesus entrou em casa de duas mulheres (Marta e

Maria) e deu instrução a Maria (Lc 10,38ss). Imaginemos o que os “homens de bem” da

época pensavam de Jesus. Lucas, um grego, e também excluído por motivos raciais, gosta de

destacar este lado humano de Jesus.

No texto de Lc 8,1-3 encontramos diversas mulheres: Maria, Joana, Susana e muitas

outras. Diz Lucas que elas tinham sido curadas de espíritos maus e de Maria de Magdala

havia expulsado sete demônios. Não imaginemos uma cena de exorcismos ao estilo de certas

igrejas que gritam: “Sai demônio”! Expulsar sete demônios era libertar a mulher de todo um

sistema machista opressor. Era dar a elas os mesmos direitos que os homens tinham. Se estas

mulheres andavam com Jesus e os Doze, certamente faziam o mesmo que eles: anunciavam o

Bruno G.Glaab Página 14

Reino. Lucas diz que elas ajudavam a Jesus e aos Doze com seus bens. Mas aí fica uma

pergunta: se elas apenas ajudassem com seus bens, precisavam andar junto com Jesus e os

discípulos? Ora, se fosse apenas isto, elas ficariam em casa, pois ao menos uma era casada, e

quando Jesus e os Doze por lá passassem, lhes dariam ajuda financeira. O texto quer mostrar

mais. Jesus expulsou os demônios do preconceito e do machismo e associou a si homens e

mulheres que continuassem a sua missão de anunciar o Reino de Deus a todos os povos.

Conclusão

Assim, expulsar demônios hoje, mais do que gritar com satanás e mandá-lo para longe.

Antes, é hoje nos espelharmos em Jesus e acabar com toda espécie de preconceito: machismo,

racismo, classismo, etc. A mulher, o estrangeiro, seja quem for, têm a mesma dignidade, pois

todos somos feitos à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27). As pessoas que alimentam

preconceitos machista são possessas do demônio. Urge expulsá-lo para impedir tais situações.

Questões:

1) O que significa, hoje, expulsar demônios? Teria sentido em nosso tempo?

2) Como é e como deveria ser o papel da mulher na sociedade e na igreja?

3) Por que Lucas destaca tanto o papel da mulher?

6 - Jesus vai a Jerusalém: o êxodo de jesus

Jesus viveu sua infância em Nazaré, na Galileia. Foi também ali que iniciou sua

missão e arregimentou seus discípulos e apóstolos. Sua missão, porém, não cabia nas estreitas

fronteiras de Galileia. Em Lc 9,51 ele toma a decisão de ir a Jerusalém, na Judeia. Não se trata

de turismo religioso, ou mesmo de um passeio. Trata-se de confronto com o poder religioso e

político que impediam o reino de Deus e que enjaularam Deus nos estreitos conceitos do

templo e da Lei. Ir para Jerusalém é ir ao centro do poder e lá denunciar os erros e pecados.

Claro, tal atitude era uma ousadia que, Jesus facilmente podia imaginar, poderia terminar mal.

Ele, no entanto, toma a decisão firme. Nada o detém. Está disposto a derramar o sangue.

Introdução

Até agora, menos nos relatos da Infância e adolescência, Jesus sempre estava na

Galileia (norte da Palestina). A partir de Lc 9,51 até 19,44 Jesus se dirige para Jerusalém, em

Judá (sul), onde se enfrentará com as autoridades e sofrerá a morte de cruz. Em toda esta

seção, diversas vezes, Lucas lembra que Jesus está viajando para Jerusalém: Lc 9,51-53;

10,38; 13,22; 18,11; 18,31; 19,11; 19,28. Portanto, Jesus está a caminho: é o êxodo de Jesus.

Bruno G.Glaab Página 15

Material de Lucas

Nesta unidade quase tudo vem da fonte Q, com exceção de Lc 18,15 até 19,44, onde

tem bastante material em comum com Marcos e Mateus. Nesta unidade muito material só se

encontra em Lucas. Ex.: o bom samaritano (Lc 10,29ss), o filho pródigo (Lc 15,11ss), o rico e

o pobre Lázaro (Lc 16,19ss), etc. Esta viagem (9,51-19,44) é a parte mais original de Lucas.

Marcos só dedica dois capítulos ao Caminho para Jerusalém (Mc 8,27 até 10,52). Já Mateus

dedica quatro capítulos (Mt 16,13 até 20,34).

Em Lucas esta viagem não tem coerência geográfica. Mais do que descrição histórica,

reflete a longa caminhada da Igreja que sai do mundo judeu para o mundo grego, ou também,

de uma compreensão judaica, para uma compreensão paulina de Jesus. A viagem é bem mais

teológica do que histórica. Subir a Jerusalém (Lc 9,51) é o início da ascensão que termina em

Lc 24,53. Ele agora vai enfrentar a cruz. Assim como Jesus, também o discípulo segue na

dureza (Lc 9,57ss). O povo também caminha com Jesus (Lc 14,25). Jesus vai à frente e os

discípulos o seguem (Lc 19,28). Os discípulos estão unidos a Jesus nesta subida, fazem

igualmente o caminho da cruz. Portanto, esta unidade responde à caminhada dos cristãos dos

anos 80, quando Lucas, como hábil teólogo, reflete a caminhada da Igreja na caminhada de

Jesus.

O Caminho de Jesus (9,51-19,44) se divide em três partes: 1) Atuação dos discípulos

(Lc 9,51 até 13,21), 2) O grande projeto de Deus (13,22 até 17,11), c) Espera escatológica

(17,12 até 19,44).

Início da viagem (Lc 9,51-56)

O texto diz: “quando se completaram os dias de sua ascensão (arrebatamento), ele

firmou o rosto (resolve resolutamente) para ir a Jerusalém (9,51). Jesus sabe que agora deve

enfrentar as consequências de sua fidelidade ao Reino. Sabe também que o preço de sua

fidelidade é a morte de cruz, mas ele endurece a face como o Servo Sofredor (Is 50,7), não

recua. Está disposto a ir até as últimas consequências.

Nesta unidade (9,51 até 19,44) tudo tem a marca da decisão de Jesus que se dirige ao

centro do poder para enfrentar uma religião petrificada, com a qual Jesus não concorda. Jesus

não está procurando a morte, mas sim, a instauração do Reino de Deus e para isto ele terá de

se confrontar com o poder religioso e político que impedem o Reino. Para ser fiel ao Reino,

ele está disposto a pagar qualquer preço: denunciar uma prática religiosa vigente, anunciar

uma nova prática, mesmo que para isto ele tenha de se chocar com as autoridades e ser morto

por elas. Jesus não procura a morte. Ela é apenas o preço que ele paga pela sua ousadia em

denunciar o que impede o Reino: legalismo farisaico, uma compreensão errada de Deus,

exclusão do povo, etc.

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Conclusão

Ir resolutamente a Jerusalém, mais do que uma indicação geográfica, indica o

programa de Jesus (cf. Lc 4,18-19), de opor-se e enfrentar tudo o que impede a fidelidade ao

Pai e à instauração do Reino de Deus que acontece na vida dos pequenos e dos excluídos.

Jesus só tem uma missão: o Reino.

Questões

1) Onde Lucas se inspirou para escrever a viagem para Jerusalém?

2) Por que Jesus toma a firme decisão de ir a Jerusalém?

3) Jesus buscou a morte de cruz?

7 - A missão dos 72 discípulos

Diferente dos outros evangelistas, Lucas mostra que, quando Jesus vai a Jerusalém,

enfrentar o poder, ensina que todos são corresponsáveis pelo anúncio do evangelho e que

também todos devem ser evangelizados. Ninguém pode ficar fora, por isto é preciso pedir ao

Senhor que envie mais operários. A missão da Igreja é universal. Os outros evangelistas estão

mais preocupados com a missão dos Doze, que eram mais retraídos ao mundo judeu. Lucas

não esquece os Doze, nem Israel, mas sonha com uma evangelização que chegue aos confins

do mundo (At 1,6-8).

Introdução

Estamos estudando a Viagem de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51-19,44). Esta

caminhada, como vimos na aula anterior, tem três partes. Hoje estudaremos um texto da

primeira parte, trata-se de Lc 10,1-12 que se insere na primeira unidade: a atuação no mundo

(9,51-11,21). Portanto, o texto de hoje será lido na ótica de como agir no mundo, quando o

mestre está indo para Jerusalém para assumir a cruz.

A missão dos 72 discípulos (Lc 10,1-12).

Em Lc 9,1ss Jesus envia os Doze em missão. Já em Lc 10,1ss ele envia 72 discípulos

(algumas traduções: 70). Este número, 72/70 mostra a universalidade. Acreditava-se que

existiam 72 povo (cf. Gn 10,1ss). Em Nm 11,16ss se fala que Moisés tem 70 auxiliares que

recebem o Espírito. Nesta perspectiva, os 72 discípulos simbolizam a participação de todos,

bem como a destinação universal da evangelização. Esta perspectiva que só Lucas traz reflete

a grave situação dos primeiros anos do cristianismo: os Doze só anunciavam o evangelho aos

judeus (Mt 10,5s e Mt 15,24). Nos tempos de Paulo, os mais conservadores, como Tiago (Gl

2,11-14) queriam impedir a abertura da igreja aos incircuncisos (At 15,1ss). Lucas, um grego,

Bruno G.Glaab Página 17

quer mostrar neste relato que a Boa Nova é para todos os povos. Todos devem evangelizar e

todos devem ser evangelizados.

Os 72 discípulos devem ir dois a dois, pois sua principal tarefa é anunciar e

testemunhar. Testemunho deve ser de no mínimo duas pessoas. A missão dos anunciadores é

acima de tudo, testemunho (At 1,6-8). Jesus os envia à sua frente, por onde ele mesmo devia

ir. Nesta missão os discípulos devem ser destemidos (entre lobos), não levar bolsa (não ter

outra preocupação, nem outros interesses), não saudar pelo caminho (não perder tempo).

Devem levar a paz, curar doentes e anunciar o reino. Anunciar o evangelho, mais do que

palavras, é ação. Costuma-se dizer que Madre Teresa de Calcutá com seu serviço humilde aos

doentes e deficientes evangelizou mais do que o Padre Vieira com seus discursos clássicos.

Os Doze (9,1ss) são o novo Israel. Os 72 são a nova humanidade. Todos são operários,

não apenas os ministros (bispos, padres e religiosos/as). Lucas entende que todas as pessoas

devem assumir a missão. Jesus, no entanto, adverte: vão encontrar adversidades. Sempre

haverá pessoas que não veem com bons olhos o anúncio do Reino, Pois o Reino desestabiliza

os valores vigentes na sociedade. Enquanto que, o evangelho é boa notícia para alguns, é má

notícia para outros (Lc 6,24-26). Assim como também a ação de Jesus, no seu tempo, foi má

notícia para muitos que causaram incompreensão aos discípulos.

Não receber os mensageiros do evangelho é grave, pois significa negar a Jesus e

àquele que o enviou, o Pai. Quem renega a Deus, cava para si a condenação. Os discípulos,

quando encontram resistência, devem até sacudir o pó das sandálias, pois estas pessoas são

más.

Nos evangelhos, muitas vezes se tem a impressão de que anunciar o evangelho é

missão só dos apóstolos. Eles devem continuar missão de Jesus, mas em Atos dos Apóstolos e

nas Cartas Paulinas percebemos que houve participação de muitos evangelizadores não

apóstolos. Em Rm 16 encontramos homens e mulheres que foram colaboradores de Paulo na

missão de anunciar o Evangelho aos povos.

Conclusão

Lucas, mais do que os outros evangelistas, mostra que a missão de anunciar o

evangelho não é tarefa exclusiva dos apóstolos, mas de todos os discípulos. Mostra também,

fazendo eco à teologia paulina, que todos os povos devem ser evangelizados. Para isto é

preciso empenho, sacrifício e muitas vezes enfrentar a dura incompreensão. Mas urge que

todos anunciem o Reino.

Questões

1) Como entender a missão dos 72 discípulos?

2) Por que devem ir dois a dois?

3) Qual a maior preocupação dos discípulos?

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8 - Os dois filhos – retrato falado do pai

A parábola do Filho Pródigo ilustra a postura dos pecadores diante de Deus e a postura

misericordiosa de Deus diante dos pecadores. No Antigo Testamento, muitas vezes, Deus é

apresentado como carrasco, vingativo e justiceiro. Quem assimila um Deus terrível assim,

transfere esta visão ao trato com seus semelhantes. Por isto urge assimilarmos o Deus de Jesus

Cristo, para que também sejamos humildes e reconheçamos nossos limites e sejamos

misericordiosos com todas as pessoas, principalmente com as mais pecadoras.

Introdução

Na Subida para Jerusalém (9,51-19,44) veremos um texto da segunda unidade (Lc

13,22-17,10). O que aqui veremos vem com marca de Jesus que endurece a face e se dirige a

Jerusalém na firmeza de enfrentar uma visão errada de Deus, o que lhe vale a cruz.

O filho que volta (Lc 15,11-32)

A parábola do filho perdido é o centro do evangelho da Subida (9,51-19,44). No

centro vem o que é prioritário. Esta parábola só consta em Lucas e é retrato falado do Pai e

também das comunidades cristãs. Nos tempos de Jesus as pessoas tinham uma péssima ideia

de Deus. Ele era visto como um carrasco vingador (Ex 20,3ss). Justiceiro implacável (Dt

13,1ss; Lv 24,10ss; Lv 26,14ss). Assim Deus nada tinha de misericórdia. A ideia de Deus

vingativo era transferida para os irmãos. Não praticavam misericórdia para com os pecadores.

No início da igreja havia uma crise: vamos abrir a comunidade aos gentios (não

judeus)? Os cristãos vindos do judaísmo eram pessoas íntegras, já os gentios tinham uma vida

cheia de vícios. Isto provocou mal estar (At 10,34ss; 10,47ss; 11,1ss; 15,1ss). Quando se

admitiu os gentios na comunidade, os cristãos de origem judaica olhavam com desprezo para

estes “irmãos” sem moral, libertinos, não observantes da lei.

Antes da parábola lemos Lc 15,1-2. Os pecadores se aproximam de Jesus e os fariseus

se escandalizam. Aqui temos um retrato das comunidades cristãs: judeus no filho mais velho e

gentios no filho mais novo. As comunidades de origem judaica não tratavam as demais como

irmãs, pois sabiam muito bem de seus pecados. Com um Deus vingador, queriam ver os

pecadores condenados e não se alegravam com sua conversão.

O Pai (Deus) reparte seus bens entre os dois filhos, sem preferências. O filho mais

novo (gentios) peca por se afastar do Pai. Mas o filho mais velho (judeus) peca por não amar

o irmão. Todos recebem a misericórdia do Pai, porém, a disposição de receber esta

misericórdia é diferente. O mais novo a recebe. O mais velho é incapaz de recebê-la, pois não

se abre ao irmão, e assim se fecha a Deus. A ideia que se tem de Deus reflete no

relacionamento com os irmãos. Se imaginarmos um Deus vingativo facilmente queremos

condenar o irmão que errou. Se nos fechamos ao irmão, não podemos admitir um Deus

misericordioso.

Lucas escreveu esta parábola para mostrar que ninguém, na igreja, tem privilégios. A

graça é para todos. Todos precisam, como o irmão mais novo, reconhecer seu pecado e ter a

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humildade de retornar. Aqueles que se julgam melhores dificilmente são capazes de

reconhecer que também eles precisam de misericórdia.

Conclusão

A parábola do filho que volta ilustra a ideia do Deus de Jesus e ao mesmo tempo, as

comunidades. O Deus de Jesus não é o carrasco vingativo, às vezes pintado no Antigo

Testamento. Ele é, acima de tudo, misericórdia. As comunidades que têm um Deus

misericordioso devem também praticar a misericórdia, pois da ideia de Deus que temos,

depende o relacionamento com nossos irmãos.

Questões

1) Que ideia de Deus a maioria do povo tem?

2) Quem são hoje os filhos mais velhos da parábola?

3) Existe algum ser humano que já não merece a misericórdia de Deus?

9 - A Paixão de Jesus

Na presente lição veremos alguns pontos de Lucas no relato da paixão. Os quatro

evangelhos narram este fato, mas em todos há diferenças. Não estamos diante de quatro atas

da paixão, mas de quatro interpretações teológicas do fato. Cada evangelista realça elementos

teológicos oportunos para o seu momento histórico. A crucificação de Jesus é um fato

histórico, mas ninguém esteve lá gravando ou fazendo ata. Algumas décadas mais tarde,

quando os evangelistas escrevem os relatos, estão mais preocupados com o alcance teológico

da cruz de Cristo do que dos detalhes.

Introdução

Hoje estudaremos um texto da última unidade de Lucas que narra a paixão e a

ressurreição de Jesus (22,1-24,53). Aqui Lucas segue Marcos de perto, mas com algumas

variações. Nem tudo vem de Marcos e, mesmo tendo copiado dele, Lucas faz acréscimos e

também omite partes. Esta unidade é o coroamento de Lc 9,51-19,44, onde se aponta para a

subida a Jerusalém, quando Jesus vai de forma resoluta (9,51) ao encontro da cruz.

A crucificação (Lc 23,33-49)

Lucas está próximo de Mc 15,22ss e de Mt 27,33ss. Mas onvém notar as diferenças.

Para observá-las bem, seria oportuno tomar uma cartolina e fazer três colunas. Na coluna do

meio copiar o texto de Lucas, na coluna à esquerda copiar Mt 27-33-56 e na coluna da direita,

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copiar Mc 15,22-41 e então observar as diferenças. Nota-se que os evangelistas usam da

liberdade para narrar os fatos.

Em Lucas há muitas referências ao Antigo Testamento. O texto se inspira em Is 52,13-

53,12. A divisão das vestes lembra o Sl 22,9, bem como em Nm 26,55 e 36,3, o vinagre

oferecido a Jesus lembra o Sl 69,22, os parentes olhando à distância lembram os Sl 38,12 e

88,9. As últimas palavras de Jesus lembram o Sl 31,6. A cruz entre os malfeitores lembra Is

53,12. As trevas sobre a terra (23,44) lembram Ex 10,21-23, quando Moisés provocou trevas

sobre o Egito, para iniciar a ação de Deus na história do povo. Jesus é aquele que cumpre as

Escrituras.

Marcos, Mateus e João mencionam que Jesus foi crucificado entre outros condenados.

Em Mateus e Marcos se diz malfeitores, mas nenhum deles relata o diálogo entre Jesus e os

dois. Pode-se perceber que Lucas, mais do que os outros, realça a total solidariedade de Jesus

com os pecadores e seus frutos: o perdão. O perdão é dado ao bom ladrão e também invocado

sobre seus algozes (Lc 23,34). Lucas mostra que a misericórdia e a salvação (23,43) são dadas

a todos até o último momento. Na morte de Jesus o véu do templo rasga (23,45), ou seja,

agora, tudo o que se buscava no templo, se buscará na pessoa de Jesus. O velho sistema de

perdão e de adoração através dos sacrifícios no templo caducou. Jesus é o caminho que leva

ao Pai (Jo 14,6).

Na hora da morte de Jesus se inaugura nova prática ao perdoar seus algozes (23,34).

Ninguém fazia isto. No Antigo Testamento os mártires morriam desejando a destruição dos

inimigos. Jesus pede perdão em nome daqueles que não sabem pedi-lo. Nisto ele é imitado

pelos mártires cristãos, a começar por Santo Estêvão (At 7,54ss). Esta é a total novidade

trazida por Jesus. O judaísmo e o islã não conhecem este perdão aos algozes. Lucas, mais do

que seus pares, já o havia anunciado nas Bem-aventuranças, quando diz: “orai pelos que vos

caluniam” (Lc 6,28).

Questões

1) Por que Lucas se vale de tantos textos do Antigo Testamento quando descreve a

cruz de Jesus?

2) Por que Lucas destaca o diálogo de Jesus com o Bom Ladrão?

3) O que significa o véu do templo que rasgou na hora da morte de Jesus?

10 - Os discípulos de Eamús – o coroamento

No relato dos discípulos de Emaús encontra-se um retrato falado das comunidades

cristãs dos primeiros anos do cristianismo, bem como das comunidades eclesiais de hoje.

Mais do que pensar em duas pessoas, devemos ver neste relato a situação dos cristãos que têm

dificuldades de encontrar o ressuscitado. Ver também neste relato, a habilidade de Lucas em

mostrar os requisitos para amadurecer a fé e encontrar o ressuscitado e se por a caminho para

testemunhar: a acolhida, a partilha e a celebração.

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Introdução

Como coroamento das lições, analisaremos um retrato falado das comunidades de fé

pós-pascais. É um texto exclusivo de Lucas que reflete a fé na Ressurreição de Jesus, centro

de nossa fé. Os quatro evangelhos falam da experiência da ressurreição, mas o relato que hoje

veremos só se encontra em Lucas.

O retrato falado das comunidades de fé (Lc 24,13-35)

A morte de Jesus foi uma grande vergonha para quem não entendia as coisas de Deus

(Mc 8,33). Logo após a morte a maioria dos discípulos pensava: “Nosso tão esperado Messias

foi morto como um bandido. Que vergonha! É o fim de tudo. Os chefes religiosos e políticos

venceram. Deus não atendeu a Jesus. Estamos derrotados”. Os discípulos de Emaús são o

retrato falado desta situação. Eles estavam voltando para sua aldeia, abandonando tudo.

Frustrados de uma esperança que falhou.

Os discípulos de Emaús eram incapazes de ver a mão de Deus no fracasso, na morte.

Pensavam: “Se Deus estivesse com Jesus, deveria derrotar seus adversários. Mas se Jesus

perdeu a batalha, então Deus não estava com ele, pois Deus não está no fracasso”. Com este

espírito de frustração não enxergavam mais nada, não acreditam no testemunho das mulheres

(24,11.22-24), nem reconhecem o ressuscitado que caminha com eles (24,15016) e nem o

reconhecem a partir das Escrituras (24,25ss).

A acolhida e a partilha

O cenário muda quando os dois chegam a Emaús e acolhem o estranho que caminhava

com eles. Eles estão desanimados, mas ainda lembram do ensino de Jesus ao acolher o

forasteiro em sua casa, partilham o pão e celebram com ele (24,29-31). Neste momento sua fé

amadurece, seus olhos se abrem e reconhecem o ressuscitado. Agora ele pode desaparecer,

quem faz a experiência na comunidade, acolhe o irmão, partilha o pão e celebra junto,

encontra o ressuscitado e já não precisa da visão física. Imediatamente eles se põem a

caminho de volta a Jerusalém para testemunhar (24,33-35). Quem experimenta o Cristo vivo

não pode mais ficar tranquilamente em casa. Deve se por a caminho. Mudaram a concepção

triunfalista de Deus. Veem no crucificado a vitória de Deus.

Conclusão

Hoje há um clima de individualismo. As pessoas querem viver sua fé apenas na esfera

particular. Muitos dizem: “creio em Deus, mas não participo da igreja”. Esta fé não é

verdadeira. Podem acreditar Deus, mas isto é muito pouco. A fé verdadeira sempre requer

acolher os irmãos e as irmãs. Requer partilha de vida, de pão. E ainda mais, assim como Jesus

deu graças ao partir o pão, celebrar em comunidade. Faltando uma destas condições, a fé não

é real. A verdadeira fé no ressuscitado deve sempre ser alimentada por estas virtudes. Fé

individualista não encontra o ressuscitado. Esta fé não leva ninguém ao compromisso de se

por a caminho para testemunhar.

Bruno G.Glaab Página 22

Questões

1) Será que é verdadeira a fé de quem vive no individualismo, sem compromisso

comunitário, de quem não celebra?

2) O que significa a expressão: “o relato falado das comunidades?

3) Como entender o desânimo dos discípulos?

Indicações Bibliográficas

CASALEGNO, Alberto. Lucas – A caminho com Jesus Missionário. São Paulo:

Loyola, 2003

MOREIRA, Gilvander Luís. Lucas e Atos: uma teologia da história. São Paulo:

Paulinas, 2012

MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes. O avesso é o lado certo – Círculos Bíblicos

sobre o evangelho de Lucas. São Leopoldo/são Paulo: Cebi/Paulinas, 1998

STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas – Os pobres constroem a nova

história. São Paulo: Paulinas, 1992