O Eu e a Existencia Em PASCAL

12
Princípios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez.2007, p. 167-178. O Eu e a existência em Pascal Ivonil Parraz * Resumo: O “eu penso” solitário de Descartes é fonte inspiradora para Pascal. Mantendo-o em sua solidão, o autor ressalta a dificuldade de, pela razão, estabelecer algum vínculo entre Deus e o homem. As cesuras entre o eu e Deus, resulta, em Pascal, na impossibilidade de estabelecer objetivamente a existência do eu no tempo. Nosso objetivo neste artigo é sublinhar tais questões. Palavras-chave: Contingência, Deus, Existência, Eu penso Résumé: “Je pense” solitaire de Descartes est source inspirée pour Pascal. En le maintenant dans sa solitude, l'auteur rejaillit la difficulté de, pour la raison, établir quelque lien entre Dieu et l'homme. Les cesuras entre moi et Dieu, résultent, dans Pascal, dans l'impossibilité d'établir objectivement l'existence de moi dans le temps. Notre objectif dans cet article est souligner telles questions. Mots-clé: Contingence, Dieu, Existence, Je pense Sinto que posso não ter existido; pois o eu consiste no meu pensamento: portanto, eu, que penso, não teria existido se minha mãe tivesse morrido antes de eu ter sido animado: portanto, não sou um ser necessário. Não sou também eterno, nem infinito; mas vejo bem que há na natureza um ser necessário, eterno e infinito (B. 469; L. 135). O tema central desse fragmento é, à primeira vista, o da existência do eu e de Deus. Pascal, em momento algum, vincula a existência do eu a Deus. Assim como para Descartes, também para Pascal, o eu consiste no pensamento. Todavia, diferentemente de Descartes, Pascal não toma o pensamento (idéia) como ponto de partida para chegar à existência divina. A existência do eu, que pensa, deve-se ao puro acaso: a minha mãe não morrer antes de eu ter sido animado. Por que Pascal sublinha o eu que pensa, posto não partir do pensamento para estabelecer algum vínculo com Deus e, com isso, sustentar a existência do eu além do mero acaso? Qual a razão que leva o autor a introduzir o acaso em um tema caro à tradição * Professor de Filosofia na Faculdade João Paulo II, FAJOPA (Marília/SP). E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 24.08.2007, aprovado em 11.12.2007.

description

O eu e a existencia em PASCAL

Transcript of O Eu e a Existencia Em PASCAL

  • Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez.2007, p. 167-178.

    O Eu e a existncia em Pascal

    Ivonil Parraz* Resumo: O eu penso solitrio de Descartes fonte inspiradora para Pascal. Mantendo-o em sua solido, o autor ressalta a dificuldade de, pela razo, estabelecer algum vnculo entre Deus e o homem. As cesuras entre o eu e Deus, resulta, em Pascal, na impossibilidade de estabelecer objetivamente a existncia do eu no tempo. Nosso objetivo neste artigo sublinhar tais questes. Palavras-chave: Contingncia, Deus, Existncia, Eu penso Rsum: Je pense solitaire de Descartes est source inspire pour Pascal. En le maintenant dans sa solitude, l'auteur rejaillit la difficult de, pour la raison, tablir quelque lien entre Dieu et l'homme. Les cesuras entre moi et Dieu, rsultent, dans Pascal, dans l'impossibilit d'tablir objectivement l'existence de moi dans le temps. Notre objectif dans cet article est souligner telles questions. Mots-cl: Contingence, Dieu, Existence, Je pense

    Sinto que posso no ter existido; pois o eu consiste no meu pensamento: portanto, eu, que penso, no teria existido se minha me tivesse morrido antes de eu ter sido animado: portanto, no sou um ser necessrio. No sou tambm eterno, nem infinito; mas vejo bem que h na natureza um ser necessrio, eterno e infinito (B. 469; L. 135).

    O tema central desse fragmento , primeira vista, o da existncia do eu e de Deus. Pascal, em momento algum, vincula a existncia do eu a Deus. Assim como para Descartes, tambm para Pascal, o eu consiste no pensamento. Todavia, diferentemente de Descartes, Pascal no toma o pensamento (idia) como ponto de partida para chegar existncia divina. A existncia do eu, que pensa, deve-se ao puro acaso: a minha me no morrer antes de eu ter sido animado. Por que Pascal sublinha o eu que pensa, posto no partir do pensamento para estabelecer algum vnculo com Deus e, com isso, sustentar a existncia do eu alm do mero acaso? Qual a razo que leva o autor a introduzir o acaso em um tema caro tradio

    * Professor de Filosofia na Faculdade Joo Paulo II, FAJOPA (Marlia/SP). E-mail:

    [email protected]. Artigo recebido em 24.08.2007, aprovado em 11.12.2007.

  • Ivonil Parraz

    168

    metafsica os prprios termos: necessidade, eternidade e infinitude empregado por ele, atestam o tema essencialmente metafsico-, posto em evidncia por Descartes? Enfim, qual o sentido da cesura entre a existncia do eu e a de Deus? 1 O eu e a existncia em Descartes A trajetria do eu, em Descartes, comea no ato mais solitrio que ele pode realizar: o ato de duvidar. Ao escolher duvidar, o eu se coloca em uma fragilidade tamanha que o abismo do nada (no-ser, aparncia, sem substancialidade alguma) o ameaa a todo o momento. Esse abismo do nada pode tragar o eu a todo instante, pois na dvida, o eu pode no colher a si mesmo em uma identidade. nesse caminho doloroso da dvida, que o eu se descobre como puro pensamento. O eu que duvida , por isso mesmo, um eu que pensa, uma vez que duvidar tambm pensar. Que uma coisa que pensa? uma coisa que duvida (Descartes, 1973, p. 103). Duvidando, o eu pensa. O eu que pensa porque duvida, colhe a si mesmo como puro pensamento. O eu ento idntico ao pensamento. Ora, se o eu idntico ao prprio pensamento, deixar de pensar implica em deixar de ser. Com efeito, Pensar um atributo que pertence necessariamente ao eu (ser pensante). O ato de pensar revela o que o eu. Logo, o eu um ser pensante, ou seja, existe como puro pensamento. Descartes se descobre como uma substncia pensante, um eu que existe como pensamento. Essa sustncia pensante, colhida no prprio ato de pensar, s pode existir enquanto estiver pensando, posto ser o prprio pensamento quem lhe revela seu ser (Descartes, 1973, 102). Assim, fora do pensamento, ou melhor, no tempo em que no estiver pensando em si mesmo, o eu deixa de ser ou existir. No h nada no eu pensante que possa lhe garantir subsistncia no tempo. O tempo, de sucesso contnua, assinala uma ruptura, uma falta no eu pensante que no pode subsistir sem pensar somente em si mesmo. Pode-se perceber em Descartes dois modos distintos de existncia: o primeiro se resume naquele instante em que o eu pensa

  • O Eu e a existncia em Pascal

    169

    efetivamente em si mesmo e somente em si, colhendo-se como uma substncia pensante. Nesse momento, nada sucede ao eu. O eu , e somente ele . O eu existe na mais absoluta solido. H, portanto, um tempo que no sucede aquele instante: o instante em que o eu absorvido pelo prprio eu. o instante em que o eu se descobre como um eu sou. Mas h um outro modo: o modo de existir em um tempo de sucesso contnua. O tempo em que o eu no se encontra absorvido consigo mesmo. Este tempo aquele que pode ser dividido infinitamente. um tempo em que um instante no se liga a um outro que o antecede, nem a um outro que o sucede. Nesse tempo da divisibilidade infinita, o eu que pensa no tem o poder de subsistir por si mesmo. Nada h no eu que garanta que ele, que existe agora, exista no instante seguinte (Descartes, 1973, p. 118). Este poder de conservar-se na existncia no interior de um tempo de sucesso contnua, de pura fluidez, reside em um outro que no o eu pensante. Este outro o prprio Deus. Mas Descartes no pode sair do eu pensante para poder chegar existncia de Deus, pois sair de si, neste momento, redunda em perder a prpria experincia da existncia, posto o eu existir somente enquanto estiver pensando em si efetivamente (Descartes, 1973, p. 102). Somente no eu pensante que o filsofo pode encontrar algo que o ligue a Deus. A idia , portanto, a nica via que se abre do eu (puro pensamento) a Deus (perfeito/infinito). Em sua infinita potncia, Deus no cria uma vez por todas, Ele recria constantemente. Um tempo divisvel, exige uma criao contnua (Descartes, 1973, p. 118). Pelo vis da onipotncia divina, que no s cria, mas conserva continuamente a substncia, o eu pensante subsiste no interior da sucesso contnua do tempo. Na fluidez do tempo, o eu existe, embora no pense em si atualmente. O Deus incessantemente criador de Descartes, sustenta o eu no tempo. Descartes chega existncia de Deus atravs da idia de perfeio/infinitude que ele encontra no eu que pensa. Esta idia foi depositada por Deus no momento da criao: e certamente no se deve achar estranho que Deus, ao me criar, haja posto em mim esta

  • Ivonil Parraz

    170

    idia para ser como que a marca do operrio impressa em sua obra (Descartes, 1973, p. 120). Embora o eu que pensa, absorto em si mesmo, experimenta a si sem sucesso, para existir no interior do tempo, necessita do Deus criador. Posto ser criatura e, portanto, necessitar daquele que para ser ou existir, o eu contingente. Mas essa contingncia, Descartes a estende no instante da criao. Neste momento Deus assinala sua criatura com a idia de perfeio/infinitude: nica via de acesso a ele. Ora, sendo Deus perfeito/infinito, de uma infinitude atual, uma vez que perfeito, somente ele necessrio, eterno e infinito, ou melhor: sendo Deus o que , Ele existe necessariamente. O eu que comea sua trajetria na solido da escolha de duvidar; que num primeiro momento descobre o seu ser na solido do pensar a si e somente a si, descobre-se, logo em seguida, devido exigncia de um tempo de contnua fluidez, que no existe sozinho no mundo. A descoberta que o uso da razo lhe propicia que para ser (existir), o eu necessita daquele que . Com efeito, o prprio ato de pensar em si remete o eu a pensar em Deus.

    Pelo simples fato de Deus me ter criado, bastante crvel que ele, de algum modo, me tenha produzido sua imagem e semelhana e que eu conceba essa semelhana (na qual a idia de Deus se acha contida) por meio da mesma faculdade pela qual me concebo a mim prprio. (Descartes, 1973, p. 120).

    Pelo uso da razo, Descartes conhece a si mesmo como aquele que existe porque pensa, bem como conhece a existncia divina. Mas o eu que existe porque pensa no s existe enquanto pensa. O Deus bondoso e veraz conserva o eu no interior de um tempo de fluidez constante. Sendo a existncia uma das perfeies, somente o ser perfeito a possui como inerente sua prpria essncia. Os demais seres s podem existir se o Ser Perfeito conserv-los na existncia. A existncia do eu liga-se, pois, a existncia de Deus. 2 O eu e a existncia em Pascal Pascal comea o fragmento B.469; L. 135 dos Pensamentos afirmando a possibilidade da no existncia: sinto que posso no

  • O Eu e a existncia em Pascal

    171

    ter existido. Ora, o sentimento no possui a evidncia das idias. Todo sentimento confuso, obscuro para a razo. Se assim , por que o autor logo acrescenta que o eu consiste no meu pensamento? Se a consistncia do eu deve-se ao pensamento o que permite a Descartes a evidncia imediata: Penso logo existo por que Pascal introduz o sentimento? O sentimento desfruta tambm de uma evidncia imediata? 2.1 O corao em Pascal O corao representa em Pascal o dinamismo da alma. Vrias expresses pascalianas mostram esse dinamismo: os movimentos do meu corao (Pascal, 1963, p. 363); todos os movimentos naturais de meu corao (Pascal, 1963, p. 363); a alma no pode deter seu corao (Pascal, 1963, p. 291). O corao apresentado por Pascal como agitado, dilacerado: s sofremos proporo que o vcio, que nos natural, resiste graa sobrenatural. O nosso corao sente-se dilacerado entre esses esforos contrrios. (B.498; L. 924). No opsculo De lart de persuader, Pascal apresenta o corao como sinnimo da vontade:

    Ningum ignora que h duas entradas por onde as opinies so recebidas na alma, que so suas duas principais potncias, o entendimento e a vontade. A mais natural a do entendimento, pois no se deveria jamais consentir seno s verdades demonstradas; mas a mais comum, embora contra a natureza, a vontade ... Eu no falo aqui das verdades divinas ..., pois elas esto infinitamente acima da natureza: Deus somente pode p-las na alma, e pelo modo que o agrada ... Falo, pois, apenas das verdades do nosso alcance; e delas que digo que o esprito e o corao so como portas por onde elas so recebidas na alma, mas que bem poucos encontram pelo esprito, enquanto elas l so introduzidas em multido pelos caprichos temerrios da vontade, sem o conselho do raciocnio. (Pascal, 1963, p. 355).

    Como sinnimo de vontade, o corao pascaliano aquele que pode tender para Deus ou para as criaturas: ele se endurece contra um ou outro, sua escolha (B.277; L. 423).

  • Ivonil Parraz

    172

    Mas o corao pascaliano no revestido somente de uma funo volitiva. Ele tambm revestido de uma funo cognitiva: conhecemos a verdade no s pela razo, mas tambm pelo corao (B. 282; L. 110). A razo encontra a verdade de maneira mediata, ligando as idias ela chega a concluso, ou em outros termos, atravs das premissas chega-se a concluso. Por isso ela necessita do discurso, pois neste, valendo-se do princpio da contradio, ela demonstra a verdade. Esta, portanto, atingida pela razo de modo indireto. O corao, ao contrrio, atinge o verdadeiro de maneira imediata, no necessitando do discurso. Logo, ele chega verdade diretamente: corao, instinto e princpios (B. 281; L. 155). Devido a esta dupla funo que o corao mostra-se apto a receber Deus. Por chegar verdade diretamente, o corao pascaliano apresenta-se, em sua funo cognitiva, como intuio. Ele se ope ao discurso, pois conhece os primeiros princpios: e em vo que o raciocnio, que deles no participa, tenta combat-los (B.282; L. 110). O corao possui um grau de certeza superior razo: os primeiros princpios esto em uma extrema clareza natural, que convence a razo mais poderosamente que o discurso (Pascal, 1963, p. 352). Ao descrever o modo direto que o corao conhece os primeiros princpios, Pascal apresenta-o como aquela potncia apta a receber. Dessa maneira, o corao se distingue da razo que constri seu objeto: a natureza recusou-nos esse bem e s nos deu, ao contrrio, muito poucos conhecimentos dessa espcie; todos os outros s podem ser adquiridos pelo raciocnio. (B. 282; L. 110). Por conhecer imediatamente os primeiros princpios, o corao serve de base para a razo: e sobre esses conhecimentos do corao e do instinto que a razo deve apoiar-se e basear todo o seu discurso (B. 282; L. 110). O corao , portanto, o ponto de partida para a razo e, por ser assim, ele superior razo discursiva. O corao pascaliano aquela potncia que exerce tambm o poder de sentir; o corao sente que h trs dimenses no espao

  • O Eu e a existncia em Pascal

    173

    e que os nmeros so infinitos (B. 282; L. 110). Esse modo de conhecer apresenta-se prximo do instinto. Ele remete, ento, a dimenso corporal do homem: prouvesse a Deus que ... conhecssemos todas as coisas por instinto e por sentimento! (B. 282; L.110). Pascal atribui ao corao a conscincia moral. nele, como sinnimo de vontade, que o homem encontra, conforme sustenta Philippe Sellier, suas tendncias ignoradas, ou seus desejos conscientes, suas decises, suas alegrias ou seus remorsos (Sellier, 1970, p. 135). A memria, a alegria so sentimentos (B. 95; L. 646). Assim, o corao aparece como aquela potncia na qual o homem experimenta seus sentimentos de dor ou de prazer: o corao sente-se dilacerado por esses esforos contrrios (B. 498; L. 924). Esforos estes entre a caridade e a cupidez. A ele, portanto, pertence a conscincia moral. Com o termo corao o qual exerce a funo volitiva, a funo cognitiva e a conscincia moral Pascal designa a profundeza da alma. Sendo assim, o corao representa nosso ser verdadeiro, o homem no mais profundo do seu ser. nele, portanto, que o homem conhece a si mesmo. Por ser o sentimento prprio do corao, por estar prximo do instinto, bem como, pelo fato de o corao, em sua funo cognitiva, propiciar um conhecimento imediato, Pascal pode sustentar que: sinto que posso no ter existido. Pelo sentimento do corao, ou seja, por uma espcie de instinto, o eu sabe que h a possibilidade de sua no existncia. Ora, esse sentimento (instinto) no revela, por si mesmo, a consistncia do eu. No pelo fato de sentir que eu penso. Por que, ento, Pascal, logo aps afirmar que sente poder no existir, acrescenta: pois o eu consiste no meu pensamento? O sentimento da possibilidade da no existncia do eu est ligado existncia ou no existncia de sua me, ou seja, est ligado contingncia do eu. No quela situada na origem da criao, como em Descartes, mas aquela da durao da existncia do eu no tempo, a qual se deve a inmeros acasos: minha me no ter

  • Ivonil Parraz

    174

    morrido antes de eu ter sido animado. Se, por um lado, a contingncia do eu leva-o a ter tais e tais sentimentos, por outro lado, o eu, que pensa, s pode pensar a partir de sua contingncia, a partir de sua insuficincia. Enquanto o eu cartesiano extrapola a ordem do vivido e, no universo metafsico, colhe-se a si mesmo como puro pensamento; o eu, para Pascal, cuja dignidade consiste no pensamento, s pode pensar a si mesmo na ordem do vivido. nessa ordem de sucesso contnua, que sua existncia depende da existncia, no de um Ser por excelncia, mas de um outro ser que, assim como o eu, tambm se encontra encerrado nessa mesma ordem. O eu cartesiano se descobre como um eu sou, no momento em que o eu pensante no vislumbra nada que o suceda. Diante do Deus enganador, e prescindindo do tempo, o eu subsiste. A nica ameaa existncia do eu pensante deve-se a sua existncia no interior do tempo. Em um tempo composto de infinitas partes, entre as quais no h ligaes de nenhuma espcie, no h nada no eu (puro pensamento) que o mantenha no instante seguinte. O Deus necessrio, eterno e infinito, torna-se imprescindvel para que o eu possa existir no interior de um tempo infinitamente divisvel. O eu pascaliano no pode se descobrir como um eu sou, tal como em Descartes. Preso contingncia (durao no tempo), o eu penso s pode pensar existncia sem prescindir do tempo. Renunciando a uma metafsica que pe os seres diante do Ser, aqueles so lanados em um mundo de acasos. Com efeito, s se pode pensar a existncia considerando os inmeros acasos que a envolve. Envolto em um tempo que o antecede e que o sucede, como o eu pode descobrir-se como um eu sou?

    Eu vejo esses apavorantes espaos do universo que me encerram ..., sem que eu saiba ... porque esse pouco de tempo que me foi dado a viver me assinalado a esse ponto antes que a um outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que me segue. Eu no vejo seno os infinitos em todas as partes, que me encerram como um tomo e como uma sombra que dura somente um instante sem retorno (B. 194; L. 427).

  • O Eu e a existncia em Pascal

    175

    Conhecendo sua contingncia, considerando os acasos que envolvem sua existncia, o eu que pensa descobre-se, no como um eu sou, mas como um ser no necessrio, nem eterno, nem infinito. A sua prpria condio no interior do tempo leva-o a descobrir sua finitude. No , portanto, diante de um Ser Perfeito que ele descobre sua imperfeio. Em Descartes, o eu encontra, na mesma faculdade que em que ele descobre-se como um eu pensante, a idia de perfeio/infinitude. Partindo do princpio que todo efeito tem uma causa, a idia de perfeio/infinitude tem tambm uma causa. Esse princpio associado a um outro: deve haver alguma realidade no efeito que j esteja contido na causa, pois, caso contrrio, o efeito no poderia ser efeito de tal causa. Ora, o eu que duvida, que quer, que no quer, imagina, pensa, sente, afirma, nega ... no pode ser a causa de uma tal idia, pois tudo isso implica imperfeio, o efeito no poderia ser efeito de tal causa. A causa da idia de perfeio/infinitude s pode ser um ser perfeito/infinito. Descobrindo a causa da idia de perfeio/infinitude, o eu descobre, ao mesmo tempo, que no existe sozinho no mundo. A descoberta do eu cartesiano de que ou existe se d diante de um Deus enganador. Mesmo que haja um Deus imperfeito (enganador), eu sou, eu existo. A partir da idia de perfeio/infinitude, cuja causa um Ser perfeito/Infinito, o eu se descobre como um ser imperfeito que, para existir no tempo, necessita da ao criadora contnua de Deus. Ora, o eu cartesiano no chega ao conhecimento de sua imperfeio a partir de si mesmo, de sua condio de ser existindo no interior de um tempo: como uma sombra que passa, ele descobre-se como um ser imperfeito somente diante de um Ser Perfeito. O Deus cartesiano, assim como para Pascal, um ser necessrio, eterno e infinito. Descartes chega ao conhecimento dessa verdade, tal como vimos, pela idia de Perfeio/Infinitude presente no eu pensante. Essa idia, segundo o filsofo, foi depositada como sementes de verdade pelo prprio Deus no momento da criao: como a marca do operrio impresso em sua obra (Descartes, 1973,

  • Ivonil Parraz

    176

    p. 120). Tal idia o ltimo vestgio de Deus em sua criao. Assim, a nica via possvel para estabelecer o mundo em sua verdade ir do eu (que pensa) a Deus e de Deus ao mundo. Em Pascal no h via possvel para ir do eu a Deus e de Deus ao mundo. O que se verifica nos Pensamentos, especificamente, no uma passagem entre o eu, Deus e o mundo, mas uma ruptura. O fragmento B.469; L. 135 que est sendo analisado assinala nitidamente essa ruptura. Ao empregar o termo vejo bem, o autor refere-se nitidamente ao corao. Ver bem significa ver claramente, porm no em uma evidncia racional como em Descartes, mas uma viso imediata prpria do corao. A razo para Pascal a faculdade que permite estabelecer relaes. S possvel estabelecer relaes entre as coisas em que h propores. Entre a contingncia do eu e a necessidade de Deus, entre a durao do eu no tempo e a eternidade divina, entre a finitude humana e a infinitude do Ser por excelncia no h proporo alguma. Assim, na ltima frase que fecha o fragmento: mas vejo bem que h na natureza um ser necessrio, eterno e infinito, Pascal est se referindo a evidncia imediata do corao. A primeira parte do fragmento, o eu posto a pensar em sua prpria contingncia, sem sair dela. Neste pensamento, e diante dos acasos que envolvem a sua existncia no tempo, o eu conclui acerca de sua no necessidade, no eternidade e no infinitude. Essa concluso a que chega o eu que pensa, no est vinculada ao acrscimo verificado na ltima frase do fragmento. Mas vejo bem, no mundo (natureza) que h um ser necessrio, eterno e infinito. Isto porque, o eu, para pensar em si, emprega a razo, enquanto para relacionar-se a Deus somente possvel pelo corao: faculdade da desproporo. A evidncia do corao, em Pascal, no se traduz como uma idia, mas como um sentimento. Ora, o sentimento, devido a sua imediatez, no permite ao eu ter conscincia de seu prprio sentimento, pois no instante em que o eu tem conscincia de seu sentimento, este deixa de ser o que . A conscincia do sentimento anula o prprio sentimento: o eu no sente mais, ele percebe sentir.

  • O Eu e a existncia em Pascal

    177

    Perceber no sentir. Se assim , o sentimento no representativo como a idia. Contudo, ele tambm revestido de uma evidncia e de uma evidncia imediata: vejo bem. Se pelo sentimento imediato do corao que o eu, que pensa, v bem que h, na natureza, um ser necessrio, eterno e infinito, isso implica que, em Pascal, no h vestgios da divindade, nem como idia no eu pensante, como em Descartes, nem na natureza, como para os medievais. Com efeito, no se vai a Deus, nem pelo pensamento (razo), nem pela natureza. O ltimo refgio de Deus no homem se d pelo sentimento, pelo desejo do Ser. Esse sentimento, desejo do Ser prprio do corao e, por isso, confuso razo posto no ser representativo. Ao atribuir ao corao, faculdade da desproporo, o ltimo refgio de Deus no homem, Pascal ressalta a ruptura entre razo e corao. Pela razo (faculdade da proporo), o homem incapaz de vincular o mundo, concebido infinitamente, a Deus; bem como vincular a existncia humana existncia divina. Assim, o que se encontra sublinhado no fragmento B. 469; L. 135 dos Pensamentos, entre outros, so as cesuras entre Deus, homem e mundo. Ora, so essas cesuras que permitem a Pascal manter intacta a solido humana inaugurada por Descartes. O eu solitrio, envolto consigo mesmo permite Pascal mostrar que o homem, longe de Deus, encontra-se deriva e, como conseqncia disso, o que se encontra no homem sua insuficincia. Nesta solido, o homem pode preparar-se a receber algo que o transcende: a f. Todavia, a f, as incertezas que ela envolve, uma vez que ela dom divino e, portanto, pode faltar a qualquer momento, no arranca o homem da solido: a solido de escolher abrir-se s verdades divinas; a solido de no poder contar com nenhuma recompensa; a solido da busca de um Deus que no se deixa encontrar pela razo, de um Deus que se esconde. O fragmento B. 469; L. 135 ao tratar da existncia do eu e de Deus, tem como fonte inspiradora o eu solitrio de Descartes. Ao procurar mostrar a impossibilidade de passar, via racional, da existncia do eu existncia de Deus, Pascal mantm na solido o

  • Ivonil Parraz

    178

    eu penso cartesiano. Ora, isso estratgico para a inteno de Pascal ao escrever seus Pensamentos: apologia da religio crist. Mantendo o homem na solido, ele pode suscit-lo a buscar Deus. Referncias DESCARTES, R. Meditaes Metafsicas. So Paulo: Abril Cultural, 1973. MICHON, H. Lordre du coeur: philosophie, thologie et mystique dans les Penses de Pascal. Paris: Honor Champion, 1996. PASCAL, B. Oeuvres compltes. Organizao por Louis Lafuma. Paris: Seuil, 1963. _______. Pensamentos. So Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores). _______. Pensamentos. So Paulo: Martins Fontes, 2001. SELLIER, P. Pascal et Saint Augustin. Paris: A. Colin, 1970.