O Estudo das Emoções e a Teoria da Complexidade

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O ESTUDO DAS EMOÇÕES E A TEORIA DA COMPLEXIDADE

PRISCILA SCHNEIDER

SIMONE ELISA HEITOR PACE

RESUMO: O presente artigo trata das emoções a partir de um questionamento quanto às

bases epistemológicas e consensuais. Para tanto, resgatou-se uma breve compreensão dos

aspectos epistemológicos tratados pela ciência e a psicologia. Em seguida, são apresentados

alguns estudos referentes ao estudo das emoções a partir de enfoques diferentes. Segue uma

discussão das implicações dessas compreensões nas esferas relativas aos aspectos sociais,

relacionando-os com a teoria da complexidade.

Todo conhecimento científico é construído sobre bases consensuais de uma

comunidade científica, a partir de KUHN (2000). Quando se trata da psicologia, onde há

vários objetos de investigação e onde um mesmo objeto de estudo é analisado por diversas

abordagens, é possível pensar no embate no seio deste campo de estudos em que os

consensos são limitados a determinados grupos que, à medida que discutem tais questões,

refletem o movimento presente na construção das ciências. Atualmente, tem sido debatida a

abordagem da complexidade dos fenômenos de modo que há uma crítica aos reducionismos

produzidos pela ciência clássica, gerando crises nas ciências e em suas concepções marcadas

por valores produzidos historicamente.

No paradigma moderno, segundo SANTOS (2002), há uma separação entre homem e

natureza, devendo esta ser dominada e controlada pelo homem através da ciência. Esta se

pauta em metodologias quantitativas, onde a matemática fornece a lógica de investigação.

Além disso, baseia-se na redução da complexidade dos fenômenos, dividindo-os e

classificando-os a partir de critérios de regularidade, que dão condições para o

estabelecimento de leis a partir do estabelecimento de causalidades. Assim, se mantém o

determinismo mecanicista que impõe o valor da utilidade e da funcionalidade, implicando em

ideais normativos e de controle da sociedade quando aplicados às ciências sociais. Aliás,

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considerando-se que as ciências sociais são subjetivas e não objetivas como as ciências

naturais, tais métodos de investigação são impróprios. Por tratar da intersubjetividade, da

descrição e da compreensão, devem ser estudados a partir de metodologias qualitativas. Essa

divisão entre ciências naturais e sociais, contudo, ainda mantém um dualismo, não

conseguindo superar a crise do paradigma moderno.

Em estudo sobre esse dualismo entre a natureza e o homem presente na psicologia,

MAÇOLA (2002) propõe a superação do mesmo considerando, para tanto, a abordagem

Ecológica; isto porque a ecologia aponta a inter-relação entre homem e natureza de forma

sistêmica. Essa compreensão está alicerçada na complexidade dessas relações que compõem

uma totalidade. Sendo assim, apontaria para a necessidade de um conhecimento

interdisciplinar e na revisão do atual paradigma.

Segundo a compreensão ecológica, o ser humano, além de ser compreendido em seu

contexto, também é visto como um todo. Segundo MAÇOLA (2002), o distanciamento do

homem com relação à natureza também o distancia de si mesmo como parte dessa natureza e

enquanto corpo, sendo portanto objetivado e compartimentado marcando uma cisão entre os

aspectos corporal, intelectual e emocional. Assim, a fragmentação se dá no indivíduo e em

suas relações sociais. SANTOS (2002), refere a objetivação enquanto objetificação do ser,

que é conseqüência do mecanicismo racionalista cartesiano.

Na psicologia, a história da ciência tem seu impacto marcando a divisão de seu corpo

teórico entre uma aproximação maior às ciências naturais ou às ciências sociais, que marcam

a sua epistemologia. Desse modo, o estudo de fenômenos como as emoções ou os processos

cognitivos partem de bases espistemológicas diferentes, as quais são marcadas por questões

políticas, ideológicas, históricas e sociais.

NEUBERN (2001) destaca o estudo das emoções e a compreensão que se tem do

tema no campo da Psicologia como um “grande denunciador” das contradições

epistemológicas e metodológicas que estão presentes desde que esta surgiu como disciplina

científica, a partir da clássica divisão de paradigmas que coloca de um lado um modelo de

ciências fundado na física, que deve ser objetiva, buscar a universalização dos conceitos e

submeter seus objetos à experimentação e controle, e de outro um modelo de ciência que é o

das ciências sociais e humanas, que se aproxima da filosofia, que acredita ser possível ter

como objeto a subjetividade humana e suas relações em uma abordagem compreensiva,

qualitativa e interpretativa, sem a necessidade da experimentação e universalização.

Nesta divisão, a emoção enquanto objeto de estudo sistematizado acabou sempre

sendo descaracterizada. Estudada segundo os preceitos das ciências biológicas, acabou

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reduzida a produto de reações bioquímicas e instrumento de adaptação das espécies, sendo

desvinculada do sujeito e vista isoladamente para que pudesse ser enquadrada nos

procedimentos e concepções de uma ciência “verdadeira”, como se não fosse um processo da

subjetividade – negada como possível objeto de estudo neste paradigma (NEUBERN, 2001).

Desse modo, influenciados pelo ideal de objetividade presente no modelo clássico de

ciência, os estudiosos dos processos cognitivos os enfocam muitas vezes reduzindo-os a

elementos presentes no cérebro.

LEDOUX (1998), em sua teoria do cérebro emocional, após detalhada revisão de

estudos sobre as emoções, procura definir as emoções questionando se são funções biológicas

ou estados psicológicos. Ao longo da discussão sobre as emoções este autor refere que a

ciência cognitiva é recente, tendo cerca de um século, e polarizou a discussão apenas em

processos tais como pensamento, raciocínio e intelecto, partindo em sua história de um

funcionalismo. O autor critica a dicotomia entre pensamento e sentimento e alerta para o fato

das emoções não corresponderem a uma função isolada do cérebro e, portanto, não estarem

sujeitas a nenhum sistema; defende a idéia de que as reações emocionais são inconscientes,

ou seja, elas não podem ser reduzidas a seus sentimentos conscientes. Assim, procura

entender como o cérebro controla as reações emocionais com seus mecanismos subjacentes a

elas e suas relações com a cognição. É bastante presente na psicologia a relação dos

processos cognitivos com a consciência; essa passa a ser considerada por esse autor como

uma memória de trabalho.

Porém, a maioria dos processos cognitivos se dá de modo inconsciente, como se o que

estivesse sendo observado fosse apenas a ponta de um iceberg. "Elas se desenvolveram como

especializações fisiológicas e comportamentais, reações físicas controladas pelo cérebro que

possibilitaram aos organismos ancestrais a sobrevivência em ambientes hostis e a procriação"

(LEDOUX, 1998, p. 38). Portanto, é compreendida sob o pronto de vista do evolucionismo.

Marcados por ideais históricos e políticos, influenciados principalmente por Marx,

entre outros, que afirmam a pertinência do social, autores como Wallon, Vygostsky, Luria

entre outros procuram estudar este fenômeno sem dissociá-lo de outros aos quais está

relacionado, partindo de uma compreensão que relaciona o social ao biológico.

Wallon relaciona afetividade e movimento enquanto base da interação da criança com

seu ambiente físico e social. É pelo corpo que a criança se comunica, não havendo

dissociação entre o indivíduo e seu meio social ou entre aspectos emocionais e cognitivos. É

sobre a emoção que a consciência se forma, numa relação dialética entre aspectos afetivos e

intelectuais. A emoção estabelece o vínculo entre o sujeito e o meio. A princípio,

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influenciado pelos estudos com ênfase nos aspectos biológicos para compreender as

emoções, Wallon entende que, na evolução das espécies, a emoção tem uma função de

sobrevivência, assim como há o estabelecimento de vínculos interpessoais implicando nas

reações às situações do meio físico e social e na significação dessas situações conforme

necessidades pessoais e grupais (VASCONCELLOS, VALSINER, 1995).

Assim, no desenvolvimento, as emoções atuam como organizadoras da experiência de

fusão e diferenciação nas relações. A expressão das emoções ocorre a partir de reações

fisiológicas alcançando atividade motora, constituindo-se como espasmos organizadores e

reguladores da energia, inicialmente involuntários, porém ao longo do desenvolvimento

humano ganham significados intencionais. Deste modo, as emoções dão origem ao

movimento e, portanto, não se reduzem a razão. A interação entre sujeitos é marcada pelas

emoções que determinarão a possibilidade de cooperação entre eles, manifestando-se como

afinidades funcionais no coletivo. Portanto, é um fator tanto fisiológico quanto social, sendo

a base para a expressão corporal, a linguagem e o pensamento. As emoções fundamentam o

processo de individuação ou diferenciação do ser no social, influindo no conhecimento do

mundo e nas capacidades de classificação e julgamento (VASCONCELLOS, VALSINER,

1995).

Desta forma, as emoções não são apenas um fenômeno biológico com funções

adaptativas nem mero componente do mundo interno do sujeito, mas são processos que

participam da própria constituição do homem, pois têm papel fundamental no

estabelecimento de vínculos e também na construção de sentidos que o indivíduo faz do

mundo. A criança, durante seu desenvolvimento, vai conhecendo o mundo conforme tem

acesso aos objetos e à cultura, através da experiência e da linguagem, e neste conhecimento

vai criando sentido para cada um destes objetos, vivências e experiências, sentido este que,

entre outros, tem os processos emocionais como base de formação.

Segundo VEER e VALSINER (1996), Vygotsky em 1930 escreveu uma teoria das

emoções que deixou incompleta. Em seus escritos, ele parte de uma crítica à visão dualista

mente-corpo, presente na teoria de James e Lange e, depois, de uma revisão das teorias de

Cannon onde, entre outros, recorre a Espinoza como referência para elaboração de sua

compreensão das emoções, a qual deixou inconclusa.

Inicialmente, aponta Descartes como uma das principais influências para a construção

de uma Psicologia, que se situa hora como ciência natural e hora como hermenêutica.

Também refere o intento da ciência enquanto busca de explicações direcionadas para as

causa de uma forma mecanicista, criticando-o por ser limitado. Defende o entendimento das

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emoções na sua relação com o desenvolvimento humano, que foi abordado pelo mesmo como

determinado histórico-socialmente. Assim, estas não poderiam ser entendidas como se fosse

apenas produto de um determinismo biológico onde, por exemplo em James e Lange,

adquiriam caráter passivo e perceptual. (VEER, VALSINER, 1996).

Porém, ao afirmar que o social não negava o biológico, em Psicologia da arte,

VYGOTSKY (2001) aponta contradições na psicologia empírica quando os sentimentos são

apontados como inconscientes ou conscientes. Portanto, refere a necessidade de compreendê-

los enquanto processos nervosos. Neste sentido, afirma um relativo consenso entre os

pesquisadores sobre o sentimento como dispêndio de energia.

Relacionando tal afirmação com outros escritos que apontam para uma perspectiva

desenvolvimentista, cabe lembrar, como afirmam VASCONCELLOS e VALSINER (1995),

que os aspectos biológicos e culturais são uma unidade dialética. Para Vygotsky o indivíduo

se constrói na inter-relação com outros sociais afetando a si mesmo e ao meio social

conforme as condições de seu desenvolvimento.

A respeito da inconclusão de seu escrito sobre as emoções VEER e VALSINER

(1996) supõem que ele pode ter desistido de relacionar a sua teoria das emoções a Espinosa,

entre outras razões, por prováveis incoerências quanto à perspectiva desenvolvimentista, a

um certo reducionismo e um possível dualismo na distinção entre processos psicológicos

inferiores e superiores presente em Espinosa. Contudo, SAWAIA (2000) discorda desses

autores e estuda Espinosa procurando deduzir algumas relações, embora supostas, entre

Vygotsky e Espinosa.

Este autor afirma que Vygotsky se apoia sobre a crítica da separação entre os aspectos

volitivo, afetivo e intelectual da consciência, sendo necessário estudar os fenômenos de

forma histórica, integrando-os e escapando dos reducionismos e dualismos; ou seja,

compreendendo as relações entre intelecto e emoção e destes com o social a partir da

dialética, da conexão e da mediação.

Na linguagem e no pensamento, por exemplo, há sempre um subtexto, motivo, que

constitui uma base afetivo-volitiva, havendo a preservação da singularidade de cada pessoa.

As emoções são afecções, o que também é presente em Espinosa e, assim, é possível

considerar a afetividade como os estados afetivos da consciência, mediados pelos signos

sociais.

As emoções são ligadas aos aspectos sociais e históricos e, portanto, dependente das

capacidades de abstração, conceituação e etc. Não há em Vygotsky a ênfase em um ou outro

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aspecto desprezando os demais, o que na história da psicologia é percebido e relaciona-se aos

valores científicos por ela sustentados.

SAWAIA (2000, p. 19) conclui que "Vygotsky inspirado em Espinosa provoca uma

revolução na Psicologia mudando a ontologia do fenômeno afetivo. A emoção passa de

fenômeno instintivo e negativo para fenômeno ético, propulsor ou inibidor da autonomia". E

ainda, resgatando Espinosa, trata-se de uma perspectiva onde não é o controle que é

almejado, mas a compreensão. Assim, as relações com as questões da ética tem implicações

na esfera do poder. Coerente com Vygotsky, afirma que a emoção é mediada pelo sistema

cultural.

Desse modo, trata-se de perceber a relação entre todo e partes, considerando-se a

complexidade desta questão, resgatando as relações entre a afetividade e os aspectos da

singularidade dos indivíduos sem desprezar o coletivo e social onde ele está inserido; não se

trata do controle de uma função sobre outras, como seria o caso se considerasse apenas a

função dos pensamentos sobre os afetos, que estaria apoiado num certo racionalismo.

A partir do exposto compreende que a psicologia tem vivenciado um processo ao

longo de sua história de definição de objetos de estudos, campo de atuação, impregnados pelo

racionalismo mecanicista onde os fenômenos humanos são fragmentados. O estudo da

emoção em Ledoux, por exemplo, encontra-se reduzido ao cérebro. Porém, Wallon

resgatando o social, resgata algumas partes. Vygostsky produz uma obra onde emoções e

todas as funções cognitivas são vistas de forma integrada e dialética. Assim, tal mudança de

paradigma a partir da consciência da complexidade é coerente com algumas questões

propostas por Vygotsky, entre outros autores.

Segundo CACIOPPO (1999), nos anos recentes tem-se desenvolvido inúmeros novos

procedimentos e materiais para o estudo das emoções, a partir dos desenvolvimentos

tecnológicos alcançados, sendo que a tentativa em medir as emoções apresenta-se como uma

forte tendência na pesquisa científica. Estes procedimentos, no entanto, abordam a emoção

apenas sob um aspecto – comportamental e/ou biológico; o autor acredita que esta

abordagem é insuficiente, embora não deva ser descartada. O estudo das emoções deveria

abranger os processos fisiológicos, neurológicos, cognitivos, desenvolvimentais e sociais e as

teorias das emoções, idealmente, integrariam todos estes campos do conhecimento. Na

verdade, como já vimos, cada um destes campos parte de bases epistemológicas e

metodológicas muito diversas e incongruentes e a interdisciplinaridade sugerida talvez possa

estar muito mais no campo de um diálogo que busque ampliar a compreensão do fenômeno

do que na construção de uma teoria unificadora.

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Para NEUBERN (2001), a partir do conceito de que as emoções são processos

complexos, subjetivos e integrados a outros processos subjetivos, sociais, históricos e

culturais na constituição do humano, estudá-las separadamente, como se não fizessem parte

de um todo integrado, vistas fora deste todo e desvinculadas do indivíduo não tem sentido.

As emoções não são, portanto, um objeto de estudo que se encaixe nos rígidos procedimentos

do paradigma das ciências exatas, e quando se tenta fazê-lo o resultado é uma compreensão

muito limitada e parcial do fenômeno: “as emoções em si mesmas não podem denunciar

nada, não são capazes de fala, não possuem uma identidade, nada sentem e não participam

das atividades que cotidianamente ou ao longo da vida os sujeitos tomam parte (...) as

emoções devem ser estudadas como constituintes da vida de alguém numa perspectiva em

que o cenário do próprio sujeito seja privilegiado”. Em outras palavras, além de

contextualizada no seio da subjetividade, deve-se buscar compreendê-la em função dos

sentidos e papéis que possuem para tal sujeito sem a imposição de noções teóricas à priori

(NEUBERN, 2001, p. 68).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CACIOPPO, J. Emotion. 1999.

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.

LEDOUX, J. O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de

janeiro: Objetiva, 1998.

MAÇOLLA, B. A. Os desafios da Psicologia frente a questão Ecológica: rumo a complexa

articulação entre Natureza e Subjetividade. Psicologia Ciência e Profissão, 2002, 22 (1),

120-133.

NEUBERN, M. S. O reconhecimento das emoções no cenário da psicologia : implicações

epistemológicas e reflexões críticas. Psicologia Ciência e Profissão, 2001, 21 (2), 62-73.

SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto Alegre: Edições Afrontamento, 2002.

SAWAIA, B. B. A emoção como locus de produção do conhecimento - uma reflexão

inspirada em Vygotsky e no seu diálogo com Espinosa. III Conferência de pesquisa Sócio-

cultural, 2000 (mimeo)

VASCONCELLOS, V. M. R. VALSINER, J. Perspectiva Co-construtivista na Psicologia

e na Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

VEER, R. V. D. &VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

VIGOTSKY, L. S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.