O estrangulamento da saúde

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O estrangulamento da saúde Por Thamires Mattos O aposentado Dario Ribeiro acabou de completar 70 anos. Muitos destes anos foram cheios de vitalidade, mas a partir do ano 2000 houve uma ruptura nesse ciclo: o ex-funileiro sofreu um acidente que deixou seu pé esquerdo paralisado. Depois de muitos meses internado, utilizando o plano de saúde anteriormente contratado, continuou o tratamento que consistia em consultas com especialistas e diversos exames. Em síntese, gastou “uma fortuna” com o plano de saúde e nenhum benefício adveio disto. O tratamento recebido na rede pública é igual ou melhor que o atendimento proporcionado pelos convênios. Pouco investimento, atendimento deficiente Dario deixou de pagar o plano de saúde e cancelou a assinatura. “Se eu recebesse um atendimento decente, não teria parado de utilizar o serviço. Era caro, mas deveria compensar. Pensei: ‘já pago muito imposto. Está na hora de ir para a fila do SUS’”, conta. Hoje, com o SUS, afirma que a disponibilidade dos médicos é praticamente a mesma e que está gastando menos com exames. “De vez em quando aparece algo caro, mas mantenho uma poupança bancária para emergências. O preço dos serviços de saúde é absurdo”, complementa. O aposentado faz parte dos 68,5% de brasileiros que depende do serviço público para ter acesso aos cuidados básicos de saúde. Os que possuem planos de saúde compõem, em média, 28%, sendo que a porcentagem varia conforme a região. No sudeste a

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Reportagem interpretativa desenvolvida para o website de crítica de mídia Canal da Imprensa (http://canaldaimprensa.com.br). Edição 157: Mídia e Saúde no Brasil.

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O estrangulamento da saúde

Por Thamires Mattos

O aposentado Dario Ribeiro acabou de completar 70 anos. Muitos destes anos

foram cheios de vitalidade, mas a partir do ano 2000 houve uma ruptura nesse ciclo:

o ex-funileiro sofreu um acidente que deixou seu pé esquerdo paralisado. Depois de

muitos meses internado, utilizando o plano de saúde anteriormente contratado,

continuou o tratamento que consistia em consultas com especialistas e diversos

exames. Em síntese, gastou “uma fortuna” com o plano de saúde e nenhum

benefício adveio disto. O tratamento recebido na rede pública é igual ou melhor que

o atendimento proporcionado pelos convênios.

Pouco investimento, atendimento deficienteDario deixou de pagar o plano de saúde e cancelou a assinatura. “Se eu recebesse

um atendimento decente, não teria parado de utilizar o serviço. Era caro, mas

deveria compensar. Pensei: ‘já pago muito imposto. Está na hora de ir para a fila do

SUS’”, conta. Hoje, com o SUS, afirma que a disponibilidade dos médicos é

praticamente a mesma e que está gastando menos com exames. “De vez em

quando aparece algo caro, mas mantenho uma poupança bancária para

emergências. O preço dos serviços de saúde é absurdo”, complementa.

O aposentado faz parte dos 68,5% de brasileiros que depende do serviço público

para ter acesso aos cuidados básicos de saúde. Os que possuem planos de saúde

compõem, em média, 28%, sendo que a porcentagem varia conforme a região. No

sudeste a porcentagem é de 36,9%, enquanto na região Norte é apenas de 13,3%.

Os dados foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) no dia 2 de junho de 2015. Mais de 80 mil domicílios foram visitados. 38%

das pessoas que optaram por pagar por planos de saúde ou odontológicos afirmam

gastar mais de mil reais mensais com o serviço.

Para Lanny Soares, biomédica e doutora em ciência médica pela Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP), o sistema de saúde brasileiro está “saturado”.

Em entrevista especial ao Canal da Imprensa, ela enfatiza que “existem alguns

setores que não conseguem ser atendidos”. Um exemplo são as consultas a

odontologistas. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013, 55,6%

dos brasileiros não comparecem ao dentista anualmente. A recomendação dos

profissionais é que os check-ups sejam semestrais. Embora a Organização Mundial

da Saúde (OMS) não recomende um número desejável de dentistas por habitante

aos países-membros, profissionais estimam que o ideal estaria em torno de um

dentista a cada 1500 pessoas. No Brasil a média é promissora: um especialista em

saúde bucal a cada 737,2 habitantes. Segundo o Conselho Federal de

Odontologia (CFO), o país possui o maior contingente de dentistas do mundo,

contando com mais de 264 mil profissionais. Esse volume representa cerca de 20%

dos dentistas do mundo. Ao divulgar essas informações, veículos midiáticos usaram

em demasia a palavra “desigualdade” para descrever a situação do país – afinal, a

pesquisa continua, e revela que o atendimento ainda é deficiente.

A PNS também revelou que, entre as pessoas com 60 anos ou mais, 41,5% haviam

perdido todos os dentes. Para o odontologista Sandro Limberger que trabalha há

aproximadamente 20 anos na rede pública, a saúde bucal é esquecida pelo SUS.

Segundo ele, não existem profissionais suficientes trabalhando no sistema para

atender a demanda de tratamentos.

“Mesmo com investimentos federais, estaduais e municipais, temos uma

quantidade de verba que não é suficiente para sanar todos os problemas da saúde

pública. Em muitos lugares também há déficit de profissionais. Ainda por cima,

temos investido muito na saúde curativa e não na preventiva. Somando a isso

problemas na gestão, o custo da saúde realmente se torna muito alto”, frisa Lanny.

Curativo provisórioO Mais Médicos é uma iniciativa do Governo Federal para diminuir a falta de

profissionais, levando o atendimento até as regiões mais remotas. Para a realização

do projeto, o Estado contratou cerca de 11 mil médicos estrangeiros somente em

2013, ano de início do programa. No entanto, uma auditoria do Tribunal de Contas

da União (TCU) revelou que 49% das primeiras cidades a receberem os

participantes do Mais Médicos contavam com menos profissionais na rede pública

de saúde em 2015. Além disso, um em cada três médicos integrantes trabalhava

sem a supervisão necessária de acordo com as regras do programa. Ao analisar a

cobertura de grandes veículos midiáticos é perceptível o tom crítico quanto à

instalação do programa. Wilza Vieira Villela, doutora em Medicina Preventiva pela

Universidade de São Paulo (USP),ressalta que uma das razões das críticas é a

complexidade do programa.

Lanny acredita que profissionais brasileiros atenderiam melhor as demandas da

rede pública. “Se o governo federal reestruturasse a formação médica no Brasil,

criando mais centros de ensino e distribuindo os especialistas de acordo com as

demandas de cada região, o sucesso seria maior. O Mais Médicos foi criado como

um projeto a curto prazo”, esclarece.

Wilza concorda parcialmente com a biomédica. “Critico o privilégio que essa

categoria de profissionais tem em termos de contratação, em detrimento

do fortalecimento das redes e da incorporação de outros setores. Ao mesmo tempo,

o programa deu oportunidade a um conjunto de pessoas que não tinham qualquer

tipo de acesso à saúde. Como ele é bem amplo e tem componentes importantes de

educação continuada, supervisão e formação profissional, existem chances de

impactos interessantes serem produzidos na saúde da população a curto e médio

prazo, em especial se as medidas de organização e regulação do sistema não

forem negligenciadas”, reflete.

Profissionais preparados?A médica também ressalta que não podemos generalizar a qualidade das

graduações de medicina no Brasil. “Contamos com muitas escolas médicas, tanto

públicas quanto privadas. As que mais acompanho são a USP, a Unifesp e a

Unicamp, e elas estão sendo bem sucedidas ao formar profissionais aptos a

trabalhar com competência nos diferentes níveis de atenção nos quais se

distribuem os serviços do SUS”, afirma.

Limberger discorda. Ele argumenta que, enquanto estava na Universidade, 99% do

que foi ensinado era voltado a um sistema curativo, que não é tão eficaz quanto o

preventivo, e que uma mudança no SUS apenas ocorrerá se o cidadão souber,

literalmente, de seus direitos. Não deve-se deixar o manuseamento de recursos

apenas nas mãos de políticos. “Uma justiça de olhos abertos é necessária”,

salienta.

Seriam esses “olhos abertos” os representantes da mídia? Para Wilza, não.

Quando questionada sobre o aumento do número de planos de saúde no Brasil,

responde que isso “é fruto de uma longa e lenta campanha de desqualificação do

SUS e da desinformação da população sobre aspectos da saúde e qualidade de

vida não relacionados à assistência médica”.

Fica a pergunta: até quando nossas atuais políticas de saúde terão condições de

atentar à população? O futuro de nosso país é a privatização da saúde?

Independentemente disso, o fato é que a situação atual deixa os habitantes sem

mãos, pés e cabeça. Esse é o “estrangulamento” do sistema de saúde.