O ESTADO SIMPLES - Banco de Portugal · Novos desafios para o setor público no século XXI face ao...

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Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013 1 Nota: Este texto serviu de base à minha intervenção no Seminário que teve lugar no dia 22 de novembro, integrado no ciclo “Sextas da Reforma”, organizado conjuntamente pelo Banco de Portugal, Conselho das Finanças Públicas e Fundação Calouste Gulbenkian. O ESTADO SIMPLES Maria Manuel Leitão Marques 1 ([email protected]) Sumário 1. O Estado pode ser simples? Algumas interrogações em jeito introdutório 2. A burocracia no tipo ideal de Max Weber 2.1. Os princípios da burocracia e as suas disfunções 2.2. Novos desafios para o setor público no século XXI face ao tipo ideal da burocracia 3. Uma pressão para mudar a) Falta de correspondência com as expetativas dos cidadãos b) Insustentabilidade financeira c) Complexidade da administração d) Globalização e competitividade 4. O Estado simples tem de ser inovador 4.1. Procurar outro tipo de respostas 4.2. Inovação: o que é? 4.3. Pode haver inovação no setor público? 4.4. Inovação incremental ou radical? 4.5. Como inovar no setor público? 4.6. A inovação colaborativa: interna e com parceiros externos 4.7. A inovação colaborativa: riscos e orientações 4.8. A inovação é um processo contínuo? Conclusão BIBLIOGRAFIA 1 Professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

1

Nota: Este texto serviu de base à minha intervenção no Seminário que teve lugar no dia 22 de

novembro, integrado no ciclo “Sextas da Reforma”, organizado conjuntamente pelo Banco de

Portugal, Conselho das Finanças Públicas e Fundação Calouste Gulbenkian.

O ESTADO SIMPLES

Maria Manuel Leitão Marques1

([email protected])

Sumário 1. O Estado pode ser simples? Algumas interrogações em jeito introdutório 2. A burocracia no tipo ideal de Max Weber

2.1. Os princípios da burocracia e as suas disfunções 2.2. Novos desafios para o setor público no século XXI face ao tipo ideal da burocracia

3. Uma pressão para mudar a) Falta de correspondência com as expetativas dos cidadãos b) Insustentabilidade financeira c) Complexidade da administração d) Globalização e competitividade

4. O Estado simples tem de ser inovador 4.1. Procurar outro tipo de respostas 4.2. Inovação: o que é? 4.3. Pode haver inovação no setor público? 4.4. Inovação incremental ou radical? 4.5. Como inovar no setor público? 4.6. A inovação colaborativa: interna e com parceiros externos 4.7. A inovação colaborativa: riscos e orientações 4.8. A inovação é um processo contínuo?

Conclusão

BIBLIOGRAFIA

1 Professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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«Public services are basic to legitimacy and stability of

modern government»

Christopher Pollitt, New Perspectives on Public Services,

OUP, 2012, p. 10.

1. O Estado pode ser simples? Algumas interrogações em jeito

introdutório

O Estado pode ser simples? Ou simplificar o Estado não é mais do que uma fórmula

atraente concebida para disfarçar o desejo de reduzir o papel do Estado e, em especial,

na prestação de serviços públicos?

O que significa simplificar o Estado se não é reduzir o seu papel? Significa apenas

diminuir a burocracia?

Mas afinal se a sociedade e as suas dimensões políticas, económicas e socioculturais

são complexas, se a vida é complexa, se o direito é intrinsecamente complexo, não

será a tentativa de diminuir a burocracia uma miragem sem substância, para além

daquela que o discurso político lhe permite imprimir transitoriamente?

E por que deverá a burocracia ser reduzida? Segundo o tipo ideal de Max Weber, a

burocracia foi criada para garantir a previsibilidade e a igualdade no tratamento dos

processos administrativos, para construir uma administração com regras em vez de

uma administração arbitrária.

Será, então, que para tornar o Estado simples não nos bastará regressar à “boa

burocracia”, retomando os ensinamentos de Max Weber, em vez de tentar reduzi-la?

É possível esse regresso à “boa burocracia” na segunda década do século XXI?

Responde esse modelo aos problemas que temos de resolver? Às expetativas que os

cidadãos têm sobre a forma como devem ser prestados os serviços públicos? Ou

precisaremos de outro tipo ideal, de outro modelo do qual nos aproximarmos?

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Um modelo que torne o Estado mais simples, mais inovador, sem causar excessiva

ansiedade nos seus funcionários e dirigentes, que não acumule mudanças sem

resultados, mas apesar disso seja capaz de arriscar em projetos que podem não correr

bem, o que sempre acontece a quem inova.

Um modelo que, sem diminuir a autoridade do Estado, comporte formas de ouvir

mais vezes os utentes dos serviços públicos e de os envolver em escolhas e decisões.

Um modelo orientado para uma abordagem baseada no risco, onde a intensidade

da regulação varie em função desse risco e a confiança nas pessoas seja mais

valorizada.

Um modelo que, sem fazer do uso da tecnologia uma panaceia, se sirva dela para

redesenhar as suas organizações, transformar os seus processos, para prestar os seus

serviços de forma mais eficiente e eficaz.

Um modelo que, sem abandonar a qualidade técnica da legislação, seja capaz de a

tornar mais simples e clara e, desse modo, mais eficaz.

Um modelo de Estado que, sem deixar de respeitar um princípio de igualdade,

ofereça respostas diferenciadas centradas nos cidadãos e nas suas reais necessidades.

Um modelo em que o Estado, sem perder a capacidade de direção, dê mais

autonomia a trabalhadores cada vez mais qualificados para poderem fazer propostas

inovadoras; e que sem deixar de estar organizado sectorialmente e por níveis

territoriais, tenha capacidade de partilhar recursos e colaborar em projetos específicos

intersectoriais e/ou entre níveis de governo.

Devemos aspirar a um modelo de Estado deste tipo? Como podemos chegar lá?

Este é o desafio a que vou tentar responder. Baseada na experiência e na teoria, por

esta ordem exatamente. Parto da experiência de ter enfrentado e coordenado alguns

projetos inovadores (a inovação in action) para escrever e tentar teorizar sobre ela (a

inovação in books). Recorro para o efeito, obviamente, a outros ensinamentos colhidos

em estudos sobre o tema.

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2. A burocracia no tipo ideal de Max Weber

2.1. Os princípios da burocracia e as suas disfunções

Começo por regressar brevemente ao modelo burocrático dominante, no tipo ideal

de Max Weber, para depois discutir a forma de o modificar.

A burocracia servia para quê no pensamento deste sociólogo prussiano que

começou a escrever no final século XIX e acabou no início do século XX? Eis a primeira

pergunta a que importa responder.

A burocracia servia para garantir um controlo e uma maior previsibilidade do

funcionamento do Estado. Servia para impor regras contra a arbitrariedade. Servia

para pagar com dinheiros públicos os funcionários para que não fossem pagos em

espécie e/ou com favores. Servia para garantir uma organização eficiente, detalhando

antecipadamente como tudo devia funcionar. Sustentava-se assim em bons princípios,

com os quais ainda hoje podemos concordar.

O tipo ideal de Weber assentava em seis grandes princípios da burocracia:

1. A administração deve ser organizada com base numa estrutura

hierárquica relativamente rígida em que cada nível é controlado pelo nível

superior, sendo a decisão centralizada no topo.

2. Toda a organização funciona de acordo com regras que permitem que

as decisões tomadas a nível central sejam executadas consistentemente pelos

níveis inferiores.

3. Cada funcionário ou unidade tem a sua especialização própria.

4. A sua missão pode ser centrada na organização ou virada para o

exterior.

5. O tratamento a dar aos utentes deve ser igualitário (o mesmo) em

qualquer circunstância.

6. A escolha dos funcionários deve ser feita em função da sua competência

técnica e qualificações específicas e estes não poderão ser despedidos por

outros motivos 2.

2 cfr.Max Weber …

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Contudo, este modelo burocrático foi sendo visto de outro modo pelos cidadãos

que utilizam os serviços públicos.

O que pensam os cidadãos ou os utilizadores de um serviço quando dizem que uma

organização, pública ou privada, é burocrática?

«Que ela tem políticas e procedimentos demasiado rígidos; parece inflexível e sem

capacidade de resposta»; «que está tão preocupada com um tratamento igualitário

que não se dá conta que tratamento igual conduz a satisfação diferente. Que os

cidadãos são tratados como números e não como pessoas; que não se preocupa com a

sua satisfação. Que raramente inova, e é relutante a mudar quando os tempos mudam

e os acontecimentos apontam nesse sentido.3 »

Ou seja, os cidadãos queixam-se precisamente de alguns dos pilares do tipo ideal

weberiano.

Por sua vez, a literatura foi apontando algumas disfunções ao modelo burocrático

que coincidem com a perceção dos cidadãos entre as quais se destacam: a

transformação das normas e regulamentos de meios em objetivos; o excesso de

formalismo; a resistência à mudança; a inexistência de cooperação

interdepartamental, devido ao facto de cada organização estar rigidamente

verticalizada; a despersonalização do relacionamento interno; uma hierarquia rígida; a

dificuldade no atendimento aos utentes devido ao facto de a organização estar muito

virada para si própria.

Poderão estas disfunções ser corrigidas e a perceção dos cidadãos alterada dentro

do mesmo modelo? É possível regressar à boa burocracia weberiana em 2013, com a

complexidade de níveis de governação, a multiplicação e fragmentação da organização

administrativa, e a complexidade existente dentro de cada nível que temos

atualmente?

O Estado weberiano, o Estado alemão do tempo de Max Weber, era um Estado

muito mais simples. Era um Estado autoritário com muito menos funções do que hoje.

3 Cfr Kenneth Jonhston, Busting Bureaucracy. http://www.BustingBureaucracy.com 1993 by Visionary

Publications, Inc., Sarasota, Florida

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O de hoje é democrático e complexo. A antiga burocracia pode funcionar bem num

Estado complexo e multipolar sem grandes disfunções?

Existir pode e até existe, mas os seus efeitos não são os mesmos que se

pressupunham no tipo ideal de Max Weber4.

2.3. Novos desafios para o setor público no século XXI face ao tipo ideal da

burocracia

Olhemos então para alguns desafios que temos hoje pela frente e confrontemos

esses desafios com o tipo ideal de Weber, mesmo sem pensar nas suas disfunções.

Problematizemos apenas alguns dos seus princípios de ouro que antes enunciámos:

1. A hierarquia é compatível com a cooperação transversal entre serviços

do mesmo nível de administração ou de níveis diferentes, que hoje se mostra

indispensável para a viabilização de processos colaborativos? A colaboração

transversal desta natureza, para concretizar um pouco mais, é o que permite a

existência de um Cartão de Cidadão, como o que foi criado em Portugal, que

envolve diretamente, pelo menos, meia dúzia de serviços; é também o que

permite dispormos de uma declaração de IRS pré-preenchida; é a que permite

pagar os impostos e contribuição para a segurança social, ou renovar as

licenças de caça e pesca na rede privada ATM (vulgo Multibanco); é o que

permite que o recenseamento eleitoral seja automático, através da

comunicação dos dados de identificação civil; é o que permite a existência de

lojas do cidadão, com diferentes serviços e mesmo balcões multisserviços

assegurados por funcionários da Administração local, que informa sobre

serviços da Administração central e supervisionados por um gestor que é

funcionário do Ministério da Justiça ou da AMA; é o que permite muitos outros

balcões únicos como a Empresa na hora, o Documento único automóvel, a Casa

4 Do ponto de vista da gestão pública foram várias as tentativas corrigir ou sair radicalmente do modelo burocrático, desde New Public Management ao New Public Governance, ou de o retomar nos seus aspetos essenciais como o New Weberian… Cf. entre outros Moreira, 2013, Vidigal, 2013……………………….

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pronta, o Balcão do empreendedor para diferentes licenciamentos da

Administração central e local, etc., etc.

2. Uma atuação que cumpre regras escrupulosamente combina com

trabalhadores do conhecimento, multidisciplinares, com mais autonomia, como

se recomenda que tenhamos cada vez mais na nossa Administração? E será que

combina com o estímulo a que sejam mais inovadores nas suas práticas

quotidianas, mesmo que de forma puramente incremental (inovação bottom-

up)?

3. Uma excessiva especialização dos funcionários não prejudica que estes

tenham uma visão abrangente da organização e que possa haver mobilidade

dentro dela?

4. O tratamento igualitário de utentes, cidadãos e empresas, não exclui a

personalização dos serviços que é hoje uma marca de tantos serviços privados

e também públicos? Vejam-se serviços de diferente natureza como o Pin+ para

uma autorização integrada e agilizada de investimentos de elevado valor e

potencial; os Serviços de Registo para grandes clientes; o apoio social em

função dos problemas específicos a determinados cidadãos; a atenção a

crianças com dificuldades de aprendizagem nas escolas; o apoio à integração

de imigrantes em sociedades cada vez menos homogéneas, etc.

5. O cumprimento estrito de ordens superiores não impede a “autonomia

da burocracia”, ou seja a possibilidade de as organizações poderem definir de

forma mais independente as suas tarefas e não seguir estritas orientações

governamentais, como defendeu num texto recente Fukyama, sustentando

dever ser essa uma medida da qualidade das administrações públicas5?

6. E a participação dos cidadãos nas formas mais experimentais da

cocriação e coprodução, como se inserem no modelo burocrático?

Como escreveu Bason (2012:3) a este respeito «It seems that public sector

organisations are pretty good at improving how to do things right (creating a smooth-

running bureaucracy), but not necessarily on how to do the right thing (addressing the

actual needs of the citizens they serve)».

5 Francis Fukyama, What is governance?, WP, 314, jan. 2013, Central for Global Development.

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Darei especial atenção a alguns dos dilemas apontados e mostrarei que o

regresso à “boa burocracia” prussiana no sentido weberiano não é mais possível na

administração do século XXI.

Mesmo que algumas das vertentes dessa burocracia (a ética do serviço público, por

exemplo) mantenham a sua atualidade, não podemos regressar à “boa burocracia”

dentro do paradigma organizativo e procedimental que lhe subjazia no século XIX. A

burocracia era então essencialmente um sinónimo de uma administração pautada por

regras e não arbitrária, de estabilidade contra a mudança. Com certeza que simplificar

o Estado não significa abandonar regras a favor da arbitrariedade, nem achar que a

mudança vale por si. Mas um modelo que também comporte os valores da

simplificação, inovação, participação não pode ser idêntico ao modelo burocrático.

A “burocracia cega”, como Weber a concebeu, não é, além disso, compatível com

um mundo complexo, imprevisível e variável (ritmo de mudança acelerado) dos dias

em que vivemos. Mesmo que se salvem algumas das suas intenções, o modo de chegar

a elas tem de ser diferente. Insistir no regresso é insistir no erro e acumular má

burocracia, acentuando as suas disfunções, com mais custos e mais meios, e menos

qualidade e satisfação, com perda de legitimidade do Estado perante os cidadãos.

Por algumas das razões já invocadas, precisamos de um modelo diferente, um

modelo que comporte soluções regulamentadas e igualitárias e soluções à medida e

personalizadas. Um modelo que combine a norma (sem uma excessiva normalização) e

alguma flexibilidade (sem improvisação ou desenrasca). Um modelo que valorize a

estabilidade mas incorpore a mudança e a inovação no seu código genético.

Temos, portanto, que desenhar um outro tipo ideal, um outro modelo tendencial,

que acomode alguns dos bons princípios daquele sociólogo preocupado com os

despotismos prussianos de então, mas que em simultâneo responda às expetativas de

cidadãos do século XXI e tenha em conta as possibilidades que este século nos oferece

em matéria de conhecimento, de tecnologia e de organização. Ou seja, teremos de

mudar de paradigma em alguns domínios da organização e atuação do Estado na sua

relação com os cidadãos. Designo esse novo tipo ideal por “Estado simples”.

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O Estado simples não é um tipo construído, é um tipo em construção. O método

para o construir vem da experiência para a teoria e não da teoria para a experiência.

Tem em conta a aprendizagem adquirida em processos de transformação e constrói a

partir dela os seus princípios orientadores.

3. Uma pressão para mudar

«Problem solving rather than bureaucratic routines can become the dominant

metaphor for work»

Barselay, 2002, Breaking through Bureaucracy: a New Vision for Managing in

Government, University California Press. p.8

O que justifica esta pressão para um modelo diferente daquele com que vivemos

tantos anos? Quais os fatores que contribuíram para a procura acelerada deste novo

modelo? Afinal, as disfunções da burocracia vinham há muito tempo a ser apontadas

na literatura especializada. Para evitar ou contornar essas disfunções o que foi sendo

feito?

Durante muito tempo não apenas entre nós, apesar de algumas exceções

importantes de inovação mesmo radical, foi feito mais do mesmo, tentando melhorar

o modelo que existia, mas procurando conservá-lo. Por exemplo, acelerou-se a

emissão de licenças, mas elas foram mantidas lá onde eram exigidas; dotaram-se os

serviços de mais meios, como na justiça, para responderem melhor à pressão da

procura, de mais recursos financeiros, de mais funcionários, de mais repartições, de

tribunais, de mais computadores e servidores mais potentes (quando chegou a sua

era), mas pouco se mexeu no seu modelo de funcionamento, por exemplo no mapa e

na gestão dos tribunais. Outros exemplos da mesma natureza poderiam ser aqui

invocados.

Houve claro introdução de TIC, que mudaram muitas rotinas e agilizaram algumas

repostas. Contudo, frequentemente elas foram colocadas sobre os sistemas

tradicionais sem os transformarem profundamente. Como sustenta Bason (2012: 7),

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«even novel e-government solutions have often been trapped in the silo mentality of

public organisations, thus not harvesting their full potential».

Assim, os resultados de tentar fazer melhor sem mexer muito na organização e nos

procedimentos nem sempre foram surpreendentemente melhores e muitas vezes não

foram mesmo significativamente diferentes6.

Às grandes promessas seguiram-se frequentemente poucos resultados, o que gerou

tentativas sucessivas de mudança e, pior do que isso, frustração com a capacidade de

mudar, descrédito das promessas de reformar o que quer que fosse em matéria de

administração pública7.

Foi apenas esta frustração que fez pensar que a era do “mais do mesmo” estava a

chegar ao fim? Infelizmente, não foi somente o resultado da análise dos resultados de

tentativas de reforma anteriores (raramente feita, de resto). Foi também fruto da falta

de meios para continuar nesse caminho e da pressão para procurar outro.

Assim, essa pressão resulta de um conjunto combinado de diferentes fatores, entre

os quais se destacam os seguintes: a alteração das expetativas dos cidadãos e das

empresas relativamente à qualidade dos serviços públicos, a crise financeira, a

complexidade crescente da regulação e a globalização. Vejamos cada um destes

fatores.

a) As expetativas dos utentes, cidadãos e empresas, relativamente à

qualidade dos serviços públicos são hoje mais elevadas por diferentes ordens

de razão. Desde logo, pela sua educação e conhecimento. Depois, porque são

contaminadas pelas suas experiências no setor privado e em nichos de

excelência que pontuam o próprio setor público. Ou seja, serviços inovadores

criam pressão para mais inovação. «Quando é que o Simplex chega ao meu

município?»; «Se crio uma empresa em menos de uma hora, por que demoro

6 7 As mudanças sucessivas são também justificadas pelo hábito de que governar é fazer leis e que portanto a qualidade de um governante se mede pelo número de leis novas que produz. Isso leva a que muitas vezes se substituam regimes que ainda não mostraram os seus frutos, sem sequer serem avaliados . Tal conduz a que se desconheçam as razões porque eventualmente não foram bem sucedidos de tal modo que as falha possam ser corrigidas no regime que se segue.

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tanto tempo a licenciá-la?» são exemplos do tipo de frases que muitas vezes

chegaram por email à caixa de sugestões do Simplex.

Além de mais elevadas, as expetativas são diferenciadas. Os cidadãos

esperam hoje, por exemplo, respostas mais padronizadas (iguais nos

diferentes municípios quando a lei que aplicam é a mesma) e, em simultâneo,

respostas personalizadas quando precisam delas. “One size doesn’t fit all” em

todas as situações.

Os cidadãos esperam também respostas na hora ou pelo menos

respostas em data previsível. Esperam uma resposta que lhes resolva o seu

problema todo e não apenas uma parte dele.

b) Contudo, as expetativas dos cidadãos aumentam quando a

capacidade de resposta do Estado diminui. Poderemos dizer, como

frequentemente se escreve, que foi a crise financeira que limitou essa

capacidade de resposta, mas não foi só ela. A crise só a agravou e tornou mais

visível um problema que já existia antes dela.

Em 2005, por exemplo, na Public Services Summit que a Cisco organizava

anualmente em Estocolmo, o politólogo americano David Osborne8 que foi

conselheiro da administração Clinton e um dos expoentes da chamada New

Public Governance, mostrou, com projeções feitas a partir de dados do

Canadá, que as tendências demográficas aliadas à pressão sobre as despesas

de saúde (derivadas não apenas do envelhecimento da população, mas do

reflexo de mais educação na procura de cuidados de saúde – que deu origem

ao chamado “cidadão hipocondríaco” –, e do aumento da sofisticação e do

custo dos meios de diagnóstico) produziriam uma pressão muito grande

sobre a despesa pública em 2020. Se não fossem preparadas

antecipadamente novas maneiras de prestar serviços públicos que

associassem mais eficiência a igual ou até, se possível, mais eficácia, o Estado

só poderia resolver o problema reduzindo drasticamente a prestação de

serviços na saúde e em outras áreas da sua intervenção, desde logo

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reduzindo o rendimento de todos os que estão envolvidos nessas prestação,

desde o nível da governação, passando por todos os restantes. As restrições

financeiras empurram os Estados a procurar fazer mais e melhor com menos,

e mais e melhor com menos exige fazer de outro modo, alterar o modelo, sob

pena e significar apenas pagar menos a quem faz e encolher os orçamentos

para além do limite do possível, degradando a qualidade dos serviços de

administração pública em geral.

c) Para além da “refinação” das expetativas dos utentes dos serviços e

da crise financeira, a pressão para procurar caminhos diferentes resultou da

complexidade atual do Estado. Essa complexidade emerge em diferentes

planos. Desde logo, nas novas questões que o Estado tem de enfrentar

(alterações climáticas, envelhecimento da população, reabilitação urbano,

desemprego de longa duração, desemprego jovem como o novo fenómeno

dos “nem, nem”, nem trabalham nem estudam, criminalidade financeira e

informática, etc. ) para as quais tem de mobilizar conhecimento de que não

dispõe. Depois na sua organização institucional em vários níveis (em especial

dentro da UE), a qual se repercute na complexidade da regulação e na

administração.

Mostremos essa complexidade com um exemplo entre muitos outros

possíveis: o do regime do licenciamento industrial. Atualmente, instalar e

explorar uma indústria depende não de uma, mas de várias licenças,

autorizações e/ou pareceres requeridos em departamentos diferentes da

Administração pública central e local, exigindo-se para esse efeito, por vezes,

de forma repetida a mesma informação, a par de mais alguma específica para

aquele pedido. Nesse processo “penduram-se” pelo menos os seguintes

regimes conexos: RJAIA (Regime Jurídico da Avaliação de Impacte Ambiental),

RJUE (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), RPAG (Regime de

Prevenção de Acidentes Graves) e RPCIP (Regime Jurídico relativo à

Prevenção e Controlo Integrados da Poluição); uns que transpõem diretivas

da UE, outros que são de inspiração nacional, alguns deles completados por

regulamentação local, que varia de município para município.

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A simplificação desintegrada de qualquer destes regimes, por muito

bem feita e ousada que ela seja, já não é suscetível de produzir resultados

surpreendentes vistos do lado do utente. Esses resultados, para serem

percecionados como tais, exigem consolidação legislativa, integração de

procedimentos, partilha e reutilização de informação entre diferentes

entidades a nível central e local, interoperabilidade entre os sistemas de

informação que suportam cada um deles, um balcão único para a interação

com o utente, previsibilidade e transparência de todo o procedimento.

Contudo o “procedimento”, visto do lado do utente, é um só e não vários,

aquele que corresponde ao seu evento de vida – poder instalar e explorar um

estabelecimento industrial – e não aquele que corresponde ao procedimento

administrativo, por exemplo, emitir a licença ambiental. Ora a referida

integração depende de cooperação transversal entre todas as entidades

públicas envolvidas, o que não é compatível ou é muito dificultado por um

modelo hierárquico rígido.

d) Por último, a pressão para um novo modelo de funcionamento dos

serviços públicos deriva da globalização e da concorrência ao nível global.

Os Estados também competem na qualidade e eficácia do seu modelo

regulatório e das suas instituições e não necessariamente no seu modelo

desregulatório para onde tantas vezes foram empurrados por algumas

organizações internacionais. Rankings organizados por diferentes instituições

internacionais, como o Doing Business do Banco Mundial, comparam a sua

performance, a sua capacidade de resposta, o tempo que demoram a

responder, o número de passos que é preciso dar para obter uma licença de

construção ou para criar uma empresa. Por muito discutíveis que sejam as

metodologias utilizadas nesses rankings, por muito injustas que sejam as

comparações aí realizadas, a verdade é que eles contam, são consultados e

podem influenciar as decisões de investimento. A estes rankings

acrescentam-se avaliações da OCDE que incluem peer reviews e igualmente

comparam desempenhos. Tudo isto empurra os Estados para darem mais

atenção à qualidade da sua regulação, simplificarem os procedimentos,

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prestarem os serviços de forma diferente, em suma para outro tipo de

respostas que saem fora do modelo burocrático.

4. O Estado simples tem de ser inovador

4.1. Procurar outro tipo de respostas

Mas quais são os outros tipos de respostas? O que têm em comum? No fundo que

orientações devem estar presentes na construção do Estado Simples?

Elas vão do nível da governação à forma de prestação do serviço e compreendem:

- Respostas que se dirijam aos aspetos sentidos como mais complexos pelos

cidadãos, o que exige avaliar essa perceção antes de tomar a decisão de alterar um

dado procedimento (avaliação ex-ante, através customer journey mapping, inquéritos,

focus group, análise cuidada da informação administrativa, como as reclamações, os

tempos de espera, etc);

- Respostas que se preocupem com qualidade regulatória e com a transmissão do

seu conteúdo em linguagem clara; que tenham em conta alguma economia legislativa,

evitando legislar se uma nova decisão política pode acomodar-se no quadro legislativo

existente; respostas que não criem custos administrativos desnecessários.

- Respostas proporcionais ao risco das atividades que se pretende regular, que na

base da confiança e/ou do baixo risco envolvido isentem uma parte dos potenciais

destinatários do cumprimento de formalidades pensadas para um nível de risco

superior (micro-empresas dispensadas de certas obrigações contabilísticas).

- Respostas regulamentadas, pré-formatadas (pronto a vestir) a par de decisões

casuísticas (fato à medida), como na “empresa na hora” ou no “licenciamento zero”.

- Respostas diferenciadas em função dos destinatários, que vão do atendimento

personalizado ao atendimento desmaterializado em diferentes suportes.

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- Respostas integradas em função dos eventos de vida (criar uma empresa, registar

uma criança, tratar de uma herança, abrir um hotel), facilitadas pelo uso das

plataformas de interoperabilidade. Integração é, portanto, uma palavra chave para um

novo paradigma.

- Respostas agilizadas, na hora ou previsíveis, onde é possível ao requerente

acompanhar o procedimento de decisão.

- Respostas assentes na partilha de informação, e não pedido repetido ao cidadão,

bem como de meios e recursos.

- Respostas construídas com os cidadãos, em vez de serem construídas apenas para

os cidadãos, sendo que a sua participação pode ir das formas mais tradicionais da

consulta pública às mais emergentes da cocriação e da coprodução.

Como é possível desenvolver estas respostas em tempo de constrangimentos

financeiros tão graves? Sem incentivos para dar a quem é mais criativo, a quem tem

melhores resultados? Como ganhar a confiança de cidadãos e funcionários para essa

tarefa? Como mudar de paradigma e fazê-lo sem perturbar excessivamente o

funcionamento corrente da Administração? Como ter sucesso nas mudanças quando

elas são por vezes tão profundas e exigentes? Como acomodar o risco de falhar?

Para mudar de paradigma – que é disso que se trata no caso de algumas das

respostas que antes enunciámos – é preciso inovação. O Estado simples depende de

inovação como as empresas precisam dela para sobreviver: nos processos e nos

serviços. Inovação contínua e não acidental; inovação incremental seguramente, mas

também radical.

4.2. Inovação: o que é?

Inovação é um processo dinâmico que permite responder a problemas e desafios

com novas soluções encontradas a partir de ideias novas e criativas. Inovação provoca

mudança qualitativa e, portanto, alteração no modo de fazer e nas práticas instituídas.

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Mulgan e Albury (2003) identificaram a inovação no setor público como sendo um

processo de criação e implementação de novos processos, produtos, serviços e formas

de os prestar, dos quais resultem significativas melhorias nos resultados em matéria de

eficácia, eficiência e qualidade.

Pese em bora as sinergias e o conhecimento que possa ser adaptado do que se sabe

sobre inovação no setor privado, a inovação no setor público tem características muito

próprias, devido ás diferenças profundas entre os dois setores. Entre elas estão as

características da organização, do processo de decisão (menos autonomia e

flexibilidade e influência política), a relação com utentes e das obrigações de serviço

público (igualdade, equidade, universalidade), os seus objetivos não financeiros ou a

natureza monopolística da maioria dos serviços que presta, gratuitos ou sujeitos ao

pagamento de taxas que não refletem o seu custo (cfr. Helena Alves, 2012: 673),

Inovação não é sempre sinónimo de invenção, muitas vezes traduz-se na adaptação

de ideias já experimentadas em outros lugares ou em outros domínios de atividade.

A inovação também não é uma receita garantida, a priori a good thing, como

referem Osborne e Brown (2013: 3), mas sim uma tentativa de responder a problemas

como novas soluções que comporta sucessos e insucessos.

No setor público a inovação pode incidir em diferentes fases ou momentos: na

forma como a decisão é tomada (por exemplo, o orçamento participativo), no modo

como a política é desenhada, nos instrumentos que se usam para a pôr em prática

(inovação regulatória), no modo como a organização é gerida, na gestão dos recurso

humanos, na avaliação do mérito, no desenho de novos serviços ou de novas formas

de estes serem prestados e até na avaliação dos resultados (outputs e outcomes).

Há várias fontes de inovação no setor público. Os resultados da investigação

proveniente das universidades ou as sugestões dos cidadãos e dos funcionários. A

introdução das TIC na era da internet tem sido e pode ser ainda mais uma fonte

(driver) importante na reorganização da administração, desde os front-offices aos

back-offices. Elas permitem uma nova interação com os cidadãos, centralizar back-

offices e ao mesmo tempo descentralizar essa interação aproximando os serviços dos

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

17

seus destinatários. Facilitam a colaboração e a reutilização da informação através da

interoperabilidade. Possibilitam conferir segurança a forma remotas de identificação,

etc.

Mas há muitas outras inovações que não dependem de tecnologia ou onde pelo

menos a tecnologia não é o elemento essencial. Fundamentalmente, a inovação

requer inovadores: políticos corajosos, dirigentes capazes de mobilizar os recursos

materiais e imateriais para explorar as oportunidades, funcionários motivados,

parceiros disponíveis, cidadãos participativos9.

4.3. Pode haver inovação no setor público?

O setor público sempre teve fama de ser conservador e não inovador. Houve

mesmo quem sustentasse que não poderia haver inovação no setor público.

Como sublinhou Mulgan (2007) «according to conventional wisdom, public

organisations cannot innovate. (…) But it is at odds with the history of innovation. Two

of the most profound innovations of the last 50 years were the Internet and the World

Wide Web. Both came out of public organisations: DARPA in the first place, CERN in the

second».

Como referi antes, o modelo burocrático, mesmo quando próximo do tipo ideal de

Weber, continha alguns constrangimentos à inovação institucional e procedimental, ao

valorizar a estabilidade acima de tudo; e de todo não comportava a inovação bottom-

up, devido à rigidez da hierarquia.

Apesar disso, como mostram Eva Sorensen e Jacb Torfing (2012: 2) existem alguns

fatores que favorecem a inovação no setor público. Segundo estes autores, são eles os

seguintes: o fato de os políticos serem eleitos pressiona-os a terem novas ideias e

novos projetos realizados para serem reeleitos; a elevada qualificação média dos

funcionários públicos em especial dos dirigentes de topo e intermédios; a pressão dos

cidadãos e a sua participação democrática em consultas públicas, fóruns, reuniões

abertas (“voice options” e não apenas “feet options” como no setor privado) etc.; e

9 Cfr. The Innovation Journal: The Public Sector Innovation Journal, Volume 17(1), 2012, article 1. 5

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

18

finalmente a capacidade de o setor público, devido à sua dimensão, absorver com mais

facilidade os custos de uma inovação falhada.

Na verdade, apesar de algumas mudanças terem mostrado resultados

aparentemente insatisfatórios, como referi acima, não podemos negar, mesmo

olhando apenas a nossa realidade circundante, que o setor público mudou nos últimos

20 anos, pelo menos em determinados áreas ou setores.

Mesmo assim só recentemente se começou a dar mais atenção à inovação no setor

público. Por vários motivos: antes era acidental e não contínua, como no setor privado;

ela era incremental e rarissimamente radical, ou seja, fazia-se dentro do modelo

tradicional de funcionamento dos serviços, raramente o punha em causa (entre nós,

por exemplo, com a exceção das lojas do cidadão e pouco mais).

O foco na inovação no setor público é na verdade mais recente. Podemos observar

várias manifestações desse interesse. Refiro apenas algumas de âmbito internacional

ou nacional.

A criação de um Observatório para a Inovação no Setor público na OCDE (OPSI,

2013); a realização de estudos e a organização de uma task force na Comissão

Europeia (EU expert group on public sector innovation - DG Investigação e Inovação),

bem como a publicação de um Public Innovation Scoreboard10; a organização de

laboratórios experimentais em alguns países (NESTA, Mindlab, 27ème region); a

organização de concursos para ideias inovadoras no setor público (por exemplo, EPSA,

Major Challenge pela Fundação Bloomberg e em Portugal, o Ignite para incentivar a

produção de deias pelos funcionários da Câmara de Lisboa, ou Ideia Simplex); a

publicação de uma revista on line dedicada exclusivamente a este tema (The Public

Setor Innovation Journal,), para além de várias outras obras académicas; e a organização

de conferências e seminários. 10 European Public Sector Innovation Scoreboard 2013

http://ec.europa.eu/enterprise/policies/innovation/files/epsis-2013_en.pdf. Portugal tinha então 10

indicadores acima da média (quais….), com destaque para todos os indicados de e Gov Apenas mais 6

países estavam nesta situação (DK, Lux, Suíça, Suécia, Holanda, Malta). 9 indicadores estavam dentro

da média e apenas 3 indicadores abaixo da média.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

19

Já referimos também alguns dos motivos que justificam este foco recente na

inovação por parte de organizações internacionais e de governos centrais e locais, ou

seja, os fatores que pressionam os Estados a procurar novas repostas e soluções para

velhos novos problemas que têm de enfrentar, desde as expetativas dos cidadãos, à

crise financeira, o aumento da complexidade do Estado e a globalização.

4.4. Inovação incremental ou radical?

Bastará a inovação incremental no setor público, ou melhor, a inovação no setor

público deve ser apenas incremental para não ser perturbadora das organizações, não

comportar tanto risco e ser mais simples de implementar? Ou, por vezes, terá de ser

radical, mesmo que tal não signifique “fechar a administração num dia e abri-la no

outro elegante e modernaça”?

A inovação incremental traduz-se em fazer melhor passo a passo sem mexer nas

organizações, nos processos ou nos métodos (“doing better what we already do”) 11.

Mudar o procedimento para passar a emitir certidões mais conceder autorizações em

menos tempo. Há de qualquer modo uma mudança que a distingue de mera melhoria

de processos.

A inovação radical produz uma alteração, na organização, no processo, no produto

ou no serviço, transformando a situação pré-existente e substituindo-a por uma

substancialmente diferente. A inovação radical pode basear-se no uso de uma nova

tecnologia ou numa nova combinação organizacional (“not do do what we did

before”)12. A empresa na hora, o cartão de cidadão ou as lojas do cidadão são

exemplos de inovações radicais.

Naturalmente, o risco e a incerteza associadas à inovação são muito menores na

inovação incremental do que na inovação radical. Mas os resultados obtidos com uma

e outra também são diferentes. A primeira, inovação incremental, permite melhorá-los

lentamente e até um certo ponto (o ponto de esgotamento); a segunda, inovação

radical, quando bem sucedida, permite saltos na melhoria dos resultados.

11 Sendo estas as mais correntes, na literatura há várias distinções sobre os tipos de inovação. Cfr, por exemplo, sobre o tema Osborne e Brown (2013) eIDeA (2005). 12 Cfr. Norman & Verganti, ………..março 18, 2012.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

20

Com certeza que a inovação incremental continua a ser necessária e será até a

forma dominante de inovação. Estamos longe de interiorizar essa cultura na gestão

dos serviços. Mas ela não é suficiente em alguns domínios. Ou porque já não produz os

resultados esperados e aqueles que é preciso obter; ou porque a organização, os

processos ou os métodos não mais se adequam às expetativas dos cidadãos; ou

porque as tecnologias nos permitiram fazer melhor e de modo muito diferente do que

fazíamos no século XX.

Inovação radical não significa construir tudo de novo. Significa mudar de método de

organização ou de procedimento lá onde não é possível obter mais eficiência e ou

eficácia do que na situação anterior.

4.5. Como inovar no setor público?

A inovação passa por diversas fases que interagem entre si. Exige ter ideias, gerar

oportunidades, incubar e fazer protótipos, replicar e escalar, analisar os resultados,

aprender e corrigir. Ou seja, a inovação compreende um ciclo que tem de ser

acompanhado até ao fim. Ficar a meio pode comportar grandes riscos: o de

desperdiçar boas ideias, o de operacionalizar projetos inviáveis, o de não escalar e

replicar os bem sucedidos ou o de não corrigir e aprender com os erros.

Sabemos também da experiência do setor privado que há muitas barreiras à

inovação. Quebrar a rotina, os hábitos dos utentes, dispor dos meios e de

conhecimento, incluindo a tecnologia para a implementar, encontrar um ecossistema

favorável, mudar de modelo de gestão13. Como poderemos enfrentá-las?

Desde logo, aprendendo com o que foi feito, o que permite construir princípios e

orientações.

Além disso, como referimos, inovar não é inventar. Inovar pode ser trazer de fora

para um novo contexto.

13 Sobre as barreiras no setor privado cfr. Maxwell Wessel e Clayton M. Christensen «Surviving

Disruption », Harvard Business Review, dezembro 2012, p.58-54.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

21

Bastará, contudo, importar boas práticas de outros países onde elas foram bem

sucedidas? Podemos com certeza inspirar-nos em exemplos alheios mas raramente na

AP as boas práticas são importáveis chave-na-mão. Mesmo quando possam ser

inspiradoras não basta ler os relatórios, ou consultar os sítios onde estão descritas.

Nunca aí se conta como foi feito, o que falhou, os problemas ocorridos, o que ficou

pelo caminho. Exigiriam um estágio no país (um Erasmus para os funcionários

públicos), uma investigação mais profunda, uma colaboração mais “intimista”!!!! Deste

modo, uma mera visita a alguns países Europeus, do Norte ou do Sul, a Singapura, à

Austrália, à Nova Zelândia ao Canadá, poderá dar-nos boas ideias para resolver alguns

dos nossos problemas, mas nunca dispensará muito trabalho e algum risco na sua

replicação e na sua adaptação a um ou outro contexto.

Em suma, inovação no setor público por ser inspirada no que já foi feito em outras

administrações e no setor privado para resolver o mesmo tipo de problema, mas

mesmo quando tal acontece tem de ser adaptada. Não dispensa o esforço e a

liderança. Não elimina o risco e a incerteza. Exige sempre um esforço próprio e

mobilizar conhecimento local onde ele estiver disponível.

.

4.6. A inovação colaborativa: diferentes formas

O conjunto de desafios e as razões que justificam o foco na inovação, desde as

expetativas dos cidadãos à pressão financeira, o conhecimento que é preciso

mobilizar, o risco que é preciso correr para inovar, a reduzida margem que existe

para falhar, os resultados que é preciso obter, conduzem a pensar que a inovação

tem de ser cada vez mais um processo colaborativo.

De acordo com Sorensen e Torfing (2012) «collaborative interaction facilitates

trust-based circulation and cross-fertilization of new and creative ideas, and ensures a

broad assessment of the potential risks and benefits of new and bold solutions and

the selection of the most promising ones». Para estes autores, a inovação

colaborativa mobiliza «relevant innovation assets in terms of knowledge,

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

22

imagination, creativity, courage, resources, transformative capacities and political

authority».14

Essa colaboração é também uma marca distintiva do modelo do “Estado Simples”

relativamente ao modelo burocrático tradicional. Tradicionalmente, como salientam

Sorensen e Torfing (2012), e de acordo com o modelo burocrático, a troca de ideias

fazia-se apenas dentro de cada organização e, dentro desta, só em determinados

níveis (centros de estudo, direções). A inovação colaborativa perturba assim a

hierarquia e a rigidez organizativa própria do modelo burocrático.

Podemos pensá-la em diferentes planos, do menos ousado ao mais aberto.

Embora a maioria da literatura tenha limitado o conceito de inovação colaborativa à

colaboração da administração com parceiros externos (colaboração externa), vou

aqui incluir neste conceito também a inovação que envolve diferentes níveis da

mesma organização, que apela à produção de ideias novas e os motiva para a sua

implementação, bem como colaboração com outros parceiros que pertencem ao

Estado (cross-governmental innovation)., mas a diferentes departamentos,

organizações e/ou níveis da administração (colaboração interna). Pese embora o

facto de alguns problemas serem distintos na colaboração interna e na externa

(como o do acesso à informação), muitos outros são comuns (liderança, confiança

entre parceiros, responsabilidade pelo resultado). Além disso, qualquer destas

formas de colaboração perturba o modelo burocrático tradicional.

a) Assim, a inovação colaborativa tem a ver em primeiro lugar com o envolvimento

de diferentes atores da mesma organização num determinado projeto de inovação.

Trata-se apenas de estimular a produção de ideias dentro da própria organização e

envolver todos os que nela trabalham na sua operacionalização. (Exemplo: Ignite da

CML)

b) Em segundo lugar, abrange a colaboração entre diferentes organizações do

setor público relevantes para um mesmo objetivo ou projeto inovador, organizações

situadas no mesmo nível de governo, por exemplo, de diferentes ministérios, ou em

14 The Innovation Journal: The Public Setor Innovation Journal, Volume 17(1), 2012, article 1. 5

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

23

diferentes níveis de governo (multilevel collaboration) por exemplo, administração

central e local (exemplos: projetos Cartão de Cidadão, Licenciamento Zero).

c) Em terceiro lugar a inovação colaborativa no setor público compreende a

agregação de atores externos, privados e sociais, os utentes dos serviços, cidadãos ou

mesmo atores públicos mas exteriores à administração, como os centros de

investigação e as Universidades. Associada à questão da administração em rede e da

administração aberta, esta tem sido a forma mais estudada de inovação colaborativa

visto que é a que verdadeiramente coloca problemas novos (problemas de abertura

de informação pública, de partilha de poder de decisão e de responsabilidade por ela,

etc.). Mas é também a que permite mobilizar recursos não disponíveis na

administração, desde o conhecimento até outro tipo de experiência e mesmo de

meios.15 16.

4.7. A inovação colaborativa: barreiras e orientações

A inovação colaborativa exige ter em conta algumas orientações para que possa ter

sucesso ou pelo menos para ultrapassar certas barreiras e controlar o risco do

insucesso. Algumas dessas orientações foram sendo estabilizadas na literatura a partir

do estudo de diferentes casos. Retomo também a minha experiência na coordenação

de alguns projetos inovadores.

a) Comecemos pela inovação colaborativa interna que associa diferentes

departamentos/ministérios ou níveis de administração sem sequer se abrir a atores

15 « Whereas traditional political science theories emphasized the role of elected politicians with new ideas and the power to pursue them, the New Public Management doctrine saw either public managers or private contractors as the champions of public innovation. The innovative capacities and efforts of the public employees have also been highlighted and the latest fad has been the idea of user driven innovation that sees learning from or about the users as a valuable input to public innovation processes» Sorensen e Torfing (2012). 16 Clays Christensen refere a inovação aberta como a forma mais recente de inovação para as empresas . «Open innovation is a method of innovation that has arisen in recent years which allows companies to essentially source some of their innovation efforts to outside parties, often through contests where individuals compete to develop the best solution to the innovation challenge the company has set forth. Companies perform open innovation by essentially putting forth an innovation problem they are facing to the public (or, at least, a community of individuals outside of their firm) and then inviting individuals to submit solutions to that problem. Cfr http://www.claytonchristensen.com/latest-thinking-innovation-blog/, consultado em 15 de novembro de 2013.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

24

externos. Os silos, administrativos e políticos, constituem uma das barreiras mais

fortes e difíceis de quebrar a este tipo de inovação colaborativa no interior da

Administração, aquela barreira que prejudica o sucesso dos projetos mais ousados em

termos de eficiência e eficácia.

Bason (2012: 3) designa-os como o DNA anti-inovação.

«New forms of collaboration such as project organisation, virtual organisations

and dedicated innovation units are still in many countries considered exotic. In

most countries there is no national strategy for innovation in the public sector. One

would think (…) that most public sector organisations were built to counter

innovation, not to foster it»

Disfarçadas com diferentes vestimentas, as recusas de colaboração assentam

basicamente e quase sempre no medo da perder funções, protagonismo, poder e

receitas. Invocam-se para ocultar estas razões, a segurança, a especialização e os

saberes impartilháveis, os modelos que não podem ser alterados (a forma de escrever

a morada nos registos), etc. Esquece-se que tal como no resto da sociedade, também

no Estado há funções que se transformam, passam a ser desempenhadas de outro

modo, e outras que desaparecem. Tal como há novas funções que emergem e que

precisam do se espaço e dos seus meios. Sob pena de o Estado crescer sem utilidade é

preciso encerrar umas para poder desenvolver as outras. Hoje, por exemplo os front-

offices podem ser partilhados (tirar o passaporte ou a carta de condução numa balcão

de registos ou num balcão multisserviços de uma loja do cidadão) ainda que back-

office de qualquer desses documentos seja assegurado de forma centralizada por um

outro serviço de um outro ministério. Ou comunicar a abertura da esplanada de um

restaurante num balcão único eletrónico gerido serviço da administração central ainda

que essa comunicação seja dirigida a um determinado município.

Para os quebrar os silos e vencer estas barreiras é importante ter em conta vários

aspetos, entre os quais os seguintes:

(i) Um deles é o espaço, ou seja, a ideia de que os participantes num projeto

devem ser retirados do seu ambiente organizacional, ou seja, colocados a

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

25

trabalhar em outro local e com outra coordenação (meta-coordenação). Clays

Christiensen, professor da Harvard Business School e autor de uma reputada

obra sobre «Inovação Disruptiva»17 explicava, numa entrevista à Fundação

Bloomberg, que «organizações existentes só conseguem replicar-se. Os produtos

que fazem e os serviços que prestam refletem a organização. Quando queremos

mudar um produto ou um serviço temos que pegar nas pessoas, retirá-las dos

seus departamentos, colocá-las em outro lugar, fazê-las pensar o produto ou o

serviço de outro modo». Dava como exemplo alguns projetos inovadores

desenvolvidos pela Toyota. Por sua vez, Sorensen e Torfing (2012) sustentam que

uma «collaborative innovation in the public sector can be enhanced by creating

spaces outside but close to service production in which public employees with

different professional backgrounds can collaborate with each other as well as

with users, managers and policy experts to develop and test new innovative

solutions in practice».

(ii) Um outro problema é a escolha dos participantes e a sua motivação. Um

processo de inovação não pode apenas fazer-se com dirigentes. Tem de associar

outros funcionários que conheçam o detalhe e a organização dos serviços. Isso

ajudará não apenas no desenho do projeto, a não cometer erros de “pormenor”

que muitas vezes liquidam os projetos à nascença, mas também a motivá-los

para a sua implementação. Eles devem sentir a mudança como sua desde a

primeira hora. E devem, no final, ser clara e expressamente associados ao

sucesso da inovação, se for o caso. Esse reconhecimento é muito mais

importante do que possa parecer, constitui o único prémio, quando as restrições

financeiras tornam impossível outro tipo de incentivos.

(iii) O aspeto seguinte é a liderança que, neste caso, deve ter a natureza de

meta-coordenação, na medida em que o grupo agrega atores de diferentes

proveniências não subordinados hierarquicamente ao mesmo coordenador seja

ele quem for. Contudo, a metacoordenação tem de ter poder e legitimidade

suficiente para poder liderar o grupo e mantê-lo coeso face à disputa entre os

17 Clays Christensen …..

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

26

interesses dos vários atores. E tem de ter poder para manter os objetivos do

projeto num nível elevado face à tendência para encontrar o menor

denominador comum (o chamado medo da divergência), de modo a obter o

consenso entre parceiros que se digladiam.

«Centrality, legitimacy, access to resources and organizational back-up are the

fundamental institutional conditions for collaborative innovation managers (…).It

Since the management of collaborative innovation involves the governance of self-

governance it can be seen as a form of metagovernance. Metagovernance is an

attempt to influence interactive forms of governance without reverting to

traditional statist forms of top-down control and command (Torfing et al., 2012)18

A questão do poder e da legitimidade da coordenação é, contudo, crucial

considerando que uma das barreiras a esta colaboração vem precisamente do

facto de também ao nível politico a tendência ser muito mais para a competição

do que para a colaboração. A cada ministro, as suas competências (que só

podem ser alargadas não reduzidas), o seu orçamento e a sua agenda. Contribuir

financeiramente ou com outro tipo de recursos para um projeto de que não é

protagonista é sempre um problema. Daí que poder da coordenação, por soft

que seja nas formas como é exercitado exercício, tem de ser hard na sua origem

e legitimação, em suma deve ser claramente proveniente do centro do governo.

Se assim não for, é preciso ponderar se vale a pena tentar. Mesmo que as

vantagens do projeto sejam cuidadosamente distribuídas há sempre alguém que

perde algum poder relativamente à situação anterior (o poder de emitir um

cartão, o poder escrever a morada como já escrevia, o poder de gerir um serviço,

o poder exclusivo de atender o cidadão, o poder de colocar a sua marca na porta,

no portal ou no papel timbrado). Dificilmente o fará de forma voluntária.

Rapidamente convencerá a sua tutela política de que é mau para o serviço é mau

para o ministro.

(iv) Também pelas razões antes invocadas (motivar o grupo e reforçar a meta-

coordenação), é preciso estreitar a aproximação entre o nível político e o

administrativo nos projetos de inovação, para que a decisão de inovar e a sua

18 Cfr. The Innovation Journal: The Public Setor Innovation Journal, Volume 17(1), 2012, article 1. 9

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

27

operacionalização interajam com maior proximidade. Muitas vezes isso não

acontece, o que conduz a que o nível político perca o controlo da decisão que foi

tomada na fase da sua operacionalização. Das duas, uma, ou a ideia não podia

ser executada como tinha sido pensada e perdeu o seu sentido na fase da sua

adaptação; ou foi distorcida propositadamente para evitar os custos da

mudança, isto é, para que fique tudo na mesma. A aproximação entre os dois

níveis permite o conhecimento das dificuldades da operacionalização, um

controlo das necessárias adaptações sem perder o rumo da inovação.

O desenvolvimento do projeto do Cartão de Cidadão constitui um excelente

exemplo de todas as questões que acabei de referir e nunca teria visto a luz do

dia se elas não tivessem sido acauteladas. Ainda assim, não foi possível “vencer o

silo”, nem o medo da inovação no caso do número de eleitor, que tantos

problemas veio depois a causar devido ao processo ter ficado incompleto

(manteve-se o número, mas eliminou-se o cartão).

v) Por último, quer no caso da inovação colaborativa, quer em todas a

restantes inovações no setor público que a não dependem de colaboração, é

muito importante que a inovação seja abordada como um ciclo e não apenas

como uma boa ideia. O ciclo tem várias fases e deve ser politicamente

acompanhado até ao fim. Vai desde a seleção política das medidas de inovação

prioritárias, ao seu desenvolvimento no quadro legislativo existente ou num

novo quadro, passando pela experimentação, pela implementação

administrativa, onde é muito importante a comunicação da inovação aos seus

destinatários e a formação de todos os funcionários implicados no processo para

que a inovação não seja distorcida ou reabsorvida na rotina, terminando na

avaliação dos resultados.

b) Muitos dos cuidados a ter na colaboração interna dentro da administração são

comuns à colaboração com parceiros externos. Mas esta tem os seus riscos próprios,

que é preciso ter em conta. Incluo neste grupo de parceiros externos as universidades

e centros de investigação, mesmo quando sejam públicos, porque na verdade são

vistos como parceiros externos pela Administração.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

28

Neste caso, combinam-se diferentes formações, experiências e métodos de trabalho,

com as vantagens e os riscos inerentes.

Olhemos para a colaboração com as universidades. É possível combinar o desejo de

estabilidade dos funcionários com a curiosidade e desejo de experimentação dos

investigadores? Abordagens mais teóricas como a experiência prática? O desejo de

testar e refletir antes de decidir com a pressão política para uma decisão rápida? A

independência com o envolvimento político? O rigor com a flexibilidade operacional?

Não é simples, mas não é impossível, se ambas as partes provarem ter capacidade

para se adaptarem. Afinal se grande parte da investigação que é feita nas

universidades é financiada com dinheiro público, é bom que a AP seja também um dos

beneficiários diretos dela, ou seja, que a preocupação para que a investigação seja

apropriada pelas empresas se estenda também ao Estado.

Há contudo alguns aspetos a ter em conta para que a colaboração possa ser

frutuosa.

Qualquer tipo de parceiro externo deve ser envolvido no projeto desde a fase

inicial, a do desenho do projeto, trabalhando lado a lado com decisores políticos,

dirigentes e funcionários administrativos. A parceria deve acompanhar todo o ciclo da

inovação, incluindo a sua avaliação final. Deve ser mesmo uma parceria e não, como é

corrente, uma contratação externa de ideias ou do seu desenvolvimento. Para grandes

projetos inovadores, e salvo situações pontuais, essa contratação corre mal. Falta aos

consultores o conhecimento de pormenor de como funciona administração. Projetos

perfeitos acabam abandonados por que não colam coma realidade.

Além disso, tem de haver outras regras internas de funcionamento destas redes,

que vão desde a independência dos parceiros à sua discrição quando requerida (para

que possam ter acesso à informação relevante e participar de pleno direito em todas

as reuniões de trabalho) e, não menos importante, a capacidade de aceitação das

prioridades políticas. No caso dos centros de investigação, isto torna o trabalho

diferente do trabalho académico típico, mas, visto do outro lado, também será

diferente o modo como o setor público desenvolve projetos de inovação, tantas vezes

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

29

uma atividade desprovida de conhecimento que a suporte, o que a torna mais

arriscada do que já seria pelas suas características de atividade inovadora.

Para controlar os riscos da inovação e consolidar o hábito da inovação colaborativa,

inclusive com parceiros externos, é muito importante criar espaços permanentes de

incubação, como existem para o setor privado (em geral financiados com investimento

público), «a place where the innovation process is a professional discipline and not a

rare, singular event, and where people can meet, interact, experiment, ideate, and

prototype new solutions» (Bason, 2012). Observatórios, laboratórios, living labs podem

dar mais estabilidade ao processo de inovação no setor público e ajudar a evitar alguns

riscos.

Em geral, este tipo de organizações agregam dirigentes e funcionários públicos e

parceiros externos (outside-in perspective), e não se limitam a refletir. Permitem

contribuir para um “ecossistema” favorável à inovação (Bsom, 2010:22). Desenvolvem e

ensaiam soluções. Permitem analisar tendências, preparar protótipos, experimentar, ou

seja, testar inovações através de provas de conceito, acompanhar projetos-piloto,

medir resultados; reunir boas práticas e facilitar a sua replicação; e criar rede, empatia,

confiança mútua e conhecimento conjunto entre diferentes tipos de atores relevantes

para a inovação. Facilitam, ainda, a possibilidade de serem dadas respostas mais

rápidas quando a inovação aparece como uma prioridade política. Na verdade como

refere Bason (2012: 4) as organizações públicas gastam 80% as suas energias a

perceber o passado e a gerir o presente; fica-lhes pouco tempo para explorar o futuro

, ou seja, os modelos de melhoras as suas politicas e os seus serviços. Além disso,

trata-se de fóruns de reflexão independentes dos ciclos políticos, o que facilita a

colaboração entre diferentes parceiros da administração local e central, e com outros

parceiros. Se a inovação não for institucionalizada, assentando em redes deste tipo

mais ou menos informais, o ciclo inovatório pode não chegar ao fim, por mudança ou

abandono da tutela política antes que isso aconteça.

Existem atualmente vários exemplos deste tipo de experiências, umas mais

públicas, outras funcionando como ONG, tais como o Mindlab, na Dinamarca, a

27ième Région em França, o NESTA e o Social Innovation Lab Kent (SILK) , no Reino

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

30

Unido, o LEF Future Centre na Holanda ou New Urban Mechanism, em Boston-USA..

Agregam competências variadas e estranhas ao costumamos ver nos projetos de

modernização do setor público: designers, arquitetos, antropólogos, entre outras

competências mais comuns.

Contribuem igualmente para o mesmo efeito as redes de conhecimento e os fóruns

de discussão que horizontalizam a troca de experiências e de boas práticas entre

funcionários e/ou entre estes e outros parceiros (o exemplo da Rede Comum de

Conhecimento - AMA, prémio da ONU em 2011, e da rede TIC para incentivar a

partilha de investimentos e de meios neste âmbito).

4.8. A inovação é um processo contínuo?

Poderemos descansar com um grande projeto de reforma recheado de inovações

mesmo que ele seja muito bem sucedido?

Eis uma perigosa ilusão. A inovação é um processo contínuo. Os modelos

organizacionais desatualizam-se, os processos envelhecem, os serviços também.

Mesmo os serviços que são novos hoje precisam de ser atualizados amanhã e sempre

mantidos, refrescados em versões 2.0, 3.0.

Além disso, os utilizadores dos serviços, nós, os cidadãos, tornamo-nos mais

exigentes. Já não ficamos satisfeitos com um alvará que nos seja entregue na hora, no

momento do pedido. Ousamos até perguntar: «Por que raio eu tenho de entregar uma

cópia do alvará de utilização do edifício para criar uma padaria à própria Câmara onde

esse alvará foi emitido?»; «Se posso tratar desta questão na loja do cidadão porque

não posso pagar também e fazer mais isto ou mais aquilo? Tudo isto é Estado não é,

vejam lá se organizam…!» Quantas vezes suspirámos no nosso gabinete perante

reclamações desta natureza. «Pobres e mal-agradecidos, que ainda ontem esperavam

mais de um mês para criar uma empresa e hoje reclamam porque a sua empresa

demorou 75 minutos a criar, mais de uma hora portanto». Mas lá no fundo sabíamos

bem que eles tinham razão. A simplificação feita depressa se torna natural e

contamina as expetativas sobre os serviços ao lado, evidenciando a sua complicação.

Estado Simples (versão de trabalho) - MMLM 2013

31

Acresce que novas maneiras de fazer ficam à nossa disposição, com o uso de

tecnologias mais sofisticadas, o smart phone por exemplo. Por que devo usar password

se o meu dedo serve para eu me identificar eletronicamente?

Tal como as empresas têm de estar atentas à inovação como condição da sua

sobrevivência, o Estado tem de incorporar permanentemente uma cultura de inovação

como condição da sua sustentabilidade, relevância e legitimidade.

Contudo, para ter uma Administração inovadora é preciso, antes de mais, ter

dentro dela pessoas inovadoras. Pessoas inovadoras são dirigentes que não têm

aversão ao risco nem são penalizados por tentar mudar. Pessoas inovadoras são

funcionários cada vez mais qualificados, que a organização procura conservar, e de

cuja formação cuida com continuidade, de preferência formação associada aos

processos de mudança da organização, como já referimos antes, mas também

formação associada ao contexto da sua atividade, às expetativas dos seus utentes, às

alterações nos instrumentos de resposta; pessoas inovadoras são aquelas cuja

iniciativa é apreciada, cujo mérito é distinguido e premiado. A inovação na gestão dos

recursos humanos é, portanto, uma componente importante para que inovação possa

ser interiorizada dentro do setor público. Pessoas inovadoras são, por último, aquelas

que se sentem como parte da organização, a qual é publicamente valorizada, e não

aquelas que se sentem como uma espécie de subproduto dispensável a quem a

sociedade paga o que não deve.

Conclusão

Num artigo que escrevi em 2005, pouco depois de ter assumido funções no

Governo, chamado «As pequenas-grande reformas na AP» registei a seguinte frase

com que hoje gostava de terminar

«Fazer com que a Administração Pública não seja tão frequentemente sinónimo de

dor de cabeça para os cidadãos, nem uma barreira dissuasora para as empresas,

levando-as a ter vontade de desistir mesmo antes de terem começado, não é uma

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tarefa fácil, mas também não deve ser considerada uma missão impossível.

Recusando a receita falhada de “grandes promessas, poucas mudanças” e a ideia de

que a Administração pode fechar-se hoje aqui e abrir amanhã num outro lado,

elegante e totalmente remodelada, é possível concretizar um conjunto de iniciativas

de modernização indutoras de uma verdadeira cultura de mudança. Essas iniciativas

devem contribuir para aumentar a confiança dos cidadãos e das empresas na sua

Administração e estimular a iniciativa, autoestima e responsabilidade dos agentes

administrativos pelo serviço que prestam. E devem também ajudar a melhorar os

indicadores através dos quais é avaliada a nossa competitividade no contexto

internacional. É um caminho longo e multidimensional que vai dos aspetos de ordem

cultural, de atitude, de definição de conceitos de prestação de serviços até aos

aspetos organizacionais que incorporam a dimensão “básica” da avaliação, de prémio

e de penalização.» (MMLM, Serviço público: que futuro?, Almedina).

Deixemos de falar da reforma do Estado como um grande projeto e um maior guião

e tratemos de as fazer pontualmente, cirurgicamente, onde as reformas são mesmo

necessárias e possíveis, onde o custo da mudança compensa o benefício. Onde a

perturbação mesmo profunda é justificada pelo resultado. Aproveitando as

organizações e até as leis que temos, sempre que elas nos bastam para gerir a

mudança. Ou alterando-as radicalmente com coragem e determinação quando já

perderam validade. Mobilizando as pessoas, os funcionários, mas não esquecendo que

o nosso foco são os cidadãos, os destinatários, os utentes dos serviços, os que pagam

com os seus impostos o funcionamento da Administração. Não tenhamos medo. Não é

o excesso de mudança que impede a mudança. É a falta da sua consolidação.

De todo, não é possível prometer inovar o Estado todo, nem o devemos fazer. O

Estado simples não é uma promessa holística contida num belo relatório produzido por

um comitê de sábios. A construção de um Estado simples é um processo contínuo, que

por vezes progride em saltos (inovação radical) e outras em pequeníssimos passos. O

Estado simples mais do que tudo é uma questão de coragem e de cultura, do Estado e

dos cidadãos.

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Termino por isso com duas frases que roubei no MIndLab, uma incubadora

dinamarquesa de projetos de inovação, e que resumem bem essa mudança cultural.

«New Citizen Thinking? Government is part of the solution, not the problem. New Government Thinking? Citizens are part of the solution, not the problem.»

BIBLIOGRAFIA

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