O Estado laico

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Maio de 2012 6 Brasil Presbiteriano BP LEGAL ecentemente foi noti- ciado que o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão unâni- me, acatou pedido sobre a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos pré- dios da Justiça gaúcha. Em São Bernardo, no ABC paulista, a Associação Presbiteriana de Assistência Social (ASPAS), que dirige uma creche custeada por recursos públicos, foi fisca- lizada por uma representan- te da Secretaria Municipal da Educação, que ponti- ficou: “Vocês não podem orar com as crianças; se quiserem pregar sua reli- gião, façam-na com seus próprios recursos”. Ambos os casos apontam para a questão atualíssima da laicidade estatal e reve- lam o desafio de sua com- preensão, limites e críticas, diante de formulações que têm sido feitas na tentati- va de subverter o princípio da separação institucional entre Igreja e Estado. O Brasil se tornou um Estado laico pelo Decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890. Atualmente, o princípio da laicidade está previsto no artigo 19, I da Constituição Federal de 1988, segundo o qual é vedado a todas as entidades da federação “estabelecer cultos religiosos ou sub- vencioná-los, embaraçar- lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de inte- resse público”. Dizem os teóricos do Estado que a laicidade opera em duas direções. Por um lado, ela salva- guarda as diversas confis- sões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados, a forma de cultuá-los, a sua organização institucional, os seus processos de toma- da de decisões, a forma e o critério de seleção dos seus sacerdotes e membros. Trata-se aqui de garantia institucional de liberdade religiosa individual. Por outro lado, alegam que a laicidade protege o Estado de influências inde- vidas provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e democráti- co, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religio- sa. Entende a doutrina jurí- dica que a laicidade se con- verte em instrumento indis- pensável para possibilitar o tratamento de todos com o mesmo respeito e con- sideração, coibindo-se o desfavorecimento daqueles que não abraçam o credo privilegiado. Protege-se em última análise o direito fun- damental da igualdade. Finalmente, afirmam os juristas que a laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva refratária à religiosidade. Logo, Estado laico não sig- nifica Estado antirreligioso. Na verdade, ela se traduzi- ria em respeito por todos os credos e inclusive pela ausência deles. O princí- pio da laicidade prega a neutralidade do Estado em relação às diferentes con- cepções religiosas presen- tes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença. O que há de errado com o princípio da laicidade? Em primeiro lugar, não há como negar que liber- dade religiosa e igualdade são direitos fundamentais, caros e indispensáveis à convivência social pací- fica. Contudo os casos mencionados demonstram que o mesmo fundamento que determinou a retirada dos crucifixos das reparti- ções públicas gaúchas foi também usado para tentar impedir que ensinássemos crianças de uma creche a orar, segundo preceitos bíblico-reformados. Portanto, o mesmo prin- cípio que protege a igreja sob o epíteto da liberdade religiosa, é o que a coíbe sob o manto da igualdade. Há, pois, dificuldade em compreender a laicidade como “neutralidade reli- giosa”, pois dessa forma estar-se-ia instituindo a religião oficial do agnosti- cismo sob a pecha estatal. A laicidade estatal guar- da um pressuposto fluído, que submete a religião a uma ditadura do pluralis- mo e que subverte a ordem natural da criatura em rela- ção ao seu Criador. Bem disse Rui Barbosa que “a religião precede o Estado”. Melhor seria se dissesse que o Criador de todas as coisas é quem admite a for- mulação estatal a qual deri- va do próprio Deus. Em segundo lugar, a lai- cidade estatal se desenvol- veu a partir da negação da doutrina católico-romano que defendia um sistema hierárquico de autoridade plenamente estabelecido na igreja. Ocorre que dessa negação, surgiu a mera inversão do Estado fazendo a separação do poder da igreja e arrogando a prer- rogativa de dispor sobre a religião. Finalmente, o princípio da laicidade estatal se man- tém distante da teologia bíblico-reformada, segun- do a qual, ainda que os dois domínios devessem man- ter-se separados, o governo civil, nem por isso deixaria de ser “...o mais sagrado e de longe o mais honroso em todas as etapas da vida morta;... pois [os gover- nantes] têm uma comissão de Deus, são investidos de autoridade divina para agir” (Calvino, Institutas, IV.20.1-10). Assim, a separação entre Estado e Igreja está no sim- ples fato de que ao primeiro não seria dada autoridade para decidir questões dou- trinárias ou exercer jurisdi- ção eclesiástica. Por outro lado, espera-se que cristãos – sacerdotes universais – dediquem-se de modo reso- luto e sincero ao serviço público, movidos por pro- funda gratidão e devoção a Deus, que a todos dirige. Que os equívocos do princípio da laicidade estatal não nos impeçam de seguir o caminho do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo em toda a sua plenitude. Estado Laico Ricardo Barbosa R “Que os equívocos do princípio da laicidade estatal não nos impeçam de seguir o caminho do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo em toda a sua plenitude” Ricardo de Abreu Barbosa, é advogado e presbítero da 1ª IP de São Bernardo do Campo, SP

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Maio de 20126BrasilPresbiteriano

BP LEGAL

ecentemente foi noti-ciado que o Conselho

da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão unâni-me, acatou pedido sobre a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos pré-dios da Justiça gaúcha.

Em São Bernardo, no ABC paulista, a Associação Presbiteriana de Assistência Social (ASPAS), que dirige uma creche custeada por recursos públicos, foi fisca-lizada por uma representan-te da Secretaria Municipal da Educação, que ponti-ficou: “Vocês não podem orar com as crianças; se quiserem pregar sua reli-gião, façam-na com seus próprios recursos”.

Ambos os casos apontam para a questão atualíssima da laicidade estatal e reve-lam o desafio de sua com-preensão, limites e críticas, diante de formulações que têm sido feitas na tentati-va de subverter o princípio da separação institucional entre Igreja e Estado.

O Brasil se tornou um Estado laico pelo Decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890. Atualmente, o princípio da laicidade está previsto no artigo 19, I da Constituição Federal de 1988, segundo o qual é vedado a todas as entidades da federação “estabelecer cultos religiosos ou sub-

vencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de inte-resse público”.

Dizem os teóricos do Estado que a laicidade opera em duas direções. Por um lado, ela salva-guarda as diversas confis-sões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados, a forma de cultuá-los, a sua organização institucional, os seus processos de toma-da de decisões, a forma e o critério de seleção dos seus sacerdotes e membros. Trata-se aqui de garantia institucional de liberdade religiosa individual.

Por outro lado, alegam que a laicidade protege o Estado de influências inde-vidas provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e democráti-co, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religio-sa. Entende a doutrina jurí-dica que a laicidade se con-verte em instrumento indis-pensável para possibilitar o tratamento de todos com o mesmo respeito e con-sideração, coibindo-se o desfavorecimento daqueles que não abraçam o credo

privilegiado. Protege-se em última análise o direito fun-damental da igualdade.

Finalmente, afirmam os juristas que a laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva refratária à religiosidade. Logo, Estado laico não sig-nifica Estado antirreligioso. Na verdade, ela se traduzi-ria em respeito por todos os credos e inclusive pela ausência deles. O princí-

pio da laicidade prega a neutralidade do Estado em relação às diferentes con-cepções religiosas presen-tes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença.

O que há de errado com o princípio da laicidade?

Em primeiro lugar, não há como negar que liber-dade religiosa e igualdade são direitos fundamentais,

caros e indispensáveis à convivência social pací-fica. Contudo os casos mencionados demonstram que o mesmo fundamento que determinou a retirada dos crucifixos das reparti-ções públicas gaúchas foi também usado para tentar impedir que ensinássemos crianças de uma creche a orar, segundo preceitos bíblico-reformados.

Portanto, o mesmo prin-cípio que protege a igreja sob o epíteto da liberdade religiosa, é o que a coíbe sob o manto da igualdade. Há, pois, dificuldade em compreender a laicidade como “neutralidade reli-giosa”, pois dessa forma estar-se-ia instituindo a religião oficial do agnosti-cismo sob a pecha estatal.

A laicidade estatal guar-da um pressuposto fluído, que submete a religião a uma ditadura do pluralis-mo e que subverte a ordem natural da criatura em rela-ção ao seu Criador. Bem disse Rui Barbosa que “a religião precede o Estado”. Melhor seria se dissesse que o Criador de todas as coisas é quem admite a for-mulação estatal a qual deri-va do próprio Deus.

Em segundo lugar, a lai-cidade estatal se desenvol-veu a partir da negação da doutrina católico-romano que defendia um sistema hierárquico de autoridade plenamente estabelecido na igreja. Ocorre que dessa

negação, surgiu a mera inversão do Estado fazendo a separação do poder da igreja e arrogando a prer-rogativa de dispor sobre a religião.

Finalmente, o princípio da laicidade estatal se man-tém distante da teologia bíblico-reformada, segun-do a qual, ainda que os dois domínios devessem man-ter-se separados, o governo civil, nem por isso deixaria de ser “...o mais sagrado e de longe o mais honroso em todas as etapas da vida morta;... pois [os gover-nantes] têm uma comissão de Deus, são investidos de autoridade divina para agir” (Calvino, Institutas, IV.20.1-10).

Assim, a separação entre Estado e Igreja está no sim-ples fato de que ao primeiro não seria dada autoridade para decidir questões dou-trinárias ou exercer jurisdi-ção eclesiástica. Por outro lado, espera-se que cristãos – sacerdotes universais – dediquem-se de modo reso-luto e sincero ao serviço público, movidos por pro-funda gratidão e devoção a Deus, que a todos dirige.

Que os equívocos do princípio da laicidade estatal não nos impeçam de seguir o caminho do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo em toda a sua plenitude.

Estado LaicoRicardo Barbosa

R

“Que os equívocos do princípio da

laicidade estatal não nos impeçam

de seguir o caminho do evangelho do

nosso Senhor Jesus Cristo em toda a sua plenitude”

Ricardo de Abreu Barbosa, é advogado e presbítero da 1ª IP de

São Bernardo do Campo, SP