O ESSENCIAL SOBRE - Imprensa Nacional

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O E S S E N C I A L S O B R E

Mário de Sá‑Carneiro

O E S S E N C I A L S O B R E

Mário de Sá‑CarneiroClara Rocha2.ª edição revista e aumentada

Índice

7 «Quase»

19 «Paris da minha ternura»

31 As correntes literárias

47 O fantástico

59 A excentricidade e a loucura

67 «Fim»

75 «Daqui a vinte anos…»

85 Cronologia

91 Bibliografia

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«Quase»

Um motivo obsidiante na obra de Mário deSá-Carneiroéopróprioeu,queelecontemplanaságuas da escrita: o seu espelho e a sua vertigem.Os pronomes «eu», «me», «mim», bem como osverbos na primeira pessoa do singular, aparecemvezes sem conta na sua poesia: «Lord que eu fuide Escócias doutra vida»1...

MasSá-Carneironãogostadasuaimagem.«Pobremeninoideal»�desdecedodesajustadoeinaptoparaavida,nãopodeenamorar-sedesipróprio,comoNarcisonaversãoclássicadomito.Énaartequeprojetaoseusonhodebeleza,osonhodechegar«além»dequefalanum dos seus mais conhecidos poemas. Essa ânsia deplenitudeestética,nostalgicamente vislumbrada desdeos primeiros versos («Vêm-me saudades de ter sido

1 Mário de Sá-Carneiro, Poemas Completos, ed. de FernandoCabralMartins,Lisboa,Assírio&Alvim,1996,p.1�1.

� Id.,ibid.,p.39.

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Deus...»3),defineumpercursopoéticoemqueumeusebuscaebuscaasuaobra.Numartigoseminal4,DavidMourão-Ferreirainterpretouessaobraàluzdocom-plexodeÍcaro,noseuduplomovimentodeascensãoequeda.ComoofilhodeDédalo,queseelevouatéjuntodoSolesedespenhoudepoisnaságuasdomarEgeu,MáriodeSá-Carneirotentou«subiralém»5epagouasuaousadiacomaquedanoabismo.Asimagensdovooascensionaledoaniquilamentoconjugam-senosversosde«Quasi»,comosíntesedeumdramapessoalvividocomimplacávellucidez:

Um pouco mais de sol — eu era brasa,Um pouco mais de azul — eu era além.Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...Se ao menos eu permanecesse aquém...[...]6

Ao longo do poema, Ícaro/Narciso multiplica asimagens da frustração para dizer o confronto entreo seu sonho de «além-perfeição» e a amarga impos-sibilidade de o realizar. O mesmo acontece noutrostextos dos volumes Dispersão e Indícios de Oiro.Asuadordenãoterchegado«além»edenãoterper-manecido «aquém» traduz-se num conjunto variadodemetáforasqueprocedemdeummesmoparadigmasemântico—odafalta,dafalhaoudaimpotência.«Cas-telosdesmantelados»,«leõesaladossemjuba»,«esfinge

3 Ibid.,p.�9.4 DavidMourão-Ferreira,«ÍcaroeDédalo:MáriodeSá-Carnei-

ro e Fernando Pessoa», in Hospital das Letras, Lisboa, INCM,�.ªed.,1981,pp.131-138.

5 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.�7.6 Id.,ibid.,p.4�.

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semmistério»,«temploprestesaruirsemdeus»,«asaqueseelançoumasnãovoou»,«templosaondenuncapus um altar», «rios que perdi sem os levar ao mar»,«ogivasparaosol—vejo-ascerradas»,«mãosdeherói,semfé,acobardadas»,«heróidenovela/Queautorne-nhumempregou...»,«trapézioescangalhado»,«mastrosquebrados»,«carrousselpartido»sãoalgunsexemplosdessas metáforas. Todas elas obedecem a uma formafixa, composta por um nome seguido de um atributoque lhe retira uma propriedade essencial: «leões [...]sem juba», «asa que [...] não voou», «ogivas para o sol[...]cerradas»...Noutrasocasiões,opoetaexprimeafrus-traçãoatravésdeimagensesímbolosdailusão,daquiloquesedesfazemnada:«bruma»,«espuma»,«nuvens»,«quimera», «cinzas», «castelos em Espanha». Algunsverbos são igualmente significativos: «desfazer-se»,«desmantelar», «diluir-se», «resvalar», «falhar», etc.

Àsvezes,asubidatemaformaeomovimentodo rodopio:

Volteiam dentro de mim,Em rodopio, em novelos,Milagres, uivos, castelos,Forcas de luz, pesadelos,Altas torres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...Mais longe coam-me sóis;Há promontórios, faróis,Upam-se estátuas d’heróis,Ondeiam lanças e mastros.[…]7

7 Ibid.,p.48.

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Mas Ícaro quer chegar ao Sol e a cera das asasderrete-se. O regresso à realidade torna-se entãoainda mais doloroso:

Meu alvoroço d’oiro e luaTinha por fim que transbordar...— Caiu-me a Alma ao meio da rua,E não a posso ir apanhar!8

Toda a poesia de Mário de Sá-Carneiro se joganeste confronto entre o excesso narcísico e odesencanto de um destino por cumprir. A essacisão do eu chama o poeta dispersão, num poemade 1913 cujo título é também o do seu primeirovolume de versos:

Dispersão

Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto,E hoje, quando me sinto,É com saudades de mim.

Passei pela minha vidaUm astro doido a sonhar.Na ânsia de ultrapassar,Nem dei pela minha vida... [...]9

OautordeDispersãoformulaassim,desdemui-tocedo,aquestãodafragmentaçãodoeu,queFer-nando Pessoa levou até às últimas consequênciasaoconceber,deformamuitomaisintelectualizada,

8 Ibid.,11�.9 Ibid.,p.36.

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aquilo a que chamou o seu «drama em gente».Comacriaçãodosheterónimos,Pessoaconstruiuuma complexa estrutura literária que radica naconsciência moderna do ser dividido e constituia experiência-limite dessa consciência dentrodo nosso Modernismo. Alguns estudiosos têmsugerido a possível influência de «Dispersão» naconceção da heteronímia pessoana10, lembrandoquefoipara«fazerumapartidaaoSá-Carneiro»,como escreve na carta a Casais Monteiro sobrea génese dos heterónimos, que Pessoa inventouAlberto Caeiro, «um poeta bucólico de espéciecomplicada»11 que logo se tornou o seu «mes-tre». Como tem sido sublinhado, a heteronímiapessoana visa não apenas a produção textualmas também a sua interpretação. Para além depersonalidades literárias diferenciadas e combiografiaspróprias,osheterónimossãoleitoresecríticosunsdosoutros,numpermanentediálogoquerealçaaspetoscentraisdapoéticadoautor:ofingimento,adespersonalização(«Sêpluralcomoo universo», escreveu o poeta numa página nãodatada) e o confronto entre diferentes atitudesestéticas.

UmoutroamigopróximodePessoa,oaçorianoArmandoCôrtes-Rodrigues,experimentoutambémo desdobramento em personae, ao assinar como nome Violante de Cysneiros um conjunto de

10 Cf. António Quadros, Fernando Pessoa — Vida, Personalidade e Génio,Lisboa,PublicaçõesDomQuixote,�.ªed.,1984.

11 «CartainéditadeFernandoPessoa»,Presença,n.º49,junhode1937,p.3.

1�

«Poemas» publicados no n.º � da revista Orpheu.Um desses poemas é dedicado ao próprio Côrtes--Rodrigues, num jogo heteronímico em sintoniacom o modelo pessoano.

A dispersão tem um sentido muito próprio naobradeMáriodeSá-Carneiro:éadilataçãodoeu,divididoentreosonhoearealidade,entreaânsiade além e a consciência da queda. Com data defevereiro de 1914 e publicada no n.º 1 de Orpheu,a quadra com o título «7» é uma extraordináriasíntese desse desdobramento:

Eu não sou eu nem sou o outro,Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédioQue vai de mim para o Outro.1�

O conto «Eu-Próprio o Outro» (Céu em Fogo),escritoalgunsmesesantesdestepoema,explorajáessadualidade,comafiguradoOutrofuncionandocomo projeção do eu e, simultaneamente, objetodo seu desejo. Redigido na forma fragmentária dodiário,encenaarelaçãoentreosujeito-narradoreoseumisteriosoduplo,umrussode«rostoesguio»ecabelosanelados,«todointensidade,todofogo»13,«belo como o ouro e grande como a sombra»14.Arepresentaçãodeumalter ego, idealizadoepro-fundamenteentranhadonoeu,capazdefascinareaomesmotempodesuscitaroódio,geraooxímoro

1� MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.80.13 Id.,Céu em Fogo,ed.deFernandoCabralMartins,Lisboa,Assí-

rio&Alvim,1999,p.151.14 Ibid.,p.15�.

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do título «Eu-Próprio o Outro», que tem sido re-lacionado por vários críticos com o verso «Eu nãosoueunemsouooutro».EscreveFernandoCabralMartins a esse respeito:

Ooxímoromantém-se,apartirdeDisper-são, a figura por excelência do Eu. O conto--poema Eu-Próprio o Outro tem por títuloum oxímoro, que Régio há-de aproveitar,tornando-o emblemático, na sua peça sobreSá-Carneiro, Mário ou Eu-Próprio — o Outro(1957).15

Na poesia como nas novelas, o desenvolvi-mento do tema do outro traduz uma noção deincompletude, tanto artística como existencial,que acompanha todo o percurso de Mário de Sá--Carneiro. Diz o poeta num dos seus mais belosversos:«—Aiadordeser-quasi,dorsemfim...»16Daascensãoàqueda,oseumal-estartomaváriasconfigurações:ahiperexcitação,afebre,odelírio,anáusea,otédio,ocansaço,aautopiedade,avon-tade de esquecimento. Em «Serradura», o autorencena com irónica complacência o desfazer deum sonho:

A minha vida sentou-seE não há quem a levante,Que desde o Poente ao LevanteA minha vida fartou-se.

15 FernandoCabralMartins,O Modernismo em Mário de Sá-Car-neiro,Lisboa,Estampa,1994,p.�48.

16 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.4�.

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E ei-la, a mona, lá está,Estendida, a perna traçada,No infindável sofáDa minha Alma estofada.

Pois é assim: a minh’AlmaOutrora a sonhar de Rússias,Espapaçou-se de calma,E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,Lê o ‘Matin’ de castigo,E não há nenhum remoqueQue a regresse ao Oiro antigo! [...]17

Aúltimaquadrarematacomumanotasarcás-tica a tensão íntima do poema:

Vou deixá-la — decidido —No lavabo dum Café,Como um anel esquecido.É um fim mais raffiné.18

Anostalgiadeumpassadoparasempreperdidovoltaasurgirnopoema«OLord»,ondeosujeitopoéti-cosedesdobraemváriostemposepessoasgramaticais:

Lord que eu fui de Escócias doutra vidaHoje arrasta por esta a sua decadência,Sem brilho e equipagens.Milord reduzido a viver de imagens,Pára às montras de jóias de opulênciaNum desejo brumoso — em dúvida iludida...

17 Id.,ibid.,p.118.18 Ibid.,p.1�0.

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(— Por isso a minha raiva mal contida,— Por isso a minha eterna impaciência.) [...]19

O sono, contraponto da excitação e antevisãoda morte, é por vezes desejado como solução bal-sâmica.Veja-seopoema«VontadedeDormir»,demaio de 1913 («Quero dormir... ancorar...»�0), ouesta estrofe de «Além-Tédio»:

[...] Como eu quisera, enfim d’alma esquecida,Dormir em paz num leito d’hospital...Cansei dentro de mim, cansei a vidaDe tanto a divagar em luz irreal. [...]�1

Na novela A Confissão de Lúcio, Mário de Sá--Carneiro projeta na personagem de Ricardo deLoureiroomesmodesejodepacificação.Àsaídadoteatro,conversandocomLúcionumaruadeParis,o artista explica assim o seu desassossego:

— Meu caro Lúcio, vai ficar muito ad-mirado, mas garanto-lhe que não foi tempoperdido o que passei ouvindo essa revistachocha. Achei a razão fundamental do meusofrimento. Você recorda-se duma capoeiradegalinhasqueapareceuemcena?Aspobresaves queriam dormir. Metiam os bicos debai-xo das asas, mas logo acordavam assustadaspelos jorros dos projectores que iluminavamas «estrelas», pelos saltos do compadre... Pois como esses pobres bichos, também a minha alma

19 Ibid.,p.1�1.�0 Ibid.,p.35.�1 Ibid.,p.46.

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anda estremunhada—descobriemfrentedeles.Sim, a minha alma quer dormir e, minuto aminuto, a vêm despertar jorros de luz, es-trepitosas vozearias: grandes ânsias, ideiasabrasadas, tumultos de aspirações — áureossonhos, cinzentas realidades...��

E o poema «Caranguejola», datado de no-vembro de 1915 e incluído em Indícios de Oiro,retoma no limite da expressividade lírica umaatitude desistente e um desejo de anulaçãoda consciência já antes formulado por CamiloPessanha:

— Ah, que me metam entre cobertores,E não me façam mais nada...Que a porta do meu quarto fique para

[sempre fechada,Que não se abra mesmo para ti se tu lá

[fores.

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafe-[tado...

Nenhumlivro,nenhumlivroàcabeceira—Façam apenas com que eu tenha sempre

[a meu lado,Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.[...]Quantoati,meuamor,podesviràsquintas-

[-feiras,Se quiseres ser gentil, perguntar como

[eu estou.

�� Id.,A Confissão de Lúcio,ed.deFernandoCabralMartins,Lis-boa,Assírio&Alvim,�.ªed.,�004,pp.41-4�.

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Agora no meu quarto é que tu não entras,[mesmo com as melhores maneiras:

Nadaafazer,minharica.Omeninodorme.[Tudo o mais acabou.�3

Noutrostextos,apazdoesquecimentoésuge-rida pela referência às drogas: o éter, a morfina,o absinto, os «paraísos artificiais» de que falavaBaudelaire num famoso ensaio de 1860. Reais ouficcionadas,elassurgememvárioscontosepoemasde Sá-Carneiro, quase sempre associadas à figurado artista e à sua «singularíssima psicologia»(comoopoetagostadedizerdassuaspersonagensnovelescas). No poema «Cinco Horas», lá está o«sifão verde», ao lado da «fosforeira» e do «copocheio/Dumabebidaligeira»,acomporocenáriodamesa de café sobre a qual Sá-Carneiro escreve osseus versos — «Com estranheza dos criados/Queme olham sem perceber...»�4.

Mas,fartocomoestáde«esperaravida»,Nar-cisoétentadoaacabardevezcomoreflexodesi,cujavisãonãoconseguesuportarpormaistempo.Aimagemdoabismodesenha-se-lhediantedosolhos,radicaleapelativa.Nopoema«ORecreio»,elacon-substancia-senacorda«esgarçada»dobaloiçoemque brinca perigosamente um «menino de bibe»:

Na minh’Alma há um balouçoQue está sempre a balouçar —Balouço à beira dum poço,Bem difícil de montar...

�3 Id.,Poemas Completos,pp.13�-133.�4 Ibid.,p.115.

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— E um menino de bibeSobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia,(E já vai estando esgarçada),Era uma vez a folia:Morre a criança afogada...

— Cá por mim não mudo a cordaSeria grande estopada... [...]�5

Nos«ÚltimosPoemas»,escritosemParisentrejaneiro e fevereiro de 1916, já não há lugar paraa ironia, nem para a complacência, nem para acompaixão. A autodepreciação sobe de tom e odisfemismo toma de assalto o discurso. O poema«AqueleOutro»dá-nosumautorretratoemquesemultiplicam os epítetos mais violentos: «o dúbiomascarado»,«omentiroso»,«oRei-luapostiço»,«ocobarderigoroso»,«EmvezdePajem,bobopresun-çoso»,«SuaAlmadeneve,ascodumvómito»,«Umlacaioinvertidoepressuroso»,«OsemnervosnemÂnsia — o papa-açorda», «O raimoso, ocorrido,odesleal—»,«ObalofoarrotandoImpérioastral»,«O mago sem condão — o Esfinge gorda...». EstaimpressionantesériedeimagenscompõeumciclofinalnaobrapoéticadeSá-Carneiro:oinsultoéaexpressãodefinitivadaangústiaedapulverizaçãodo eu a caminho do suicídio.

�5 Ibid.,p.1��.

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«Paris da minha ternura»

Concluído o liceu em 1911, e depois duma ex-periência falhada de passagem pela UniversidadedeCoimbra,MáriodeSá-CarneiropartiuparaParisem outubro de 191�, a pretexto de frequentar ocurso de Direito na Sorbonne. Já antes estiveracom o pai na capital francesa, em duas viagensde férias realizadas em 1904 e 1907, de que dãocontaascartasepostaisenviadosaoavôJoséPaulinode Sá Carneiro. Instalado em Paris, primeiro noHotel Richmond e logo depois no Grand HotelduGlobe(esteúltimonaruedesÉcoles),mantevecontactocomalgunsartistaseeditoresderevistas,frequentouosteatros,osmusic hallseasexposições,einiciouumarelaçãoepistolarcomFernandoPessoa,que conhecera poucos meses antes em Lisboa.Nas suas cartas, escritas de 16 de outubro de 191�a18deabrilde1916,foidandonotíciasdoseuquo-tidianonagrandecidade,dosseusrelacionamentos,dosseusentusiasmosedassuasangústias,dosseusprojetos,dassuasproduçõesliterárias,doescândalo

�0

causadopelosmovimentosdevanguardaeuropeus.Temsidolargamentedestacadaaimportânciadesseepistolário, composto por mais de duas centenasde cartas e bilhetes-postais, e objeto de sucessivasedições a partir de 1958. Defacto, não só «permitetraçaromaisfielretratoliteráriodeSá-Carneiro»�6,nodizerdeManuelaParreiradaSilva,comoprojetauma luz única sobre a génese e a evolução da obrade Sá-Carneiro, a organização da revista Orpheue a cumplicidade artística que se fortaleceu entreos dois poetas ao longo desses quatro anos. Acorrespondência com Pessoa foi determinante nafixação da obra de Mário de Sá-Carneiro, já queo autor do «Quasi» submeteu constantemente àavaliação do amigo as suas ideias literárias, pedin-do uma crítica rigorosa, um conselho estilísticoou uma revisão dos seus poemas. Pouco antes dosuicídio,elegeu-ocomodepositáriodoseucadernode versos e responsável pela edição da sua obrainédita. Mas se é verdade que das cartas ressaltauma imagem de dependência em relação a Pessoa,não devemos esquecer que também Sá-Carneiroformulou as suas apreciações sobre os poemas doamigo,oexortouapublicarasuapoesiaeprocuroutransmitir-lheaenergiacriativadodebateemtornodas grandes vanguardas artísticas de Novecentos.

AntesedepoisdeMáriodeSá-Carneiro,foramváriososartistasportuguesesqueprocuraramemParis a efervescência da vida cosmopolita e novos

�6 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, ed. deManuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, �001,p.34�.

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caminhos de expressão plástica ou literária: Edu-ardoViana,AmadeodeSouza-Cardoso,GuilhermedeSanta-Rita,JoséPacheco,MilyPossoz,AlmadaNegreiros...Outros,semchegarapartir,sonharamcom os horizontes culturais da capital francesa,longe da «soturnidade» duma Lisboa que CesárioVerde retratara a traço forte n’«O Sentimentodum Ocidental». Já em carta de 30 de novembrode1907,ManuelLaranjeiraescreviadeEspinhoaAmadeo de Souza-Cardoso:

A propósito de Paris: um qualquer dia,muitoembreve,aíterávocêonossoAntónioCarneiro, fugido à respeitável mediocridadeportuguesa. Bem-aventurados os que se li-bertam. Eu estou-me libertando, porém deoutro modo.�7

OfascíniodeMáriodeSá-CarneiroporPariseraain-daumaformadedilataçãodoeu.Aodespedir-sedopaie dos amigos na estação do Rossio para apanhar oSud-Express rumo à grande capital, o que o levavaeraumsonhodemaximizaçãoartística—esseidealde«‘beleza’aferroefogo»queantevianos«boulevardsdeEuropa»�8doseudesassossego.Acidade,«arfan-dodemilluzes»,«grandesalãoiluminadoajorros»�9,depressa se tornaria matériadealgumasdassuaspá-ginasemprosaeemverso.Nelaprocurouanovidade:

�7 Obras de Manuel Laranjeira, organização, prefácio e notasintrodutóriasdeJoséCarlosSeabraPereira,Porto,EdiçõesAsa,vol.i,1993,p.4�0.

�8 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.98.�9 Id.,«Ressurreição»,Céu em Fogo,pp.�06-�08.

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durante os breves anos parisienses interessou-sepelos movimentos de vanguarda que os alvores doséculoxxviramnascer,napoesiaenasartesplásti-cas.Uminteressequenemsempresignificouadesão,como comprova o diálogo epistolar com FernandoPessoa. Em relação ao Cubismo, que Apollinairedefendeu num conjunto de ensaios reunidos sobo título Les Peintres Cubistes (1913), definindo-ocomo«artedaconcepção»enão«daimitação»,Sá--Carneiroconfessaemcartade10demarçode1913que«acredita»nomovimento«masnãonosquadroscubistas até hoje executados»30. As suas reservasnãooimpedemdeargumentaremdefesadahones-tidade da arte cubista, tal como o fez Apollinaire:

[...] Mas não me podem deixar de ser sim-páticos aqueles que, num esforço, tentam emvez de reproduzir vaquinhas a pastar e carasde madamas mais ou menos nuas — antes,interpretar um sonho, um som, um estado de alma, uma deslocação de ar, etc. Simplesmentelevados a exageros de escola, lutando com asdificuldadesdumaânsiaque,sefossesatisfeita,seria genial,assuasobras derrotam, espantam,fazem rir os levianos. Entretanto, meu caro,tão estranhos e incompreensíveis são muitosdos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los. Porquê? Porque o artistafoi genial e realizou a sua intenção. Os cubis-tas talvez ainda não a realizassem. Eis tudo.31

30 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.5�.31 Ibid.,pp.5�-53.

�3

Como tantos contemporâneos, Sá-Carneiroestranha a obra de Picasso, mas considera «admi-ráveis»muitosdosseustrabalhospré-cubistas,ca-pazesdecausar«oscalafriosgeniaisdeEdgarPoe»,e recusa-se a crer que o artista espanhol se tenhatransformado «num simples blagueur»3�. Noutracarta, de �5de março, responde aos comentáriosde Pessoa sobre o Cubismo e refere os quadros deAmadeo de Souza-Cardoso, «sem importância edisparatados»,queviunoSalãodeOutono.«Parecequenãosepodesercubistasemseserimpertinentee blagueur...»33, escreve ao amigo. Dois anos maistarde, a 7 de agosto de 1915, comenta ainda:

Cubismo: julguei em verdade que tivessedesaparecido com a guerra [...]. Mas no Sa-got— negociante de quadros que acolheu osfuturistas e os cubistas, e não vende doutramercadoria— não só estão expostos muitosquadros cubistas, como — oh! pasmo! — um daguerra; última atualidade: sim: um «tank entreshrapnels».Aruado«marchand»édepoucapas-sagem,massempregenteparadadefronte,rindo:como em face da nossa montra do Orfeu...34

Na correspondência com Pessoa, Sá-Carneirofaz também várias referências ao Futurismo, omovimento que Marinetti lançara em 1909 ao pu-blicarnaprimeirapáginadojornalLe Figarooseu«ManifestodoFuturismo».JuntamentecomSanta-

3� Ibid.,p.53.33 Ibid.,p.59.34 Ibid.,p.186.

�4

-RitaPintor,Sá-Carneirocontribuiuparadaraconhecerem Portugal essa vanguarda, que celebrava o mundomodernodasgrandescidades,comassuasfábricas,assuasmultidões,osseusruídos,oseudinamismoeasua«insóniafebril».Oprimeiro«Manifesto»deMarinettiexaltavaabelezadamáquinaedavelocidade,glorificavaaguerracomo«higienedomundo»,defendiaaaboliçãodosmuseus,dasbibliotecasedasacademias,eproclama-vauma«artedofuturo»emruturacomatradiçãopas-sadista.Outrosmanifestos«técnicos»selheseguiram,entreeleso«ManifestoTécnicodaLiteratura»(191�)e«DestruiçãodaSintaxe—ImaginaçãosemFios—Pa-lavras em Liberdade» (1913), que desenvolviamos temas e os princípios formais da arte futurista.

Em carta de �0 de junho de 1914, o autor d’A Confissão de Lúciomanifestaoseuentusiasmopelaleiturada«OdeTriunfal»deÁlvarodeCampos,queconsidera«aobra-primadoFuturismo»,apesarde«nãopura,escolarmentefuturista»35,comoescreveaPessoa.AodedeCamposlevaopoetaaexplicitara consciência da distância que o separa do amigo:

Não sei em verdade como dizer-lhe todo omeuentusiasmopelaodedoÁlvarodeCamposque ontem recebi. É uma coisa enorme, genial,das maiores entre a sua obra— deixe-medizer-lhe imodesta mas muito sinceramente:Do alto do meu orgulho, esses versos sãodaqueles que me indicam bem a distância que,em todo o caso, há entre mim e você. [...]36

35 Ibid.,p.108.36 Ibid.

�5

UmamissivadoanoseguintemostracomoSá--Carneiro continua atento à novidade temática eformaldaliçãovanguardista,emborasemprecomuma ponta de ironia:

Na galeria Sagot, o templo cubista futuris-ta de que lhe falei já numa das minhas cartascomprei ontem um volume: I Poeti Futuristi. ÉumaantologiaabrangendooMarinettiemuitosoutros poetas: Mario Bétuda, Libero Altomare,etc., etc. Em acabando de ler o catrapázio (1se-mana) vou-lho mandar em presente. Já lá des-cobri uns Fu fu... cri-cri... cucurucu... Is-holá...,etc. muito recomendáveis. Vamos a ver... A pro-pósito: não se esqueça por princípio nenhumde mandar com brevidade dois exemplares doOrfeu (ou 3) para o movimento futurista.37

Paris representa para Mário de Sá-Carneirooestalãoduma modernidadequeofascinaeper-turba.N’A Confissão de Lúcio,RicardodeLoureirofaz-se eco desse fascínio:

—Paris!Paris!—exclamavaopoeta—Por-que o amo eu tanto? Não sei... [...] É o únicoópio loiro para a minha dor — Paris!

[...] Só posso viver nos grandes meios.Quero tanto ao progresso, à civilização, aomovimentocitadino,àactividadefebrilcontem-porânea!... Porque, no fundo, eu amo muito avida. Sou todo de incoerências. Vivo desolado,

37 Ibid.,p.191.

�6

abatido, parado de energia, e admiro a vidaentanto como nunca ninguém a admirou!»38

Maistarde,AlmadaNegreirosrecordariaopoetade «Manucure» e a sua «vocação» europeia, aoescrever na carta-dedicatória a José Pacheco queacompanha a novela «A Engomadeira»:

[...] Enfim, escuso de repetir-me neste as-suntoqueonossoMáriodeSá-Carneirosabiatão justamente classificar:

— Nós três somos de Paris!Esomos.Temosestaelegância,estadevo-

ção, este farol da Fé.39

Foi decisivo o contributo de Sá-Carneiro rela-tivamenteaduaslinhasfundamentaisdeOrpheu:adiversidadedaspropostasestéticasquesecruza-ram na revista e o espírito cosmopolita do movi-mentoaqueeladeuvoz,nocontextodeumtempohistóricomarcadopeloimpulsodemigraçãoparaas grandes capitais, pela industrialização e pelainternacionalização.Nãoporacaso,emmeadosde1914 os promotores de Orpheu pensaram dar-lheonomeEuropa,depoisdeteremconsideradoini-cialmente o título Lusitânia. Na correspondênciacom Pessoa, Mário de Sá-Carneiro alude mais doque uma vez a esse projeto: «Europa! Europa (re-vista) é que é preciso sobretudo!» (carta de 5 dejulhode1914);«AEuropa!aEuropa!comoelaseria

38 MáriodeSá-Carneiro,A Confissão de Lúcio,pp.44-45.39 Almada Negreiros, «A Engomadeira», in Obras Completas,

vol.iv—Contos e Novelas,Lisboa,INCM,1989,p.51.

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necessária!»(�8dejulhode1914);«Quebelíssimacoisaseriaagoracomessaorientação‘total’anossarevista— Europa!» (1 de agosto de 1914).

MasParisfoideterminantenaobradeSá-Car-neiroaindaporoutrasrazões.Poucotempodepoisda inscrição na Sorbonne, o poeta trocou o cursode Direito por uma existência de flâneur— o tipoqueBaudelairedescreveucomofiguraemblemáticadaexperiênciamoderna,oobservadordasruasdacidade e do seu movimento, colhendo sugestõesliterárias no espetáculo do quotidiano. A flânerienão era simplesmente uma arte de passar o tem-po: para Baudelaire, era uma forma de estar no«centrodomundo»edeseroseupintor.MáriodeSá-Carneiro refere nalgumas cartas o modo comoconverteu certas impressões de rua em experiên-cias literárias: por exemplo, descreve a Pessoa aalgazarra infantil de um carrossel no jardim doLuxemburgo,tomando-acomo«miniaturadoideal»ealegoriadeumapulsãodevida;ouomartelardasrotativasedasLinotypedoMatin,situadoemplenoboulevard, que lhe inspirou uma quadra das «SeteCanções de Declínio»:

Pinturas a «ripolin»,Anúncios pelos telhados —O barulho dos tecladosDas Linotyp’ do «Matin»...40

Oflâneurentretémashorasnoscafés,observandooteatrodagrandecidadeeconcebendoosseusversose novelas. Mário de Sá-Carneiro frequentou vários

40 MáriodeSá-Carneiro, Poemas Completos,p.109.

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cafésebrasseriesdoboulevarddesItaliens,daav.del’Opéra,darueSaint-Honoré,daplaceduPalaisRoyal,do boulevard des Capucines, da place du Châtelet edo boulevard Montmartre. Deles fez o cenário dealguns poemas («Manucure», «16», «Cinco Horas»,«Serradura») e o local de encontro de personagensdas suas ficções. Escreve no poema «Cinco Horas»:

Minha mesa no Café,Quero-lhe tanto... A garridaToda de pedra brunidaQue linda e que fresca é!

Um sifão verde no meioE, ao seu lado, a fosforeiraDiante ao meu copo cheioDuma bebida ligeira.[...]Nos Cafés espero a vidaQue nunca vem ter comigo:— Não me faz nenhum castigo,Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,Ideal que só me resta:Pra mim não há melhor festa,Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,Sois hoje — que galardão! —Todo o meu campo de acçãoE toda a minha cobiça.41

41 Id.,ibid.,pp.115-117.

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OpapeltimbradodascartasenviadasaPessoaé toda uma topografia parisiense: Café Cardinal,Café Riche, Brasserie Universelle, Café Baltha-zard, Café La Régence, Café de Rohan, Café deFrance, Brasserie Chope du Châtelet, Café Royal,Café de la Paix, Grand Café de la Place Blanche...Ecompõe também um roteiro pessoal inscrito notempo, como se lê numa carta de 16 de fevereirode 1916 escrita no Café Riche, aquele que o poetamais assiduamente frequentou. Diz Sá-Carneiroque já lá não vai para não encontrar o seu outroeu, o de 1913:

Meu querido Amigo, não sei porquê eu jánãovenhoaoCaféRiche.Talvezporquenamesadofundo—ali,aocanto— onde um «monsieurdécoré» se embebe do Temps— receie encon-trar o Sá-Carneiro, o Mário, de 1913 que eramais feliz, pois acreditava ainda na sua deso-lação...Enquantoquehoje...Desci-atoda[...]4�

ÉassimqueParisseespelhanasuaobra:comosonhodeampliaçãodoeuecomolugardasuaanu-lação.Deresto,jánumlongínquodiachuvosodeno-vembrode191�,poucodepoisdachegadaàCidade--Luz,Sá-CarneirofaziaaPessoa o balançodo seuquotidiano,numaespéciededeveehaverexistencial:

Estou em Paris Estou aborrecidíssimoTenho saúde Sinto-me infeliz em extremoTenhodinheiro Vivonumatorturaconstante

4� Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�67.

30

Posso fazer o que quiser Sofro muitoNão tenho preocupações A minha desolação

é ilimitadaNão tenho desgostos.43

Em julho de 1915, de regresso a Paris depoisde uma estadia de vários meses em Portugal,volta a descrever a vibração da cidade, «em fe-bre amortecida» por causa da guerra. Mas o seudeslumbramento é de pouca dura: apesar do seubrilhoedasuaintensidade, essa«Parisdaminhaternura»44queopoetaevocanosversosde«Abri-go»,ecomaqualdesejariafundir-seemtotalunião(«Paris — meu lobo e amigo.../— Quisera dormircontigo,/Ser todo a tua mulher!...»45), foi afinalo fantasmagórico cenário da sua solidão, do seudesalento e do seu fim.

43 Ibid.,p.17.44 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.113.45 Ibid.,p.114.

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As correntes literárias

A participação na aventura poética de OrpheumarcoudecisivamenteavidaeaobradeMáriodeSá-Carneiro. Com o título classicizante propostopor Luís de Montalvor, a revista saiu em Lisboaem1915,como«revistatrimestraldeliteratura»,eteveapenasdoisnúmerospublicados:oprimeiroem março, sob a direção de Luís de Montalvor eRonalddeCarvalho,eosegundoemjunho,dirigi-do por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.Oterceiro número, que incluía, entre outras co-laborações,os«PoemasdeParis»deSá-Carneiro,«Gládio» e «Além-Deus» de Pessoa ortónimo e«A Cena do Ódio» de Almada Negreiros, chegouaentrarnoprelomasnãopassoudeprovastipo-gráficas,pordificuldadesdefinanciamento.Depoisdo escândalo causado pela publicação da revista,a ponto de o primeiro número se ter esgotado ede se terem vendido cerca de 600 exemplares dosegundo,opaideSá-Carneiroresolveupôrtermoà extravagância dos jovens poetas, inviabilizando

3�

a continuidade de Orpheu. Numa longa carta aPessoa,datadade13desetembrode1915,MáriodeSá-Carneiro anuncia ao amigo a impossibilidadeda publicação do n.º 3 da revista:

Meu Querido Amigo,Custa-memuitoaescrever-lheestacarta

dolorosa — dolorosa para mim e para você.Mas por mim já estou conformado. A dor épois neste momento sobretudo pela grandetristeza que lhe vou causar. Em duas pa-lavras: temos desgraçadamente de desistirdo nosso Orfeu. Todas as razões lhe serãodadas, melhor pela carta do meu Pai quejunto incluo e que lhe peço não deixe deler. Claro que é devida a um momento deexaltação.NoentretantocheiaderazõespelacontaexorbitantequeeuobrigoomeuPaiapagar— o meu Pai que foi para a África pornão ter dinheiro e que lá não ganha sequerpara as despesas normais, quase. Compre-endequeseriaabusardemais,seriaexcedera medida mais generosa depois duma contatipográficade560.000réis,depoisdaminhafugida para aqui — voltar daqui a três ouquatro meses a pedir-lhe para saldar umacontade30ou40.000réis—namelhordashipóteses— do n.º 3 do Orfeu. Mas não setrata sequer disto: o simples aparecimentodo n.º 3 do Orfeu— feito ainda sob a minharesponsabilidade (mesmo que eu estivessecertodetirartodaadespesa)serianaverda-demostraremdemasiaaomeuPaiaminhainsubordinação. Você, meu querido amigo,tenho a certeza que não obstante o grandedissaborqueestanotícialhevaicausarcon-

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corda em que as circunstâncias me inibemabsolutamente e assim se conformará e meperdoará. [...]46

A�5desetembro,avisa queSanta-RitaPintorsepropõecontinuarapublicaçãodeOrpheu«comalguns haveres que possui», acrescentando: «Essesarilho,resolva-ovocê.ClaroqueSanta-Rita‘maître’do Orfeu acho pior que a morte. Entretanto vocêresolverá tudo»47. Em carta de 18 de outubro,cada vez mais irritado com o desaforo do pintorfuturista,nãoseesquecederecomendaraPessoa:«Agoraháumacoisacomqueéprecisoamáximacautela: se eles vão ter o desplante de pôr na ruaumrealn.º3doOrfeu nós não podemos colaborar:isso seria dar o nosso tácito consentimento.»48

Só em 1983 o n.º 3 de Orpheu foi publicadopela Nova Renascença, em edição fac-similada, enoanoseguintepelaeditoraÁtica,apartirdeumjogodeprovastipográficasnapossedeAlbertodeSerpa. Em 1989, a Contexto deu à estampa umaedição fac-similada conjunta dos três númerosda revista.

AscríticasaoprimeironúmerodeOrpheunãose fizeram esperar. Reduzida a uma brincadeirademaugostoeaumcasodepsiquiatria,arevistaestevedurantemesesnamiradaimprensalisboetae regional. N’A Capital de 30 de março de 1915,o artigo «Literatura de manicómio» remetia os

46 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�09.47 Ibid.,p.�15.48 Ibid.,p.��6.

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poetasórficos paraa«[...] categoriade indivíduosque a ciência definiu e classificou dentro dos ma-nicómios,masquepodemsemmaiorperigoandarforadeles».A4deabril,FernandoPessoaescreviaa Armando Côrtes-Rodrigues:

Ontem deitei no correio um Orpheu parasi.Foisóumporquepodemosdispordemuitopoucos.Deveesgotar-serapidamenteaedição.Foi um triunfo absoluto, especialmente como reclame que A Capital nos fez com umatareia na 1.ª página, um artigo de duas colu-nas. [...] Somos o assunto do dia em Lisboa;sem exagero lho digo. O escândalo é enorme.Somosapontadosnarua,etodaagente—mesmoextraliterária — fala no Orpheu.49

Depois da saída do n.º �, O Século Cómicocontinuava a desacreditar os «bons rapazes doOrpheu» que, «em vez de virem nus para o meioda rua dar cambalhotas, lançam ao papel váriasmaluquices e esperam, a esfregar as mãos, que oburguês escandalizado os descomponha» (8 dejulhode1915).Nomesmonúmero,umacaricaturadeSanta-RitaporStuartCarvalhaisimitavaotraçodo pintor futurista, enquanto uns versos jocososassinadosporBelmiro/AcáciodePaivaparodiavamo poema «Manucure» de Mário de Sá-Carneiro.Opopular jornal satírico voltava à carga a �� dejulho,comumaextensaparódiaemversointitulada

49 Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues,intro-dução de Joel Serrão, Lisboa, Editorial Confluência, 1944,pp.69-70.

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«Orpheu (Ode simétrica)» e assinada por um talPablo-Perez (futurista-electricista). Sá-Carneiro,que coleccionou dezenas de recortes de imprensacom referências a Orpheu, alude a essa paródianumacartaaFernandoPessoa,confessandoquelheachou graça— e o poema é na verdade hilariante,com as suas quadras bem rimadas em contrastecom o nonsense das imagens. O folheto avulso Or-pheu — Afina a Liraarremedavatambémosversosde Sá-Carneiro, cuja estranheza era facilmenteconfundida com «futurismo» nos periódicos daépoca.MáriodeSá-CarneiroacabouporseroautormaisvisadonoconjuntodassátirasaOrpheue,nodizer de Fernando Cabral Martins, a sua primeiraimagemnacenaliteráriafoi«adeprincipalfigurade um escândalo»50.

A novidade de Orpheu residia, como mais tar-de alguns dos seus colaboradores fizeram notar,na diversidade das correntes estéticas que vei-culou— umas oriundas da tradição oitocentista,como o Simbolismo e o Decadentismo, e outrassituadas no horizonte teórico das vanguardaseuropeias do início do século xx. Entusiasmadoe febril, Mário de Sá-Carneiro desdobrou-se lite-rariamente nesses vários -ismos, partilhando comPessoa ideias e experiências poéticas, naquela«camaradagem d’Alma» que a correspondênciadesde cedo documenta.

No conjunto de poemas que publicou no n.º1deOrpheucomotítulo«ParaosIndícios de Oiro»,composiçõescomo«Taciturno»,«Salomé»,«Certa

50 FernandoCabralMartins,op. cit.,p.19.

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VoznaNoite,Ruivamente...»,«DistanteMelodia»e «Apoteose» são ainda paúlicas, com as suasséries de imagens que sugerem estados de almacrepusculares ou nostálgicos, as referências aosonho,asassociaçõesabstrato-concretas,asfrasesnominais,autilizaçãodaformaverbalreflexaeoemprego inusitado das maiúsculas. O Paúlismo,definidoporFernandoPessoacomoorequinteda«sensação», da «expressão» e do «pensamento»,foi o primeiro -ismo do Modernismo portuguêse constituiu, por assim dizer, um prolongamentoà outrance do Simbolismo francês e da poéticasimbolistadeCamiloPessanha.Asuadesignaçãoderiva do poema «Pauis de roçarem ânsias pelaminh’almaemouro...»,escritoem1913epublicadoem 1914 na revista Renascença. Pessoa utiliza ametáfora do paul (o charco, a água morta) comoimagem da estagnação, do spleen e da anulaçãoda consciência.

MáriodeSá-CarneirorecebeuemParisopoema«Pauis»epartilhoucomPessoaoalvoroçoquelhecausaramosversosenviadospeloamigo:«Éálcooldoirado, é chama louca, perfume de ilhas miste-riosasoquevocêpôsnesseexcertoadmirável»51,escreve em carta datada de 6 de maio de 1913. Averdade,porém,équeoPaúlismofoiumacriaçãoa dois: como observa Fernando Cabral Martins,«Pauis é um poema que Pessoa escreve exacer-bando o estilo de Sá-Carneiro»5�. Não é essa, deresto,aúnicavezqueoautordeMensagemadapta

51 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.77.5� FernandoCabralMartins,op. cit.,p.3�6.

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e integra ideias de Mário de Sá-Carneiro e aspe-tos do seu estilo, como a crítica tem sublinhado.Numpostalde8defevereirode1914,Sá-Carneiroexclama ainda: «Viva o PAULISMO!...»53 Na fasedoprojetopaúlico,opoetaprocurasobretudoumefeito de estranheza e uma linguagem dominadapelo vago, pelo enigmático, pelas construçõescomplexas e pela sintaxe desviante: «Ó pântanosde Mim — jardim estagnado...»54

No entanto, a herança finissecular atravessaquase toda a sua obra, que retoma traços simbo-listas e decadentistas como o culto da beleza, aartedasugestão(reforçadanoplanográficopelasconstantes reticências), a temática do sonho, doalheamentoedaevasão,aimagísticadopoente,dasombra e da cinza, o desregramento dos sentidosàmaneiradeRimbaud,ofascíniopeloluxoepelasumptuosidade, uma cromática inconfundível (oouro, o prateado, a cor púrpura, o roxo, o fulvo) ea presença constante das sinestesias. Baudelairetinha definido, no poema «Correspondances»,umaestéticadascorrespondênciasentreasváriassensaçõesfísicas(«Ilestdesparfumsfraiscommedes chairs d’enfants,/ Doux comme les hautbois,vertscommelesprairies»55)e,noutroplano,entreaimanênciaeosentidoocultoqueseescondeportrás do mundo visível. A profusão de sinestesiasé um traço característico da escrita de Mário de

53 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.103.54 Orpheu,ed.fac-similada,Lisboa,Contexto,�.ªed.,1994,p.17.55 Baudelaire, Les Fleurs du Mal,inOeuvres Complètes,Paris,Gal-

limard,«BibliothèquedelaPléiade»,1975,p.11.

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Sá-Carneiro,numaexpressãoporvezescomplicadade construções pouco usuais: «evocando mordo-radamente perfumes esfíngicos, luas amarelas,crepúsculos de roxidão», «um ar que sabia a luz eque rangia a cristal», etc.

Os tecidos são um motivo habitual nos seuspoemas e novelas: o veludo, as rendas, as sedas,o tule evocam a macieza, o brilho ou a transpa-rência. Repare-se na função que lhes cabe emcertas cenas d’A Confissão de Lúcio e dos contosde Princípio e Céu em Fogo. Eles atraem o olharpela cor ou pela cintilação, (des)cobrem o cor-po, antecipam a promessa da suavidade da peleou sublinham a pujança erótica de um corpo,como neste parágrafo descritivo d’A Confissão de Lúcio:

Umdeslumbramento,otrajodaamericana.Envolvia-aumatúnicadumtecidomuitosin-gular, impossível de descrever. Era como queuma estreita malha de fios metálicos — masdos metais mais diversos — a fundirem-senuma cintilação esbraseada, onde todas ascores ora se enclavinhavam ululantes, orase dimanavam, silvando tumultos astrais dereflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica.56

As joias provocam também o seu deslumbra-mentodeesteta,natradiçãodapoesiadecadente:opalas, esmeraldas, pedras preciosas de váriastonalidades regressam com frequência ao seu

56 MáriodeSá-Carneiro,A Confissão de Lúcio,p.�7.

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imaginário, capaz de assimilar por igual linhas decontinuidade e de rutura.

A partir de 1914, Mário de Sá-Carneiro inte-grou na sua escrita traços de um outro -ismo, oInterseccionismo,cujonomesedeveigualmentea Pessoa. O Interseccionismo procura dar umaimagem dinâmica através do cruzamento ouintersecção de vários planos — paisagens, sen-sações e recordações, mundo exterior e mundointerior, real e onírico, passado e presente, etc.TalcomooCubismonapintura,pretenderealizara decomposição analítica e a recomposição daspartes de um todo, para o recriar sob váriosângulos na linearidade do discurso. Nos seusescritos doutrinários, Pessoa teoriza sobre este-ismo e faz dele uma etapa do projeto sensacio-nista que seria a súmula da sua obra. O poema«Chuva Oblíqua», que se desenvolve em seissecções distintas, é o paradigma da gramáticainterseccionistaconcebidaporPessoa,comasuasobreposição de planos, o seu simultaneísmo ea sua obliquidade.

MáriodeSá-Carneiroincorporouesse-ismonopoema«Manucure»(Orpheu�),aodescreverocaféparisiensequelheservedecenário,cruzandorea-lidadeeimaginaçãonafantásticadançaaéreadasmesasedascadeirascomqueentretémoseuócio:

[...] — Olha as mesas... Eia! Eia!Lá vão todas no Ar às cabriolas,Em séries instantâneas de quadradosAli — mas já, mais longe, em losangos desviados...E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,E misturam-se às mesas as insinuações berrantes

40

Das bancadas de veludo vermelhoQue, ladeando-o, correm todo o Café...E, mais alto, em planos oblíquos,Simbolismos aéreos de heráldicas ténuesDeslumbram os xadrezes dos fundos de palhinhaDas cadeiras que, estremunhadas em seu sono hori-

[zontal,Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,Sim! — meus olhos futuristas, meus olhos cubistas,

[meus olhos interseccionistas,Não param de fremir, de sorver e faiscar [...]57

Mas o poema «Manucure» é sobretudo umaapropriaçãoparodísticadostemasedalinguagemdo Futurismo. Escrito, nas palavras de Pessoa,«com intenção de blague»58, canta a «belezafuturista das mercadorias», incorpora citaçõestextuais dos manifestos de Marinetti e exalta odinamismodasimagensquecompõemapaisagemurbana, embora o faça no registo do pastiche e daparódia, ou seja, da imitação com distanciamentoirónico. «Manucure» põe constantemente em diá-logo os planos autorreflexivo e poético, e integrano seu tecido visual e sonoro materiais como osanúncios publicitários («aestéticafuturista—up-to-datedasmarcascomerciais»), as séries de númeroseletras(«abelezaalfabéticapura»),osdiferentes

57 Id.,Poemas Completos,p.59.58 «Tábuabibliográfica»,inPresença,n.º16,novembrode19�8,p.8.

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tiposgráficoseoefeitocaligramáticodeumversoondeante:59

Énoarqueondeiatudo!Éláquetudoexiste!...59

O grito e as onomatopeias, que seriam o equi-valente das «palavras em liberdade» mencionadasnum verso e proclamadas por Marinetti em Des-truição da Sintaxe — Imaginação sem Fios — Pala-vras em Liberdade,sãotambémlargamenteutiliza-dos.Opoemaexploraaindaoinsólito,deslocandodo seu enquadramento habitual os objetos e ascenasdoquotidiano,comoasmesaseosbancosdocafé,eatéapequenachávenadeporcelana,numasequênciavertiginosadeimagens.Eseosprimei-ros versos nos dão um eu lírico que contempla omundo e se contempla a si mesmo, enternecen-do-se até às lágrimas com a sua solidão e a suatristeza, pouco a pouco a imaginação conduz esseeuàdivagação,àdispersãoeàdissoluçãonotodoque o poema recria.

OSensacionismofoiaoutracorrentedeOrpheuqueinfluenciouMáriodeSá-Carneiro,sobretudodepois da publicação do n.º � da revista. Noentanto, o seu Sensacionismo deve ser enten-dido como a vibração das sensações na arte enão corresponde exatamente àquele -ismo quepara Fernando Pessoa se tornou uma hipótesede síntese das várias correntes da modernidadeliterária. Pessoa deixou-nos inúmeras páginas

59 MáriodeSá-Carneiro, Poemas Completos,p.60.

4�

teóricassobreomovimento,diversaseporvezescontraditórias, mas o Sensacionismo representaem última instância um desejo de «sentir tudode todas as maneiras», ou seja, uma vontade deidentificação ou de fusão com os mais diversosespaços, tempos, pessoas e atitudes, tal comosugereoúltimoversoda«OdeTriunfal»:«Ahnãoser eu toda a gente e toda a parte!» Esse desejode «ser tudo e ser todos», de se outrar nas coi-sas, nas pessoas e nos lugares, foi um princípiofundamental da poética pessoana e traduziu-senão apenas na construção da teia heteronímicamas também no desdobramento em várias cor-rentes estéticas, de que o Sensacionismo seria a«soma-síntese».

A esse movimento (ou «sensibilidade»), que éainda uma forma de dispersão, se refere Mário deSá-Carneiroemváriascartasdefevereiroemarçode1916,comentandonumadelasoprojetodeumaAntologia Sensacionista.Apoucosdiasdosuicídio,emcartadatadade31demarço,Sá-CarneiropedeaindaaPessoaquelhefaledoSensacionismo:«Vejalá: mesmo para os Astros diga-me potins, fale-medo sensacionismo... Adeus.»60 De resto, pela penade Álvaro de Campos, Pessoa situa a génese domovimento numa cumplicidade poética assimevocada: «O sensacionismo começou com a ami-zadeentrePessoaeSá-Carneiro.Provavelmenteédifícildestrinçarapartedecadaumnaorigemdomovimento e, com certeza, absolutamente inútil

60 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�81.

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determiná-lo. O facto é que ambos lhe deraminício.»61

Os vários -ismos de Orpheu sobrepõem-se econfundem-senaobradeMáriodeSá-Carneiro.Oautorviveintensamenteojogodesses-ismosnacorrespondência com Pessoa: por exemplo, umacarta de �0 de julho de 1914 termina com «milabraços interseccionados em Ouro e Alma»6�.Por vezes brinca com eles, utilizando-os emregisto humorístico e marcando desse modo oque neles há de blague. Chega a fundi-los numamesmadescrição:depassagemporBarcelona,emsetembrode1914,comentaaSagradaFamíliadeGaudí («Sim! Pleno paulismo — quase cubismoaté.—Umconjuntointeressantíssimo,tudoquan-to se possa imaginar de mais bizarro, de menosvisto.[...]Éumacatedraldesonho,umacatedralOutra, vista noutros países, noutras intersec-ções»63) e envia a Pessoa dois postais ilustradoscom imagens da «catedral-paul». Também noconto «Asas», de Céu em Fogo, o artista russoPetrus Zagoriansky evoca Notre-Dame e as suas«maravilhosas intersecções de planos», «planoslivres,desdobrados,queseenclavinham,setrans-mudam, soçobram, turbilhonam!...»64.

61 FernandoPessoa,Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,tex-tosestabelecidoseprefaciadosporGeorgRudolfLindeJacintodoPradoCoelho,Lisboa,Ática,1966,p.99.

6� Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.13�.63 Ibid.,p.148.64 MáriodeSá-Carneiro,Céu em Fogo,pp.117-118.

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A obra de Sá-Carneiro testemunha a ânsia dechegar «au fond de l’Inconnu pour trouver dunouveau»65 de que falava Baudelaire no final dopoema «Le Voyage». Recorde-se como o poetacaracteriza o seu «olhar» de artista em «Manucure»:«Meus olhos ungidos de Novo,/Sim! — meusolhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhosinterseccionistas,/Nãoparamdefremir,desorvere faiscar [...]»66.

Oexcessoéamedidadasuaarte:acadapassosurge nela a metáfora do fogo que brilha e des-lumbra, como figuração do seu ideal de plenitudeestética. Em «Escavação», o sujeito poético é«chamagenialquetudoousa/Unicamenteàforçade sonhar...»67. No poema «Quasi», o verso «Umpouco mais de sol — eu era brasa» sugere, comojá vimos, a dilatação do eu, que no verso seguinteé reforçada pelas imagens do «azul» e do «além».O título do volume de contos Céu em Fogo falapor si. Nas cartas a Fernando Pessoa, são váriasasmodulaçõesdametáforadofogo,definindoummodo de viver a arte, mas também um modo deviver a vida. Por vezes traduz estados psíquicosextremos:«Atômbolagiracadavezmaisdesordenada.Sobretudo não posso estar um momento quieto.É uma febre, uma febre»68. N’A Confissão de Lú-cio, a personagem de Gervásio Vila-Nova é assimdescrita: «Ao falar-nos, brilhava ainda mais a sua

65 Baudelaire,Les Fleurs du Mal, op. cit.,p.134.66 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.59.67 Id.,ibid.,p.30.68 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�53.

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chama.[...]Todofogo!Todofogo!»69;aamericanaqueLúcioconheceporintermédiodeGervásioVila--Novatemoscabelos«deumruivoincendiado»;olivro de versos de Ricardo de Loureiro intitula-seBrasas; a peça de teatro que Lúcio compõe e lêaosamigostemportítuloA Chama;esãoinúme-ras ao longo da obra de Mário de Sá-Carneiro asreferênciasaofogoqueardeeconsome,metáforaconstantedasuaânsiadeabsolutoedasuapressamodernista de viver.

69 MáriodeSá-Carneiro,A Confissão de Lúcio,p.16.

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O fantástico

Publicadaem1914,A Confissão de Lúcioéumanovela a vários títulos singular. Desde logo, pelomodocomoretomaagrandetradiçãodanarrativafantástica(Hoffmann,Arlincourt,CharlesNodier,Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Edgar A.Poe e, entre nós, Júlio César Machado, o Eçade Queirós d’O Mandarim e Fialho de Almeida,entre outros), trabalhando uma história insólita,para lá do racional e do verosímil, que desafiao leitor e o enreda na sua ambiguidade, na suaimaginação e no seu excesso. A dimensão fantás-tica da novela decorre de uma intriga em que ostrês protagonistas — Ricardo de Loureiro, Martae Lúcio — são projeções ou desdobramentos unsdos outros, numa relação especular que motiva oefeito de estranheza e o puzzle da leitura, sobre-tudo no desfecho de contornos policiais. Quando,nas últimas páginas, Ricardo de Loureiro disparaum revólver sobre a sua companheira — que é asua sombra, o seu duplo, a «ponte» entre ele e os

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amigos mais desejados — , é o próprio artista quetombaatingido,eMartadesvanece-semisteriosa-mente sem deixar rasto:

E então foi o Mistério... o fantástico Mis-tério da minha vida...

Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta — não! — era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés — sim, aos meus pés! — caíra o seu revólver ainda fumegante!...

Marta, essa desaparecera, evolara-se emsilêncio, como se extingue uma chama...70

No momento em que chegam os criados, éLúcio que é incriminado, e na prisão, onde expiao crime que não cometeu, redige a sua fantásticae inverosímil «confissão».

A temática do duplo, tão frequente na litera-tura de finais do século xix (recorde-se O Sósia,de Dostoiévski, ou O Retrato de Dorian Gray, deOscar Wilde), é constante nas novelas de Máriode Sá-Carneiro: veja-se «O Incesto» (Princípio),«AGrande Sombra», «Eu-Próprio o Outro» e«Ressurreição» (Céu em Fogo). «O Incesto», porexemplo,narraahistóriadeLuísdeMonforte,umartista que procura reencontrar pelo casamentocom a dinamarquesa Magda a sua filha mortaLeonor.ExtraordinariamenteparecidacomLeonornostraçosfísicos,Magdaé,porassimdizer,odu-plodeLeonor,esódepoisdepossuiressamulherLuís de Monforte se dá conta de que conspurcou

70 Id.,ibid.,pp.1��-1�3.

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a memória da filha no ato incestuoso. No conto«Ressurreição», por sua vez, o romancista Ináciode Gouveia, atormentado pela lembrança de umaantigacompanheiramorta,vaiencontrarnauniãocomoutroamantedePaulettearessurreiçãodessecorpo saudoso e desaparecido:

[...]...Até que um dia, sem saberem como,os seus corpos nus, masculinos, se entrela-çaram...

E então foi a Vitória, nesse abraço lim-po, unissexuado — o triunfo impossível queum deles entressonhara outrora... o êxtase--fantasma vencido imponderavelmente, eabsoluto...71

Apropósitodopoema«ComoEuNãoPossuo»,escreve Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, em cartade 6 de maio de 1913:

Oqueeudesejo,nuncaopossoobternempossuir,porquesóopossuiriasendo-o.Nãoéabocadaquelaraparigaqueeuquiserabeijar;oquemesatisfariaerasentir-me,ser-meaquelaboca, ser-me toda a gentileza do seu corpoagreste.7�

Enoutracarta,de31demaio,referequeomes-mo poema condensa a ideia da sua futura novelaA Confissão de Lúcio.Defacto,numapassagemdanarrativa,RicardodeLoureiroconfidenciaaLúcioomesmodesejodepossetotal,explicandoaoami-

71 Id.,Céu em Fogo,p.�63.7� Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.79.

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goqueaposseéparaeleacondiçãodaamizadeedo conhecimento do outro:

[...] Por isso hoje eu vou ter a coragem deconfessar,pelaprimeiravezaalguém,amaiorestranheza do meu espírito, a maior dor daminha vida...

Deteve-se um instante e, de súbito, emoutro tom:

— É isto só: — disse — não posso ser ami-go de ninguém... Não proteste... Eu não souseu amigo. Nunca soube ter afectos — já lhecontei— apenas ternuras. A amizade máxima,paramim,traduzir-se-iaunicamentepelamaiorternura. E uma ternura traz sempre consigoum desejo caricioso: um desejo de beijar... deestreitar... Enfim: de possuir! Ora eu, só depoisde satisfazer os meus desejos, posso realmentesentir aquilo que os provocou. A verdade, porconsequência, é que as minhas próprias ternu-ras, nunca as senti, apenas as adivinhei. Para assentir, istoé,paraseramigodalguém(vistoqueem mim a ternura equivale à amizade) forçosome seria antes possuir, quem eu estimasse, oumulher ou homem. Mas uma criatura do nossosexo, não a podemos possuir. Logo eu só pode-ria ser amigo duma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo. [...]»73

N’A Confissão de Lúcio a figura do duplo temobviamenteavercomaficcionalizaçãodarelaçãohomoerótica(atravésdamediaçãodafigurafemi-nina),mastemigualmenteimplicaçõesnarcísicas,

73 MáriodeSá-Carneiro,A Confissão de Lúcio,pp.54-55.

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na medida em que é a sua própria imagem que osujeitoprocuranooutro,idealizadomasdevolven-do-lhe, afinal, a consciência de não ser senão umfragmento do todo imaginado.

A imagem do artista é outro grande tópicon’A Confissão de Lúcio, culminando no retrato deRicardo de Loureiro como um ser superior, dife-renciadodohomemcomum,entregueaosofrimen-tomoralprópriodasuasina.Sãováriasasfigurasdeartistadescritasaolongodanovela,traduzindoa excecionalidade de um destino que já o poema«Dispersão»realçava,contrapondo-aàvivênciadoser comum, anónimo e gregário:

[...] Porque um domingo é família,É bem-estar, é singeleza,E os que olham a belezaNão têm bem-estar nem família. [...]74

AprimeiradessasfiguraséGervásioVila-Nova,cujo retrato se inspira em Santa-Rita Pintor, eque surge nas páginas iniciais da novela como oparadigma do artista poseur e falhado. Guilhermede Santa-Rita viveu durante algum tempo emParis, onde assistiu às conferências de Marinettina Galeria Bernheim-Jeune e se relacionou comAmadeodeSouza-CardosoeMáriodeSá-Carneiro.Na sua correspondência com Pessoa, este últimodescreve Santa-Rita como «um tipo fantástico»,«ultramonárquico», «imperialista», «insuporta-velmentevaidoso»,umapersonagemparaquemoquecontanaarteéaatitude,ogesto,aaparência,

74 Id.,Poemas Completos,p.36.

5�

muitomaisdoqueaobraemsimesma.Aimagemficcional que dele nos dá n’A Confissão de Lúcioé a de uma figura invulgar, de aspeto «maceradoe esguio», com os seus cabelos longos, o originalchapéudefazendaeofatopreto«deumtalheumpoucoexagerado»—umdandyolhadoecomentadopor quem passa, fascinando as mulheres, mascujogénioacabariaporseconsumir«asipróprio,incapaz de se condensar numa obra — disperso,quebrado, ardido»75.

Mário de Sá-Carneiro prolonga depois noutrasfigurasareflexãosobreacondiçãodoartista—refle-xãoqueétambémumaviaoblíquadeinterpretaçãode si mesmo. Uma delas é a americana ruiva, quecultivaavoluptuosidadecomoformadearte,cor-porizando o refinamento e o excesso sensorial jáantes celebrados pelos poetas decadentistas: «[...]o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, osaromas,osnarcóticoseassedas—tantossensua-lismos novos ainda não explorados...»76, exclamaela durante o chá no Pavilhão de Armenonville.A cena da «orgia do fogo», no final do primeirocapítulo,encenaessedesejode«sentirtudodeto-dasasmaneiras»eoimensopotencialartísticodavivência de sensações fortes ou mesmo violentas.A experiência-limite da festa da americana, comas suas luzes, as suas cores, as suas sequências deimpressões e as suas imagens finais do fogo e daágua, é narrada num extraordinário crescendo deintensidade,quepodeserlidocomosímiledeuma

75 Id.,A Confissão de Lúcio,pp.16-17.76 Ibid.,p..�0-�1.

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cena sexual, com o seu clímax e anticlímax. Paratanto contribui também o estilo inconfundíveld’A Confissão de Lúcio, que incorpora imagensaudaciosas e surpreendentes, formulações hiper-bólicas, peculiaridades sintáticas, formas reflexasdo verbo e muitas construções adverbiais.

Outras personagens menores e fugazes vãosurgindoaolongodanovela.Masnessaconstantetematização da arte e do artista que caracterizaa obra de Mário de Sá-Carneiro, e que constituiuma das suas preocupações nucleares, o poetaRicardo de Loureiro representa a projeção deum ideal de plenitude estética e de uma superiorexigência cujo preço não pode ser outro senão odo aniquilamento.

No volume Céu em Fogo (1915), Mário de Sá--Carneiro retoma o filão da narrativa fantástica,sempre numa linha de continuidade em relaçãoà tradição oitocentista, que sondou os mundosinquietantesdoinsólito,domistérioedaloucura,mas acrescentando-lhe a dimensão pessoal que olevaatransporparaostextosassuasmaisíntimasobsessões. «— O Mistério... Oh! desde a infânciaesta obsessão me perturba — o seu encanto meesvai...»77, diz o narrador de «A Grande Sombra»,dandovozaumafixaçãoqueatravessatodaaobrade Sá-Carneiro.

O conto «A Estranha Morte do Prof. Antena»é um dos mais intrigantes no universo ficcionaldo autor e relata-nos a história de um cientistaque experimenta viajar na «máquina do tempo».

77 Id.,Céu em Fogo,p.11.

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Os fenómenos parapsicológicos, como a hipnose,a mediunidade e a vidência, despertaram grandeinteresse em finais do século xix e princípios doséculoxx.Charcot,edepoisoseudiscípuloFreud,utilizaram a hipnose no tratamento da histeria.Edgar A. Poe explorou nos seus contos, traduzi-dos para francês por Baudelaire, inacreditáveisexperiências de «magnetismo», ou seja, de mani-pulação hipnótica. Em «A Verdade Sobre o Casodo Senhor Valdemar» (Histoires Extraordinaires),asuaimaginaçãomórbida,aliadaaumaexcecionalcapacidadeanalítica,chegouaopontodeficcionara«magnetização»deummoribundo,quesobessainfluência vai descrevendo a passagem da vida àmorte,continuandoapronunciaralgumaspalavrasjádepoisdefisicamentemorto,atéaomomentoemque é acordado do estado hipnótico e o seu corpose decompõe repentinamente, transformando-senuma «abominável putrefacção». Poe foi umareferência fundamental para Sá-Carneiro, queprocurou reproduzir nas suas ficções a atmosferade mistério e suspense característica dos contosdo autor americano.

«A Estranha Morte do Prof. Antena» dá-nosas congeminações dum cientista sobre as possi-bilidades de passagem de uma vida para outra ea experiência falhada dessa passagem. A «somade reminiscências» que compõe a existênciahumana leva o Mestre a perscrutar o passado:«Deixemos o futuro, esqueçamos Amanhã — so-nhadores heróicos de Além. Entanto olhemos opassado—tentemosvará-lo,saberaomenosquem

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fomosAquém.»78Acreditandoque«antesdanossavida actual, outra existimos»79, e que um mesmoser poderia viver várias existências, necessitandoapenas para tal de se adaptar a diversos meios, oProf.Antenatentalevaracaboaexperiênciacoma ajuda de alguns originais inventos técnicos. Umdia, numa curva de estrada, aparece morto, com«o crânio esmigalhado, as pernas trituradas... oventre aberto numa estranha ferida cónica»80, etodos acreditam que foi atropelado por um auto-móvel. Mas o seu fiel discípulo sabe que a mortedocientistanãosedeveuanenhumacidente,antesfoiumapassagemaoutradimensãodoespaçoedotempo. O seu longo depoimento irá, assim, deslo-car a intriga da esfera do policial para a esfera dofantástico. No início do conto, expressões como«mistério policial», «indício», «álibis irrefutá-veis», «sherlockholmesca hipótese» e «inquérito»sugerem um certo protocolo de leitura, mas logodepois a narrativa abandona esse registo para seconcentrar na explicação do enigma da «estranhamorte», com a ajuda das notas registadas pelocientista nos seus cadernos.

Tal como n’A Confissão de Lúcio, Mário deSá-Carneiro usa o depoimento do narrador naprimeira pessoa, dizendo-o destinado a repor a«verdade».Noentanto, a funçãodessedepoimen-to redigido a posteriori não é outra senão pôr emmarchaanarrativaecriarnoleitorumailusãode

78 Id.,ibid.,p.170.79 Ibid.,p.17�.80 Ibid.,p.168.

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verdade. Esse expediente é reforçado pelo meti-culoso exercício analítico, que segue o modelo dealgumasdasHistórias ExtraordináriasdePoe,emparticular«DuploAssassínionaRuaMorgue»,emqueoautorrevelaasuaprópriapaixãopelareso-lução de enigmas e discorre sobre as «faculdadesanalíticas». No conto de Mário de Sá-Carneiro, onarrador chega mesmo a enunciar um método:

Paraamelhorexposição,arrumareiassima minha narrativa: Restabelecerei primeiro averdade sobre o desastre. Depois, num apa-nhado, condensarei — tanto quanto possívelordenada e claramente — todos os aponta-mentosdispersosencontradosentreospapéisdo Mestre, os quais, reconstituídos nas suaslacunas, ajustados, reflectidos em conjunto—além das coisas assombrosas que nos entre-mostram—nosfornecem,senãoumaexplica-çãodefinitiva,categórica,pelomenos,comojádissemos,umafortehipótesesobreaestranhamorte do Prof. Antena.81

Note-se também o modo como «A EstranhaMorte do Prof. Antena» alia a atmosfera de es-tranheza, sublinhada por adjetivos como «inve-rosímil», «inexplicável» ou «extravagante», e orealismodecertasnotações,sobretudoaquelasquedizemrespeitoaocenáriolisboeta,àsociedadedacapitaleaomundojornalístico.Emboraoinsólitoseja o registo dominante, o conto nunca perde devista o real, graças a pormenores como a fala da

81 Ibid.,p.164.

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velhacriadadoMestre,a«chávenadeleite»bebidaàpressa,adescriçãodosarredoresdacidadeedolugarondesedaráodesfechodaintrigafantástica,otoquedo«sinoaldeão»,achegadadaguardafis-cal,easreferênciasaoenterrodoProf.Antenaeàsinvestigações policiais subsequentes. É nessa am-bivalência real/irreal que se jogam, em boa parte,o suspense e o carácter transgressor da narrativa.

Aquestãododuploregressanesteconto,confi-guradanateoriadasváriasexistênciasdeummes-moser,justificandoumaexperiênciadepassagemoutransmutação.Domesmomodo,«AEstranhaMortedoProf.Antena»retomaareflexãosobreaarteeacondiçãodoartista,aoretratarocientistaexcêntri-co, com «o sobretudo negro, eterno de verão e deinverno»,o«feltroenormedeartista»,«oscabeloslongosealavallièredeseda,numlaçoexagerado»8�,como um ser de exceção, capaz de ver mais longe:

ACiênciaétalvezamaiordasartes—erguen-do-seamaissobrenatural,amaisirreal,amaislongeemAlém.Oartistaadivinha.Fazerarteé Prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare,se se não excedem, se igualam.83

Com os seus contornos fantásticos, narrativascomoA Confissão de Lúcio,«AEstranhaMortedoProf. Antena» e outras de Céu em Fogo refletem,afinal, fixações do autor: interditos, fantasias eideias literárias, todo um imaginário que o leva aexplorarostemaseasformasmaissurpreendentes.

8� Ibid.,p.161.83 Ibid.,pp.161-16�.

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A excentricidade e a loucura

AexcentricidadeeabizarriaforamparaMáriodeSá-Carneiro,maisdoquesimplesposes,formasdeprestarcultoàdiferençaedesesituaràmargemdo«lepidóptero»burguêsquetãoprofundamentedesdenhou.Aosseus«enredosbizarros»sereferenum verso do poema «Cinco Horas». Na últimaquadrade«Álcool»,descrevepoeticamentea«be-bedeira de si» e o transbordar das sensações:

[...] Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,Foi álcool mais raro e penetrante:É só de mim que eu ando delirante —Manhã tão forte que me anoiteceu.84

O adjetivo «raro» é frequente nas suas pá-ginas, como o são as personagens aureoladaspelo génio ou tocadas pelo charme da perversi-

84 Id.,Poemas Completos,p.34.

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dade, da diferença e da loucura. A «americanafulva» d’A Confissão de Lúcio é assim retratada:

A sua formosura era uma destas belezasque inspiram receio. Com efeito, mal a vi, aminha impressão foi de medo — dum medosemelhante ao que experimentamos em facedo rosto dalguém que praticou uma açãoenorme e monstruosa. [...]85

Váriascenaseróticassãodescritasnasnovelase levadas a extremos de imaginação sensorial.Veja-se, por exemplo, esta passagem do conto«Loucura»:

A estátua que Raul actualmente cinzelava,era Marcela. Aperfeiçoava-a para o amor e—sempensarnapedra—pensavaagorasónasuacarne;mármoreardente,palpitante...Imagina-va, ensinava-lhe requintes de volúpia. Ela, debomgradoseprestavaatodasassuasfantasias.

Nãoerabanalmentenoleitoburguês—àsescuras — que os seus corpos se estreitavam;eraemplenaluz,emestofoscarosemoles,nosdivãsdoatelier,donde,nafúriadoamplexo,ro-lavamparaochão—abraçados,confundidos...

Marcela aparecia envolta em qualquer rou-pagemtransparente.Acarnenuamostrava-seatravésdodelgadotecido;osseioserectososci-lavamcomassuaspontasrosadasaenfolaremopano... Ah! como ele gostava de morder essesseios!Beijava-os,mordia-ostãosofregamente,que uma vez o sangue correra...

85 Id.,A Confissão de Lúcio,p.18.

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Raul, acabava de despir a visão pertur-badora, mergulhava o rosto no mar dos seuscabelos, sorvia beijos nos seus lábios, emtodo o seu corpo... Adorava os seus pés dedeusa; metia-os na boca, roía-os. Beijava-lheas pernas nervosas e brancas, enlaçava-asnas suas.

Dizia-lhe: ‘És tão linda! A tua pele, meuamor,cobretodaatuacarne;distendida,semuma prega... parece querer estoirar...’

Um dia, ela pediu-lhe que fizesse o seubusto. Ele fez uma estátua. Modelou-a numabacante ébria de luxúria e vinho, contorcidanum espasmo delirante. Concluída a obra, que-brou-a:‘Nãoconseguira—disse—reproduziremmármore o mármore do seu corpo...’

A sua maneira de amar passou por váriasfases;fezdeMarcelaumacortesãgrega,umaprostitutaromana,umacocoteparisiense...86

Outras descrições semelhantes evidenciam ogosto da hipérbole: os beijos são mordeduras, assensações são espasmos ou delírios, as mulheresbelas são admiráveis «feras de amor», o encantoé deslumbramento, a singularidade é génio, o en-tusiasmo é chama que consome.

Aexcentricidadevaidemãosdadascomalou-cura na obra de Mário de Sá-Carneiro. A loucurateve um grande peso simbólico para a geração de1915, não só enquanto imagem funambulesca deumaiconoclastiavanguardista,mastambémcomosinalmaisprofundodadissociaçãodosujeitomo-

86 Id., Princípio,Lisboa,LivrariaFerreira,191�,pp.53-55.

6�

derno. Ela é um tema constante em poetas comoFernandoPessoa,MáriodeSá-CarneiroeAlmadaNegreiros,cujarepresentaçãodasensibilidadeno-vecentistapõeemcausaasnoçõesdenormalidadee de coesão do sujeito.

Na poesia de Álvaro de Campos, por exemplo,termoscomo«loucura»,«febre»,«dordecabeça»,«insónia», etc. designam metaforicamente essemal-estar, o mal de vivre do homem moderno.OmedodaloucuraobcecouPessoadesdeaprimei-rajuventude,comoevidenciaasuaobrapoéticaeficcionalescritaentre1903e1910,nomeadamenteo conjunto de poemas Flashes of Madness, deAlexander Search, e os contos «A very originaldinner», uma história de mania e canibalismo, e«The Door», um texto no qual o narrador analisaa sua obsessão por uma porta, com todos os ins-trumentos teóricos fornecidos pelas novas ideiassobre as doenças mentais. Circulavam por essaalturanaEuropaasprimeirasediçõesdasobrasdeLombrosoedeMaxNordau,ePessoafoiumleitorapaixonadodosestudossobreadegenerescênciaeas neuroses. Ele próprio compôs centenas de pá-ginas sobre os fenómenos psíquicos e as relaçõesentre génio e loucura. Num apontamento nãodatado,escreveuarespeitodopoetadeDispersão:«Disse uma vez a Sá-Carneiro, ‘V. é o homem sãolouco’, e a frase ajusta-se, não só particularmentea ele, mas a todo o homem de génio.»87

87 Cf.Mário de Sá-Carneiro: «O Homem São Louco»(coord.cient.Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro), Lisboa, BibliotecaNacionaldePortugal,�016,p.43.

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Também Mário de Sá-Carneiro escreveu sobre aloucura,representando-acomoodestinodaquelesquenãoseadaptamàsconvençõessociaisequedefendematodoopreçoasualiberdadeindividual.Aloucuraéparaeleumaformadesingularidadequereforçaacondiçãosu-periordoartista,masqueaomesmotempoocondenaaoisolamentoeaosofrimento.NascartasaPessoa,oautord’A Confissão de Lúciodescreveporvezesassuasprópriasextravagânciaseosseusdelírios—asua«zoina»,comogostadedizer—echegamesmo,numadelas,atomaraloucuradeÂngelodeLimacomotermodecomparaçãocomasua.Nasúltimasmissivas,poucoantesdosuicídio,asreferênciasàssuascrisespsíquicasrepetem-sedefor-maangustiante:«AZoina,agrandeZoinasempre!Masquelhehei-deeufazer?...»88;«Nãolhediziaqueestavadoido! Vivo há semanas num inferno sem nome»89;«Unicamente para comunicar consigo, meu queridoFernando Pessoa. Escreva-me muito— de joelhos lhesuplico.Nãoseinada,nada,nada.Sóomeuegoísmomepodiasalvar.[...]Doido!Doido!Doido!Tenhamuitapenademim.»90Otermo,grafadocommaiúsculaetraduzin-doaconsciênciadeumdestinoaziago,aparecetambémno poema «Crise Lamentável», de janeiro de 1916:

[...] Que tudo em mim é fantasia alada,Um crime ou bem que nunca se comete:E sempre o Oiro em chumbo se derretePor meu Azar ou minha Zoina suada...91

88 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�61.89 Ibid.,p.�70.90 Ibid.,p.�86.91 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.138.

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Mas o interesse de Sá-Carneiro pelas zonasirracionaiseobscurasdamentevemdesdeaspri-meiras tentativas literárias, publicadas na revistaAzulejos.Maistarde,nasnovelasdeCéu em Fogo,várias personagens corporizam as obsessões doseu demiurgo e cumprem um destino excecional.Em «Mistério», um artista atormentado fantasia:«Endoidecer! — ah, se conseguisse semelhantetriunfo...»9� Também o protagonista de «Asas»,Petrus Ivanovitch Zagoriansky, enlouquece de-pois de ter alcançado escrever a sua obra. Naspalavras de Óscar Lopes, «a apologia da loucura,da degenerescência, da perversão e até da cri-minalidade como estados assimiláveis ao génioestético e divinatório ocorre com frequência nassuas ‘novelas originais’, subtítulo já de si tãosignificativo, e está mesmo inerente à sua estru-tura básica. ‘Ser louco é ter um pouco de Deusna alma.’»93 Um exemplo dessa associação entreloucura e arte é o já citado conto «Loucura...»,escrito em 1910 e incluído no volume Princípio.Anarrativadá-nosahistóriadoescultorRaulVilarque, incapaz de aceitar a passagem do tempo e oenvelhecimento,resolvedarasuamulhera«maiorprova de amor» — destruir-lhe a beleza física,lançando-lhe um frasco de vitríolo ao rosto, parasó lhe amar a alma... Não chegando a consumar

9� Id.,Céu em Fogo,p.91.93 ÓscarLopes,«MáriodeSá-Carneiro»,inEntre Fialho e Nemé-

sio. Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea, vol. ii,Lisboa,INCM,1987,p.5�9.

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o ato tresloucado, o artista acaba por se suicidar.E o narrador interroga-se:

Loucura? — Mas afinal o que vem a ser aloucura?...Umenigma...Porissomesmoéqueàs pessoas enigmáticas, incompreensíveis, sedá o nome de loucos...94

Percebemos, nas páginas finais da narrativa,como Sá-Carneiro se aventura nesse terreno mo-vediçocomumapontademedo,ouatédecomise-ração, pressentindo o seu próprio infortúnio:

«É bem digno de compaixão esse pobresuicida»—concordamtodos.Mesmosetivessesido um criminoso, eu diria:

—Peçonãoguardemdasuamemóriaumanáusea, não clamem, desviando os olhos dassuas estátuas — «Assassino!»— Lembrem-se:foiumlouco.Tenhampiedade...muitapiedadedesse desventurado. [...]95

94 MáriodeSá-Carneiro,Princípio,p.60.95 Ibid.,p.1�8.

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«Fim»

Dois meses antes do suicídio, em carta de16 de fevereiro de 1916, Mário de Sá-Carneiroenviou a Pessoa duas quadras que resumiam «averdadenuaecrua»dasuadesolação.Opoemasó seria publicado em 19�4, no n.º � da revistaAthena, com o título «Fim»:

— Quando eu morrer batam em latas,Rompam aos saltos e aos pinotes —Façam estalar no ar chicotes,Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burroAjaezado à andaluza:A um morto nada se recusa,E eu quero por força ir de burro...96

96 Id.,Poemas Completos,p.14�.

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Ferido de morte pela «zoina» e pelo desa-lento, Sá-Carneiro encenava neste poema oseu fim, recuperando as imagens clownescastão caras à vanguarda modernista. Já em 1891António Nobre simulara o seu próprio enterrona «Balada do Caixão», um poema escrito tam-bém em Paris, mas na linha de um dandismolargamente cultivado pela tradição literária deOitocentos. Nesse poema, Nobre imaginava-senalojadoseuvizinho«carpinteiro,/AlgibebedeDona Morte», a escolher como um janota o seuderradeiro «fato»:

O meu vizinho é carpinteiro,Algibebe de Dona Morte,Ponteia e cose, o dia inteiro,Fatos de pau de toda a sorte:Mogno, debruados de veludo,Flandres gentil, pinho do Norte...Ora eu que trago um sobretudoQue já me vai a aborrecer,Fui-me lá, ontem (era Entrudo,Havia imenso que fazer...)— Olá, bom homem! quero um fato,Tem que me sirva? — Vamos ver...Olhou, mexeu na casa toda.— Eis aqui um e bem barato.— Está na moda? — Está na moda(Gostei e nem quis apreçá-lo:Muito justinho, pouca roda... — Quando posso mandar buscá-lo?— Ao pôr do Sol. Vou dá-lo a ferro:(Pôs-se o bom homem a aplainá-lo...)Ó meus Amigos! salvo erro,

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Juro-o pela alma, pelo Céu:Nenhum de vós, ao meu enterro,Irá mais dândi, olhai! do que eu!97

Vale a pena ler a par os poemas «Balada doCaixão»e«Fim»,tantomaisqueMáriodeSá-Car-neiroadmirouoautordoSóechegouaretratá-lonopoema«Anto»(Indícios de Oiro).Paraalémdostemas do eu e da morte que o ligam a Nobre, hátambém em Sá-Carneiro o gosto pela encenaçãoe pelo dandismo: nas suas páginas surgem comfrequência personagens estilizadas, maquilhadas,cultivandoaaparênciaeummododeestarteatral.«Balada do Caixão» e «Fim» têm em comum aantevisãodamorteearepresentaçãoautoirónica.Mas enquanto no poema de Nobre o sentimenta-lismo e o pessimismo, característicos da poesiafinissecular,sãovertidosnumalinguagemsimplesecoloquial,nodeMáriodeSá-Carneiroprevaleceo tom iconoclasta, com a sequência de imagenscarnavalescas e a «hiperexcitação» de que falavaPessoa a respeito da geração de Orpheu.

A solidão do eu poético e a nostalgia de umpassado perdido são tópicos comuns a Nobre e aSá-Carneiro. Mas a crescente angústia com que opoeta do «Quase» atravessou os anos parisienseslevou-o a um último ato de desespero, o suicídiocom que pôs fim ao seu drama de desajustado.Como vários críticos têm sublinhado, toda a obradeMáriodeSá-Carneiroanunciaosuicídio.Otema

97 António Nobre, Poesia Completa, Lisboa, Publicações DomQuixote,�000,p.�55.

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surge desde os seus primeiros contos: «João Ja-cinto», datado de 1908 e publicado por FrançoisCastex na Revista da Universidade de Coimbra em198498, desenvolve-se a partir da obsessão suicidado protagonista, um pobre diabo descrito como«um sonhador que acordou apenas para se matar,isto é: para continuar sonhando»99. Por sua vez,«LadislauVentura»,publicadonon.º60darevistaAzulejos(1908),narraahistóriadeumjovemque,movido pela paixão das letras e pela ambição deglória, dispara em pleno teatro sobre uma actrizevoltadepoisaarmacontrasipróprio,tornando-se célebre graças à «espantosa tragédia vivida».

NovolumedecontosPrincípio,odesfechosui-cidárioérecorrente(«Loucura»,«OSextoSentido»,«Diários», «O Incesto», «A Grande Sombra»). Em«A Profecia» (um dos fragmentos narrativos de«Diários»),oautorchegaaconceberahistóriadeuma personagem a quem pressagiaram a data damorte e que, no dia aprazado, incapaz de esperarpor mais tempo o cumprimento do vaticínio, sematacomumtiro.A�dedezembrode191�,poucodepois da chegada a Paris, Sá-Carneiro confessaem carta a Pessoa:

«[...]Depois,coisainteressante,quandoeumedito horas no suicídio, o que trago disso é

98 François Castex, «Un conte inédit de Mário de Sá-Carneiro»,Revista da Universidade de Coimbra,vol.31,1984.

99 MáriodeSá-Carneiro,«ContosBreves(1908-1909)»,inPrincípio e Outros Contos, introdução, apêndice documental e notas deAntónioQuadros,MemMartins,PublicaçõesEuropa-América,1991,p.113.

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um doloroso pesar de ter de morrer forçosa-mente um dia mesmo que não me suicide.»100

Otemaregressan’A Confissão de LúcioenasnovelasdeCéu em Fogo.DenotarqueopoetanuncaesqueceuosuicídiodoseucolegaeamigoTomásCabreiraJúnior,comquemescreveunoiníciode1910apeçaAmizade.Rapazsensível,órfãodemãecomoSá-Carneiroecomoele acalentando ambições literárias, Tomás CabreiraJúnior matou-se com um tiro de pistola no pátio doLiceuCamões,namanhãde9dejaneirode1911.Pou-cosmesesdepois,Sá-Carneirodedicouàsuamemóriaum longo poema com o título «A Um Suicida». Nosversos finais, irmanava dois destinos desventurados:

[...] Foi triste, muito triste, amigo a tua[sorte —

Maistristedoqueaminhaemal-aventurada... Mas tu inda alcançaste alguma coisa:

[a morte,E há tantos como eu que não alcançam

[nada...101

MáriodeSá-Carneirosuicidou-sea�6deabrilde1916,noseuquartodoHoteldeNiceemParis.A 31 de março, o poeta escrevia ainda a Pessoa,aludindo à ligação com uma mulher que poucoantes conhecera num cabaret de Paris:

Vivo há 15 dias uma vida como sempresonhei: tive tudo durante eles: realizada aparte sexual, enfim, da minha Obra — vivido

100 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�0.101 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.�51.

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o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, osmosqueirosroxosdasuaIlusão.Podiaserfelizmaistempo,tudomecorre,psicologicamente,àsmaravilhas:mas não tenho dinheiro.Contavafirmemente com certa soma que pedira aomeu Pai há 15 dias. Ela não chegou— e comorespostaumtelegramaàlegaçãoemqueomeuPaiperguntaquantodinheiroprecisoeuparair para Lisboa...»10�

Na mesma missiva, porém, anunciava-lhe oenvio por correio registado do seu caderno comos poemas de Indícios de Oiro passados a limpo(«quevocêguardaráede que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu»103), sugerindo apublicação dos versos em volume ou em revistas.Quandomarcouencontrocomamorte,Sá-Carnei-ro convocou para as «oito horas em ponto» umamigoresidenteemParis,JosédeAraújo,aquemdiasantesconfidenciaraasualigaçãotumultuosa.AJosé de Araújo se deve o relato do fim trágicode Mário de Sá-Carneiro, numa extensa carta aFernando Pessoa datada de 10 de maio:

[...] Foi no mês de Março pouco mais oumenos que Sá-Carneiro teve a infelicidadede encontrar num dos cafés de Montmartreumaraparigaporquemtevegrandeinteresse,digo interesse porque ainda hoje não sei seera amor, simpatia, ou ódio, não sei; desdeentão Sá-Carneiro mudou bastante, vinha

10� Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.�80.103 Ibid.

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aqui ao escritório sempre apressado, haviamesmo semanas que só aqui vinha três vezes,e mais nada. Assim, chegava aqui e dizia-me:Araújo preciso falar-lhe venha comigo a umcafé; saíamos e então ele coitado, contava-meo que se passava: que não podia continuarassim, impossível, impossível, aquela mulher;ummistério,umhorror,eporaquiforamuitonervoso, e contava-me o que se tinha passado(antes tenho que lhe dizer que ele tomavaestricnina em grande dose). Muitas vezes euperguntava-lheseelerealmentegostavadessamulher,asuarespostainvariávelera:Nãogostodessa mulher, juro-lhe que não gosto dessamulher. Calcule o meu amigo o que eu podiafazer nesta situação.

Um dia, �6 entrou ele no meu escritóriocomocostumava,depoisdefalarmosunsmo-mentosdisse-me—Araújoprecisoquevocêváhoje a minha casa à 8 h em ponto, sem falta.Assimfiz,quandoentreinoquarto,noteiqueele estava deitado, muito naturalmente per-guntei se lhe doía a cabeça; foi então que eledisse — acabei agora de tomar cinco frascosdearseniatodeestricnina,peço-lhequefiqueaqui. [...]»104

Foiumoutroamigo,CarlosFerreira,queemcartade �7 de abril deu a notícia a Pessoa: «Enche-te decoragem, da mesma coragem do nosso choradoMário. Sim, chorado!... Tem paciência e consegue

104 ApudMarinaTavaresDias,Mário de Sá-Carneiro.Fotobiografia,Lisboa,Quimera,1988,p.�1�.

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que a vidraça de água te não emoldure os olhos.[...]»105 A 4 de maio, o autor de Mensagem infor-mava Armando Côrtes-Rodrigues:

Não lhe tenho escrito. Tenho atravessadouma enorme crise intelectual. E agora estoumuito pior, com a enorme tragédia que nosaconteceu a todos.

OSá-Carneirosuicidou-seemParisnodia�6 de Abril.

Não tenho cabeça para lhe escrever, masnão quero deixar de lhe comunicar isto.

Claro está que a causa do suicídio foi otemperamento dele, que fatalmente o levariaàquilo. Houve, é claro, uma série de pertur-bações que foram as causas ocasionais datragédia.

Ele suicidou-se com estricnina. Umamorte horrorosa. Já tentara suicidar-se trêsvezes— em 3 de Abril a primeira.

Uma grande desgraça! [...]106

105 Ibid.,p.�09.106 Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues,

pp.76-77.

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«Daqui a vinte anos…»

Nosanosqueseseguiramàsuamorte,apoesiainéditadeMáriodeSá-Carneirofoiaospoucosdivul-gada pelas revistas modernistas, graças a FernandoPessoa e, mais tarde, ao grupo da Presença.

Logoem1917,Portugal Futuristapublicou«TrêsPoemas»escritosemParis:«ORecreio»,«Torniquete»e«Pied-de-Nez».DirigidaporCarlosFilipePorfírio,arevistafoioórgãodoFuturismoportuguêseteveumúniconúmero,imediatamenteapreendidopelapolícia. Provocação e agressividade verbal eram asnotasdominantesdeumapublicaçãoqueincluíao«Ultimatum» de Álvaro de Campos, «Os bailadosrussosemLisboa»,«Saltimbancos»,«Mima-Fatáxa»eo«Ultimatumfuturistaàsgeraçõesportuguesasdoséculoxx»deAlmadaNegreiros.Portugal Futuristareproduzia também quadros de Santa-Rita Pintore Amadeo de Souza Cardoso, uma fotografia depáginainteiradeSanta-Rita(«ograndeiniciadordomovimentofuturistaemPortugal»,comoseliaem

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legenda), poemas de Apollinaire e Blaise Cendrarse vários excertos de manifestos futuristas.

O semanário de Faro O Heraldo publicouno mesmo ano um suplemento intitulado «Fu-turismo», por iniciativa de um grupo de jovensque se reclamava do exemplo de Almada, Pessoae Sá-Carneiro. Nele foram incluídos o poema«Dispersão» e o fragmento em prosa «Além»,este último assinado com o nome fictício PetrusIvanovitch Zagoriansky e já em 1914 publica-do na revista A Renascença. A rubrica evocavao «requintado espírito de Poeta» de Mário deSá-Carneiro, à data tido ainda como «pontíficemáximo» do movimento futurista em Portugal.

Contemporânea, que se apresentava em sub-título como «Revista feita expressamente paragente civilizada — revista feita expressamentepara civilizar gente», foi um dos mais ambiciososprojetos culturais do Modernismo português.Teve um número espécime em 1915 e publicou-sedepois entre 19�� e 19�6, sob a direção de JoséPacheco, com um apurado grafismo e inúmerasreproduções de desenhos e pinturas de AlmadaNegreiros, Columbano, Eduardo Viana, StuartCarvalhais, Amadeo de Souza Cardoso, JorgeBarradas, Bernardo Marques e Mily Possoz.A diversidade dos seus colaboradores e o ecletis-mo dos seus interesses (música, artes plásticas,literatura,teatro,desporto,moda,política)fizeramde Contemporânea a revista modernista com umprograma interartístico mais alargado. Da co-laboração do grupo de Orpheu, destacam-se ostextosdeMáriodeSá-Carneiro,Almada,FernandoPessoa e Álvaro de Campos. No entanto, apesar

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da qualidade e do impacto da revista, Pessoaconfessava em carta de 4 de agosto de 19�3 aArmando Côrtes-Rodrigues:

Tantasaudade—cadavezmaistanta!—da-quelestemposantigosdoOrpheu,dopaùlismo,das intersecções e de tudo mais que passou![...]

V.temvistoaContemporânea?É,decertomodo,asucessoradoOrpheu.Masquediferen-ça!quediferença!Umaououtracousarelem-bra esse passado; o resto, o conjunto...107

Em19�4,FernandoPessoapublicounon.º�darevistaAthena,comotítulo«MáriodeSá-Carneiro(1890-1916)», o seu mais conhecido texto de ho-menagem à memória do companheiro de Orpheu.Retomando um aforismo de Plauto n’As Báquides(«Quemdidiliguntadulescensmoritur»),aevoca-ção mitificava um destino:

«Morre jovem o que os Deuses amam,éumpreceito da sabedoria antiga» [...]

Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nemalegria nem felicidade nesta vida. Só a arte,que fez ou que sentiu, por instantes o turboude consolação. São assim os que os Deusesfadaram seus. Nem o amor os quer, nem aesperançaosbusca,nemaglóriaosacolhe.Oumorrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem,íncolas da incompreensão ou da indiferença.

107 Ibid.,p.8�.

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Este morreu jovem, porque os Deuses lhetiveram muito amor. [...]108

Nomesmonúmerodarevista,Pessoadeuaco-nhecerseisdos«ÚltimosPoemas»deSá-Carneiro,escritos em Paris entre novembro de 1915 e feve-reiro de 1916 («Caranguejola», «Último Soneto»,«OFantasma»,«El-Rei»,«AqueleOutro»e«Fim»).

Nas páginas da revista Presença voltou a pres-tar-lhe tributo: além duma escolha de poemas(«Ápice», duas das sete «Canções de Declínio»,«CriseLamentável»e«Desquite»),organizouuma«Tábua bibliográfica de Mário de Sá-Carneiro», aprimeiradeumconjuntoqueapublicaçãocoimbrãdedicariaaosautoresmodernistasapartirdon.º16.

JoséRégiocontribuiutambém,emlargamedida,para relançar o autor de Dispersão. Desde a suatese de licenciatura, intitulada As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa edefendida na Faculdade de Letras de Coimbra em19�5, dedicou especial atenção àquele que consi-derouo«precursor»eo«mestre»doModernismoportuguês. Publicou depois na Presença os artigos«ClassicismoeModernismo»(n.º�)e«DaGeraçãoModernista» (n.º3), destacando neste último osnomesdeMáriodeSá-Carneiro,FernandoPessoaeAlmadaNegreiros.Procurandocaracterizara«in-dividualidade» artística de cada um, Régio definiuassim as personalidades de Sá-Carneiro e Pessoa:«[...]oqueemMáriodeSáCarneiroaparececomomanifestaçãodegénio,apareceemFernandoPessoa

108 Athena, n.º�,novembrode19�4,pp.41-4�.

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raciocinado,consciente,voluntário»109.Maistarde,na nota de apresentação de Sá-Carneiro incluídana1.ªsériedas Líricas Portuguesas,reiterouasuapreferência pelo poeta suicida: «Forma, com Fer-nando Pessoa, o díptico mais notável do chamadomodernismo português. A nós se nos afigura serele o mais genial.»110 Em 1957, a sua peça Mário ou Eu Próprio — O Outro, encenando os últimosmomentos de vida de Sá-Carneiro no quarto dohotelemParis,foiaindaumaformadehomenagem«à memória do poeta que [o] inspirou»111.

Outros colaboradores de Presença, como JoãoGaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro, chama-ramasiatarefadereabilitaçãodageraçãodeOr-pheu, debruçando-se sobre a obra dos seus vultosmaiores. Foi também sob a chancela das edições«Presença» que saiu em 1937 o volume de poesiaIndícios de Oiro, seguido de uma segunda ediçãode Dispersão em 1939.

Mário de Sá-Carneiro foi ainda evocado emCancioneiro (1930), um volume coletivo lançadopor ocasião do 1.º Salão dos Independentes, im-portante exposição de artistas plásticos da «novageração» na Sociedade Nacional de Belas-Artes.Apublicação,«dedicadaàmemóriadosprecursoresCesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo de Lima

109 Presença,n.º3,abrilde19�7,p.�.110 José Régio, Líricas Portuguesas, 1.ª série, Lisboa, Portugália

Editora,4.ªed.,1968,p.365.111 Sobre os estudos críticos de José Régio e o influxo de Sá-Car-

neironasuaobra,cf.otextodeFernandoJ.B.Martinho«Máriode Sá-Carneiro e José Régio», in Mário de Sá-Carneiro e o(s) Outro(s),Lisboa,Hiena,1990.

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e Mário de Sá-Carneiro», incluía poemas destesquatro autores, bem como colaboração de poetasligados ao Orpheu e à Presença.

Porsuavez,arevistaSudoeste(1935),dirigidaporAlmadaNegreiros,consagrouoseuúltimonúmeroàsduas gerações modernistas, num balanço do movi-mento que ficou a cargo de Fernando Pessoa («NósosdeOrpheu»)edeJoãoGasparSimões(«NósaPre-sença»).EnquantoPessoaexplicavaque, juntamentecomAlmada,procuroureunir«produçõesinéditasdequantosfiguraramliterariamentenarevistaextintaeinextinguívelaqueambospertence[ram]»11�,GasparSimõescaracterizavaPresençacomoumaespéciede«pessoamoral»,«autónomaemfacedasindividualidadesqueaconstituem»ecomum«pensamentoliterário»próprio—adefesada«independênciatotaldaarteemfacedosinteresseshumanosdecondiçãosocialepolítica,queelapressupõemasnãoserve»113.Entrecolaboraçãodeumavintenadeautores,figuravanon.º3deSudoesteopoemadeMáriodeSá-Carneiro«Serradura»,escritoemsetembrode1915eincluídonasprovasdepáginadoterceironúmerodeOrpheu.

Só em meados dos anos 40 foi reeditada emvolumeaobradeSá-Carneiro,quandoaeditorialÁtica, fundada em 1930 por Luís de Montalvor,iniciou a publicação das suas Obras Completas.Em 1945 saiu A Confissão de Lúcio, com notaeditorialdopróprioMontalvor;noanoseguinte,o volume Poesias, com prefácio de João GasparSimões, juntou finalmente Dispersão, Indícios

11� Sudoeste,n.º3,novembrode1935,p.3.113 Ibid.,p.��.

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de Oiro e Os Últimos Poemas; entre 1958 e 1959,forameditadososdoisvolumesdeCartas a Fer-nando Pessoa, com prefácio de Urbano TavaresRodrigues; e em 1966 Maria Aliete Galhoz, quetrês anos antes publicara um importante estudosobre o poeta, prefaciou a reedição de Céu em Fogo.

AprimeiraediçãodacorrespondênciadeMáriodeSá-Carneiroemfinaisdosanos50reuniacentoecatorzecartas,acrescidasdeumapêndicedocu-mental.ComelasecumpriaumaconjeturadePessoa,aqueoautordo«Quasi»aludianumacartade�0dejulho de 1914:

Você tem razão, que novidade literáriasensacional o aparecimento em 1970 da Cor-respondência inédita de Fernando Pessoa eMário de Sá-Carneiro — publicada e anotadapor... (perturbador mistério!)114

Irónica profecia, se tivermos em conta quequase todas as cartas de Pessoa a Sá-Carneiro seperderam,sendoapenasconhecidasquatro,aúlti-ma das quais escrita a �6de abril de 1916...

As edições da Ática, com várias reimpressões,permitiram o acesso do grande público a umaobra cujo influxo se fez sentir na poesia da gera-çãode50,comomostrouFernandoJ.B.Martinhoem Mário de Sá-Carneiro e o(s) Outro(s). MárioCesariny de Vasconcelos, Alberto de Lacerda, An-tónio Maria Lisboa e Alexandre O’Neill evocaramMáriodeSá-Carneirocomoparadigmada«recusa

114 Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa,p.131.

8�

deser»(aexpressãoédeCesariny,reportando-seà«radicalrejeiçãod’‘isto’,davida»,paracitarFernan-do J. B. Martinho115), da excitação da vivência cos-mopolitaoudodramadacisãodoeu.Algunspoetassurrealistashomenagearam-nocomoumprecursor,ou como um dos seus: veja-se, por exemplo, «Parauma cronologia do surrealismo português»116, deMário Cesariny, ou a antologia de Natália CorreiaO Surrealismo na Poesia Portuguesa(1973).OuaindaadeHerbertoHelderEdoi Lelia Doura(1985),umaseleção «ferozmente parcialíssima», nas palavrasdo próprio autor, da poesia portuguesa a partir deGomes Leal. Também a revista Pirâmide, surgidaem Lisboa em 1959 por iniciativadeumgrupoquesereuniahabitualmentenocaféGelo,reproduziuofragmento «Além», de Petrus Zagoriansky.

Num poema incluído no livro A Saca de Ore-lhas (1979), Alexandre O’Neill experimentou umexercício de «colagem» ou intersecção de versoscélebresdeSádeMirandaeSá-Carneiro,apretextode afinidades temáticas e da parcial coincidênciados sobrenomes dos dois autores:

Sá de Miranda Carneiro

comigo me desavimeu não sou eu nem sou o outro

sou posto em todo perigosou qualquer coisa de intermédio

115 FernandoJ.B.Martinho,Mário de Sá-Carneiro e o(s) Outro(s),p.71.

116 MárioCesarinydeVasconcelos,As Mãos na Água a Cabeça no Mar,Lisboa,Assírio&Alvim,1985.

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não posso viver comigopilar da ponte de tédio

não posso viver sem mimque vai de mim para o Outro117

A partir dos anos 60, multiplicaram-se as anto-logiasdepoesiaeprosadeMáriodeSá-Carneiro,edepoisasreediçõesdaobra,incluindoosprimeiroscontos e os poemas de juventude. A correspon-dência foi também objeto de novas edições, quederam a conhecer um maior número de cartas edocumentos. Sucessivas gerações de estudiosos,incluindoprestigiadoslusitanistasdeváriospaíses,produziramumaamplabibliografiacríticasobreoautordeCéu em Fogo.Oscentenáriosdonascimen-toedamortedeSá-Carneiroderamocasiãoaco-lóquios,exposições,catálogosenúmerosespeciaisde revistas (cf. Colóquio/Letras, n.os 117/118).

Lido hoje como um dos três nomes maioresdo Modernismo literário português, Mário de Sá--Carneiro deixava num verso de 1915 um desafio:«Daqui a vinte anos a minha literatura talvezse entenda.»118 Fadado pelos deuses a uma vidabreve, lançava ao futuro a sua mais funda ilusão,justamentenumpoemaemquepareciaabrirmãodetodaselas(«Deixa-tedeilusões,Mário»119).Nassuas múltiplas dobras, «Caranguejola» refletia aimagem especular de um eu vencido e desistente,mas também a imagem espectral de uma «litera-

117 Alexandre O’Neill, Poesias Completas (1951/1986), Lisboa,INCM,3.ªed.,1990,p.373.

118 MáriodeSá-Carneiro,Poemas Completos,p.133.119 Id., ibid.

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tura» que diante dele se autonomizava para lhesobreviver. Autor duma fulgurante obra poéticae ficcional, Sá-Carneiro afirmava naquele verso,mais do que nunca, a sua crença na aura da artee a consciência duma singularidade criadora queo tempo viria a reconhecer.

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Cronologia

1890—FilhodeCarlosAugustodeSáCarneiroedeÁguedaMariadeSousaPeresMurinello,MáriodeSá-Carneironasceua19demaioemLisboa,non.º9�daruadaConceição.Obisavô,JoséPaulinode Sá Carneiro, participou nas lutas liberais e foipardoReino.Talcomooavô,tambémopaiseguiua carreira militar, depois de concluir o curso deEngenharia.

189� — Águeda Maria morreu de febre tifoide,a 11 de dezembro, com �3 anos.

1894 — Carlos Augusto iniciou uma vida deboémia e de viagens (Paris, Roma, Nova Iorque).Mário ficou entregue ao cuidado dos avós JoséPaulinoeCacildaVictorina,passandoavivercomelesecomaamaMariadaEncarnaçãonaQuintada Vitória, em Camarate. Afastado do pai, mima-do e isolado, passou grande parte da infância naquinta,imaginandomundosfantásticosquedepois

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descreverianoscontos(cf.«AGrandeSombra»,inCéu em Fogo).

1900 — Deixou a quinta de Camarate paraingressar no Liceu do Carmo.

1904—Duranteoverão,viajoucomopaipelaEuropa, passando por Paris, Lucerna, Veneza,Roma e Nápoles. No final do ano, lançou o jornalacadémico humorístico O Chinó, que pôs à vendano quiosque do Largo do Carmo.

1905 — O seu drama em um ato O Vencido foilevado à cena no Clube Simões Carneiro. Conti-nuou a escrever poemas (em 1903 dedicara um àQuintadaVitória)ecomeçouafazertraduçõesdeVictor Hugo, Goethe, Heine e Schiller.

1906—PassouafrequentaroLiceudeS.Domingos.

1907 — A 15 de maio participou numa réci-ta teatral com o Grupo Dramático do Liceu deS.Domingos.VoltouaParis,comopai,duranteasférias de verão.

1908 — Começou a publicar poemas e contosbreves na revista Azulejos.

1909—Ingressounorecém-criadoLiceuCamões,juntamentecomosalunosdoLiceudeS.Domingos.

1910 — De parceria com Tomás Cabreira Jú-nior, escreveu a peça Amizade, lida em abril a umpequeno grupo de amigos.

1911 — A 9 de janeiro, Tomás Cabreira Júniorsuicidou-se com um tiro de pistola no pátio do

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Liceu Camões. Alguns meses depois, Mário deSá-Carneiro escreveu o poema «A Um Suicida».Concluído o curso liceal, matriculou-se na Fa-culdade de Direito da Universidade de Coimbra.Em novembro, escreveu ao pai pedindo-lhe queo tirasse de Coimbra, por não se habituar à vida«fora de casa» e detestar o curso.

191� — A peça Amizade foi representada pelaSociedade de Amadores Dramáticos no ClubeEstefânia. Sá-Carneiro publicou o volume denovelas Princípio, com a dedicatória «A meu Pai,estas páginas escritas entre os dezoito e os vintee dois anos». Travou conhecimento com Fernan-do Pessoa, que viria a ser o seu principal amigo,leitor e editor. A 13 de outubro partiu para Paris,para seguir o curso de Direito na Sorbonne. Embreveabandonouasaulasecomeçouafrequentaros cafés da rive droite, as esplanadas das grandesavenidas e as salas de espetáculo.

1913—Conviveucomalgunsartistas,entreelesSanta-RitaPintor,queretratounacorrespondênciacom Pessoa e que lhe inspirou a personagem deGervásioVila-Nova(A Confissão de Lúcio).Regres-sou a Lisboa em junho e escreveu a peça Alma deparceria com António Ponce de Leão. No final doano publicou os livros Dispersão e A Confissão de Lúcio, ambos com data do ano seguinte.

1914 — Com Pessoa e outros futuros colabo-radores de Orpheu, começou a programar umarevista literária intitulada Lusitânia. Em meadosdoano,otítulodoprojetoerajáEuropa.Regressoua Paris com o pai, que daí partiu rumo a Louren-

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ço Marques, para dirigir os Caminhos de Ferro.AdeflagraçãodaPrimeiraGuerraMundiallevou-oa sair de Paris em agosto. Passou por Barcelona,onde conheceu o escritor catalão Ribera i Rovira,e na viagem de regresso a Lisboa cruzou-se comGuerra Junqueiro, de quem traçou um curiosoretrato em carta a Fernando Pessoa. Instalado apartir de outubro na Quinta da Vitória, conviveuregularmentecomosamigosnoscafésdoRossioedo Chiado e no Restaurante Irmãos Unidos.

1915—Oprimeironúmerode Orpheusaiuemmarço, sob a direção de Luís de Montalvor e Ro-nald de Carvalho, e com desenho de capa de JoséPacheco.MáriodeSá-Carneiropublicouovolumede contos Céu em Fogo. O número � de Orpheu,de abril-maio-junho, teve já como diretores Fer-nando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em julho,Sá-CarneiroregressouaParis,instalando-sepoucodepois no Hotel de Nice, na rue Victor Massé.Continuou a escrever poemas para os Indícios de Oiroeacorresponder-secomPessoa,anunciando-lhe a impossibilidade de continuar a publicaçãode Orpheu.

1916—ConheceunumcabaretdeMontmartreuma mulher com quem teve uma ligação e quechegouadissuadi-lodeumatentativadesuicídio.Em carta de 31 de março, comunicou a FernandoPessoa o envio pelo correio do seu caderno deversos, confiando-lhe a publicação dos poemasde Indícios de Oiro. Suicidou-se a �6 de abril noseu quarto do Hotel de Nice, com cinco frascosde arseniato de estricnina. Foi sepultado a �9 de

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abrilnocemitériodePantin.AscartasdeFernandoPessoaperderam-senasuaquasetotalidade.Pertodo fim da vida, o autor de Mensagem dedicou aSá-Carneiro um poema inacabado, evocando umarara comunhão de almas: «[...] Hoje, falho de ti,sou dois a sós»1�0...

1�0 CartasdeMáriodeSá-CarneiroaFernandoPessoa,p.344.

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RÉGIO,José,Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa,Porto, Brasília, 4.ª ed., 1976 (1.ª ed., 1941).

ROCHA, Clara, «Mário de Sá-Carneiro: o outro lado do fogo»,Colóquio/Letras, n.os 117/118, Lisboa, setembro-dezembro1990; reed. em O Cachimbo de António Nobre e Outros Ensaios, Lisboa, Dom Quixote, �003.

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TORIELLO, Fernanda, La Ricerca Infinita, Bari, AdriaticaEditrice, 1987.

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ZENITH, Richard, «A verdadeira partida a Sá-Carneiro», Co-lóquio/Letras, n.º 195, Lisboa, maio �017.

O Essencial sobre

1 Irene Lisboa Paula Morão

� Antero de Quental Ana Maria A. Martins

3 A Formação da Nacionalidade

Ana Maria A. Martins

4 A Condição Feminina Maria Antónia Palla

5 A Cultura Medieval Portuguesa (Sécs. XI e XIV) Maria Antónia Palla

6 Os Elementos Fundamentais da Cultura

Jorge Dias

7 Josefa d’Óbidos Vítor Serrão

8 Mário de Sá-Carneiro Clara Rocha

9 Fernando Pessoa Maria José de Lancastre

10 Gil Vicente Stephen Reckert

11 O Corso e a Pirataria Ana Maria P. Ferreira

1� Os «Bebés-Proveta» Clara Pinto Correia

13 Carolina Michaëlis de Vasconcelos Maria Assunção Pinto Correia

14 O Cancro José Conde

15 A Constituição Portuguesa Jorge Miranda

16 O Coração Fernando de Pádua (�.ªedição)

17 Cesário Verde Joel Serrão

18 Alceu e Safo Albano Martins

19 O Romanceiro Tradicional J. David Pinto-Correia

�0 O Tratado de Windsor Luís Adão da Fonseca

�1 Os Doze de Inglaterra A. de Magalhães Basto

�� Vitorino Nemésio David-Mourão Ferreira

�3 O Litoral Português Ilídio Alves de Araújo

�4 Os Provérbios Medievais Portugueses

José Mattoso

�5 A Arquitectura Barroca em Portugal Paulo Varela Gomes

�6 Eugénio de Andrade Luís Miguel Nava

�7 Nuno Gonçalves Dagoberto Markl

�8 Metafísica António Marques

�9 Cristóvão Colombo e os Portugueses

Avelino Teixeira da Mota

30 Jorge de Sena Jorge Fazenda Lourenço

31 Bartolomeu Dias Luís Adão da Fonseca

3� Jaime Cortesão José Manuel Garcia

33 José Saramago Maria Alzira Seixo

34 André Falcão de Resende Américo da Costa Ramalho

35 Drogas e Drogados Aureliano da Fonseca

36 Portugal e a Liberdade dos Mares

Ana Maria Pereira Ferreira

37 A Teoria da Relatividade António Brotas

38 Fernando Lopes-Graça Mário Vieira de Carvalho

39 Ramalho Ortigão Maria João L. Ortigão

de Oliveira

40 Fidelino de Figueiredo A. Soares Amora

41 A História das Matemáticas em Portugal

J. Tiago de Oliveira

4� Camilo João Bigotte Chorão

43 Jaime Batalha Reis Maria José Marinho

44 Francisco de Lacerda J. Bettencourt da Câmara

45 A Imprensa em Portugal João L. de Moraes Rocha

46 Raul Brandão A. M. B. Machado Pires

47 Teixeira de Pascoaes Maria das Graças Moreira de Sá

48 A Música Portuguesa para Canto e Piano

José Bettencourt da Câmara

49 Santo António de Lisboa Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

50 Tomaz de Figueiredo João Bigotte Chorão

51/ Eça de Queirós5� Carlos Reis

53 Guerra Junqueiro António Cândido Franco

54 José Régio Eugénio Lisboa

55 António Nobre José Carlos Seabra Pereira

56 Almeida Garrett Ofélia Paiva Monteiro

57 A Música Tradicional Portuguesa

José Bettencourt da Câmara

58 Saúl Dias/Júlio Isabel Vaz Ponce de Leão

59 Delfim Santos Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

60 Fialho de Almeida António Cândido Franco

61 Sampaio (Bruno) Joaquim Domingues

6� O Cancioneiro Narrativo Tradicional

Carlos Nogueira

63 Martinho de Mendonça Luís Manuel A. V. Bernardo

64 Oliveira Martins Guilhermed’OliveiraMartins

65 Miguel Torga Isabel Vaz Ponce de Leão

66 Almada Negreiros José-Augusto França

67 Eduardo Lourenço Miguel Real

68 D. António Ferreira Gomes Arnaldo de Pinho

69 Mouzinho da Silveira A. do Carmo Reis

70 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

71 A Literatura de Cordel Portuguesa

Carlos Nogueira

7� Sílvio Lima Carlos Leone

73 Wenceslau de Moraes Ana Paula Laborinho

74 Amadeo de Souza-Cardoso José-Augusto França

75 Adolfo Casais Monteiro Carlos Leone

76 Jaime Salazar Sampaio Duarte Ivo Cruz

77 Estrangeirados no Século XX

Ana Paula Laborinho

78 Filosofia Política Medieval Paulo Ferreira da Cunha

79 Rafael Bordalo Pinheiro José-Augusto França

80 D. João da Câmara Luiz Francisco Rebello

81 Francisco de Holanda Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

8� Filosofia Política Moderna Paulo Ferreira da Cunha

83 Agostinho da Silva Romana Valente Pinho

84 Filosofia Política da Antiguidade Clássica Paulo Ferreira da Cunha

85 O Romance Histórico Rogério Miguel Puga

86 Filosofia Política Liberal e Social

Paulo Ferreira da Cunha

87 Filosofia Política Romântica

Paulo Ferreira da Cunha

88 Fernando Gil Paulo Tunhas

89 António de Navarro Martim de Gouveia e Sousa

90 Eudoro de Sousa Luís Lóia

91 Bernardim Ribeiro António Cândido Franco

9� Columbano Bordalo Pinheiro

José-Augusto França

93 Averróis Catarina Belo

94 António Pedro José-Augusto França

95 Sottomayor Cardia Carlos Leone

96 Camilo Pessanha Paulo Franchetti

97 António José Brandão AnaPaulaLoureirodeSousa

98 Democracia Carlos Leone

99 A Ópera em Portugal Manuel Ivo Cruz

100 A Filosofia Portuguesa (Séculos XIX e XX)

António Braz Teixeira

101/ O Padre António Vieira10� Aníbal Pinto de Castro

103 A História da Universidade Guilherme Braga da Cruz

104 José Malhoa José-Augusto França

105 Silvestre Pinheiro Ferreira José Esteves Pereira

106 António Sérgio Carlos Leone

107 Vieira de Almeida Luís Manuel A. V. Bernardo

108 Crítica Literária Portuguesa (até 1940)

Carlos Leone

109 Filosofia Política

Contemporânea (1887-1939) Paulo Ferreira da Cunha

110 Filosofia Política Contemporânea (desde 1940) Paulo Ferreira da Cunha

111 O Cancioneiro Infantil e Juvenil de Transmissão Oral

Carlos Nogueira

11� Ritmanálise Rodrigo Sobral Cunha

113 Política de Língua Paulo Feytor Pinto

114 O Tema da Índia no Teatro Português

Duarte Ivo Cruz

115 A I República e a Constituição de 1911

Paulo Ferreira da Cunha

116 O Capital Social Jorge Almeida

117 O Fim do Império Soviético José Milhazes

118 Álvaro Siza Vieira Margarida Cunha Belém

119 Eduardo Souto Moura Margarida Cunha Belém

1�0 William Shakespeare Mário Avelar

1�1 Cooperativas Rui Namorado

1�� Marcel Proust António Mega Ferreira

1�3 Albert Camus António Mega Ferreira

1�4 Walt Whitman Mário Avelar

1�5 Charles Chaplin José-Augusto França

1�6 Dom Quixote António Mega Ferreira

1�7 Michel de Montaigne Clara Rocha

1�8 Leonardo Coimbra Ana Catarina Milhazes

1�9 Pablo Picasso José-Augusto França

130 O Diário da República Guilhermed’OliveiraMartins

131 Vergílio Ferreira Helder Godinho

13� A Companhia Nacional de Bailado Mónica Guerreiro

133 Ballets Russes em Lisboa Maria João Castro

134 Dante Alighieri António Mega Ferreira

Olivroo essencial sobre mário de sá-carneiro

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