O Ensino Educativo Da Filosofia Numa Perspectiva Dissensual

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O Ensino educativo da Filosofia numa perspectiva dissensual 1 Pedro Danilo Galdino (UFRN) Resumo: Este trabalho tem por objetivo esclarecer os rigorosos significados que Jacques Rancière emprega aos termos “estética”, “política” e “polícia”, além de pensar como eles se relacionam numa partilha do sensível, que é uma relação totalmente diferente da estetização da política ou da politização das artes que fala Walter Benjamin. Propõe- se, por conseguinte, estabelecer um paralelo entre essas definições com o papel formador exercido pela educação e, em particular, pelo ensino de filosofia, a partir da ideia de dissenso inerente à definição de política dada por Rancière em O desentendimento: política e filosofia e na Partilha do sensível, para com isso articular os pressupostos inerentes à educação dissensual, que possa ser uma saída para não acabarmos em ações que confluam numa mera reprodução da sociedade dominante, como diria Pierre Bourdieu. Espera-se com o presente artigo pensar e articular como a filosofia e seu ensino podem ter o papel crítico e litigioso que é essencial para a formação de cidadãos autônomos e emancipados intelectualmente. Palavras-Chave: ensino de filosofia, estética, política e educação dissensual. The educative teaching of Philosophy in a dissensual perspective Abstract: This paper aims to clarify the strict meanings that Jacques Rancière employs to the terms “aesthetics”, “politics” and “police”, besides thinking how they relate besides thinking how they relate in a partition of sensitive, which is a completely different relationship from aestheticization of politics or the politicization of the arts what Walter Benjamin says. It is proposed, therefore, to draw a parallel between these definitions with the formative role exercised by education and, in particular, by the teaching of Philosophy from the idea of dissensus inherent in policy setting given by Rancière in “O Desentendimento: Política e Filosofia” and “A Partilha do Sensível”, for thereby articulating the presuppositions inherent in the education divergent, that might be a way to not end up in actions 1 Trabalho apresentado na 2ª CBPFIL (Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia), em Recife. 1

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O Ensino educativo da Filosofia numa perspectiva dissensual1

Pedro Danilo Galdino (UFRN)

Resumo:Este trabalho tem por objetivo esclarecer os rigorosos significados que Jacques Rancière emprega aos termos “estética”, “política” e “polícia”, além de pensar como eles se relacionam numa partilha do sensível, que é uma relação totalmente diferente da estetização da política ou da politização das artes que fala Walter Benjamin. Propõe-se, por conseguinte, estabelecer um paralelo entre essas definições com o papel formador exercido pela educação e, em particular, pelo ensino de filosofia, a partir da ideia de dissenso inerente à definição de política dada por Rancière em O desentendimento: política e filosofia e na Partilha do sensível, para com isso articular os pressupostos inerentes à educação dissensual, que possa ser uma saída para não acabarmos em ações que confluam numa mera reprodução da sociedade dominante, como diria Pierre Bourdieu. Espera-se com o presente artigo pensar e articular como a filosofia e seu ensino podem ter o papel crítico e litigioso que é essencial para a formação de cidadãos autônomos e emancipados intelectualmente.Palavras-Chave: ensino de filosofia, estética, política e educação dissensual.

The educative teaching of Philosophy in a dissensual perspective

Abstract:This paper aims to clarify the strict meanings that Jacques Rancière employs to the terms “aesthetics”, “politics” and “police”, besides thinking how they relate besides thinking how they relate in a partition of sensitive, which is a completely different relationship from aestheticization of politics or the politicization of the arts what Walter Benjamin says. It is proposed, therefore, to draw a parallel between these defini -tions with the formative role exercised by education and, in particular, by the teaching of Philosophy from the idea of dissensus inherent in policy setting given by Rancière in “O Desentendimento: Política e Filosofia” and “A Partilha do Sensível”, for thereby articulating the presuppositions inherent in the educa-tion divergent, that might be a way to not end up in actions that converge in a mere reproduction of the dominant society, as Pierre Bourdieu would say. It is expected with this article thinking and articulates how the philosophy and its teaching can have litigious and critical role that is essential for the formation of autonomous citizens and intellectually emancipated.Keyword: philosophy teaching, aesthetics, politics and education divergent.

Introdução

O presente artigo tem por objetivo buscar um ensino de filosofia, e uma educação em

geral, mais litigiosa e conflituosa, que rompa com a partilha do sensível preocupada apenas em

reproduzir e perpetuar injustiças – como nos alertou o sociólogo Pierre Bourdieu cujo

pensamento afirmava que o processo pedagógico nunca é igualitário, devido, por exemplo, às

diversas diferenças nas origens dos alunos, sejam elas sociais, étnicas, econômicas ou

topológicas. Porém, como faremos com que ela tenha o papel que tanto ansiamos, isto é, de criar

1 Trabalho apresentado na 2ª CBPFIL (Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia), em Recife.

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no seio da sociedade indivíduos autônomos, críticos e conscientes de suas funções nos jogos

sociais em que estamos inseridos? Neste sentido, tentar-se-á com o presente trabalho pensar e

articular os pressupostos que norteiam a filosofia e seu ensino, tendo em vista o papel crítico e

litigioso que é essencial para a formação de cidadãos autônomos e emancipados

intelectualmente. Para tanto será indispensável explicar alguns termos importantes que facilitará

a compreensão de um ensino de filosofia em tal perspectiva a partir, principalmente, dos

conceitos de “política” e de “partilha do sensível” inerentes à obra de Jacques Rancière.

Para tanto, o trabalho dividir-se-á em três momentos. Uma introdução cujo papel será

explicar o porquê deste trabalho e por qual motivo a escolha de Jaques Rancière ser o norte do

mesmo. Uma segunda que explicará os principais termos contidos em suas obras como os de

partilha do sensível, de estética, de polícia e de política. E, por último, com tais conceitos em

mente, desenvolver-se-á os elementos para a educação num prisma dissensual, relacionando-os

com a educação e o ensino de filosofia. Entretanto, antes de qualquer coisa, será necessária uma

pequena biografia sobre o autor para esclarecermos a importância do autor para a educação.

O filósofo francês Jacques Rancière contava 28 anos durante o movimento de maio de

68. Antes disso, em 1965, escreveu, de forma conjunta com o seu então mestre Louis Althusser,

o livro Ler o Capital (1968). Entretanto, anos após, mais precisamente em 1974, na obra A lição

de Althusser, rompe com o seu mestre e, consequentemente, com o seu pensamento. Neste

sentido podemos dizer que o autor saiu de um contexto imprescindivelmente marxista e passou a

uma posição marcantemente antimarxista e, como afirma Eduardo Pellejero, “em última

instância, Rancière rebela-se contra a partilha que o marxismo de Althusser pressupõe” (2009, p.

19) – este ponto da vida do filósofo é de extrema importância e será retomado mais para frente.

Durante a década de 80, o autor esteve preocupado, de forma predominante, com os

movimentos do proletariado e com o ideal de emancipação, principalmente, nas obras: A noite

dos proletários (1981), O filósofo plebeu (1985) e O mestre ignorante: cinco lições sobre a

emancipação intelectual (1987). Deste período, destaca-se a terceira – que talvez seja sua obra

mais conhecida. Nela o autor relata as aventuras pedagógicas de Joseph Jacotot que em meados

do século XIX, após uma experiência desenvolvida ao acaso, percebe que seus alunos

aprenderam algo sem a necessidade de explicações – até mesmo pelo fato de que alunos e

professor não eram dotados de uma língua em comum. Por este fato, os discentes, com a sua

própria vontade, driblaram as diversas dificuldades e conseguiram aprender, por conta próprio,

àquilo a que se propuseram. Entretanto, Jacotot levou a ideia ao extremo, se podemos ensinar

sem explicar, então podemos “ensinar” aquilo que nós próprios ignoramos desde que haja uma

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emancipação intelectual por parte do alunado, ou seja, estes devem ser indivíduos autônomos

intelectualmente. Tal análise, feita por Rancière, sobre o achado pedagógico de Jacotot,

apresenta-se como uma importante fundamentação para a educação e, por este motivo, ela já

seria suficiente para se pensar a pedagogia a partir de uma visão inovadora. Entretanto, tal obra

não é o foco do presente artigo.

Pouco tempo após este momento, o pensamento de Rancière sofre uma guinada no qual

a preocupação passa a ser a estética. As primeiras obras que mostram esta mudança são Curtas

viagens ao país do povo (1990) que “explora o impacto que certos movimentos populares teriam

sobre a obra de alguns artistas (Wordsworth, Büchner, Rilke, Bergman)” (PELLEJERO, 2009, p.

24) e Os nomes da história (1992) cuja tentativa é redirecionar a história no sentido das ciências

do homem a uma perspectiva ficcional (PELLEJERO, 2009). Desde então, o pensamento

rancieriano está emerso num contexto estético e político. A obra A partilha do sensível, por sua

vez, também está inserido neste ambiente.

A obra A partilha do sensível foi escrita com o intuito de explicar melhor a aproximação

que Rancière confere à estética e à política e de como a partilha do sensível se configura tendo

em vista tais conceitos. A questão da partilha do sensível têm suas raízes nos textos Políticas da

Escrita (1995) e O Desentendimento: filosofia e política (1996). Entretanto, tal aproximação não

tem nada a ver com a estetização da política ou com “uma captura perversa da política por uma

vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte” (RANCIÈRE, 2005, p. 16), isto é,

não é a utilização da arte para uma promoção de um stato quo. A Partilha é a principal obra para

entendermos, realmente, a ideia do autor dessa necessária conexão entre o estético e o político,

além, de ser excelente para notarmos a dicotomia entre política e polícia em sua obra – que é

pensada principalmente em O desentendimento.

Após este brevíssimo relato, percebemos que está presente, nas obras e na vida do autor,

o espírito que tanto procuramos nos nossos alunos, ou seja, um espírito questionador,

emancipado, dissensual, litigioso e que, em suma, não aceita as desigualdades e não tem medo de

romper com a opressão intelectual, social, política e cultural. O autor, desde o rompimento com

Althusser, passando pelo Mestre ignorante, chegando até a virada estético/político de A partilha

do sensível, passou por uma metamorfose em seu pensamento e passou a criticar inclusive as

noções de modernidade, de vanguarda e de pós-modernidade e, de certa forma, também, o que

podemos chamar de regime aurético e pós-aurético das artes que Walter Benjamim chama

atenção em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Após tais explanações,

passemos a analisar os principais conceitos e pressupostos que norteiam o pensamento de

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Rancière e que serão essenciais para pensarmos um ensino de filosofia e um ensino em geral a

partir de um prisma dissensual.

A estética, a política e a polícia na partilha do sensível

Jacques Rancière, na obra A partilha do sensível, analisa o conceito de partilha do

sensível enquanto cerne da política e como esta se relaciona com a estética a partir das práticas

artísticas. Para tanto, Rancière define primeiramente n’A partilha o conceito de estética. Como o

autor pensa tal conceito? Estética não é pensada ao molde kantiano, isto é, não é uma teoria da

arte cujos pressupostos seriam suas afecções no indivíduo, pois “a crítica da faculdade de julgar

não conhece a estética como teoria, [...] ela conhece apenas o adjetivo ‘estético’, que designa um

tipo de julgamento e não um domínio de objetos” (RANCIÈRE, 2009, p. 12), ou seja, Kant

confere a estética um caráter relacionado apenas a espécies de juízos o que lhe dá apenas um

caráter apriorístico relacionados à sensibilidade. Também, não é o sentido desenvolvido pelo o

romantismo alemão de Shelling ou de Hegel, isto é, não é uma teoria geral das artes. Para o autor

estética é “um regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de

articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de

pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do

pensamento” (RANCIÈRE, 2005, p. 13), em suma, a estética é sustentada por três pilastras: o

fazer, o ver e o pensar. Estes três pontos estão estreitamente relacionadas ao conceito de partilha

do sensível, de política e de polícia e são importantíssimos para entendê-los a partir daquilo que

podemos chamar de uma estética primeira.

Com o conceito de estética em mente, o autor passa a denominar pelo termo “partilha do

sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um

comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível

fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2005,

p. 15), desta forma, a partilha do sensível também define quem tem parte e quem não tem parte

nos negócios de uma comunidade. Um dos exemplos dados por Rancière para explicar tal

conceito é a definição de cidadão dada por Aristóteles: “o cidadão é quem toma parte no fato de

governar e ser governado” (Rancière, 2005, p. 16) onde, por conseguinte, há claramente uma

distinção na distribuição de fazeres. Porém, fala Rancière, desta partilha pressupõe-se outra

partilha que lhe é anterior – “aquela que determina os que tomam parte” (RANCIÈRE, 2005, p.

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16), pois para a pólis grega o escravo e o estrangeiro não tem parte nos negócios da cidade, por

exemplo. Por outro lado, a crítica platônica às multitarefas na república, configura-se como um

exemplo mais claro, principalmente, através da figura dos artesões que “não podem participar

das coisas comuns porque eles não têm tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu

trabalho. Eles não podem estar em outro lugar porque o trabalho não espera” (RANCIÈRE,

2005, p. 16). Tal configuração dos espaços, tarefas e tempo seria pensável dentro dum regime

que Rancière chama de policial. Desta forma, A partilha do sensível, como fica evidenciada,

configura-se nas relações dos que fazem e dos que não podem fazer, daquilo que é visto e

daquilo que é ocultado, do que é pensado e do que é impensável, em suma, dos que têm e dos

que não têm vez na comunidade.

Podemos notar, em tais ideias, uma relação entre os conceitos de partilha do sensível, de

estética e de política stricto lato, porém esta relação “não tem nada a ver com a ‘estetização da

política’ própria à era das massas, de que fala Benjamin” (RANCIÈRE, 2005, p.16), nem mesmo

com uma subversão da arte com fins propagandísticos para promover o Estado, como se notou

nos regimes nazista da Alemanha e o regime comunista russo, ou seja, a estética e a política aqui

estão inseridas em um ambiente comum, não é a utilização de uma por outra para fins próprios.

Tem a ver com uma relação na qual aquilo que é feito, visto e pensado (e de certa forma com

aquilo que podemos chamar de estética primeira) configura-se numa partilha que determina

quem faz, vê e pensa na comunidade – o que se torna algo essencialmente político, num sentido

largo.

Entretanto, como devemos pensar a política no sentido próprio que Jacques Rancière

confere à palavra? Para o autor a política opõe-se à polícia. Porém, não devemos entender estes

conceitos a partir das noções do senso comum, ou seja, não se quer dizer com política a pratica

desenvolvida pelas agremiações políticas e pelos “políticos” nos poderes legislativo e executivo;

muito menos se deve pensar com o termo polícia com o significado de um “aparelho do estado,

como maquinário que impõe sua ordem social” (PALLAMIN, 2010, p. 09), isto é, não é o

aparato do estado que tem por função meramente vigiar e prender os criminosos perigosos à

comunidade e que são procurados judicialmente.

Primeiramente, entende-se por política, a partir da perspectiva rancieriana, uma ruptura

com a partilha do sensível que supervaloriza a lógica dos com/sem voz, dos com/sem lugar,

daqueles que são excluídos e daqueles que são enaltecidos numa divisão dos espaços e funções

que é pensada de forma hierarquizada. A política, por conseguinte, tenta levantar na comunidade

o ideal de igualdade fundado em um caráter conflituoso, litigioso, dissensual, pois visa o

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rompimento de uma partilha para instaurar um regime no qual as hierarquias são

desconsideradas. Como afirma Vera Pallamin “a ação política via dissenso, rompe com a

configuração dada ao estado de coisas, frequentemente naturalizada, em que as relações de

dominação encontram-se firmadas ou cristalizadas, mudando os destinos e lugares ali definidos.

É uma batalha do sensível, sobre o perceptível” (2010, p. 08). Neste sentido afirma, também,

Eduardo Pellejero:

A política não constitui simplesmente a luta pelo poder, mas implica sempre uma certa partilha do sensível, uma redefinição das formas de ver e organizar o real; isto é, começa a pensar a política como instituição de um tempo diferente, que pelo agenciamento do sensível pode dar visibilidade a coisas que não a tinham, e abrir assim um espaço onde a gente considerada apenas boa para trabalhar descobre em si uma potência para falar e atuar conjuntamente. (2009, p. 20).

Por outro lado, o regime policial configura-se com um sentido totalmente diverso do

anterior. Este regime está entremeado na necessidade da perpetuação de um status quo, que

produz, reproduz e propaga a partilha do sensível cujos indivíduos são separados como que por

um abismo, onde se enaltece uma divisão hierarquizada da sociedade. Desta forma, podemos

afirmar que tanto os partidos políticos quanto a polícia – no sentido vulgar – são mecanismos

estatais responsáveis para a manutenção destas desigualdades, pois eles estão preocupados na

perpetuação do poder, controlando, assim, o crescimento de poucos a partir de interesses

próprios, em detrimento de muitos menos favorecidos e mais necessitados, tendo em vista a

distribuição dos que têm vez e quem não têm vez na comunidade, de quem participa e dos que

são excluídos. Como chama a atenção Rancière:

Chamamos geralmente pelo nome de política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar outro nome a essa distribuição e ao sistema dessas legitimações. Proponho chamá-la de polícia. (1995, p. 41).

Neste sentido, como a arte se insere neste contexto? Será que ela está mais preocupada

com o regime policial ou com o conflito da política? As obras de arte ao longo do tempo, antes

dos movimentos de vanguarda erigidos na modernidade, tinham um caráter meramente

representacional no qual a mímesis era posta em um altar. Porém, com o movimento modernista,

com as vanguardas artísticas e com o pós-modernismo, que Rancière colocará dentro do conceito

de regime estético das artes, passa-se a criticar a obra de arte hierarquizadora que tem por função

passar uma mensagem de caráter religioso/ético. Devido a isso a obra de arte passa a levantar a

bandeira da mudança de estatuto na arte, no qual os processos artísticos devem estar emersos em

um ambiente consciente e ao mesmo tempo inconsciente, onde o pathos e o logos são

complementares. Portanto, a obra de arte tem um papel determinante diante de um regime

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policial, como diz Pellejero (2009, p. 25), podendo “ora colaborar ajudando na

sobredeterminação dos lugares, das funções e dos títulos dentro da cidade, ora minar essa

partilha, colocando em questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens.”.

Como se percebe, obra artística pode ganhar um caráter policial ou político, diante da

partilha do sensível – pode perpetuar as hierarquizações ou erguer o ideal da igualdade.

Sobretudo, está necessariamente inserida em uma partilha do sensível e, portanto, tem uma

função determinada dentro dela. Se até mesmo a arte pode ter este papel, será que a educação

também pode se fundar no mesmo princípio? Será que a educação pode ter a mesma função de

perpetuar as hierarquias ou de servir de fundamentos para uma partilha do sensível igualitária

fundada no conflito? Tendo em vista os conceitos abordados, tentar-se-á responder tais questões

no restante do trabalho.

A educação, a partilha do sensível e o dissenso da política

Tendo em vista os conceitos abordados anteriormente, como poderemos pensar a

educação atual e a educação que almejamos, isto é, como a educação se manifesta e como ela

deve se configurar, tendo em vista o fundamento político do dissenso? Inicialmente, façamos

uma breve volta no tempo para vermos como a educação foi tradicionalmente pensada durante o

século XX até por volta da década de 70 e para notarmos que, de certa forma, ainda sobrevivem

vestígios desta pedagogia tradicional nos nossos dias.

Começo com uma pergunta: como se configurava/configura o jogo teatral da sala de

aula? O ambiente escolar estava em uma aura de rigorosidade na qual os alunos eram apenas

receptáculos que deviam estar sentados na classe esperando que o professor professasse sua

lição, despejando conhecimentos sobre suas cabeças. Desta forma, a educação se entrelaça numa

perspectiva pouco interacional, pouco dialogada e pouco produtiva. Hoje em dia muitas dessas

práticas ainda são recorrentes, apesar de se ter avançado substancialmente nestas questões e de se

ter mudado em demasia o caráter pedagógico das escolas brasileiras. Porém, mesmo com tais

avanços, a educação ainda proporciona uma apatia nos alunos. Pensemos um pouco mais sobre o

jogo teatral da sala de aula que acontece cotidianamente nas escolas do país. O professor após o

término da transmissão dos conteúdos espera que o aluno obtenha uma boa nota nas avaliações

sem, muitas vezes, sequer tirar as dúvidas dos alunos, tendo em vista que estes não têm o

momento para questionar sobre a aula. O professor muitas vezes está acomodado com tal

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situação e não nota que não se está educando, mas “embrutecendo” o aluno, como diz Jacques

Rancière, e, muitas vezes, não pensa a sua aula tendo como foco o aluno, pois acaba tendo a

transmissão de conteúdos como sendo o mais importante no processo educacional.

Quais são as consequências de tais ações no futuro individual do aluno e no futuro

coletivo de um país? Respondo dizendo que esse embrutecimento só pode ter consequências

catastróficas, pois gerará indivíduos acomodados, apáticos, que não se questionam sobre a vida

na qual estão inseridos, que estão sempre dependentes de explicações para entender algum

conteúdo, pois não conseguem pensar por si próprios, que não têm força de iniciativa e nem de

vontade e que estarão no mundo como zumbis destinados a repetição de ações sem reflexão e

criticidade. Tal situação é terrível para um país que almeja um desenvolvimento intelectual de

sua população e um engrandecimento enquanto nação seja nos campos econômico, social e

político.

O sociólogo Pierre Bourdieu já denunciava a educação vista desta maneira que acaba não

contribuindo para o fim das desigualdades e que acabam perpetuando injustiças nascidas da

grande alteridade nos perfis sociais, políticos, econômicos, culturais e topológicos dos alunos;

Antes de Bourdieu a educação era tida como uma redentora que acabaria com as desigualdades e

os atrasos de uma população inteira a partir da escola pública, entretanto, afirma, o autor, que

tais desigualdades apenas estão sendo reproduzidas em larga escala nas escolas públicas. Desta

maneira, nos relata Cláudio Nogueira e Maria Nogueira:

Onde se via igualdade de oportunidades, meritocracia, justiça social, Bourdieu passa a ver reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de instância transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se legitimam os privilégios sociais. (NOGUEIRA; NOGUEIRA. 2002, p. 17).

Contudo, aceitando esta afirmação de Bourdieu, como faremos para retornarmos à

educação com a função de destruir ou, de ao menos, amenizar as desigualdades? É evidente que

tal educação policial a qual não contribui na formação de indivíduos autônomos deve ser

substituída por uma educação política – no sentido de dissenso. Mas como fazê-lo? Como fazer

uma revolução na educação para que ela forme alunos que se autoformem, ou seja, autônomos e

conscientes de seus papeis no jogo social e político no qual estão inseridos? No momento, para

responder estas questões, voltar-me-ei à educação pensada numa perspectiva essencialmente

política.

Para sairmos de um regime policial fundada na hierarquização social e, por conseguinte,

na desigualdade, deve-se instaurar o dissenso nas instituições escolares inerentes ao regime

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político cujas influências direcionariam a uma sociedade mais igualitária sobre o arauto da

emancipação e da crítica e destruição das injustiças. Porém, como as escolas organizar-se-ão

para alcançar tal nível político por excelência? Se formos seguir a esteira de O mestre ignorante,

responderíamos que as escolas não são necessárias e que elas devem deixar de existir, pois os

professores não são importantes no processo de formação, tendo em vista que os indivíduos

bartar-se-iam a si próprios caso fossem emancipados intelectualmente. Porém, tal visão é

totalmente utópica, principalmente numa sociedade em que não há condições reais de o

indivíduo formar-se a si mesmo. Então, como pensaremos o ambiente escolar numa perspectiva

dissensual sem radicalizarmos a um horizonte que vislumbre o fim da escola?

Minha hipótese é a seguinte: a educação deve servir, apenas, como facilitador para os

indivíduos alcançarem a emancipação, a autonomia e a cidadania de forma plena, pois no

ambiente escolar não será possível ou será muito difícil formar, em larga escala, indivíduos com

tais características. Com isso a educação serviria de base para o desenvolvimento autônomo e

crítico do aluno, isto é, ela não deve ser pensada como um objetivo em si, mas como um meio

para se alcançar o ideal de emancipação. Para tanto, a educação e a filosofia, em particular,

devem fazer com que os alunos passem a ensaiar, no ambiente escolar, condições e

características que são almejadas e que os alunos deverão desenvolver ao longo de sua vida.

O ambiente escolar, nesta perspectiva, não deve ser pensado desvinculado daquilo que o

precede e daquilo que o sucede. Deve ser pensado como em uma peça teatral, na qual as

experiências dos atores são importantíssimas para a construção de uma encenação, os ensaios são

essenciais para a confecção e o desenvolvimento do objeto final que é a própria apresentação da

peça. Trazendo esta analogia para a educação, e tomando o papel que tem na vida das pessoas,

temos as experiências dos atores relacionadas com a dos alunos – as quais não devem ser

desconsideradas na prática pedagógica –, os ensaios devem ser pensadas da mesma forma na

educação, isto é, devem ser pensadas como uma preparação para o que está por vir – no caso da

educação é a própria vida que estará por vir; e por último, a própria encenação que é traduzível

com os jogos sociais em que os indivíduos estarão inseridos em suas vidas.

A educação a partir de um prisma dissensual deve buscar, portanto, ser um ensaio para a

vida autônoma, seguindo os princípios de criticidade, de questionamento de uma dada ordem,

tendo em vista que os próprios indivíduos devem buscar serem autônomos, para, com isso, não

corrermos o risco de cairmos em contradição ao querer que os alunos sejam emancipados

ensinando-lhes a serem autônomos. Os alunos devem procurar e desenvolver, por conta própria,

as armas necessárias para o convívio social e é papel da educação prover-lhes tais armamentos

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básicos que possam incitar o pensamento crítico para que possam romper com a partilha do

sensível policial que nos rodeia.

Conclusão: um convite à guerra contra a partilha do sensível policial que vivemos.

Para acabarmos com uma sociedade desigual, que se torna injusta com os menos

favorecidos, a educação deve ser pensada como o único “meio” adequado para isso. Porém, a

educação ao longo do tempo serviu apenas para perpetuar tais injustiças, sendo pensada apenas

como um tipo de formação para o mercado de trabalho e não como formação de indivíduos

conscientes do papel que têm na sociedade. O modelo educacional que se tem hoje no Brasil é

exatamente esse: a formação de mão-de-obra para o trabalho, sem a preocupação de trazer o

caráter crítico para a formação interna, ou seja, estar-se preocupada apenas em suprir as

demandas mercadológicas advindas das necessidades globalizadas da economia em detrimento

de uma necessidade íntima de desenvolvimento “espiritual” da população.

Para fugirmos deste horizonte, devemos lutar para acabarmos com tal perpetuação de

indivíduos que acham que é mais importante o jogo de futebol e a cerveja no fim de semana, do

que a educação dos filhos, que acham que é mais importante assistir a novelas do que se

informar sobre as conjecturas do mundo atual. Tais indivíduos, que vivem desta forma, estão

entremeados por uma aura de irresponsabilidade social e política, estão sendo alienados a

viverem no julgo e acham tal julgo mais conveniente assim como os moradores da caverna de

Platão. O problema é que eles não percebem o perigo dessas atitudes para si mesmo, para os que

estão em seu entorno e para os que ainda estão por vir.

Viver em um mundo em que o comodismo é o mais importante gerará consequências

nefastas, não só para os indivíduos, mas para a sociedade como um todo. É esse comodismo que

está destruindo e esgotando nossas fontes naturais, que está aliciando nossas crianças a viverem

sem nenhuma perspectiva, que faz a cada momento mais vítimas sociais, vítimas do descaso do

país em todas as esferas políticas possíveis – desde a corrupção que a população critica e que

mesmo assim pratica, chegando às injustiças e a contradição de parlamentares votando o

aumento de seus salários em detrimento de um salário mínimo miserável, de salários para os

formadores de sujeitos autônomos que mal dá para viver.

Apesar de estarmos vivendo em uma república policial, não devemos fechar os olhos para

as injustiças, devemos nos levantar contra tal regime e instaurarmos uma revolução na

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mentalidade brasileira. Nunca foi e nunca serão aceitáveis crianças morrerem de fome, mulheres

que são violentadas de todas as formas, idosos que não são respeitados e são tratados da mesma

forma que nem um animal mereceria, então não fechemos os olhos e finjamos que isso é normal.

Cada indivíduo deve ter em mente o compromisso de fazer o possível e até mesmo aquilo que

está fora do alcance de suas forças para levantarmos o julgo da injustiça e vivermos mais

dignamente tendo como princípios a emancipação, a igualdade e a autonomia. Não há outra

função social que esteja tão emersa neste papel senão o do professor e, neste sentido, devemos

ser o arauto de uma sociedade que está por vir, devemos superar a sociedade em que estamos da

mesma forma que o super-homem de Nietzsche deve superar o homem.

Cada indivíduo deve levantar suas forças no esforço de conseguirmos amenizar ou

destruir as injustiças que nos impedem de progredir rumo ao ideal de igualdade. Seja

professores, alunos, advogados, políticos partidários, em suma, todos devem lutar para que a

cada minuto uma mulher não seja espancada, que se acabe com a necessidade de todos os dias

crianças trabalhem para sobreviver quando deveriam estar nas escolas para evoluírem

culturalmente, socialmente, economicamente e politicamente. Devemos lutar por um país que

seja erguido por um regime político, por uma partilha do sensível que promova a inclusão, a

igualdade, que crie indivíduos que possam atuar ativamente em suas funções sócias como

cidadãos.

Neste sentido a educação pode ter o papel de pôr em questão, criticar e modificar tais

atitudes policiais, a partir do prisma proposto, o de um conflito com aquilo posto que está

subentendido numa partilha do sensível, visando um horizonte mais justo e igualitário. A

educação enquanto ensaio social não conseguirá construir indivíduos autônomos, porém sem ela

tão pouco se progrediria com este objetivo. Portanto, a educação e a escola tem fundamental

importância e são essencialmente necessárias quando se trata da formação não só de

trabalhadores – que é uma necessidade real do país –, mas, sobretudo, de sujeitos conscientes

que possam questionar as injustiças perpetuadas pelos mecanismos estatais e pela apatia da

grande massa que compõe a população brasileira.

A filosofia, junto com todas as outras disciplinas, deve ter esse papel de questionar a

partilha do sensível na qual estamos inseridos – e, de certa forma, é o que objetivam os

documentos oficiais que se referem ao ensino no nível médio, mas com um aprimoramento, pois

não se pensa a cidadania como o único objetivo e, além de notar que isto é o objetivo da

educação como um todo e não apenas da filosofia e da sociologia. Porém, um erro evidente nos

documentos oficiais é o de conferir à filosofia e à sociologia a função exclusiva de formar para a

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Page 12: O Ensino Educativo Da Filosofia Numa Perspectiva Dissensual

cidadania, pois desta forma, parece que as outras disciplinas não teriam função relativa a este

aspecto.

A educação e, especialmente, a filosofia podem ter este papel questionador e por esta

razão elas só tem a contribuir com nossa tentativa de fugir da escuridão da caverna que nos

encontramos que são inerentes ao regime policial para alcançarmos dias melhores juntos à

partilha do sensível fundada no conflito político.

Referências:

NOGUEIRA, Cláudio; NOGUEIRA, Maria. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação e Sociedade, n. 78, p. 15-36, 2002.

PALLAMIN, Vera. Aspectos da relação entre o estético e o político em Jacques Rancière. Risco, v., p. 06-16, 2010.

PELLEJERO, Eduardo. Uma introdução à obra de Jacques Rancière. SABERES, v. 2, p. 18-30, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.

_________________. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009.

_________________. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.

_________________. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Pedro Danilo Galdino Vitor Pereira, graduando em filosofia na modalidade licenciatura pela UFRN, atualmente é bolsista CAPES do Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). E-mail: [email protected].

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