O ENSINO DE TEATRO NA PERSPECTIVA DA REPESENTAÇÃO CÊNICA

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O ENSINO DE TEATRO NA PERSPECTIVA DA REPRESENTAÇÃO CÊNICA Franco Luciano Pereira Pimentel 1 A relação entre Teatro e Teatro educação constitui, na contemporaneidade, um farto campo de analises acerca da imprescindível interação entre escola e sociedade propiciando-nos profundas reflexões no que diz respeito às concepções pedagógicas de ensino-aprendizagem. De um lado, as estruturas curriculares excessivamente calcados na tradição dramática sustentam ainda um discurso excessivamente modernista, voltado para o caráter, espontâneo e de transmissão de conceitos e vivências descontextualizadas do mundo cultural quase sempre ocultado pelo muro que cerca o ambiente escolar. De outro, a cena contemporânea local, nacional e internacional e seus artefatos cênicos apontam para elaborações cada vez mais ousadas que desafiam o próprio conceito de Teatro. Tais produções buscam um diálogo multicultural e polissêmico, explorando as mais diversas possibilidades cênicas, enquanto que na escola o currículo ainda prima por conceitos fixados em formas teatrais que não atendem mais 1 Franco Luciano Pereira Pimentel é Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás (2005). É professor de Teatro no Centro de Estudo e Pesquisa “Ciranda da Arte” - Secretaria de Educação do Estado de Goiás. Desenvolve experiências na área de Arte Educação, integrando a equipe da Reforma Curricular em Arte/Teatro, da Educação Básica da Secretaria de Estado da Educação e na Formação Continuada para Professores que ministram Teatro, com Fundamentos da Arte/Teatro na Educação; Organização e Construção Curricular; Arte, Cultura, Ensino e História do Ensino de Teatro. Atua no campo das Artes Cênicas – Teatro, desde 1987 com maior ênfase no ensino, Direção teatral e trabalho de ator. Atua nos campos de pesquisa da representação teatral com foco nas ações físicas, Teatro físico, Teatro-dança, cinema e vídeo.

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O presente artigo procura refletir sobre o problema da relação abismal que existe entre o ensino de teatro na escola regular e as experimentações cênicas veiculadas por artistas. A escola é uma ilha que tem se fechado para o mar.

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O ENSINO DE TEATRO NA PERSPECTIVA DA REPRESENTAÇÃO CÊNICA

Franco Luciano Pereira Pimentel1

A relação entre Teatro e Teatro educação constitui, na contemporaneidade, um

farto campo de analises acerca da imprescindível interação entre escola e sociedade

propiciando-nos profundas reflexões no que diz respeito às concepções pedagógicas de

ensino-aprendizagem. De um lado, as estruturas curriculares excessivamente calcados

na tradição dramática sustentam ainda um discurso excessivamente modernista, voltado

para o caráter, espontâneo e de transmissão de conceitos e vivências

descontextualizadas do mundo cultural quase sempre ocultado pelo muro que cerca o

ambiente escolar. De outro, a cena contemporânea local, nacional e internacional e seus

artefatos cênicos apontam para elaborações cada vez mais ousadas que desafiam o

próprio conceito de Teatro. Tais produções buscam um diálogo multicultural e

polissêmico, explorando as mais diversas possibilidades cênicas, enquanto que na escola

o currículo ainda prima por conceitos fixados em formas teatrais que não atendem mais

aos anseios e idéias dos artistas. Que implicações ocorrem a partir dessa discrepância

entre o que é visto, aprendido e produzido culturalmente? Que rumo tomar? Quais as

referências de ensino? O que os estudantes precisam compreender?

O presente artigo busca refletir o problema tratado acima com o intuito de

colaborar, propondo saídas e espaço para novas interlocuções.

A idéia de representação

Quando me refiro ao conceito de representação, não o faço com base na

representação mimética de cunho aristotélico. Levo em conta a compreensão cognitiva

ao modo de Thomas Hobbes (1884), e as posições sociológicas de Stuat Hall (1997) e

Erving Goffman (2007). Procurarei primeiramente, trazer uma síntese do

1 Franco Luciano Pereira Pimentel é Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Goiás (2005). É professor de Teatro no Centro de Estudo e Pesquisa “Ciranda da Arte” - Secretaria de Educação do Estado de Goiás. Desenvolve experiências na área de Arte Educação, integrando a equipe da Reforma Curricular em Arte/Teatro, da Educação Básica da Secretaria de Estado da Educação e na Formação Continuada para Professores que ministram Teatro, com Fundamentos da Arte/Teatro na Educação; Organização e Construção Curricular; Arte, Cultura, Ensino e História do Ensino de Teatro. Atua no campo das Artes Cênicas – Teatro, desde 1987 com maior ênfase no ensino, Direção teatral e trabalho de ator. Atua nos campos de pesquisa da representação teatral com foco nas ações físicas, Teatro físico, Teatro-dança, cinema e vídeo.

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posicionamento desses autores e, posteriormente, passarei a uma reflexão sobre o cênico

e os aspectos da representação cênica como eixo pedagógico.

Para Hobbes (1884 in Leivas, 2007), concepções e pensamentos são

representações de modo a tornarem-se base para a compreensão dos fenômenos

exteriores a nós.

imagens mentais e representações das qualidades das coisas fora de nós são o que chamamos cognição, imaginação, idéias, informação, concepção, ou conhecimento delas. E a faculdade ou poder, pelo qual somos capazes desse conhecimento, é o que aqui denomino por poder cognitivo ou conceptual (HOBBES, 1983: 48 in LEIVAS, 2007: 48).

Em termos gerais isso nos leva a entender que sempre que percebemos, num

dado instante “presente” (inédito), um objeto totalmente aleatório a nós, podemos ter as

sensações de estranhamento, conhecimento, ou reconhecimento do mesmo. Caso haja

estranhamento, estabelecemos sobre ele um conceito, e mudamos a qualidade de sua

natureza de “desconhecido” para “conhecido” caracterizando-o como uma matriz. Com

base nisso, sempre que nos depararmos com objetos semelhantes nossa mente re-

presenta (traz ao presente as sensações pretéritas) o objeto matriz e compara um com o

outro. Fato que nos permite re-conhecê-lo como original ou apenas como variações do

mesmo.

Essa capacidade de mobilizar uma sensação pretérita “presente anteriormente”,

tornando-a “presentacional”, com o intuito de estabelecer comparação, permite-nos

compreender o que para Hobbes consiste em representação cognitiva. Com base nisso, é

que conhecemos ou reconhecemos os fenômenos exteriores a nós. Esses fenômenos se

apresentam em nós e para nós, originando fenômenos distintos, que aparecem na forma

de fantasmas ou representações. Isto é, como uma aparição das coisas exteriores.

Assim, o que é próprio da representação é o "apresentar ou representar alguma coisa

sem ser ela mesma uma coisa. Em outras palavras, sem receber o estatuto de uma

realidade" (Zarka, 1992: 18 in Leivas, 2007:03). Tal ponto de vista nos leva a concluir

que a representação está em nós e não nos objetos fora de nós. Não são os objetos que

representam, mas nós que, com a nossa capacidade de percebê-los, representamo-los.

Nesse sentido os objetos nada mais seriam que veículos de sinais manipulados para nos

provocar sensações e impressões.

Na perspectiva sociológica e cultural de Stuart Hall (1997) as representações

sustentam linguagens.

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Nem as coisas por si mesmas, nem os usuários da linguagem, podem fixar o sentido da linguagem. As coisas não têm significado: nós construímos o sentido usando sistemas de representação – conceitos e sinais (HALL, 1997:25 in HERNANDEZ, 2007: 22).

Ainda Segundo Hernandez (2007) esse seria para Hall “o sentido de uma

abordagem ‘construcionista’”, de modo que não devemos confundir o mundo

fenomênico e material no qual existimos com os significados que damos a ele, ou seja,

“com as práticas simbólicas e os processos, por intermédio dos quais a representação, o

sentido e a linguagem operam”, pois esses significados são transitórios. “Tal posição

não implica negar a existência do mundo material, mas entender que não é este que

confere significado a tudo e sim o sistema de linguagem que estamos utilizando para

representá-lo”. a este a Para este autor, a representação é, na perspectiva de Hall, “a

produção de sentidos por meio da linguagem e nesta produção utilizamos signos para

simbolizar, fazer referência a objetos, pessoas ou eventos do chamado mundo real”.

(HERNANDEZ, 2007: 22)

Já Erving Goffman (2007), traz o sentido de representação para a análise das

práticas culturais e sociais das performances dos sujeitos na vida cotidiana, analisando-

as sob o prisma da idéia de “atuação”, “fachada”, “idealização”, “mistificação” e sobre

os demais “mecanismos e artifícios” que esse sujeito2 se vale para ativar os seus e os

nossos “equipamentos de sinais”3. De acordo com seu posicionamento, Goffman nos dá

a idéia de que representação é o que há “em toda atividade de um indivíduo que se

passa, num período caracterizado por sua presença contínua, diante de um grupo

particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência”. (GOFFMAN 2007:

29)

Para ele, todo indivíduo representa, consciente ou inconscientemente,

respectivamente de dois modos: “transmissão” e “emissão”. O primeiro associa-se à

idéia de “linguagem comunicacional” e suas respectivas técnicas; o segundo, às “ações

sintomáticas” e involuntárias dos indivíduos. Um desacordo ocorrido entre esses dois

modos perturbaria a representação, fragilizando a credibilidade acerca do que se deseja

mostrar e o que se está mostrando de fato.

2 Vale a pena atentar que muitas vezes Goffman usa o termo “ator”, “sujeito”, “indivíduo” para designar o foco agente ou “platéia” para os interlocutores presentes. Goffman, pois, parte da idéia de que a vida social é como uma representação teatral, na qual ora somos atores, ora espectadores e personagens ao mesmo tempo. 3 Conjunto de maneiras, símbolos, signos socialmente construídos.

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Desse modo, ator e observador representam simultaneamente. Ao ator cabe

recuperar em sua mente sinais4 acerca do que pensa para que o observador venha a dar-

lhe credibilidade. Ao observador, portanto, cabe a incumbência de analisar se tais sinais

manipulados são verdadeiros ou falsos. Então, na perspectiva de Goffman a

representação do sujeito tem um caráter compulsório relativo a sua experiência de vida

presentificando pois tais experiências socialmente ensaiadas para o aqui e agora da

situação.

A idéia de Cena

Segundo Pavis (1999: 44), cênico refere-se a algo “que tem relação com a cena”,

originada do grego Skênê, que significa, por sua vez, “barraca ou tenda construída por

trás da orquestra” nos espetáculos gregos. Skênê, orchestra e théatron formam os três

elementos cenográficos básicos daquele tipo de espetáculo. Segundo Burnier (2001:17)

Théatron tem por raiz théa, que significa o ver, o contemplar, e o sufixo tron, dos

adjetivos, conota o sentido de lugar onde. Para Gasset (1999:28), o “Teatro é um

edifício”. E um edifício é um espaço demarcado, separado do resto do espaço que

permanece fora dele. “A missão da arquitetura é construir, frente ao ‘fora’ do grande

espaço planetário, um ‘dentro’”. O “espaço teatral” é o conjunto formado por dois

espaços – cena e platéia – que simulam outros espaços. Nesse ínterim, não se é platéia

dentro de casa somente por que se lê uma peça teatral. É preciso ir ver a cena no Teatro.

Portanto, o Teatro é um lugar onde ser vai para ver algo.

Ao longo da história, meio as revoluções tecnológicas, o termo cena vem se

diversificado: “cenário, área de atuação, local da ação”, trecho de uma peça escrita ou

encenada e, finalmente, “o sentido metafísico de acontecimento brutal e espetacular tal

como ‘fazer uma cena para alguém’” (Pavis, 1999: 42). Para Manguel (2001:307), no

campo das Artes Visuais, Caravaggio não pinta quadros, pinta “cenas”. Segundo esse

autor, o pintor renascentista “suprime a idéia do expectador como algo externo;

transformando-o em ator, fazendo dele um participante do enredo que se desenrola,

situando-o em uma posição privilegiada ao mesmo nível que ele”.

No audiovisual (cinema e vídeo, TV), a cena está lá, mas submissa à imagem.

Ela é aquilo que o registro da câmera nos mostra, não como imagens “reais”, mas como

4 Importante notar que o sentido de “sinais” para Goffman é semelhante ao de “signos e símbolos” para Hall e “sensações”, “imagens”, “fantasmas” para Hobbes.

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diz Flusser (2002: 8) “códigos que traduzem eventos em situações, processos em

cenas”, como efeito mágico de “imagens técnicas”.

Opostamente ao que acontece na cena teatral, na qual o espaço contém a imagem

assumindo todas as dimensões e moldando-a conforme sua intenção plástica, no

audiovisual é a imagem que contém a idéia do todo. Assim a cena torna-se movimento

de câmera, sucessão de planos, que convida o expectador a mergulhar por e entre suas

dimensões.

Na pós-modernidade, o conceito de cena se dilata da idéia de “lugar onde ocorre

a ação” para “lugar para onde o olhar aponta”. Essa ampliação da percepção focal da

visão possibilita abertura para novas experiências que não se limitam apenas a simples

interações de linguagens, mas à desconstrução mesma dessas interações e sentidos em

estados de sensações.

A representação cênica

A partir das idéias tratadas nos dois tópicos acima podemos compreender que o

fenômeno da representação como base dos processos cognitivos e expressivos dos

sujeitos se encontram no princípio de todo o tipo de compreensão e por isso mesmo nas

mais diversas esferas do conhecimento e produções humanas como representações

culturais. Dentro deste extenso universo da cultura, operam além das demais

representações humanas, as representações artísticas e dentro dessas as representações

cênicas, ou seja, os modos de produção de sentidos a partir de deslocamentos poéticos

do olhar sobre fazeres performáticos. Soma-se a isso todo tipo de representação

(pensamento, ação, idéia, signo, símbolo, atitude, metáfora) posta em cena que

provoque determinada expectativa de observação.

Pensar em representação cênica significa destituir toda e qualquer hegemonia

que procura dar prioridade de estudo a determinados artefatos cênicos em sacrifico de

outros. Veremos que não há hegemonia mas escolha de análise. Quando pensamos no

princípio comparação (Hobes), que a base da representação depende tanto das

manipulações simbólicas do mundo fenomênico (Hall), quanto da experiência

compulsória, do sujeito(Goffman), vemos que qualquer produção cênica pode ser

analisada, tendo em vista que a representação não está no objeto, mas no sujeito que o

observa.

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O que percebemos como em Hall5 é que a representação cênica não é um modo

de linguagem, mas um fenômeno que esta na base dela. Se sua essência é a

performance cênica, qualquer que seja a ação performática nessas condições, será

passível de ser representada, analisada e compreendida, conforme os parâmetros

performer, observador e elementos da espacialidade. Portanto, ao falarmos de

representação cênica falamos de campo e não de linguagem (teatro, dança, circo,

audiovisual, performance, ópera e suas variações), porque cada um possui uma

especificidade técnica de manipulação de símbolos que não se diferenciam muito dos

artefatos da chamada cultura popular e da estética do cotidiano. Ao olhar mais

atentamente sobre isso perceberíamos um rico campo de compreensões e possibilidades

de diálogo com os significados escolares acerca da natureza humana de estar em cena.

A problemática da Representação no Teatro

No Teatro, historicamente o conceito de representação opõe-se ao de

interpretação em relação ao trabalho do ator, sobretudo no que concerne ao drama

psicológico a partir da segunda metade do século XIX. Esse tipo de veiculação se

sustenta até hoje, na perspectiva de que o ator deve “encarnar” o personagem e de que

este é um ente ideal. Essa perspectiva parte de uma base textocentrista6, na qual o

personagem preexiste à cena teatral e que o ator é intérprete das palavras do

dramaturgo. Perfeitamente empregada, essa terminologia usada por Roubine identifica

que a alma desse tipo de teatro é o texto, ou seja, a literatura.

Nessa época, uma atuação representada era vista como fria7 e prejudicial à

atuação do “gênio”, pois pressupunha a razão física indo contrária ao sentido das teorias

psicológicas. A idéia de atuação, projeção e identificação do ator com o personagem era

algo fundamental e quase condição sine qua non em relação a um bom funcionamento

dessa tradição. O ator que não se identificasse com a personagem, psíquica e

emotivamente, estaria fadado ao fracasso junto ao espectador.

Burnier (2000) propõe uma “representação não interpretativa na cena”. Para ele,

com base em Ethienne Decroux, a idéia de representação sustenta-se na compreensão de

“estar no lugar de” ou ser um “equivalente” ao que não está, considerando que “para

5 Op. Cit.6 ROUBINE, Jean-Jacques. 1998 p. 46. Segundo Roubine, a grande explosão da tecnologia teatral, em finais do séc. XIX, por mais que se diversificassem as formas de abordagem da cena o texto literário reinava livremente como centro de toda a concepção da obra teatral. O Teatro ainda continua à deriva da tradição literária.7 Ver Diderot em O paradoxo do Comediante.

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que a arte seja, é necessário que a idéia da coisa seja dada por outra coisa” ou “um

equivalente” (DECROUX, 1963: 46 e 48 in BURNIER, 2000:21). Assim, não seria

função do ator interpretar, “dar uma leitura, traduzir, mas apenas representar”. Afinal,

não é o ator que está entre o personagem e o espectador, mas o personagem que se

encontra entre o ator e o espectador. No Teatro, o intérprete é o espectador. Assim, “o

ator não interpreta”, “representa”. “Não busca personagem” (idem: 22), coloca-o em

cena por meio das ações que executa. Semelhante impressão nos traz Gasset (1991)

quando nos diz que,

A realidade de uma atriz, enquanto atriz, consiste em negar a sua própria realidade e substituí-la pela que representa. Isto é re-presentar: que a presença do ator sirva não para ele presentar-se a si mesmo, mas para presentar outro ser distinto dele (GASSET, 1991:35)

Processo que para ele se desenvolve como um fluxo que vai da presentação,

apresentação, representação, teatralidade e, finalmente, a metáfora. Respectivamente

seria o mesmo que tornar presente ou estar presente, mostrar presença ou ser visto por

alguém, tornar-se presente novamente ou representar-se como um outro que não se é, no

conjunto dos artifícios que a mágica teatral oferece, criando uma realidade que se

transcende de uma outra distinta, a que “chamamos imagem” (ibidem).

Assim, o que podemos perceber, por essas razões expostas, é que representar em

arte é elaborar artefatos, compreender, identificar, resignificar e manipular conceitos,

objetos e signos cultuais. O fenômeno da representação em arte, na medida em que flui

do aspecto cognitivo para o social e cultural, obedece a princípios de continuidade, os

quais envolvem, sobretudo, a capacidade sujeitiva de construção, desconstrução e

reelaboração de sentidos. Uma representação, sob esse aspecto, é sempre um ponto de

vista, uma idéia, um modo de pensar e compreender o dentro e o fora do processo. É

sobretudo na tentativa de ampliar a discussão sobre essa argumento que inferimos as

inquietações de Hans-Thies Lehmann (2007) acerca da problemática do drama na pós-

modernidade.

A solicitação pós-dramática8 de Lehmann – uma pedra no sapato do drama

Para esse autor, em seu livro Teatro Pós-Dramático, o conceito de drama não

mais atende às necessidades estéticas atuais. O Teatro contemporâneo, a partir da

8 Pós-dramático é indicativo a todo tipo de artefato (espetáculo) teatral cuja forma de elaboração, veiculação e sentido rompe com as estruturas fundamentais do drama. Se há uma arte pós-moderna e o drama no teatro é a sua principal bandeira, o teatro pós-moderno é um teatro pós-dramático.

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década de setenta, rompe radicalmente com essa lógica quando veicula elaborações

cênicas cada vez menos obedientes a ela. A crítica teatral, por exemplo, não consegue se

localizar na dimensão de discursos cênicos fragmentados que vão de um Teatro

“’virtualmente ainda dramático’ até um Teatro que não há sequer rudimentos de

processos fictícios”. Isso acontece porque a crítica teatral, de um lado, permanece

engendrada na noção de personagem, texto, ação linear e enredo, estigmatizados pela

tradição saturada das produções da indústria cultural e, de outro, padece de uma

excessiva expectativa de um Teatro conteudista, ao modo épico e político europeu.

Na perspectiva de Lehmann, Bertold Brecht, como um dos principais ícones do

movimento anti-dramático da década de setenta, rompeu com os conceitos hegemônicos

do drama europeu pós-renascentista, que caracterizou estilos e gêneros de uma

dramática rigorosa9 (ROSENFELD, 1965:26), mas catalogou-se nos recônditos da

modernidade, concordando que “o enredo é, ao modo de Aristóteles, a alma do drama”

(LEHMANN, 2007:114). Nessa perspectiva, o Teatro brechtiano ainda permanece

textocêntrico. Tudo isso, e muito mais, justificaria a exigência pós-moderna de um

Teatro de “estados de composições cênicas dinâmicas” (Ibidem), de identidade pós-

dramática. Uma identidade que cujos pressupostos fundamentais apontam para o fato de

que o teatro pós-dramático nada mais faz que realizar uma pequena operação no coração

da essência da cena, tornando desnecessários os aspectos centrais do drama, ou seja, o

elemento “cerimonial” torna-se fundamento do fenômeno cênico-teatral em detrimento

do elemento dramático.

Segundo ele, cerimônia, rito e festividade sempre existiram em todas as

manifestações cênicas desde as culturas mais primitivas, sendo o mito uma de suas

razões fundamentais. Na Grécia 330 a.C, a tradição aristotélica observou a mimése

(imitação da ação e representação pautada na lógica do princípio de causa-efeito), e sua

função essencial no Teatro como ação dramática (ação verossímil com início, meio,

fim). Para Aristóteles a alma do Teatro era o mito, identificando-lhe assim uma função

ritual. A junção desta com a função mimética é dada pela função estética (organização

9 Rosenfeld, Anatol (1965: 26): Dramática elaborada sob conceitos e regras rígidas estabelecidas a partir da tradição do estudo da poética aristotélica, principalmente ao que se referem os capítulos VII ao X e XXIII, acerca da unidade de ação na constituição do drama. A respeito desses capítulos, o mais estudado de toda a história do Teatro é o VII;, várias interpretações se sucederam até a século XVIII com a dialética de Hegel. Nesse capítulo controverso, Hegel procura com maior ou menor sucesso analisar, dentre esses elementos, os que compõem a essência mesma da obra, ou seja, aquilo que embasa a construção de uma peça de Teatro bem-sucedida. Suas reflexões influenciaram tanto os franceses, a ponto de estes estabeleceram regras e normas tidas como verdades absolutas. Segundo Rosenfeld, na medida em que as peças se aproximam desse tipo de dramática serão chamadas de “rigorosas” ou puras.

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fenomenal), ou seja, a amarração, a espetacularização – independente de espécie ou

gênero – que sustenta culturalmente o fenômeno cênico.

O que acontece com o Teatro pós-dramático é que ao invés de prender a

“dimensão cerimonial” às amarras da formalidade da função mimética, como ocorre no

Teatro dramático, “ele a libera dessa função e a faz valer por si mesma como qualidade

estética e longe de qualquer referência religiosa ou cultural”, uma vez que não é

condicionada a uma estrutura mítica. Ao valorizar essa função estética, a abordagem

pós-dramática ofusca a função mimética e “substitui a ação dramática pela cerimônia,

com a qual a ação dramático-cultural esteve tanto tempo ligada desde seus primórdios”.

(ibidem: 115)

Para se ter uma idéia dessa dimensão cerimonial Isambert (1968)10 reforça

dizendo que “as festas oscilam entre dois pólos” que mantém afinidades entre si: “o da

cerimônia (que é o rito propriamente dito) e o da festividade (que é o da efervescência

propriamente dita)”. Para esse autor, “em algumas festas é a amplitude do ritual que as

distingue dos ritos quotidianos” (ISAMBERT 1968 in FREITAS 2002:03).

A partir dessas compreensões, nota-se que o fundamental é que as idéias

inferidas por Lehmann ampliam as discussões acerca da representação cênica e seus

respectivos campos de atuação, pontuando que as produções culturais não se satisfazem

mais apenas com significações e construções silogísticas, mas sobretudo com as

sensações, estados de “presença energética” (LYOTARD, 1982 in LEHMANN,

2007:58). E são justamente esses os pressupostos que inferem a necessidade de um

olhar curricular e pedagógico diferente no ambiente da educação.

O ensino de Teatro na perspectiva da representação cênica

Tomemos os espetáculos performáticos que ocorrem espontaneamente em ruas,

praças e bares; as intervenções urbanas da performance art. como foco nas visualidades;

“as construções de processos rítmico-musicais ou visual-arquitetônicos; as formas para-

rituais como a celebração do corpo, da presença”; as manifestações cênicas da cultura

popular; o Teatro formas animadas; as hibridades cênicas com base na estética do

cotidiano que incluem diálogos constantes com as representações audiovisuais, tais

como as cenas multimídias e as formas que desrespeitam os limites de fronteiras de

territórios e linguagens. Nesse tipo de elaboração teatral, conforme Lehmann, “quem

10 Artigo publicado no site: http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a12-lfreitas.pdf. Este artigo não consta data de publicação. No entanto, é possível encontrá-lo na fonte original (ver referências).

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não vê o ‘energético’ mas procura por um discurso lógico dos signos, por uma

‘representação’11 encerra o cênico no modelo da cópia, da ação e, assim, do ‘drama’”.

(LEHMANN, 2007:58).

Contudo, vale ressaltar que quando se fala em representação cênica não

pressupõe-se o abandono dos elementos da tradição teatral. Até mesmo porque a

representação cênica é um campo de observação e parâmetro de análise, onde o que vale

é a compreensão dos modos e técnicas de composição do cênico, cujas diversas poéticas

e estéticas fazem parte. Procura-se, sobretudo, verificar as possíveis adequação dessas

tradições a novas formas de articulação da sociedade buscando alcançar outras “vozes

espaciais” de modo a dar conta dessa “liquidez cultural pós-moderna” Bauman (2004),

onde as relações se estabelecem com extraordinária fluidez visceral, se movem e

escorrem sem muitos obstáculos, marcadas pela ausência de peso, em constante frenesi

e da “multiplicidade identitária” na qual vivemos (Hall, 2006) .

Nessa altura das discussões, não seria de muito exigir que os pressupostos,

pedagógicos, metodológicos e curriculares acerca do ensino de Teatro no ambiente

escolar acompanhem esse processo, de modo a possibilitar que conceitos, conteúdos e

práticas investigativas dos artefatos cênicos encontrem significativas condições de

diálogo com os demais espaços da sociedade. E isso, significa explorar o Teatro em

todas as suas possíveis dimensões de ação, tempo e espaço, sem que se submeta a

padrões específicos de forma, volume, textura e ritmo, ditados por regras

preestabelecidas e por leis universais imutáveis dialogando com as experimentações

externas aos muros. Significa também caminhar na direção de uma expressão

metafórica pautada na exaltação da presença, do “risco” (Carreira, 1997), da

inventividade, ou seja, o acerto ou o não acerto da atividade, a infinidade de

possibilidades cênicas que se constituem a partir do reconhecimento do Teatro como

uma poética do espaço e não da literatura, da energia e da cerimonialidade da cena.

Um ensino de Teatro nessa perspectiva tratará antes de tudo de uma

compreensão crítica, de atitudes e posicionamentos. Tratará antes do desenvolvimento

da autonomia na busca de novos caminhos referentes ao ato de representar cenicamente

para que o educando saiba ver, produzir e refletir Teatro que, especificamente,

submeter-se ao acomodamento cotidiano e exibicionista dos costumeiros espetáculos de

11 Lehmann se refere à representação dramática. Entenda-se representação mimética ou seja, modelo aristotélico onde as ações dramáticas obedecem o princípio silogístico de causalidade (início, meio e fim) e da verossimilhança (aparência com o real, que é possível de existir, que é crível). Ver Poética cap. I ao VII.

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fim de ano ou datas comemorativas do calendário escolar. Tratará, enfim, como sugere

Hernandez (2007: 23-24) de enfrentar um desafio de maior importância: adquirir um

alfabetismo cênico e crítico que permita aos aprendizes analisar, interpretar ou

compreender criticamente, avaliar e criar, a partir da relação entre os saberes que

circulam pelos ‘textos’ cênicos, orais, auditivos, escritos, corporais e, especialmente,

pelos vinculados às imagens que saturam as representações cênicas tecnologizadas das

sociedades contemporâneas. Conduzirá o estudante à compreensão das estratégias

publicitárias dos comerciais e das mensagens subliminares de texto nas imagens e nas

atuações de apresentadores de telejornal, rádio, programas de auditório, de humor,

telenovelas, histórias em quadrinhos como registros dramatúrgicos, store board e

muitos outros.

Para concluir, torna-se necessário, como já inferimos, uma abordagem

“construcionista” ao modo de Hall, pautada na desconfiança, na desconstrução e na

reconstrução de novas maneiras de olhar as representações naturais do cotidiano.

Percebê-las como convenções sociais e culturais, que uma vez postas em cena,

adquirem perigosamente status de representações ontológicas e, muitas vezes, verdades

cristalizadas. Busca-se, desse modo, que o ensino de teatro nessa condições propicie ao

estudante compreender e sensibilizar-se de que as identidades que se constroem a partir

desses modelos postulantes e “ameaçadores” não são fixas nem eternas e muito menos

previamente definidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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