O Ensino de Literatura Como Fantasmagoria

14
O ENSINO DE LITERATURA COMO FANTASMAGORIA TEACHING OF LITERATURE AS PHANTASMAGORY Jaime Ginzburg* RESUMO: Este artigo elabora uma reflexão sobre o ensino de litera- tura na educação básica e em cursos de Letras. A hipótese consiste em que problemas referentes às limitações da educação escolar estão vinculados a dificuldades de estudantes de Letras no Brasil. O con- ceito de fantasmagoria articula as situações abordadas. O trabalho integra uma atitude crítica e uma posição propositiva, examinando caminhos de superação das dificuldades. PALAVRAS-CHAVE: fantasmagoria, ensino de literatura, livros, lei- tura. ABSTRACT: In this essay, we try to discuss the teaching of litera- ture, both in schools and universities. We believe educational limits in schools are connected to problems related to students dedicated to Letters. “Phantasmagory” is a concept able to articulate these issues. e article presents a critical approach, and also a propositional one, considering ways to overcome problems. KEYWORDS: phantasmagory, theaching of literature, books, reading. * Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil. Professor Livre-Docente de Literatura Brasileira. E-mail: [email protected].

description

Ensaio de Jaime Guinzburg publicado na revista da Anpoll em 2012 sobre o ensino da literatura, baseando sua análise em Marx, Freud, Nietzsche.

Transcript of O Ensino de Literatura Como Fantasmagoria

  • O ENSINO DE LITERATURA COMO FANTASMAGORIA

    TEACHING OF LITERATURE AS PHANTASMAGORY

    Jaime Ginzburg*

    RESUMO: Este artigo elabora uma reflexo sobre o ensino de litera-tura na educao bsica e em cursos de Letras. A hiptese consiste em que problemas referentes s limitaes da educao escolar esto vinculados a dificuldades de estudantes de Letras no Brasil. O con-ceito de fantasmagoria articula as situaes abordadas. O trabalho integra uma atitude crtica e uma posio propositiva, examinando caminhos de superao das dificuldades.PALAVRAS-CHAVE: fantasmagoria, ensino de literatura, livros, lei-tura.

    ABSTRACT: In this essay, we try to discuss the teaching of litera-ture, both in schools and universities. We believe educational limits in schools are connected to problems related to students dedicated to Letters. Phantasmagory is a concept able to articulate these issues. The article presents a critical approach, and also a propositional one, considering ways to overcome problems.KEYWORDS: phantasmagory, theaching of literature, books, reading.

    * Universidade de So Paulo (USP), So Paulo, Estado de So Paulo, Brasil. Professor Livre-Docente de Literatura Brasileira. E-mail: [email protected].

  • O ENSINO DE LITERATURA COMO FANTASMAGORIA

    Um ensino de literatura de qualidade, no contexto brasileiro contemporneo, deveria ser caracterizado por alguns elementos fundamentais. Estudantes pode-riam estar sendo preparados para a reflexo crtica, sendo capazes de ler livros dos mais diversos gneros e realizar atividades de parfrase, anlise e interpreta-o, incluindo examinar sua contextualizao, e tambm indicar relaes inter-textuais com outros livros. Professores e estudantes poderiam, em escolas e uni-versidades, estar ativamente envolvidos em um permanente debate sobre livros, discutindo no apenas suas opinies, mas os critrios que as fundamentam e o impacto dos debates que realizam. Comunidades acadmicas sustentariam com motivao a constante possibilidade de pensar em problemas complexos, e a discusso de perspectivas individuais e coletivas de entendimento desses problemas, articulando relaes entre o presente e o conhecimento histrico.

    O conceito de ensino de qualidade no consensual. Muita coisa se faz em nome da educao. As mais variadas prticas so e foram realizadas su-postamente em defesa do melhor interesse do ensino de Letras. esperado que o ambiente universitrio seja caracterizado por contradies. Heterog-neo, diversificado, em transformaes no tempo e em variaes no espao, sofrendo impactos constantes, apesar da enorme presena de foras conser-vadoras. No seria diferente no que se refere especificamente ao campo do ensino de literatura.

    Em uma universidade comum estarem presentes dois ambientes com distintas posies institucionais. O setor responsvel pelos exames de in-

  • Jaime Ginzburg212

    gresso, que prepara os vestibulares; e o espao departamental voltado para o curso de Letras, destinado ao ensino de literatura. Em diversas universi-dades do pas, h bastante tempo, em razo da necessidade de prevalece-rem critrios objetivos de avaliao, para a seleo em massa de candidatos, provas de literatura so caracterizadas de modo pouco varivel. Questes objetivas, em que o nmero de alternativas restrito, exigem uma limitao de posies de conhecimento que torne presumida a qualidade da prova e sua capacidade seletiva, sua competncia na discriminao de candidatos.

    Por essa razo, a imagem do conhecimento de literatura predominante em muitas questes, em provas em diversas universidades brasileiras, ano aps ano, est associada a um campo limitado de exerccio do conhecimen-to: nomes de autores associados a nomes de obras, perodos literrios, g-neros literrios, caractersticas consagradas, de modo geral em perspectiva cannica e reproduzindo modelos de leitura estabelecidos h mais de trs dcadas pela historiografia literria. Bem menos constantes so as ocasies em que os vestibulares podem se aproximar de pesquisa constituda pela produo acadmica atualizada.

    Em um crculo vicioso, escolas de ensino mdio e cursinhos preparat-rios se organizam em funo de perfis de exames vestibulares. Acostuma-dos s rotinas previsveis e aos princpios de trabalho das aplicaes dos exames, muitas escolas condicionam os ambientes de ensino preparao para o alcance de vagas no ensino superior. O ensino de literatura se torna, desse modo, alavanca para realizao de provas. Essa funo instrumental caracteriza com exatido, para a direo da escola, as famlias e os estudantes a partir de um critrio de qualidade do professor e de suas aulas ser um bom professor aquele que se preparar bem para os exames.

    O mercado editorial parte interessada no crculo vicioso, ganhando benefcios com manuais de ensino direcionados situao e com a publi-cao de edies de obras indicadas para as provas. Como parte expressiva das questes prescinde da leitura das obras para ser respondida, o mercado tambm oferta aberraes. Aulas com resumos, publicaes com resumos, supostamente substituindo leituras de livros, apenas supostamente, e ainda assim preenchendo a funo instrumental de preparao do exame vestibu-lar. O princpio do imediatismo governa as tomadas de decises.

    Uma contradio particularmente ostensiva observada a partir do pon-to em que, no ensino superior, logo no incio das aulas de literatura, os es-tudantes de Letras tomam ou deveriam tomar contato com a noo de que

  • O ensino de literatura como fantasmagoria 213

    textos literrios so polissmicos, e podem ser interpretados de vrios mo-dos. Cada autor que vo estudar em uma aula de literatura pode ter uma fortuna crtica isto , diversos intrpretes, cada um com um enfoque, uma nfase, uma linha de pensamento.

    Esse aspecto minimizado nos manuais de ensino de literatura do ensi-no mdio em alta circulao no pas, que tendem a propor a imagem de que para cada autor h uma nica leitura vlida, ou pelo menos uma preferencial e consagrada. Manuais no ensinam debates crticos, nem a debater inter-pretaes. Por sua exigncia de totalizao unificadora, tendem homoge-neizao, priorizando classificaes, descries e simplificaes.

    Quando os exames vestibulares incluem questes de interpretao de textos literrios, e tm de se restringir a organizar seu trabalho no campo das questes objetivas (em geral com cinco alternativas), no criam espao para debate interpretativo ou possibilidades de leituras polissmicas, optan-do por amarrar o intrprete de texto a um caminho de leitura consagrado, em geral cannico.

    O vnculo entre a supresso da polissemia e o estabelecimento de um cri-trio de verdade para determinar uma alternativa correta, em uma questo de uma prova de vestibular, presume que os intrpretes anteriores da obra chegaram s solues de seus problemas de leitura. Existiriam verdades in-condicionadas (NIETZSCHE, 1983: 117) sobre as quais o que o candidato do exame deve fazer apenas demonstrar familiaridade.

    Evidentemente, essa presuno nada tem a ver com aprender a interpre-tar textos, e menos ainda com a capacidade de debat-los. Se a universidade prope nos cursos de Letras essas habilidades, e espera formar professores para o ensino mdio e fundamental com concepes abertas de pensamen-to, parece paradoxal que permanea, no mbito do vestibular, defendendo questes que pressupem posturas incompatveis com o que realiza em suas atividades de graduao.

    O paradoxo no surpreende, quando observamos de perto o que acon-tece, em muitas aulas de literatura, em cursos de Letras do pas, h bastante tempo. As relaes entre professores e alunos esto desumanizadas em um grau extremo, de tal modo que no se pode esperar de fato uma colabora-o entre sujeitos humanos. Uma relao social definida, estabelecida en-tre os homens, assume a forma fantasmagrica de uma relao entre coisas (MARX, 1988: 160, 161). As situaes qualificadas, prsperas e afirmativas de ensino de literatura infelizmente talvez sejam poucas, talvez sejam excees.

  • Jaime Ginzburg214

    Poderamos supor uma descontinuidade radical entre o ensino mdio e a faculdade de Letras? Depois de contar com a aprovao no vestibular como objetivo, a prxima meta pode ser tambm pautada pela insero social pode ser o diploma de graduao. E se for isso, a prioridade de um estudante em uma disciplina de literatura pode no ser necessariamente formativa, e, sim, instrumental. O professor avalia o aluno, atribui nota, aprova ou re-prova. O estudante avalia o professor em muitos casos, de acordo com as condies segundo as quais o professor o avalia. A escola do ensino mdio, a famlia, os cursinhos, as editoras se organizaram segundo a avaliao do vestibular, portanto, coerente que dentro da faculdade continue um com-portamento centrado na expectativa de avaliao e de insero social.

    Na escola, nos cursinhos, e em seus recursos didticos, no h a valoriza-o de habilidades intelectuais voltadas para a atribuio de relevncia para a leitura. O processo organizado pela temporalidade do sucesso competiti-vo, da pontuao agressiva. Fazer mais em menos tempo. Ler livros quando se pode obter o mesmo resultado final com esquemas, frmulas e resumos? Muitos estudantes aprenderam de seus professores que isso desnecessrio.

    Em cursos de Letras, professores de literatura chegam diante de seus alu-nos com a proposio da leitura de livros. A inrcia vai estabelecer um prin-cpio mnimo. Para a aprovao nas disciplinas, e a obteno do diploma, o que necessrio, o que imprescindvel? Muitos alunos podem considerar essa inrcia suficiente.

    E se ficar caracterizado que a leitura de um livro no imprescindvel para a aprovao, ela pode ser deixada de lado de imediato. Nessa situao, leitura se reduz a um papel instrumental. Aqui tambm o princpio do ime-diatismo prioritrio para a tomada de decises.

    Uma evidncia concreta do problema, encontrada em muitas faculdades, a presena das assim chamadas pastas de xerox. Os motivos alegados para sua existncia so vrios. O preo supostamente caro dos livros; o acervo supostamente insuficiente das bibliotecas; o tempo supostamente curto dos estudantes para construir seu material de estudo. H uma bvia situao de conflito entre a legislao de direito autoral e a existncia das pastas de xe-rox. Isso no impede que professores se vejam motivados, a cada incio de curso, a selecionar textos em geral captulos, fragmentos, textos curtos e liberar acesso por esse meio, em uma empresa de fotocpias na proximidade da sala de aula. O fenmeno espantoso por congregar ostensiva ilegalidade e disseminao excessivamente visvel. No me surpreenderia que este tex-

  • O ensino de literatura como fantasmagoria 215

    to que escrevo, em algum momento, acabe em uma pasta de xerox de uma faculdade, separado do volume que motivou sua escrita.

    No verdade que pastas de xerox substituam bibliotecas. Captulos xe-rocados no atuam como partes de livros. Atuam como textos soltos, porque as outras partes dos livros no esto ali para serem observadas ou consulta-das. Pastas de xerox no so metonmias de bibliotecas, so suas antteses. Elas incentivam estudantes a no comprar livros e mesmo a no frequentar as bibliotecas universitrias.

    Existe a proliferao de sites da internet que contrariam as mais varia-das modalidades de legislao referentes ao livro, leitura e ao ensino de literatura. Websites que permitem fazer downloads de livros inteiros, sem se levar em considerao sua disponibilidade ou no no mercado para com-pra. Pginas de internet dedicadas facilitao de acesso a partes de livros, reproduzindo o sistema de pastas do xerox pelo modo on line. Websites que apresentam resumos prontos de livros, para poupar o trabalho de leitura de estudantes apressados. E prestadores de servios, vendedores de elaborao de trabalhos, de monografias de disciplina a dissertaes de mestrado e teses de doutorado em literatura, em que ghost writers recebem para desenvolver no lugar do estudante suas funes. E ainda websites com numerosos tra-balhos prontos para cpias, para alunos que no hesitam em apresent-los a seus professores com suas assinaturas. Trabalhos comprados e copiados so fraudes com consequncias para todos os envolvidos. Sua circulao indica uma imagem do trabalho intelectual como mercadoria, reduzido mais evidente ausncia de entusiasmo e de iniciativa, no apenas de quem os entrega, mas de todo o meio que sustenta a sua rede complexa de pro-duo e circulao. A cada vez que um estudante de literatura acredita que pode ser aprovado com um trabalho comprado ou copiado, e mesmo assim obter uma nota, e depois um diploma em Letras, e posteriormente dar au-las, ele supe que poder ser capaz de conduzir sua profisso com uma base vazia. Possivelmente, ele julga que no ser o primeiro nem o ltimo a ar-ticular educao e mentira com sucesso. Os ghost writers no tm nenhum compromisso com o que os estudantes pensam. Trabalhos comprados e co-piados dizem muito sobre as limitaes dos sistemas de avaliao em vigor e as consequncias dessas limitaes para o grau de confiana entre alunos e professores. Trabalhos comprados e copiados no deveriam em nenhuma circunstncia ser chamados de trabalhos, pela desconsiderao injusta com relao aos estudantes que se dedicam de fato a estudar.

  • Jaime Ginzburg216

    Em seu conto Teoria do medalho, Machado de Assis apresenta um pai explicando a seu filho como deveria se comportar: o mtodo de interrogar os prprios mestres e oficiais da cincia, nos seus livros, estudos e mem-rias, alm de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e radicalmente falso (ASSIS, 1994: 292). O pai orienta o filho a adotar pro-cedimentos retricos para bem impressionar com quem interagir.

    H na proposio desse nefasto pai uma espcie de indicador de um tra-o continuado da cultura brasileira, no modo de pensar as relaes entre professores e estudantes, em perspectiva conservadora. Fazer perguntas a professores, questionar, debater, traz o perigo de inocular ideias novas. No caso do ensino de literatura, esse perigo, particularmente, merece ateno.

    Quando a rea de Letras foi criada no pas, no interior da poltica do Estado Novo, sua configurao institucional era: uma atividade para a pesquisa desinteressada ou para o magistrio secundrio ou superior (SCHWARTZMAN, 1983: 370). A palavra desinteressada se refere ao contraste com a Medicina, a Odontologia, o Direito e a Engenharia, reas que o governo observa como dotadas de clara funo prtica.

    Alfredo Bosi, em seu estudo sobre a situao da rea, em Dialtica da colonizao, fala em uma perspectiva de declnio com relao a um estado de qualidade universitrio no pas:

    [...] o desaparecimento de um certo tipo de formao letrada clssica, que ti-nha, uns quarenta anos atrs, prestigiosa presena no ensino mdio alm de constituir o fundo comum do clero e da magistratura. A relao ntima entre cultura clssica e status social desapareceu na sociedade contempornea. [...] Na dcada de 70, a evidncia da aliana entre tcnica neutra e opresso ide-olgica despertou nos pesquisadores uma profunda desconfiana em relao s receitas positivistas e funcionalistas que vinham sendo aplicadas metodi-camente desde a fundao dos cursos de cincias sociais em todo o Brasil, a partir de 30. [...] O mundo do receiturio a forma formada da cultura dominante e vigora em todas as carreiras a que a universidade d acesso. particularmente deprimente quando se pensa na passagem, em geral entr-pica, da cultura universitria para o meio secundrio. O que se transmite aos alunos do ginsio (e aqui atingimos o cerne da dinmica educacional), o que se estratifica em termos de instruo fundamental, , quase sempre, a frmu-la final, reduzida, reificada, da antepenltima tendncia da cultura superior. Com o agravante de que a rotina do curso secundrio inclui uma dose de

  • O ensino de literatura como fantasmagoria 217

    inrcia das estruturas muito mais duradoura que a do ensino universitrio (BOSI, 1992: 310-317).

    A crtica de Alfredo Bosi se volta contra os anos 1970, em que a represso poltica da ditadura militar esteve associada a uma tendncia a propiciar, no meio universitrio, leituras de textos apolticas, descontextualizadas, inca-pazes de considerar as relaes entre a sala de aula e o que ocorria em torno dela. Volta-se, tambm, contra os anos 1990, momento de publicao do livro Dialtica da colonizao, que opina sobre o predomnio na universidade de um mundo do receiturio, de simplificao de conhecimentos por esquemas e frmulas. Este, por sua vez, impregnaria as atividades do ensino mdio e fun-damental. A argumentao de Bosi indica uma articulao desses problemas com a ideologia positivista, fortemente presente na modernizao brasileira, e em alta difuso, como ele mostra, na dcada de 1930 perodo em que se fundamenta a ideia da pesquisa desinteressada, que institucionaliza uma imagem inconsistente e prejudicial para o ensino de Letras.

    O elemento nostlgico de Bosi aponta para um momento anterior ao de-saparecimento descrito. Se de fato existiu uma educao brasileira dedicada fortemente s humanidades, o que incerto, o argumento de Bosi a situa bem antes da configurao do aumento de vagas do ensino fundamental, mdio e superior dos anos 1970.

    Seguindo esse argumento, cabe a pergunta se teria havido, ou se existe no presente, no Brasil, uma situao geral, em mbito que envolvesse a popu-lao (de um modo que no fosse elitista), de ensino de literatura, no nvel fundamental, mdio, e em faculdades de letras, voltado para a capacidade de reflexo, interpretao de textos e leitura continuada de livros. Portanto, um modelo pedaggico que exclusse:

    - a compreenso redutora de que o ensino de literatura se restringe a uma funo instrumental, como a aprovao em um exame, como o vestibular, ou a obteno de uma nota que permitir chegar a um diploma;

    - a valorizao por professores da interpretao de textos supostamente neutra, apontada por Bosi, que no suscita debate algum, conveniente para regimes autoritrios;

    - a atitude de os alunos no fazerem perguntas para professores, incen-tivada pelo pai ao filho no conto de Machado de Assis, atitude que no sus-cita debate algum;

  • Jaime Ginzburg218

    - a simplificao apressada de trabalho configurada pelas pastas de xerox, que desmotiva o contato com livros inteiros, descontextualizando temas e questes;

    - a admisso acrtica de que o modelo atual de questes aplicadas no vestibular que frequentemente no valoriza a polissemia de textos liter-rios, e no tem como avaliar a habilidade de interpretao um modelo competente ou ideal de avaliao de leitura;

    - as atitudes de estudantes que copiam trabalhos da internet;- as atitudes de estudantes que pagam para outros fazerem trabalhos em

    seu lugar;- a lgica do receiturio descrita por Bosi, que reprodutora, redutora e

    voltada para esteretipos, e, portanto, no motiva nenhum debate.

    Se uma situao de ensino de literatura existiu assim no pas, no creio que tenha sido de longa durao, nem hegemnica; se existe, no creio que seja sistemtica ou suficientemente visvel.

    Theodor Adorno escreveu sobre o contexto do ensino universitrio de filosofia na Alemanha, observando que os trabalhos acadmicos careciam da qualidade esperada. A forte presena de inconsistncias gramaticais e de clichs, com meras reprodues de padres retricos acadmicos, era nota-da pelo filsofo (ADORNO, 2005: 29). Os trabalhos em questo no eram constitudos de modo a produzirem ideias, mas a alcanarem o propsito da obteno do diploma.

    A anlise do ensino feita por Adorno prope que a reificao do processo educacional decisiva: para ele, as preocupaes das pessoas com as pres-ses econmicas so to incontornveis que o impacto dessas presses des-trutivo com relao autoconscincia e reflexo crtica (2005: 34). Nesse contexto, para ele, faltava entusiasmo acadmico, prevalecia a impresso de que estudantes escreviam sobre assuntos sem compreend-los, e a situao de avaliao se tornava constrangedora.

    O Brasil no igual Alemanha, e o ensino de literatura no idntico ao de filosofia. O momento em que Adorno escreveu o texto j um pou-co distante do presente. Porm, as observaes do pensador so oportunas para dar visibilidade aos problemas prximos. Tambm em nosso processo histrico as presses econmicas tm um enorme impacto nas condies de ensino e aprendizagem, levando falta de clareza, por parte de estudantes e professores, sobre o alcance potencial da sala de aula, e constante reduo

  • O ensino de literatura como fantasmagoria 219

    desse alcance, em perspectiva instrumental e imediatista. Tambm comum na universidade brasileira a falta de entusiasmo acadmico, entendendo-se falta de entusiasmo acadmico do seguinte modo: a carncia de debate ho-nesto e respeitoso de ideias novas, a motivao para a convivncia com a diferena, a crtica aos clichs e reproduo de padres retricos propostos para no dizer nada e agradar sem incomodar.

    Estabelecendo como horizonte afirmativo do ensino de literatura elemen-tos como a reflexo crtica, o debate sobre livros, a constante possibilidade de pensar em problemas complexos, e a discusso de perspectivas individuais e coletivas de entendimento desses problemas, difcil imaginar as etapas necessrias para ultrapassar as limitaes e as dificuldades atuais e chegar, tanto em escolas quanto em universidades, a um ensino qualificado, voltado para a transformao intelectual e as mudanas sociais.

    A estrutura em vigor hoje, pautada pela leitura instrumental, pelas pastas de xerox, pelo conhecimento reprodutivo, por clichs, falta de entusiasmo, trabalhos acadmicos comprados e copiados, uma constituio fantasma-grica. Ensino de literatura , ou deveria ser, um espao de debate vivo de ideias. Se o aluno no est ali para debater, quem est ali um personagem fantasmtico. Se o professor no est ali para debater, tambm um perso-nagem fantasmtico na cena. Se o livro no est, no foi lido, no est inteiro, nem chegou perto, a cena da sala de aula o seu funeral.

    Grande parte do problema se deve a presses econmicas, necessidade de insero social. A rea de Letras j nasceu condenada pelo Estado como menos relevante do que Medicina e Engenharia, no Estado Novo. No sur-preende que, historicamente, tenha de ser colocada o tempo todo prova, e que em seu interior o debate sobre o sentido de sua prpria existncia seja parte de sua dinmica. O salrio do professor de literatura, em municpios, estados e com raras excees no ensino superior, contribui para a consoli-dao da baixa auto-estima dos estudos literrios.

    O problema mais grave. O ensino de Letras poderia ser, potencialmente, um campo de discusso aberta de muitos problemas histricos, sociais, cultu-rais, polticos, econmicos do pas. As aulas de literatura tm uma capacidade de absoro de complexidade e de fomento do discernimento de perspecti-vas pelas especificidades de seu prprio objeto que poderia torn-las, nas instituies de ensino, imprescindveis como campos de formao intelectual.

    Em vez disso, as aulas de literatura tm-se tornado no pas um exemplo ntido do mal-estar da cultura. Contextos em que a promessa de felicidade

  • Jaime Ginzburg220

    desaparece e surge a expectativa do horror, em que Eros tem de ceder diante do princpio de destruio. As aulas de literatura, com sua evocao de listas e listas de autores e obras que no levam a nada, exceto a passar em provas, so mostras de uma imagem de civilizao que no constri nada a no ser sofri-mento para si mesma. Professores angustiados, estudantes irritados, incios de curso atormentados, finais aliviados. No caso de possibilidades extremas de sofrimento, tambm entram em atividade certos dispositivos psquicos de proteo (FREUD, 2010: 86). O mecanismo de proteo a apatia: aulas de li-teratura em que ningum, nem professor, nem estudantes, est interessado por elas. Todos esto sedados por seu prprio tdio, esperando, com a ansiedade, o relgio, o celular, pequenos riscos e desenhos no caderno, a inconformidade secreta com todos volta, que aquilo acabe com o mnimo de tenso possvel.

    Uma evidncia concreta do mal-estar que atinge o ensino de literatura, resultado de sculos de ampla dedicao do pas a construir uma sociedade sem conscincia de si mesma, o problema do livro inteiro.

    As pastas de xerox no so um problema apenas porque elas desestimu-lam a formao de bibliotecas. Elas criam confuses quando o professor escolhe trabalhar com livros inteiros. No captulos ou fragmentos. Alguns estudantes pedem para que sejam definidos os fragmentos que sero objeto de avaliao.

    No possvel partir do princpio, ao ler as referncias bibliogrficas de um trabalho de graduao, ou uma dissertao ou tese de ps-graduao em literatura, que a presena de um ttulo signifique que o livro foi lido. A primeira hiptese pode ser a de uma pasta de xerox. Pode ter sido lido um captulo, e o livro referido inteiro. Como se no houvesse diferena. Mais ainda, o ttulo pode aparecer como resposta a uma necessidade acadmica, como expectativa de cobrana, sem nenhum comprometimento com a lei-tura do livro propriamente dito.

    A tenso existente hoje em torno do livro inteiro tal que causa medo. Ela pode destruir a relao amena entre um professor e seus estudantes. H diferentes graus de aceitabilidade. Vidas secas inteiro, em um curso de Letras, ainda parece tranquilo hoje. Grande serto: veredas pode causar polmica. Em 1987, quando estava em meu curso de graduao em Letras, minha professora de Literatura Brasileira III disse que no proporia esse livro pois era complexo demais para que ns, estudantes, entendssemos. E quanto a propor a leitura de livros de ensaio inteiros, no de captulos? Livros de te-oria da literatura? De filosofia, de cincias humanas?

  • O ensino de literatura como fantasmagoria 221

    Existem argumentos prticos, como o custo do livro, o tempo para ler, o nmero de matrias. Esses podem ser problemas verdadeiros. No creio que nenhum desses argumentos seja decisivo. O problema central o valor atribudo ao livro, o significado atribudo leitura. Se o ensino de literatu-ra irrelevante ou quase irrelevante para o estudante, se o professor no convence como defensor da importncia do debate do que se apresenta no livro, de fato vai prevalecer o princpio da destruio: o mnimo esforo, o gozo sdico de obter aprovao lendo pouco ou nada, a competio ansiosa com a realidade reificada.

    E ento a tentativa de trabalhar com um livro inteiro pode se tornar uma espcie de momento abjeto, em que o professor apresenta seu gesto de ten-tativa em aula sem saber o que esperar como reao. Em alguns casos, sa-turado e cnico, sem esperar nada dos alunos, o docente no apenas prope livros inteiros, mas tambm assume que o resultado disso nulo, por isso, no distingue no corpo discente nenhum sinal de vida. No o meu caso, se eu entrar com esse cinismo em sala de aula, vou passar mal e vomitar.

    Muitos, ou todos, parecem estar com pressa. Livros pedem tempo. O ensino de literatura est integrado s dinmicas das agendas contraditrias das universidades. As leituras padecem com isso. Proposies: temos que lutar contra os interesses dos crculos viciosos dos vestibulares, dos manu-ais didticos conservadores, dos esquemas perniciosos das pastas de xerox, das frmulas redutoras para o ensino superficial, e contra os clichs e or-namentos retricos que agradam sem dizer nada, os trabalhos acadmicos comprados e copiados, a falta de entusiasmo acadmico, a carncia de de-bates srios, a valorizao de modelos apolticos de leitura, a reificao do sistema educacional, os hbitos vis associados s pastas do xerox. preciso defender um ensino de literatura em que a interpretao e o debate sejam prioridades, e em que um professor em sala de aula apresentando um livro inteiro para leitura corresponda s expectativas gerais. A realizao dessas mudanas depende de polticas em nveis diversos, mudanas de atitudes, elaborao de materiais didticos, debates amplos e continuados e, antes de mais nada, uma reavaliao do prprio papel da universidade, consideradas as suas contradies.

    Sem essas mudanas, o que est acontecendo hoje, e em crescimento, constitui de fato uma manifestao de impulso de destruio ou de morte, em escalas dificilmente suportveis (FREUD, 2010: 161). Isto , um ensino de literatura que tende a caracterizar as cobranas do professor com relao

  • Jaime Ginzburg222

    ao aluno como agresses e a constituio da sala de aula como ambiente hostil. Em vez de um debate de ideias, a projeo do ensino instrumental voltado para um telos (o vestibular, o mercado de trabalho) acentua a compe-titividade entre estudantes, motivando chances de frieza, de distanciamento e mesmo de intolerncia entre eles.

    Referncias BibliogrficasADORNO, Theodor W. Philosophy and Teachers. In:_____. Critical models. New York: Columbia University Press, 2005.

    ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.2.

    BOSI, Alfredo. Dialtica da colonizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    FREUD, Sigmund. O mal-estar da cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010.

    MARX, Karl. Fetichismo e reificao. In: _____. Sociologia. So Paulo: tica, 1988.

    NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. In:_____. Obras incompletas. So Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).

    SCHWARTZMAN, Simon. (Org.). Estado Novo, um auto-retrato. Braslia: Ed. UNB, 1983.

    Recebido em fevereiro 2012Aceito em maio 2012