O Encontro Entre a Dança e Educação Somática

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69 Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 2 (62), p. 69-85, maio/ago. 2010 O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo Eloisa Domenici * Resumo: Neste artigo, destaco a sinergia entre a educação somática e a dança, como um subespaço de produção de conhecimento qualificado sobre o corpo. Considero que as práticas de educação somática possibilitaram novos caminhos de investigação e criação, alterando profundamente os modos de fazer dança, para além da clássica epistemologia mecanicista em que se pauta o treinamento corporal tradicional. Minha hipótese é de que essa zona híbrida entre arte e ciência vem desestabilizando concepções importantes, tais como memória, cognição, movimento, hábito, natureza, cultura, entre outros, produzindo importantes subsídios na direção de novas epistemologias sobre o corpo. Palavras-chave: dança; educação somática; corpo; epistemologia. The encounter of dance and somatic education as a new epistemological interface on body theories Abstract: This article focuses on the collaboration between somatic education and dance as a sub-space for production of qualified knowledge on the body. It is argued that the practices of somatic education have provided new kinds of investigation and creation, making significant changes in the ways of making dance and producing new aesthetic concepts that present other ideas than the ones from the classical mechanist epistemology. Our hypothesis is that this hybrid zone between art and science has been mobilizing important conceptions, such as memory, cognition, movement, habit, nature, and culture, among others, producing an important support for new epistemologies on the body. Key words: dance; somatic education; body; epistemology. O nascimento de uma interface de conhecimento A educação somática é um campo emergente de conhecimento de natureza interdisciplinar que surgiu no século XX, protagonizado por profissionais das * Professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, artista da dança e pesquisadora de estudos do corpo e estudos da mestiçagem nas artes cênicas. [email protected]; http://www.ppgac.tea.ufba.br; www.ihac.ufba.br.

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Neste artigo, a autora destaca a sinergia entre a educação somática e a dança, como um subespaço de produção de conhecimento qualificado sobre o corpo. Considero que as práticas de educação somática possibilitaram novos caminhos de investigação e criação, alterando profundamente os modos de fazer dança, para além da clássica epistemologia mecanicista emque se pauta o treinamento corporal tradicional. Minha hipótese é de que essa zona híbrida entre arte e ciência vem desestabilizando concepções importantes, tais como memória, cognição, movimento, hábito, natureza, cultura, entre outros, produzindo importantes subsídios nadireção de novas epistemologias sobre o corpo.

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    Pro-Posies, Campinas, v. 21, n. 2 (62), p. 69-85, maio/ago. 2010

    O encontro entre dana e educao somticacomo uma interface de questionamento

    epistemolgico sobre as teorias do corpoEloisa Domenici*

    Resumo: Neste artigo, destaco a sinergia entre a educao somtica e a dana, como umsubespao de produo de conhecimento qualificado sobre o corpo. Considero que as prticasde educao somtica possibilitaram novos caminhos de investigao e criao, alterandoprofundamente os modos de fazer dana, para alm da clssica epistemologia mecanicista emque se pauta o treinamento corporal tradicional. Minha hiptese de que essa zona hbridaentre arte e cincia vem desestabilizando concepes importantes, tais como memria, cognio,movimento, hbito, natureza, cultura, entre outros, produzindo importantes subsdios nadireo de novas epistemologias sobre o corpo.

    Palavras-chave: dana; educao somtica; corpo; epistemologia.

    The encounter of dance and somatic education as a new epistemologicalinterface on body theories

    Abstract: This article focuses on the collaboration between somatic education and dance as asub-space for production of qualified knowledge on the body. It is argued that the practices ofsomatic education have provided new kinds of investigation and creation, making significantchanges in the ways of making dance and producing new aesthetic concepts that present otherideas than the ones from the classical mechanist epistemology. Our hypothesis is that thishybrid zone between art and science has been mobilizing important conceptions, such asmemory, cognition, movement, habit, nature, and culture, among others, producing animportant support for new epistemologies on the body.

    Key words: dance; somatic education; body; epistemology.

    O nascimento de uma interface de conhecimento

    A educao somtica um campo emergente de conhecimento de naturezainterdisciplinar que surgiu no sculo XX, protagonizado por profissionais das

    * Professora do Instituto de Humanidades, Artes e Cincias Professor Milton Santos e do Programade Ps-Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia, artista da dana epesquisadora de estudos do corpo e estudos da mestiagem nas artes [email protected]; http://www.ppgac.tea.ufba.br; www.ihac.ufba.br.

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    reas da sade, da arte e da educao. Esse campo surgiu inicialmente fora daacademia e vem sendo trazido para as universidades paulatinamente, emborauma boa parcela da pesquisa seja ainda hoje realizada fora destas e de formapouco sistematizada. Embora a natureza desse campo tenha como uma marcaforte o empirismo, devido ao prprio incio de sua histria, a partir de umdeterminado momento, a sistematizao e a reflexo tornaram-se fundamen-tais. Nesse sentido, o seu ingresso nas universidades vem contribuindo muitopara a sua consolidao como campo de conhecimento.

    O campo compreende diversos mtodos de trabalho corporal, na sua maio-ria criados na Europa e nos Estados Unidos no incio do sculo XX, propondonovas abordagens do movimento, a partir de pressupostos que divergem daviso mecanicista do corpo. Os seus criadores, muitos deles motivados pelodesejo de curar-se, rejeitando as respostas oferecidas pela cincia dominante,passaram a investigar o movimento nos seus prprios corpos (Strazzacappa,2006). Assim, esses pioneiros, Moshe Feldenkrais (Mtodo Feldenkrais), IngmarBartenieff (Mtodo Bartenieff ), Gerda Alexander (Eutonia), Matthias Alexander(Tcnica de Alexander), Ida Rolf (Rolfing), Mabel Todd (Ideokinesis), BonnieBainbridge-Cohen (Body-Mind Centering), entre outros, criaram suas teoriasbaseadas em suas prprias experincias. Seus mtodos mostraram-se eficientese logo foram disseminados por seus discpulos nas dcadas seguintes.

    Como se d o movimento no corpo? Quais as relaes entre corpo e mente?O que a percepo e como ela opera? Quais as relaes entre a percepo e omovimento no corpo? Qual a importncia das emoes nesse circuito? Essaseram algumas das perguntas para as quais esses pioneiros formularam respostasinovadoras.

    Nos anos 1960, esse novo campo de experimentao sobre o corpo am-pliou-se ainda mais, graas ao maior interesse de artistas da dana por taismtodos. Um primeiro resultado desse encontro com a dana foi o prprioencontro entre mtodos diferentes, que antes ocupavam nichos isolados, nosatelis e nas escolas de seus criadores, e que agora eram trazidos para dentro dosestdios de dana.

    O encontro com a educao somtica deu-se em um momento muito espe-cial, em que ocorria uma saturao dos modelos da dana moderna e do preci-osismo da forma. Esse encontro provocou importantes mudanas na maneirade pensar o corpo na dana: reivindicou o respeito aos limites anatmicos docorpo, estimulou a explorao de novos padres de movimento e questionoumodelos e concepes bastante firmadas pela tradio acerca do treinamentocorporal.

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    A norte-americana Ann Halprin, considerada uma musa revolucionria dagerao da chamada Judson Church1, propunha aos seus alunos exerccios, taiscomo explorar o movimento de cada articulao isolada, o que hoje pode pare-cer muito comum, mas na poca soava muito diferente das aulas de tcnica dedana. Halprin falava em subverter a lgica de organizao do movimento cor-poral e de explorar uma lgica de organizao animal, acreditando no movi-mento desconhecido que dorme na cartografia das dinmicas corporais; o cor-po deveria ser livre e compreendido em relao de seus mecanismos prprios(Louppe, 1994, p. 99, grifo nosso). Essa mudana que ocorreu, do tradicionalmodelo de observao e cpia do movimento para protocolos de investigaodo seu prprio corpo, foi a grande virada que expandiu os territrios do ima-ginrio e do sensvel e fundou uma nova filosofia do movimento, que revolu-cionou a dana nas dcadas seguintes, como analisa a historiadora LaurenceLouppe (1994).

    A partir desse momento, os mtodos de educao somtica passaram a serfrequentemente experimentados, agora no apenas por indivduos que busca-vam sade e bem-estar, mas tambm por pessoas interessadas em produzir artecom o seu corpo, ganhando uma nova contribuio diferenciada e bastantededicada: a dos artistas da dana.

    Para a dana, os impactos foram muito determinantes, no somente emtermos das prticas educacionais, mas tambm da esttica. A experimentao ea improvisao ganharam grande status, desta vez muito diferente do que pro-punha Isadora Duncan nos anos 1920. Ao invs de servir ao transbordamentodas emoes, a improvisao agora interessava como mtodo para investigarnovos padres de movimento, que eram manejados experimentalmente comonovos repertrios. Ao invs do romantismo das emoes, o foco agora era amaterialidade do corpo e do movimento. Essa liberao semitica2 da dana,que j havia sido iniciada por Merce Cunninghan, seria determinante para ofuturo. Falava-se em um lugar branco, sem memria e sem desejo, capaz dedescondicionar a linguagem da dana das leituras psicologizantes. O movi-mento tinha inventado um estado de liberdade irreversvel na sua qualidade deobjeto destacado da ordem do mundo.

    Os novos mtodos de trabalho corporal, obviamente, no foram a nicacontribuio importante para essas mudanas que acabaram por detonar a se-

    1. Judson Church o nome pelo qual ficou conhecido o Judson Dance Theater, que funcionoucomo um polo de nascimento do ps-modernismo na dana.

    2. Libertao semitica da dana diz respeito ao reconhecimento do movimento como signo, emsua materialidade, e no como simples veculo de sentimentos ou histrias. Semelhante ao queocorreu na literatura com a poesia concreta.

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    mente do ps-modernismo na dana, mas foram determinantes, na medidaem que provocaram mudanas nos processos que subsidiam o corpo.

    A educadora Sylvie Fortin, professora do Departamento de Dana daUniversit du Qubec Montral, que vem se dedicando a estudar a dinmicado campo da educao somtica, publicou, em 2002, um balano sobre osseus reflexos nas prticas educacionais de dana, apontando tambm as adap-taes locais que as prticas experimentam em cada cultura diferente.

    Minha inteno aqui propor um outro tipo de balano: a contribuiodessa experincia acumulada em termos de conhecimento sobre o corpo. Nessesentido, a sinergia gerada pelo encontro da educao somtica com a dana, nomeu modo de ver, contribuiu decisivamente, na medida em que a ousadiaesttica da dana possibilitou um novo campo experimental para a educaosomtica, enquanto esta forneceu subsdios importantes para que os coregra-fos pudessem materializar a expanso desejada. O intuito deste artigo o dedestacar o potencial desse encontro particular, que no deixa de ser um encon-tro da cincia com a arte, para a consolidao de novas epistemologias sobre ocorpo.

    Cincias cognitivas

    A partir da dcada de 1960, algo importante viria a ocorrer tambm na ci-ncia. Trata-se das pesquisas sobre a cognio humana. Os estudos sobre a visocomearam a produzir dados que abalavam profundamente as crenas sobre comoo ser humano constri o conhecimento sobre o mundo. Mostrou-se que a visono um fenmeno passivo, de captao da imagem dos objetos do mundo, mas,sim, uma construo do crebro na interao com esses objetos, no qual parti-cipam, alm da informao visual, outros tipos de dados, como tato, cheiro, sonse tambm experincias da memria. Essas pesquisas tiveram implicaes filos-ficas determinantes. A existncia de uma realidade objetiva ficou seriamenteabalada e a subjetividade passou a estar necessariamente implicada na constru-o de qualquer tipo de conhecimento. Este foi o comeo do que mais tarde viriaa se tornar, nos anos 1980-90, uma corrente torica denominada embodiedcognition, segundo a qual a experincia corporal (sensrio-motora) a base paraa construo de qualquer tipo de conhecimento.

    A cincia chegava a concluses muito importantes: o corpo est diretamen-te implicado no conhecimento do mundo a maneira como se experiencia omundo interfere determinantemente no que se conhece. Ento, uma vez queexperincia algo individual, que pode ser compartilhada apenas parcialmen-te, impossvel uniformizar o conhecimento de cada corpo diante do mesmoobjeto ou evento. Corpo no um ambiente passivo que reage ao mundo de

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    maneira sempre previsvel; um ambiente ativo que constri novos conheci-mentos e comportamentos na interao com o mundo, em tempo real.

    Proposies como essa, que a cincia apenas recentemente passou a aceitar,j vinham sendo testadas na prtica no campo da educao somtica, h dca-das, o mesmo ocorrendo com temas como conscincia, memria, aprendizado,dentre outros, para as quais j se aceitavam proposies igualmente distantesda cincia clssica.

    Contribuindo para uma epistemologia sobre o corpoPara a cincia clssica, o conhecimento produzido experimentalmente nas

    prticas de educao somtica no totalmente vlido porque carregado desubjetividade. A objetividade consiste em tratar o corpo como um objeto, fa-lando dele em terceira pessoa3.

    A educao somtica define corpo no como um objeto, mas como umprocesso corporificado de conscincia interna e comunicao4 (Green, 2002,p. 114). Em certo ponto da histria, os educadores somticos tentaram nome-ar essa diferena, propondo o termo soma5 em lugar de corpo. Thomas Hannadefine assim o conceito de soma:

    O corpo percebido a partir de si mesmo, como percepo emprimeira pessoa. Quando o ser humano percebido de fora, doponto de vista de um terceiro, o fenmeno do corpo humano percebido. O soma, sendo percebido internamente, categori-camente distinto de um corpo, no porque o sujeito diferente,mas porque o modo de percepo diferente a propriocepoimediata um modo de sensao que fornece dados nicos.(Hanna apud Fortin, 2002, p. 128 traduo nossa)

    3. Esta posio da cincia, no entanto, no abrange todos os cientistas, como o caso do neurologistanorte-americano Oliver Sachs, que publicou diversos livros contendo relatos de seus pacientesem primeira pessoa e comentrios seus, relacionando esses sinais s prprias patologias, que soverdadeiras lies de semiologia do corpo vivo. Ao contrrio de serem considerados absurdosou incuos, os relatos so tratados por Sachs com curiosidade e respeito pelas informaes queaqueles indivduos podem agregar ao conhecimento das neuropatologias. O fato de seremexperincias subjetivas no as desqualifica em termos de conhecimento, simplesmente agrega asinformaes que aquele sujeito est percebendo no seu corpo e que s podem ser relatadas porele. Ver SACHS, Oliver, (2001) O homem que confundiu sua mulher com um chapu.

    4. Traduo nossa do texto original: An embodied process of internal awareness and communication(Green, 2002, p. 114).

    5. Thomas Hanna define assim o conceito de soma: The body as perceived from within by firstperson perception. When a human being is observed from the outside, i.e., from a third-personviewpoint, the phenomenon of a human body is perceived... The soma, being internally perceived,is categorically distinct from a body, not because the subject is different but because the mode ofviewpoint is different: it is immediate proprioception a sensor mode that provide unique data.(Hanna apud Fortin, 2002, p. 128).

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    Essa proposta de mudar a nomenclatura no modificou o hbito de utilizaro termo corpo, mostrando que, na verdade, a concepo de corpo o que im-porta.

    A educao somtica trabalha com uma concepo de corpo que se aproxi-ma da idia de processo. Entretanto, alguns textos da rea ainda mesclam outrasmetforas tpicas do dualismo cartesiano, tais como instrumento ou veculo6.Tais metforas carregam ideias muito diferentes sobre a natureza do corpo e osseus modos de operar. Este um descompasso que precisa ser superado paraque a pesquisa avance.

    O campo da educao somtica vem se expandindo muito nas ltimas d-cadas, sendo que a transformao um fenmeno atual do campo (Fortin,2002). Alm da disseminao dos primeiros mtodos (Alexander, 1991;Bartenieff, 1980; Doud, 1996; Feldenkrais, 1972; Todd, 1980; Vishnivetz,1995.) uma srie de novas prticas j foram criadas e outras ainda surgirampela hibridao de mtodos j existentes, ainda mais singularizadas pelas dife-renas culturais.

    No Brasil, destacam-se duas propostas de educao somtica bastante ori-ginais: de Klauss Vianna e de Jos Antnio Lima. Klauss Vianna e seus colabo-radores, Angel e Rainer Vianna, criaram uma proposta que destaca a pressosobre os apoios (resistncia), as oposies musculares, espaos articulares e di-rees sseas (Miller, 2007; Neves, 2008). Lima, ex-aluno e assistente de Vianna,desenvolveu a proposta denominada Reorganizao Postural Dinmica (Lima,2010), utilizando o trabalho muscular lento e contnuo contra uma resistnciaoferecida pelo prprio corpo. Tanto Vianna quanto Lima criaram suas propos-tas trabalhando com um pblico composto, em sua maioria, por danarinos eatores; portanto, j se trata da sinergia com as artes do corpo, expanso que fruto do encontro do qual estamos falando.

    Dada a expanso e a transformao do campo, no simples analisar o quese vem produzindo de conhecimento sobre o corpo nessa interface. Mesmoassim, a seguir, procurarei destacar alguns princpios organizadores7 mais co-muns nas prticas de educao somtica, apontando concordncias ediscordncias com ideias correntes nas cincias cognitivas e ainda destacandocriadores que esto testando essas ideias em sua dana.

    6. No mesmo texto em que Jill Green concorda com a viso de Thomas Hanna sobre soma, algunspargrafos adiante ele afirma que o corpo um veculo por meio do qual o danarino seexpressa (Green, 2002, p.114, grifo nosso), e mais adiante: como o corpo um instrumentohumano (op cit, p. 117, grifo nosso). As metforas veculo e instrumento so claramente dualistase contradizem a ideia de processo.

    7. Fortin (1998) prope a expresso princpios organizadores fundamentais, referindo-se a conceitospessoais bsicos de conhecimento do assunto que orientam as aes do professor e explicam asrazes dessas aes.

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    Um princpio geral das prticas de educao somtica privilegiar a infor-mao que vem do prprio corpo para orientar as decises. O caminho maisnotvel foi a investigao das possibilidades do movimento pela explorao dasensopercepo , o que se tornou comum chamar de conscincia corporal.Da se complementa esse princpio organizador: a busca do refinamento senso-rial e a crena de que ele aumenta as possibilidades de escolha, ou seja, aumen-ta a liberdade do criador (Fortin, 1996).

    O trabalho de refinamento sensorial inclui exerccios para aprender a reco-nhecer as informaes que vm do prprio corpo; portanto, um aprendizadoque privilegia o sentido da propriocepo. Nas aulas de dana influenciadaspela educao somtica, ao invs de copiar um modelo, o aluno aprende atrabalhar com parmetros, tais como as posies relativas entre os ossos e asarticulaes, os estados tnicos dos grupamentos musculares, a situao dosseus apoios, entre outros. Este se tornou um princpio muito comum nas abor-dagens tcnicas baseadas em investigao do movimento. Mesmo se o profes-sor prope alguma frase de movimento para estudo, este procedimento ape-nas uma etapa no aprendizado. Em uma etapa seguinte o aluno estimulado aimprovisar, utilizando aqueles movimentos aprendidos e criando novos enca-deamentos. O objetivo que o aluno descubra como ele se move e como podese mover, tornando-se investigador do seu prprio movimento e conquistandouma posio de autonomia.

    Desde a gerao da Judson Church e a sua rebelio contra a ditadura daforma, as prticas educacionais de dana baseadas na explorao dasensopercepo ganharam destaque. poca, a situao geral era de descrenaem uma regra que viesse de fora e de busca de uma organizao que viesse dedentro do prprio corpo. Desde ento, isso se transformou em jargo no dis-curso da dana, muitas vezes ainda contaminado pelo emocionalismo das fasesromntica e expressionista8.

    No s se modificaram as prticas pedaggicas, mas tambm se expandiramos limites da dana para alm da semanticidade, explorando agora amaterialidade do corpo. A explorao do movimento como matria, que podeser manipulado nele mesmo, sem se prender ao que ele quer dizer, reafirmouo status da dana como uma arte autnoma; no mais um instrumento derepresentao do drama, como ocorria no bal, nem da msica, como no ro-mantismo. Com isso, a dana saiu da representao e passou apresentao,uma categoria completamente diferente, como explicaremos adiante.

    8. Tanto a dana romntica quanto a expressionista acreditam no dualismo entre o sentimento,localizado no interior do indivduo, e a forma, expressa no exterior do corpo. A funo da danaseria de exteriorizar os sentimentos. Por isso o jargo de que a dana expressa o que vem dedentro.

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    O termo conscincia corporal passou a ser usado de maneira bastante disse-minada desde os pioneiros da educao somtica (como em Awareness throughmovement, Feldenkrais, 1972), termo este que, por sua vez, est relacionado aoutra ideia bastante consolidada no campo da educao somtica: a do corpointeligente9.

    Conscincia corporal e inteligncia do corpo so termos que, embora tra-gam no seu bojo a ideia de corpo como ambiente vivo e produtor de novainformao, como vem sendo bastante debatido nas cincias cognitivas, po-dem gerar uma iluso de controle voluntrio em tempo integral.

    A conscincia um dos problemas centrais das cincias cognitivas e contacom uma extensa literatura. Vale a pena comentar apenas uma ideia bastanteaceita, de que existem variados nveis de conscincia, onde se destacam aautoconscincia ou conscincia de alta ordem, dependente do relato da lingua-gem o sujeito capaz de dizer eu sei que tal coisa est ocorrendo consciousnes.J a conscincia inferior ou primria, independe do relato da linguagem awareness , e pode ser equivalente ao estado de alerta ou prontido10.

    Ao invs de pensar numa inteligncia que estaria s no corpo ou s namente, importantes autores das cincias cognitivas adotam a ideia do continuumcorpomente e defendem que a experincia sensrio-motora ocupa papel cen-tral nos processos cognitivos. Essa a corrente terica denominada embodiedcognition (Damsio, 1996; 1998; Lakoff Johnson, 1999.). Alguns autores des-se grupo ainda defendem a ideia de corpo como um processo evolutivo capazde auto-organizar comportamentos de alta ordem de elaborao mediante osestmulos apropriados, graas sua complexidade e capacidade de interaointeligente com o ambiente; no de maneira determinista, como na concepobehaviorista de estmulo-resposta, mas de maneira complexa, em que as res-postas emergem11 em tempo real (Thelen e Smith, 1994).

    Este o caso da psicloga norte-americana Esther Thelen (1941-2004),que se especializou no estudo do desenvolvimento psicomotor de crianas. Para

    9. Essa ideia est bem expressa nos livros: The thinking body, de Mabel Todd (1932) e The use of self,de Moshe Feldenkrais (1937), e tambm no meio da dana, como mostra o dossi da revistabelga Contradanse, de 1996, dedicado ao assunto da educao somtica, cujo texto de aberturase denomina Lintelligence du corps.

    10. A conscincia inferior faz-se com fluxo de imagens. Para uma introduo sobre o assunto, halguns autores de obras de divulgao das cincias cognitivas, tais como Antnio Damsio (2000)e Gerald Edelman, (1992). Vale ressaltar que essa identificao da conscincia corporal comoawareness est presente na educao somtica desde os pioneiros, como em Awareness throughmovement (Feldenkrais, 1972).

    11. The idea of emergence the temporary but coherent coming into existence of new forms throughongoing processes intrinsic to the system is fundamental to the idea of dynamic systems (Smith,2006, p. 87).

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    esta autora, os padres de movimento no surgem de um plano ou programa apriori: eles emergem no sistema no momento em que uma situao acontece,como resultado da interao entre as possibilidades do corpo e os desafios doambiente12. Engatinhar, por exemplo, um padro coerente de movimentoque as crianas usam para se locomover quando j tm fora e coordenaosuficientes para ficar em quatro apoios sobre as mos e os joelhos e ainda notm equilbrio e fora suficientes para ficar em p. No h programa paraengatinhar no cdigo gentico ou pr-organizado no sistema nervoso. Essepadro de movimento se auto-organiza como uma soluo temporria para oproblema (atravessar uma sala) e substitudo mais tarde por uma soluomais eficiente. Quando a criana aprende a andar, aquele padro perde estabi-lidade para os padres de ficar em p e caminhar. Embora a coordenao de-senvolvida para engatinhar sirva como substrato para coordenar a marcha emp, o desenvolvimento muito mais uma srie de padres que surgem e desa-parecem com graus variados de estabilidade do que uma marcha inevitvelpara a maturidade (Smith, 2006, p. 87). Essa a explicao da chamada cor-rente dinamicista, para a qual a inteligncia do corpo uma propriedadeintrnseca do sistema corpomente, que no depende do controle de um sujeitoou de um plano elaborado antes da situao, mas acontece pela auto-organiza-o de comportamentos em tempo real.

    O interesse pela emergncia e imprevisibilidade passou a estar presentetambm nas artes do corpo. Criadores explicitam essa propriedade do corpovivo, de interagir com o ambiente em tempo real, levando para o palco situa-es de interatividade onde vrias decises ocorrem no momento da apresenta-o, como no espetculo Modo de fazer, da Cia. Dani Lima (2006).

    O princpio organizador que privilegia a sensopercepo est baseado emum paradigma muito importante sobre o corpo: movimento no s ao ao e percepo atuando em contnuo.

    A maioria dos treinamentos tcnicos para dana entendem o movimento deacordo com a epistemologia mecanicista do corpo, tomando o movimento comosinnimo de ao, ou seja, o evento visvel que resulta de um comando cerebralpreviamente aprendido, agindo sobre a periferia do corpo (organizao top-down). A ao tem uma direo nica, do centro para a periferia. J as prticas

    12. Complex systems composed of very many individual elements embedded within, and open to acomplex environment can exibit coherent behavior: the parts are coordenatd without an executiveagent, plan or program. Rather, the coherence is generated solely by the relationships between theorganic components and the constraints and opportunities offered by the environment. (Smith, 2006,p. 87). Thelen mostrou que comportamentos tais como andar e alcanar objetos podem serentendidos como o produto de mltiplos componentes interagindo no aqui e agora das tarefasem tempo real.

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    de educao somtica evidenciam a importncia dos fenmenos que ocorremno sentido inverso (organizao bottom-up), chamando a ateno para o fato deque os processos que ocorrem na periferia do corpo alteram o comando central,resultando em interaes complexas e novos modos de organizao, de maneiramuito mais dinmica do que se pensava13.

    Esse entendimento um divisor de guas no reino das prticas pedaggicasde dana. Para o primeiro paradigma (mecanicista), a repetio o principalmtodo para se aprender um movimento. Para o segundo paradigma (que euchamarei de dinamicista ou sistmico), a autopercepo fundamental paraobter maior competncia no movimento e a melhora da performance. A repeti-o mecnica do movimento, ao contrrio, pode levar a um automatismo quediminui a autopercepo. Assim, busca-se um tipo de repetio que estimule aaprendizagem da dana, capaz de manter os sentidos bem vivos (Fortin, 1998).

    O entendimento o de que ao e percepo so dois lados da mesmamoeda. Existe ao na prpria percepo, na medida em que a percepo ativa. Busca-se uma repetio que estimule manter a ateno presente durantea ao.

    Outro princpio organizador das prticas de educao somtica e que foiintroduzido nas aulas de dana a reeducao postural, seja para a prevenode leses ou para a melhora do movimento de dana. O esforo repetitivo sobreestruturas inadequadamente alinhadas, causando linhas de fora incompat-veis com as propriedades funcionais dos tecidos, habitua o organismo a traba-lhar contra foras perpendiculares ao eixo de direo do movimento, provocan-do um gasto de energia desnecessrio, que reduz a eficincia do movimento epode provocar leses ao longo do tempo, principalmente nos exaustivos treina-mentos baseados na repetio.

    Reeducar o alinhamento postural no tarefa fcil, uma vez que as rotinasde organizao das musculaturas antigravitacionais comeam a ser treinadas edefinidas desde muito cedo. Voltar a ateno para os eventos relacionados organizao da postura uma empreitada longa e rdua, que ir enfrentar,

    13. A respeito da aquisio de habilidades motoras, duas teorias sobre controle e aprendizagemrivalizaram-se na dcada de 70: o debate centralista versus periferalista, cujo foco principal estavana diferena acerca do papel do feedback no controle de movimentos. Para a teoria periferalista,a informao sensorial durante a execuo do movimento crucial. De acordo com Tani et al(2004), hoje h consenso de que h fatores tanto centrais como perifricos no controle demovimentos, interferindo em maior ou menor grau, dependendo do tipo de movimento lento ou balstico. Ressaltamos que os estudos se concentram no campo da educao fsica,sendo que a dana pode contribuir de maneira muito diferenciada, como, por exemplo, no quese refere ao tipo de tarefa analisada: os protocolos de educao fsica analisam tarefas simples,enquanto os protocolos de dana envolvem tarefas muito mais complexas.

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    inclusive, a impacincia do aluno, que acreditava j ter resolvido esse problemacom uma srie de rotinas sensrio-motoras automatizadas durante vrios anos.

    As prticas de educao somtica produziram inmeros protocolos sobrealinhamento postural, os quais mereceriam estudos aprofundados acerca dadinmica dos reflexos que mantm a postura. Uma estratgia que frequente-mente usada para desestabilizar automatismos propor tarefas sensrio-motorasque desafiem os condicionamentos. Por exemplo: caminhar lentamente de modoa dirigir a presso dos ps contra o cho, em uma linha reta, desde o calcanharat a linha mdia do metatarso e artelhos (como proposto por Lima, 1994).Essa nova indicao provoca uma instabilidade no padro do andar, levantanovos problemas e pede novas solues. Ao cabo do tempo, esse treinamentopode levar a uma mudana no padro do movimento do andar.

    Outra caracterstica marcante das prticas de educao somtica, que tam-bm encontra consonncia nas configuraes contemporneas de dana, avalorizao do comportamento singular. O modo individual de organizar omovimento, a memria autobiogrfica e nica, o movimento singular de umdanarino, so atributos que ganham destaque. Na dana surge a danse dauteur(Bentivoglio, 1989 apud Fortin 1998), intransfervel e nica, bem como core-grafos procura de danarinos com tcnica no limitada a um estilo ou mes-mo sem rastros de estilo14.

    Profissionais que aplicam princpios da educao somtica, entre artistas ouno, valorizam as diferentes solues de cada indivduo e salientam esse aspec-to como uma fonte de aprendizado incessante (Miller, 2007; Vishnivetz, 1995,entre outros). Em termos epistemolgicos, a exploso de possibilidades de pro-tocolos vindos dessas hibridaes tende a explicitar o fato de que o corpo secomporta de maneiras diferentes, dependendo do que experimenta e como ex-perimenta.

    Neurocientistas renomados vm mostrando que a memria, ao invs deconjunto de arquivos congelados e estocados, plstica e dinmica, re-organi-za-se mediante cada nova informao (Edelman, 1992). uma memria cria-tiva. O novo pressuposto de que no exista um comportamento nico e ideal,mas, sim, comportamentos variados mediante uma srie de fatores que,projetados ao infinito, tendem singularidade. J no possvel projetar pon-tos de chegada, apenas tendncias e probabilidades. A ideia mais importante o corpo como um sistema dinmico, um ambiente vivo em transformao cons-tante e pouco previsvel. No existem leis e, sim, regularidades; alm disso, os

    14. Problematiza-se a questo de uma tcnica sem estilo, que seria um meio para que sejaalcanada uma execuo tima de qualquer estilo de dana, assim como o mito da neutralidadecorporal e da polivalncia motriz, que tendem a ser superados.

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    sistemas esto sempre sujeitos a bifurcaes (Prigogine e Stengers, 1997). Por-tanto, no existe uma nica verdade vlida sobre o corpo e o movimento, masuma gama complexa de estados diferentes dentro de caminhos evolutivos mui-to singulares (Thelen e Smith, 1994).

    Outra caracterstica marcante dentre as prticas de educao somtica ointeresse pelas emoes e o estudo dos seus efeitos no corpo e no movimento.O resultado disso foi dar existncia material s emoes de maneira corporificada,o que representa uma conquista em termos de expresso. As emoes deixamde ser etreas e desencarnadas, como na dana romntica eram fenmenos daalma, para ganhar uma existncia encarnada, como sendo fenmenos do cir-cuito que envolve o continuum corpomente. O estudo das emoes configura-se como a qualificao dos estados tnicos do corpo. A dana chamada ps-moderna apresentou maneiras para superar o uso representativo e caricaturaldas emoes, explorando no corpo esses estados tnicos e dando outras manei-ras para as emoes expressarem-se em cena, no como caractersticas ligadas aum sujeito. Exemplos recentes esto nos trabalhos Corpo desconhecido, de Cn-tia Kunifas (2004); Impermanncias, de Vera Sala (2005); O banho, de MarthaSoares (2003) e Encarnado, de Lia Rodrigues (2007).

    Em termos semiticos, em relao produo de linguagem, isso significoumuito. Quando tambm a emoo deixa de ser uma representao, o corpodeixa de representar e passa a apresentar estados corporais que criam empatia ecomunicam devido aos prprios traos materiais, estabelecendo uma espciede dilogo tnico (Godard, 1990).

    Em termos da pedagogia da dana, passam a interessar a modulao doesforo e o estudo dos estados tnicos, como qualificadores do movimento. Issosignifica que a aula de dana no se interessa mais apenas por padres de mo-vimento, mas tambm pelas qualidades tnicas do corpo, sendo estas conside-radas um aspecto importante das estratgias que um corpo utiliza para apre-sentar a dana e comunicar-se.

    Com todos esses novos pressupostos, o prprio entendimento do que sejamovimento entra em xeque. Enquanto no ballet e na dana moderna, movi-mento era sinnimo de amplas viagens angulares dos segmentos corporais e/oude grandes deslocamentos pelo espao, agora a noo de movimento deve in-cluir tambm micromovimentos articulares ou a simples modificao dos esta-dos tnicos do corpo. Modificaes sutis provocadas pela modulao da mus-culatura tnico-gravitacional podem ser lidas como movimento, desafiando apercepo. No podemos esquecer a contribuio de estticas surgidas no ori-ente que passaram a interessar dana ocidental, notadamente a dana Butoh(Greiner, 1998).

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    As configuraes contemporneas de dana revelam uma ampla gama deexperimentaes, algumas delas propositalmente limiares, radicais por exce-lncia, apresentando um corpo que se comporta de maneira marcadamentediferente em relao a um trao especfico, desestabilizando o senso comum.Podemos dizer, de maneira geral, que dana o que emerge como estratgia deum corpo para comunicar-se, na medida em que surgem experimentos queconsistem em provocar alguma modificao no corpo e ver de que maneira elese comunica nessa nova situao, seja essa modificao feita por prteses (comoAlexandro Ahmed); seja criando um ambiente diferente em torno do corpo(como Vera Sala); seja partindo diretamente dos seus estados tnicos (comoCntia Kunifas); seja, ainda, em vrias dessas alternativas combinadas. Tiranteo pblico que se afastou pela frustrao em no ver ratificados os seus cnonesestticos, aquele que segue acompanhando a produo dos novos criadores apre-cia o desafio proposto pelas novas configuraes. O que dana uma questoque est sempre subjacente a esse tipo de trabalho, assim como o que corpo ecomo ele funciona.

    Este o lugar da sinergia que queremos destacar entre a dana chamadaps-moderna e as prticas de educao somtica. Essa sinergia no homog-nea como zona interdisciplinar de criao de conhecimento. Ela no envolvetoda a dana, mas com certeza uma parcela importante formada por criadoresque privilegiam a investigao da percepo do corpo e da organizao do mo-vimento como fonte importante para a sua criao de linguagem. Nosso intui-to ressaltar o quanto esses novos experimentos com o corpo em situao peda-ggica resultaram em novas possibilidades expressivas, e vice-versa. O panoramageral de desestabilizao de noes importantes sobre corpo, memria e apren-dizado.

    A Cincia na formao em dana

    Para terminar este artigo, eu gostaria de defender a ideia de que essa interfaceentre dana e educao somtica como produtora de conhecimento sobre ocorpo pode ser mais protagonizada por danarinos, na forma de equipesinterdisciplinares.

    Falar da sinergia entre dana e educao somtica implica necessariamentetratar de outra ainda maior, que entre arte e cincia, lembrando que o pruri-do entre conhecimentos de naturezas diferentes um fenmeno recente nahistria. A simples lembrana de Leonardo da Vinci (1452-1519) basta parareconhecer o potencial do encontro e rejeitar a separao disciplinar do conhe-cimento.

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    Venho de uma formao mista entre dana e biologia e desde cedo tiveinteresse por estudos do corpo e do movimento, de modo que o meu pensa-mento sempre se fez, inevitavelmente, com informaes dessas duas reas, emum processo bidirecional. Desde o incio de minha formao universitria emdana fui atrada para as leituras do campo da educao somtica, com grandeadmirao pela possibilidade de lanar questes experimentais sobre o corpo eo movimento, concomitantemente pesquisa de linguagem em dana. Hoje,em minha atuao profissional como artista docente e pesquisadora, observo osresultados de como essa sinergia qualifica a prtica educacional e instaura ummodo particular de lanar questes sobre a dana e sobre o corpo. Meu traba-lho na universidade, atuando em um curso superior de arte, investe no desafiode desenvolver uma prtica pedaggica que possa estimular a superar essa sepa-rao, de modo que certas perguntas que surgem durante a pesquisa de movi-mento suscitem explicaes das cincias e a leitura de textos de cincia propenovas questes que sero investigadas na prtica da dana. Tendo a acreditarque esta abordagem interdisciplinar venha ao encontro das atuais tendnciasda educao (Almeida, 2007) e da prpria dana.

    Por isso, defendo o lugar do conhecimento cientfico na formao do dana-rino. Observo que existe uma polmica muitas vezes velada que, na prtica,produz atritos constantes. bastante comum, nos cursos universitrios de dana,os professores de tcnica declararem sim, os danarinos precisam saber anatomia,mas, na prtica, as tcnicas de dana e a anlise do movimento permanecemisoladas uma da outra, seja por falta de disposio para interagir de uma parteou da outra, ou de ambas. So raros os professores de anatomia e cinesiologiacom abordagens especficas para dana e com disponibilidade de interagir comas aulas de tcnica; ao mesmo tempo, bastante comum os professores detcnica sentirem-se ameaados pela cinesiologia, porque ela aumenta a capaci-dade crtica dos alunos.

    Essa resistncia reflete tanto o prprio medo de alguns agentes do campoda dana de lidarem com conhecimentos cientficos e uma viso conservadora que ainda sobrevive no meio, com suas crenas prprias do romantismo,tais como a de que a cincia atrapalha a criao , quanto o preconceito dedocentes das reas cientficas, que no acreditam que o artista possa produzirconhecimento qualificado sobre o corpo.

    importante frisar que, embora no saiba, ao formular uma aula de tcnicade dana, um professor est formulando hipteses sobre o que dana, como omovimento se aprende, etc. Mesmo que os fundamentos que orientam a prti-ca pedaggica de determinado professor sejam essencialmente filosficos ouestticos, os conhecimentos sobre anlise do movimento esto implcitos quandoele prope uma aula de tcnica. Assim, melhor que ele tenha conhecimentosnecessrios para tratar disso com conscincia e competncia.

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    Fortin (1998) mostra que a fundamentao lgica que os professores do ssuas aes to importante quanto seus comportamentos. A fundamentaolgica evidencia-se nos princpios organizadores fundamentais do ensino prati-cado pelo professor, ou seja, que princpios aparecem nas instrues aos alunose como estas so transmitidas, sendo que eles se complementam como concep-o de dana.

    No se justifica a rejeio cincia por ignorncia e desconhecimento, jque ela mesma j superou os paradigmas clssicos (Prigogine e Stengers, 1997).Ideias a respeito de temas tais como conscincia, memria, mente e corpoganharam importantes contribuies no final do sculo XX, da a necessidadede acompanhar esses debates.

    Um desafio que precisa ser encarado com seriedade tornar a cincia umconhecimento acessvel nos currculos acadmicos de dana, superando difi-culdades que vo desde a falta de livros adequados15 at de profissionais capaci-tados para atuar em sinergia16. Nesse sentido, concordo com a educadora nor-te-americana Jill Green: a tendncia de a educao somtica tornar-se umanova rea de estudo dentro da dana ou uma sub-disciplina em dana muito positiva no sentido de trazer o corpo de volta para a dana e para ocurrculo de formao do danarino (Green, 2002, p. 113).

    Concluso

    Muito se tem falado sobre a influncia da educao somtica nas prticaseducacionais de dana, mas o potencial desse encontro particular entre a cin-cia e a arte de produzir conhecimento sobre o corpo vem sendo pouco explora-do. Minha hiptese de que esse encontro produz um ambiente de experi-mentao no s para a arte, mas tambm para teorias sobre o corpo.

    Trata-se de um ambiente frutfero de experimentao que, se adequada-mente aproveitado, pode tornar-se um subcampo importante de produo deconhecimento qualificado e original. Depende de consolidar-se cada vez maiscomo campo de natureza interdisciplinar.

    O estudo dessa interface destaca-se tambm pelo interesse epistemolgico,na medida em que evidencia a interao produtiva que ocorre entre conheci-

    15. Um exemplo: a maioria dos livros sobre fisiologia humana disponveis no traz nenhuma informaosobre assuntos como refinamento sensorial e modulao do tnus, temas centrais para falar detcnica para dana hoje. Para evitar a repetio esta substituio possvel?

    16. Salvo raras excees: o fato de ter sido aluna de Jos Antnio Lima, ento professor de anatomiae cinesiologia aplicadas dana no curso de graduao em dana da Unicamp, e o fato de terparticipado de seu grupo de pesquisa do movimento na poca em que ele investigava a criaode um novo mtodo de educao do corpo para o movimento foram oportunidades centrais emminha formao.

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    mentos de naturezas diferentes, ressaltando a nfase na direo no disciplinardo conhecimento.

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    Recebido em 10 de maro de 2010 e aprovado em 11 de maio de 2010.