O dito e o escrito, o imaginado e o partilhado: Oswaldo ... · Antônio Biá, do filme brasileiro...
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O dito e o escrito, o imaginado e o partilhado: Oswaldo Rodrigues Cabral
nas memórias de atores do patrimônio cultural em Santa Catarina
JANICE GONÇALVES*
Vários pesquisadores que se dedicam à história oral já refletiram sobre o lugar do
esquecimento, da omissão, do erro, do engano, da fabulação e da mentira nas narrativas orais.
Com exceção da mentira, em geral considerada consciente e deliberada (o que, em alguns
casos, também pode abarcar a omissão), as demais ocorrências são geralmente interpretadas
como falhas inerentes aos processos de narração e de memória e, portanto, previsíveis e
toleráveis (embora se recomende que sejam identificadas e controladas pelos pesquisadores,
em seu trabalho crítico). Já na relação entre entrevistador e entrevistado, a mentira, se
detectada, fere o pacto ético travado entre ambos: veja-se a reação de Janaína Amado ao
perceber que Fernandes (pseudônimo que a historiadora adotou para seu entrevistado, de
modo a apresentá-lo a nós, já que ele solicitou não ser identificado) inventara boa parte do
relato sobre sua participação na revolta do Formoso, em Goiás: “Confusa, decepcionada e,
principalmente, furiosa, por me haver deixado enganar tão facilmente, engavetei a entrevista
do grande mentiroso e não pensei mais nela.” (AMADO, 1995: 127).
É, todavia, seguro que o ato de narrar (seja a narrativa escrita ou falada), por envolver
um processo de ficcionalização, tende a aproximar mentira e fabulação, de maneira mais ou
menos estreita, a depender do talento narrativo de quem narra1. Ficção não é mentira, mas
ambas demandam criatividade... Isso é exemplarmente indicado por meio do personagem
Antônio Biá, do filme brasileiro Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé; penso,
sobretudo, na sequência em que, insatisfeito com a qualidade narrativa do relato que lhe
faziam, Biá propõe modificá-lo, de modo a “floreá-lo um pouquinho” (e então dá vazão à
imaginação). No caso, Biá preocupava-se com a qualidade literária do que ficaria registrado
*UDESC, Doutora em História Social.
1 Ficção, cabe destacar, é uma palavra que vem do latim, do verbo fingo (o particípio passado do verbo é fictus,
que deriva em fictio, ficção). Fingo originalmente significava modelar (modelar o barro, transformar o barro em
uma peça cerâmica) e passou também a significar imaginar, criar, representar (MENESES, 2008: 27). Daí que a
ficcionalização seja uma das principais características da condição humana. Narrar, criar um relato, contar uma
história é, por sua vez, uma das dimensões fundamentais da ficcionalização. E narrativas podem ser tanto orais
como escritas.
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como escrito, e por isso afirmou: “Uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito;
o acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor [sic] para que o povo creia no
acontecido.” Destaca, assim, que o conteúdo da fala ou do escrito é moldado, criativamente,
de forma a encantar e cativar o ouvinte ou o leitor.
A “licença poética”, o “floreio” que pode vir com a ficcionalização não costuma ser
confundido, especialmente nas narrativas orais, com enganos e esquecimentos, geralmente
esperados, pois creditados às “traições” da memória de cada indivíduo. Mas em que medida
enganos e esquecimentos têm caráter meramente individual?
A pesquisadora Mary Marshall Clark relatou experiência de entrevista, na década de
1970, em que detectou, da parte da sua entrevistada (a jornalista Betsy Wade), uma
sistemática omissão a uma pessoa, Louise Rouget. A própria Betsy Wade admitiu, durante a
entrevista, esse esquecimento, que interpretou como “bloqueio”:
Bloqueei totalmente a lembrança dessa mulher, que trabalhou na gráfica, todos os
dias, durante quarenta anos – seu nome era Louise Rouget. [...] Isso não é tudo,
Louise era mãe solteira e bloqueei sua história porque não era sexy, atraente, nem
interessante, nem feminista e fiz a ela o que acuso a geração mais nova de fazer
comigo – bloqueei a lembrança de sua existência. (apud CLARK, 1997: 93)
Mary Marshall Clark, por sua vez, tentou também interpretar as razões desse
esquecimento ou “bloqueio”: em suas próprias palavras, era antes de tudo um resultado do
poder da empresa midiática em que trabalhava Betsy Wade,
[...] poder da memória da empresa, no sentido de separar, desde o início, minha
consciência da consciência de Betsy; representa o poder da memória da empresa, ou
seja, do New York Times, de manter, de certa forma, a lealdade de Betsy à imagem
que tinha de si mesma como incomparável e diferente, pois ainda trabalhava no
jornal e ainda precisava ver-se dessa maneira. E também representa como uma
pessoa consegue bloquear por completo as ligações entre suas atividades, por
exemplo, nos movimentos sindical e feminista que, ironicamente, afloraram apenas
depois daquele momento de conscientização – e só então ela começou a falar sobre o
papel que desempenhara no movimento sindical. (CLARK, 1997: 94)
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Indo mais longe na discussão dos componentes coletivos (ou compartilhados) que
geram os esquecimentos, os enganos e as fabulações, Alessandro Portelli, tendo como
referência suas pesquisas com operários na Itália, situou essas ocorrências em falas de pessoas
que compunham, por assim dizer, um mesmo grupo, que partilharam não só vivências como
memórias dessas vivências. E apontou os alertas que tais ocorrências fornecem aos
pesquisadores:
Quando trabalhadores em Terni colocam mal um evento crucial de sua história (a
morte de Luigi Trastulli), de uma data e contexto para outro, isto não lança dúvidas
na atual cronologia, mas força-nos a rearranjar nossa interpretação de uma fase
inteira da história da cidade. Quando um velho líder de tropa, também em Terni,
imagina uma história sobre como ele quase conseguiu reverter a estratégia do
Partido Comunista, após a Segunda Grande Guerra, não revisamos nossas
reconstruções de debates políticos dentro da esquerda, mas aprendemos a extensão
do custo real de certas decisões para aqueles militantes ativos que tiveram de
enterrar no subconsciente suas necessidades e desejo de revolução. Quando
descobrimos que histórias similares são contadas em outras partes do país,
reconhecemos um complexo legendário meio-formado no qual os “devaneios senis”
de um velho homem desapontado revelam muito sobre a história do seu partido, não
contada na extensão e memórias lúcidas de seus líderes oficiais. (PORTELLI, 1997:
31-32. Grifos meus)
É como se os enganos e as fabulações, quando apresentam indícios que vão além do
indivíduo, tivessem a qualidade notável de dar acesso ao que foi subjetivamente mais
significativo, em relação ao vivido, para um dado grupo ou uma dada coletividade. Veja-se
que Janaína Amado, ao retornar ao registro gravado da entrevista do “grande mentiroso”, dá-
se conta das interações entre o relato efetuado e a narrativa literária – mais especificamente,
um clássico da literatura, o Dom Quixote, de Cervantes. Essa percepção abriu uma nova
perspectiva de estudo, acerca dos hábitos de leitura de parte significativa da população de
vários e antigos povoados goianos, entre os anos 1930 e 1950. E permitiu à autora estabelecer
liames entre história, memória e narrativa:
Inerente às entrevistas, existe, entretanto, uma dimensão simbólica, que os
historiadores têm a obrigação de conhecer e estudar, pois faz parte da história.
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Mediadas pela memória, muitas entrevistas transmitem e reelaboram vivências
individuais e coletivas dos informantes com práticas sociais de outras épocas e
grupos. A dimensão simbólica das entrevistas não lança luz diretamente sobre os
fatos, mas permite aos historiadores rastrearem as trajetórias inconscientes das
lembranças e associações de lembranças; permite, portanto, compreender os
diversos significados que indivíduos e grupos sociais conferem às experiências que
têm. (AMADO, 1995: 135. Grifos meus).
As considerações anteriores indicam a necessidade de ficarmos alertas para possíveis
incongruências contidas em relatos de memória, pois podem ser significativas para pensar no
que está além do que é relatado. Deixo, então, tais alertas provisoriamente no horizonte das
reflexões que se seguem, relativas a um aspecto bastante pontual da trajetória do campo do
patrimônio cultural em Santa Catarina: as referências frequentes a Oswaldo Rodrigues Cabral,
em entrevistas concedidas por diferentes pessoas, em distintos momentos, e que se referem a
ações de preservação levadas a efeito em território catarinense. Tenho em mente, em especial,
a questão do tombamento de fortalezas, em Santa Catarina, na década de 1930, e levo em
conta duas entrevistas realizadas em pesquisas por mim conduzidas, e que foram concedidas
por Armando Gonzaga e Annamaria Beck, além de transcrição de depoimento de Dalmo
Vieira Filho existente no arquivo da Superintendência Regional de Santa Catarina do IPHAN
e de transcrição de entrevista de Walter Fernando Piazza concedida aos pesquisadores Bruno
Labrador e Rafael Brandi, entrecruzadas com referências presentes nas dissertações de
mestrado de Betina Adams e Fátima Regina Althoff.
Baseada em depoimento de Walter Fernando Piazza, Betina Adams (2002: 156), no
livro que resultou de sua dissertação de mestrado, salienta que “as informações que
subsidiaram o processo de tombamento das fortalezas catarinenses foram coletadas pelo
paranaense Coronel Davi Carneiro2.” Por sua vez, Fátima Althoff (2008: 77), em sua
dissertação de mestrado, apresenta informação distinta; de acordo com sua fonte (relato oral
do arquiteto Cyro Lyra), o historiador Oswaldo Rodrigues Cabral teria elaborado “a primeira
relação de edificações representativas do patrimônio catarinense, que incluía as fortificações.”
A afirmação atribuída a Lyra, por Fátima Althoff, por sua vez se afina com depoimento do
arquiteto Dalmo Vieira Filho, datado de julho de 1990, no qual ressaltou terem sido as
2 A referência certamente era ao historiador David Carneiro, que atuou como assistente técnico do SPHAN e
também organizou o Museu Coronel David Carneiro. O coronel era pai do historiador.
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fortalezas “tombadas por indicação do historiador Oswaldo Cabral, que sempre teve por elas
um carinho especial, inclusive escrevendo um livro específico sobre elas3.” Por sua vez, em
entrevista concedida em 2010, no âmbito da pesquisa Nomes para o Serviço: a atuação do
SPHAN em Santa Catarina e o papel dos historiadores locais (1938-1974), Armando
Gonzaga, engajado defensor do patrimônio catarinense, igualmente apontou que o
levantamento inicial sobre as fortalezas, encaminhado ao órgão federal, foi feito por Cabral
(GONZAGA, 2010: 1). Três (Lyra, Gonzaga e Vieira Filho) contra um (Piazza); devemos
então optar pela maioria? O “erro” seria de Piazza?
Cabe notar que todos os “narradores” envolvidos tiveram vínculos ou estabeleceram
relações com o órgão federal de preservação. O intelectual catarinense Walter Piazza, para
quem a proposição de tombamento das fortalezas teria sido feita por David Carneiro, foi um
colaborador do órgão federal de preservação, embora apenas a partir da década de 1950
(ADAMS, 2002: 155-156): Piazza teve a seu cargo a manutenção do Museu Victor Meirelles.
Na década seguinte, foi representante do órgão federal, em Santa Catarina, na área de
arqueologia; também teve participação direta no tombamento da Vila de São Miguel, em
Biguaçu, efetuado em 1969. Já Cyro Lyra, Dalmo Vieira Filho e Armando Gonzaga, que em
seus relatos orais vincularam a proposição de tombamento dos bens a Oswaldo Cabral,
atuaram mais de uma vez, em conjunto, em ações de preservação em Santa Catarina, inclusive
com foco especial nas fortalezas, mas em período posterior, nos anos 1970 e 1980. Tal como
compartilharam ações e ideias, parecem ter partilhado informações e memórias e, neste caso,
também a atribuição, a Cabral, da primeira proposta de tombamento federal em território
catarinense, referente às fortificações.
Sabe-se que os quatro primeiros bens tombados em nível federal, em Santa Catarina,
foram o Forte de Santana e a Fortaleza de São José da Ponta Grossa (ambos na Ilha de Santa
Catarina, Florianópolis), a Fortaleza de Santa Cruz (na Ilha de Anhatomirim, atualmente
jurisdição do município de Governador Celso Ramos) e a Fortaleza de Santo Antônio (na Ilha
de Ratón Grande, jurisdição do município de Florianópolis). Embora não fossem as únicas
fortificações construídas em território catarinense, estavam entre as construções
remanescentes que, à época, mantinham-se mais próximas de seu desenho original ou em
3 A transcrição do depoimento (versão digitada e anotada a lápis), quando consultada em 2008, estava contida no
dossiê sobre as fortalezas de Santa Catarina, no Arquivo da Superintendência de Santa Catarina do IPHAN.
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razoável estado de conservação. Sua proteção foi realizada em 1938, juntamente com a de
outras fortificações em diferentes localidades do país. Os valores histórico e artístico
implicados no tombamento foram emprestados a todo o conjunto. Mas quem, de fato, as
indicou?
Nem Piazza, nem Cyro Lyra, nem Dalmo Vieira, nem Armando Gonzaga poderiam ter
acompanhado diretamente essa indicação, à época; portanto, a informação que veicularam não
se refere à memória de suas vivências. A vivência que poderia ensejar o acompanhamento da
proposição de tombamento caberia a funcionários ou a colaboradores do órgão federal de
preservação. Veja-se que, logo ao ser criado, na década de 1930, o SPHAN dependeu de uma
rede de colaboradores, atuantes nos vários estados da federação, para que se efetuasse o
levantamento de bens (e para as consequentes indicações de tombamento). Caberia, então,
indagar: Oswaldo Rodrigues Cabral efetivamente integrou essa rede, de modo a poder ter
realizado a indicação das fortalezas, para tombamento?
Nascido em Laguna em 1903, formado primeiramente como professor normalista, em
Florianópolis, em 1919, e no final da década seguinte como médico, na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Cabral emergiu justamente em 1937 como uma nova autoridade
no campo da História, em Santa Catarina: naquele ano publicou, pela Companhia Editora
Nacional, na prestigiosa coleção “Brasiliana”, o livro Santa Catarina – história, evolução. O
livro tinha potencial como “passaporte” de Cabral para o mundo dos colaboradores do
SPHAN. Teria o potencial se concretizado?
Pelos dados de pesquisa disponíveis, até o momento, uma resposta categórica à
pergunta não é possível. Mas, se a colaboração, durante a gestão de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, de fato existiu, é certo que não deixou marcas significativas na documentação e na
memória institucionais: o nome de Oswaldo Cabral está ausente de publicações do órgão
federal de preservação que tratam de suas primeiras décadas de atuação; também não é
mencionado nos depoimentos de funcionários-colaboradores mais antigos nem na extensa
rede de colaboradores que aparece no prefácio escrito por Lucio Costa para o livro Rodrigo e
seus tempos (COSTA, 1986). Além disso, nenhum documento produzido por Cabral foi
encontrado no acervo arquivístico do IPHAN, quer no Rio de Janeiro, quer em Santa Catarina.
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Já o mesmo não ocorre em relação a David Carneiro: há relevante (embora não
volumosa) correspondência entre ele e o diretor do órgão federal de preservação, Rodrigo
Melo Franco de Andrade, abrigada no Arquivo Central do IPHAN.
Sob a supervisão de Augusto Meyer (responsável, por um curto período, pela 7ª.
Região administrativa do órgão federal, que abrangia os estados do sul do país), o historiador
paranaense David Carneiro, tendo se oferecido para realizar o levantamento de bens passíveis
de tombamento federal no Paraná, solicitou, recebeu e cumpriu essa incumbência4. Com a
criação do Instituto Nacional do Livro, em dezembro de 1937, e a nomeação de Meyer para
dirigi-lo, David Carneiro passou também a acompanhar diretamente os trabalhos do SPHAN
no Rio Grande do Sul (BRAGANÇA, 2009: 226; THOMPSON, 2010: 73; BAUER, 2006:
63)5. Antes disso, já se oferecera para ampliar sua colaboração, com levantamentos relativos
ao Rio Grande do Sul e a Santa Catarina. Conforme informou a Rodrigo Melo Franco de
Andrade, em carta de 19 de abril de 1937:
Embora não conheça Santa Catarina e o Rio Grande do Sul tão bem quanto conheço
o meu estado, conheço-os o suficiente para poder estender mais tarde, até lá, o meu
raio de ação, nas condições já apontadas, e gostaria de saber se me poderia ser dado
esse encargo e em que condições. Sou do Instituto Histórico de Florianópolis [sic], e
nele tenho vários amigos dedicados que me poderiam auxiliar muito6. (grifos meus)
A correspondência entre o diretor do então SPHAN e seus colaboradores, em 1937, no
que tange ao levantamento de bens que poderiam ser tombados em Santa Catarina, não deixa
dúvida quanto à opção de Rodrigo Melo Franco de Andrade (com a anuência de Augusto
Meyer) por David Carneiro: a informação consta de cartas de Rodrigo Melo Franco de
Andrade trocadas com Augusto Meyer, Mário de Andrade7 e o próprio David Carneiro. Mas
teria David Carneiro procedido ao levantamento sozinho? Sua carta a Rodrigo Melo Franco
4 Ver, em especial, a correspondência entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e David Carneiro existente no
Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro (AA02/M011/P01/Cx.0011/331/P.0047). 5 Há também informação de que Lucas Mayerhofer teria atuado na 7ª. Região entre 1939 e 1940 (CHUVA,
2009: 198). 6 As “condições apontadas”, da parte de David Carneiro, eram a não exigência de remuneração pelo serviço e
apenas solicitação de recursos para deslocamentos e apoio de uma secretária. A carta está contida no dossiê do
representante, no Arquivo Central do IPHAN, no Rio de Janeiro (AA02/M011/P01/Cx.0011/331/P.0047). 7 Quanto à carta enviada a Mário de Andrade, ver ANDRADE (1987: 141).
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de Andrade, de 19 de abril de 1937, anteriormente citada, indica a possibilidade de ser
ajudado por “amigos dedicados” do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina –
Cabral seria um deles? Teria sido a colaboração de Cabral uma colaboração indireta com o
SPHAN, por meio de David Carneiro?
Esta é outra questão que não encontrou resposta nas fontes consultadas: no que se
refere à documentação de arquivo do órgão federal de preservação, até o momento não foi
localizada a relação de bens propostos para tombamento em Santa Catarina, da qual, supõe-se,
constariam as fortalezas catarinenses e, possivelmente, outros bens. Além disso, a
correspondência trocada entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e David Carneiro apresenta
lacunas justamente após dezembro de 1937 (depois dessa data, há apenas cartas de 1945 e de
1948).
Na hipótese de Cabral ter auxiliado David Carneiro na elaboração da lista de bens a
tombar em Santa Catarina, na década de 1930, não haveria “erro” na versões presentes nos
relatos tanto de Piazza quanto de Lyra, Vieira Filho e Gonzaga – apenas, um esquecimento
parcial, de uns e de outros. Se Cabral de fato teve essa participação, a omissão de seu nome,
por parte de Piazza, poderia, talvez, ser explicada por tensões e ressentimentos entre ambos,
geradas depois de um longo período de trabalho conjunto e que levaram a uma ruptura
definitiva. Annamaria Beck, em entrevista concedida em 2010, alude a esse rompimento:
JG: O que a senhora poderia falar sobre o Oswaldo Cabral, ou sobre o
Piazza?
AB: O Piazza, muito pouca coisa. Ele foi meu professor na Faculdade, de
História da América, e depois eu trabalhei com ele nesse projeto [escavação
do sambaqui de Ponta das Almas]. Aí ele teve um desentendimento com o
Dr. Cabral.
J.G.: Pois é, isso é um mistério para a gente...
AB: É um mistério para mim também. Eu estava lá dentro [da Faculdade de
Filosofia] e não vi a coisa acontecer, quando eu vi, já tinha acontecido. E aí
o Dr. Cabral, eu era aluna, estagiária da cadeira [de Antropologia], o Dr.
Cabral me “pinçou”. Como é que ele me pinçou? Ele era esperto... Ele me
disse: “Você vai para o Rio, eu lhe consigo a bolsa da CAPES. Ele mandou
uma carta, abriu um processo dizendo que era de interesse, estava criando o
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grupo de pesquisa, o Instituto [de Antropologia] já estava criado, ia ser
instalado, e que ele queria me recomendar. E eu ganhei a bolsa e fui para o
Rio de Janeiro. Foi assim que ele me sacou da “influência” do Piazza. Ele
disse: “Eu preciso de um arqueólogo no grupo...”. Ia ter que lidar com
arqueólogo. E lá fui eu. (BECK, 2010: 12-13)
Piazza, por sua vez, também explicitou discordâncias com Cabral, em várias ocasiões,
como em entrevista concedida em 2008:
O Museu [de Antropologia, da Universidade Federal de Santa Catarina] é
decorrência de um acerto. Porque o Cabral gostava de mandar e aí começam os
choques. Na hora em que se cria o Museu de Antropologia, eu naquela ocasião era
tesoureiro da Comissão Catarinense de Folclore e meu primeiro choque com o
Cabral foi esse. A Comissão Catarinense de Folclore tem uma boa biblioteca de
Antropologia, Arqueologia e de Ciências Sociais e eu quis insistir com o Cabral para
incluir o material da Comissão Catarinense de Folclore dentro do Museu de
Antropologia e ele não gostou. Ele queria dominar as pessoas e as coisas, então
começamos a nos desentender. Aí eu fiquei com Arqueologia e História da América
na Federal. [...] Tal história, se você conhece [pausa] os fatos, você vê o que podia
ter acontecido e o Cabral pelos problemas políticos também se incompatibilizou
com o Governo do Estado. A Comissão Catarinense de Folclore tinha um convênio
com o Governo do Estado, e a briga dele com o governador. Ele era da bancada
governista, depois passou para a outra bancada e isso fez com que o governo
cortasse suas asas. Esse corte foi ruim para a Comissão de Folclore, porque ela tinha
um convênio com o governo do estado para publicar anualmente um boletim, tinha
certas vantagens quanto a ir para congressos. Se você pegar os boletins da Comissão
Catarinense de Folclore você vê muitos nomes ligados à Antropologia, Folclore e se
você não tem um subsídio financeiro você não faz nada. Porque é uma área que você
tem que explorar e saber como explorar, só vendo como as coisas acontecem. Esse é
o problema! (LABRADOR e BRANDI, 2008: s.p.).
Como indicado anteriormente, a participação de Cabral na proposta de tombamento
das fortalezas catarinenses não é segura; contudo, a de David Carneiro é. A não menção a
Cabral, da parte de Piazza, pode fazer todo sentido (afinal, não há sequer indícios dessa
participação, na documentação de arquivo e nas publicações do órgão federal de preservação).
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Porém, como interpretar a ausência do nome de David Carneiro nas referências ao
tombamento das fortalezas, nos relatos da tríade Lyra-Vieira Filho-Gonzaga?
Em Santa Catarina houve um longo intervalo entre o tombamento dos bens, na década
de 1930, e as intervenções, por parte do órgão federal de preservação, realizadas para sua
conservação física: obras de desmatamento, limpeza, levantamento e restauro das edificações
foram realizadas apenas a partir dos anos 1960 (SOUZA, 1992: 33-38). Antes disso, nos anos
1950, o historiador Oswaldo Rodrigues Cabral supostamente teria liderado trabalhos de
desmatamento na Fortaleza de Santo Antônio (ou fortaleza de “Ratones”), conforme o
depoimento anteriormente citado de Dalmo Vieira Filho, datado de 1990 e contido no dossiê
“Fortalezas”, do arquivo da Superintendência Regional do IPHAN em Santa Catarina. Essa
informação fornecida por Vieira Filho, entretanto, não foi localizada em nenhuma outra fonte.
Talvez tenha havido, aí, uma associação entre Cabral e um de seus assistentes na
Universidade, na década de 1960 – no caso, Piazza, que em 1962, atendendo à solicitação de
Luís Saia, foi incumbido de realizar a limpeza da fortaleza de Santo Antônio da Ilha de Ratón
Grande (ADAMS, 2002: 156).
Ressalte-se que, em 1972, Oswaldo Cabral publicou estudo sobre As defesas da Ilha
de Santa Catarina no Brasil-Colônia, livro que certamente forneceu subsídios para os
trabalhos de conservação e restauro que passaram a ser desenvolvidos nas fortificações. Fica
assim demonstrado o interesse de Cabral pelas fortalezas, mas não a sua participação na
concreta proposição desse conjunto de edificações para tombamento federal. Todavia, aqueles
que se encarregaram mais diretamente da conservação e restauração das fortalezas, sobretudo
a partir dos anos 1970, certamente tinham em Cabral uma autoridade no que tange aos estudos
históricos sobre elas. A data da publicação do livro de Cabral coincide, por exemplo, com o
momento em que o então jovem estudante de arquitetura, Dalmo Vieira Filho, segundo ele
próprio, tomou conhecimento daquelas construções:
Eu comecei a ouvir falar em Anhatomirim por volta de 72-73, quando já se
trabalhava na Ilha com levantamento arquitetônico, as primeiras ações de limpeza e
mesmo as primeiras obras e conservação, através do arquiteto Key Imaguire Junior,
que é meu primo e com quem eu convivia em Curitiba. O Key trabalhava com Cyro
Correa Lyra. Mais tarde, no ano de 1975, eu fui trabalhar como estagiário na firma
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do Cyro, que era a ARESTA -Arquitetura e Restauro. Eu, que cursava Arquitetura e
Urbanismo, comecei a fazer vários trabalhos em Curitiba, na região metropolitana,
até que por uma questão de afinidade e por ser catarinense, eu comecei a trabalhar
também em Anhatomirim.
[...]
Nesse tempo, 1975-76, eu comecei a fazer vários trabalhos na ARESTA, em várias
áreas e pude testemunhar o esforço do Cyro, como proprietário da firma, em manter
Anhatomirim; porque ele formalmente era apenas o empreiteiro que era contratado
esporadicamente para fazer obras em Anhatomirim. No entanto, o Cyro mantinha
desde 1970, se não me falha a memória, um funcionário, que foi o número um da
ARESTA, que era o seu Admar, morador da Caieira. Mesmo em períodos quando
não havia obras, às vezes levava seis, sete meses, o sr. Admar era mantido pelo
Cyro, limpando Anhatomirim para pelo menos ter uma pessoa na Ilha. Ele ia
diariamente para a Ilha numa baleeira que era da ARESTA, isso tudo a expensas do
Cyro. (INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1990: 1. Grifos
meus.)
Os trechos destacados dessa entrevista de 1990 ainda informam muito claramente
sobre as relações de proximidade entre Dalmo Vieira Filho e Cyro Lyra, já na primeira
metade da década de 1970. Naquele período, Cyro Lyra e Armando Gonzaga também foram
próximos, como recorda Gonzaga:
Mas a minha participação [nas questões da preservação das fortalezas em Santa
Catarina] começa em 1968, 69, porque eu fui designado, pelo então Governador Ivo
Silveira, diretor do Departamento Autônomo de Turismo, que hoje é SANTUR. E eu
já tinha viajado um pouco aí, por conta da Marinha (me desliguei da Marinha para
trabalhar com meu pai aqui [em Florianópolis]), e a gente no mundo verifica que
todo mundo leva você para visitar ruínas, castelos... Então, aqui, com o
Departamento Autônomo, eu achei que seriam uma atração as fortalezas, e caberia
um trabalho de valorização delas. E eu então entrei em contato, na época era o 4º.
Distrito do IPHAN (que era São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul).
O diretor era o professor Luiz Saya – “Saya” com y. E ele me disse uma coisa que
me calou muito fundo, na época e depois. Disse: “Gonzaga, se a comunidade não
tem interesse nas fortalezas, o IPHAN também não terá. É preciso que a comunidade
assuma as suas fortalezas.” E eu então resolvi assumir o trabalho. Do jeito que deu.
Então entrei em contato com o Saya para a gente ver o que poderia fazer aqui para
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ajudar. [...] E na época eu conheci uma pessoa muito importante, que é muito pouco
lembrada nesse trabalho todo, que é o professor Cyro Corrêa Lyra. O professor
Cyro tinha uma empresa que trabalhava para o IPHAN, depois se tornou funcionário
do IPHAN. Ele estava restaurando [o forte de] Santana. E eu aí conheci o Cyro.
(GONZAGA, 2010: 1. Grifos meus)
Dalmo Vieira Filho também relatou, em 1990, esse momento de trabalhos conjuntos
de Luís Saia com Cyro Lyra e Armando Gonzaga, no que tange às fortalezas:
Inteligente que é, o Armando [Gonzaga] percebeu o valor turístico que aquilo tinha.
Tratou então de procurar o então Diretor do 4o. Distrito do IPHAN, que ficava em
São Paulo, o arquiteto Luiz Saia. O Saia, numa época difícil para o Patrimônio, fez
várias viagens a Santa Catarina, muitas delas custeadas pela Diretoria de Turismo,
da qual o Armando então era chefe. O Saia tinha aqui um carro à disposição
colocado pelo Armando, normalmente seu carro particular, e o patrimônio começou
a poder se fazer presente em Santa Catarina, não só em Florianópolis, mas em
Laguna, em São Francisco do Sul, em Joinville e em outras cidades do Estado. O
resultado disso foi um convênio firmado com a Universidade do Paraná, a Marinha
e o Patrimônio Histórico. Primeiro, para limpeza de Anhatomirim e para seu
cadastramento arquitetônico. Na época isso foi feito com a Universidade Federal do
Paraná, porque não havia ainda curso de arquitetura em Santa Catarina.
Então veio para cá com o professor de arquitetura Cyro Correa Lyra, uma turma de
estudantes para fazer o cadastramento de Anhatomirim. Foi aí que o Cyro entrou
nessa questão das fortalezas. Ele como professor de Arquitetura brasileira, foi parte
desse convênio, basicamente imaginado pelo Luiz Saia e pelo Armando Gonzaga.
(INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1990: 1. Grifos meus.)
No momento em que se debruçavam com interesse sobre a preservação das fortalezas
tombadas, e no qual, portanto, buscavam estudos sólidos que pudessem dar fundamento a suas
ações, Cyro Lyra, Armando Gonzaga e Dalmo Vieira Filho tiveram no livro As defesas da
Ilha de Santa Catarina no Brasil-Colônia, de Cabral, uma referência fundamental; isso,
talvez, tenha contribuído para fazê-los atribuir ao médico-historiador a responsabilidade pela
proposição do tombamento das fortalezas, na década de 1930. O “pioneirismo” de Cabral foi
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claramente anunciado por Armando Gonzaga no início da entrevista concedida em 1990, não
obstante algumas incertezas acerca da ação que teria sido efetivada:
JG: Nós gostaríamos que o senhor falasse sobre a sua relação com ações de
preservação do patrimônio cultural, em Santa Catarina, como no caso das fortalezas.
AG: Apesar desse trabalho pioneiro do professor Oswaldo Cabral e de outras
pessoas também, como Walter Piazza, o IPHAN tombou, mas não cuidou da
restauração. Ficou uma coisa sem muito efeito. E as fortalezas acabaram caindo no
esquecimento.
JG: O que o senhor chama de trabalho pioneiro do Cabral é que ele teria feito o
próprio levantamento das fortalezas, antes do tombamento?
AG: Ele fez o levantamento e o encaminhou ao IPHAN e resultou no tombamento
de Anhatomirim e Santo Antônio de Ratones Grande, São José da Ponta Grossa, e
acho que Araçatuba, no sul da Ilha, Nossa Senhora da Conceição. Acho que sim.
Mas as fortalezas continuaram abandonadas. (GONZAGA, 2010: 1).
Considerado o papel de Cabral como autoridade acerca da História de Santa Catarina
(ao menos até então), além do livro específico sobre as fortalezas, em 1972, talvez fosse
difícil não associá-lo à proposição dos tombamentos – quem mais, a não ser Cabral, poderia
propô-los? Essa probabilidade, tornada certeza, acabou por ser partilhada por pessoas que
trabalharam tão próximas a ponto de estabelecerem laços de admiração, respeito e amizade
duradouros.
A questão em causa – teria Oswaldo Cabral colaborado diretamente com o órgão
federal de preservação, na década de 1930, para a patrimonialização das fortalezas
catarinenses, por meio de tombamento? – continua, assim, em aberto. Mas as fontes aqui
mobilizadas convidam a refletir, no que se refere à história oral, sobre a necessária atenção a
ser dada às redes de relacionamento da qual participaram e participam os entrevistados
(apontando, para além do compartilhamento de vivências, a partilha de memórias); sobre a
relevância de levar em conta os elementos circunstanciais dos relatos, em especial o momento
das trajetórias dos entrevistados em que são concedidos (que pode remeter a lugares e papéis
distintos na teia de produção de memória e de discursos); sobre a importância de considerar
processos de recalque de tensões, conflitos e ressentimentos na produção social de memória
14
(que podem produzir apagamentos talvez levados adiante, de forma acrítica, pelos
pesquisadores); sobre o papel, enfim, das fontes orais na construção de uma memória e de
uma história das ações de preservação em Santa Catarina, em particular, e no Brasil, de forma
geral.
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