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o DISCURSO POlÍTICO E HISTORIOGRÁFICO DE ALFREDO VARELA* LUIZ PAULO MELENDEZ PINTO" A pesquisa teve por objetivo apresentar uma análise do discurso político e historiográfico de Alfredo Varela (1864-1943), um dos mais importantes historiadores rio-grandenses, autor de uma vasta bibliografia, marcada por uma forte polêmica e por uma maneira considerada prolixa na apresentação de suas idéias. A polêmica da obra de Alfredo Varela refere-se ao que Guilhermino César' apontou como a preocupação por parte do autor em apresentar os acontecimentos políticos rio-grandenses com possíveis relações com as intranqüilidades platinas, levando-o a entrar em conflito com outros historiadores contemporâneos. Essa polêmica foi sustentada, em sua produção historiográfica, por uma volumosa documentação, na qual, de acordo com Moacyr Flores", nem sempre coincidiu o texto com a interpretação dada por Varela, constituindo-se, na maior parte das vezes, de citações fragmentárias. Para Ieda Gutfreind", Alfredo Varela pertenceu ao grupo de historiadores que valorizavam as relações que o Rio Grande do Sul manteve com o Prata, entre os quais era enfatizada a singularidade local e a possibilidade de uma existência do Rio Grande do Sul separado do Brasil. Essa questão referente às influências platinas no sul do país levou Alfredo Varela a encarar a Revolução Farroupilha como separatista e tendo como modelo político os países do Prata. Em suas obras, Revoluções Cisptetinee", de 1915, e História da Grande Revolução", de 1933, buscou apresentar os acontecimentos políticos que culminaram na Revolução Farroupilha como frutos de uma longa evolução preparatória, na qual os rio-grandenses aparecem como portadores de um espírito de liberdade forjado pelas condições geográficas específicas do Rio Grande do Sul. Este artigo é uma síntese da monografia de conclusão do curso de História da URG, apresentadano ano de 1994. Bacharel em História, URG. BIBLOS, Rio Grande. 7:345-349. 1995. 345

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o DISCURSO POlÍTICO E HISTORIOGRÁFICODE ALFREDO VARELA*

LUIZ PAULO MELENDEZ PINTO"

A pesquisa teve por objetivo apresentar uma análise do discursopolítico e historiográfico de Alfredo Varela (1864-1943), um dos maisimportantes historiadores rio-grandenses, autor de uma vasta bibliografia,marcada por uma forte polêmica e por uma maneira considerada prolixa naapresentação de suas idéias.

A polêmica da obra de Alfredo Varela refere-se ao que GuilherminoCésar' apontou como a preocupação por parte do autor em apresentar osacontecimentos políticos rio-grandenses com possíveis relações com asintranqüilidades platinas, levando-o a entrar em conflito com outroshistoriadores contemporâneos. Essa polêmica foi sustentada, em suaprodução historiográfica, por uma volumosa documentação, na qual, deacordo com Moacyr Flores", nem sempre coincidiu o texto com ainterpretação dada por Varela, constituindo-se, na maior parte das vezes, decitações fragmentárias.

Para Ieda Gutfreind", Alfredo Varela pertenceu ao grupo dehistoriadores que valorizavam as relações que o Rio Grande do Sul mantevecom o Prata, entre os quais era enfatizada a singularidade local e apossibilidade de uma existência do Rio Grande do Sul separado do Brasil.

Essa questão referente às influências platinas no sul do país levouAlfredo Varela a encarar a Revolução Farroupilha como separatista e tendocomo modelo político os países do Prata. Em suas obras, RevoluçõesCisptetinee", de 1915, e História da Grande Revolução", de 1933, buscouapresentar os acontecimentos políticos que culminaram na RevoluçãoFarroupilha como frutos de uma longa evolução preparatória, na qual osrio-grandenses aparecem como portadores de um espírito de liberdadeforjado pelas condições geográficas específicas do Rio Grande do Sul.

Este artigo é uma síntese da monografia de conclusão do curso de História da URG,apresentadano ano de 1994.

Bacharel em História, URG.

BIBLOS, Rio Grande. 7:345-349. 1995. 345

o discurso historiográfico de Alfredo Varela foi marcado pelopositivismo: coleta e criteriosa análise de documentos oficiais, relatos deviajantes e cientistas, jornais e correspondência diplomática. Tal elaboraçãodo conhecimento histórico, contudo, comporta alguns riscos, como foimostrado na monografia; entre eles, apontamos o fato de que, mesmoprocurando dar ao trabalho monográfico um caráter abrangente de toda arealidade, o historiador positivista é levado a lapidar as matérias que utilizaem suas análises com base em seus próprios referenciais de mundo,colocando igualmente como matéria-prima suas próprias interpretações doprocesso observado". O historiador, dessa forma, procura sentidos para oprocesso histórico a partir das motivações do presente.'

A preocupação em dar à análise um caráter abrangente, como fezVarela, está ligada a uma visão deformada do processo histórico. O autorprocurou apresentar a história do Rio Grande do Sul em termos de umateleologia. Há uma citação em Revoluções Cisplatinas que sintetiza essaposição:

Tudo concorre, tudo consente, tudo conspirano Rio Grande do Sul, para a gênesis,preparo e florescimento do tipo humano quenele representou um papel histórico. 8

Ao longo de mais de cem páginas, o autor se ocupa em mostrarque a revolta farroupilha foi uma convergência de fatores naturais e étnicosque, juntos, concorreram para a revolta, e que esta só pode ter se dadoneste território porque aqui se reuniram as condições precisas para suarealização.

Os riscos apontados como passíveis de ocorrer ao historiador defeitio positivista ficam claros na polêmica que Alfredo Varela sustentou comEmílio de Souza Docca no que diz respeito às influências platinas naRevolução Farroupilha. De acordo com Ieda Gutfreind, o historiador SouzaDocca discordava do platinismo e dos sentimentos separatistas do RioGrande do Sul, buscando um sentido de brasilidade no movimentofarroupilha" . O importante aqui é o fato de Souza Docca ter seguido em suaelaboração histórica o mesmo método de Alfredo Varela, ou seja, a coleta dedocumentos, onde, em sua opinião, a história se encontrava.'?

O descompasso entre as duas interpretações e a violenta polêmicaque gerou nos meios intelectuais rio-grandenses está no fato de que ambosos historiadores desconheciam a história enquanto um processo. SouzaDocca e Alfredo Varela (e é este quem nos interessa) procuravam dar umaexplicação final para a história, buscando seus inícios. Para Varela, enquantohistoriador, buscava ele revelar a história, envolta em fatos obscuros,

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mostrando em sua interpretação como a Verdade Absoluta. Essa tentativa dechegar à Verdade Absoluta está ligada com a identificação feita pelospositivistas entre processo histórico e processo natural e a uma inadequadainterpretação que atribuem aos métodos empregados pelas ciênciasnaturais", a qual, a partir de Darwin, levou a idéia de evolução a ser utilizadacomo um termo geral para explicar o conhecimento histórico.

Imbuído em fazer "história científica", o historiador de orientaçãopositivista escuda-se no severo julgamento que faz dos papéis que analisa,esquecido, porém, de uma série de elementos subjetivos presentes nomomento da avaliação. No caso de Alfredo Varela observamos que, aomesmo tempo em que mostra os rio-grandenses fadados à liberdade,condicionados pelo meio geográfico à revolta liberal farroupilha, utiliza-sedessas informações como meio de criticar o caráter centralista do regimerepublicano rio-grandense. Dessa forma, o Rio Grande do Sul que apresentana gênese do movimento farroupilha é em tudo antagônico com a políticacastilhista.

Segundo Celi Regina Pinto, o Partido Republicano Rio-grandensenegava tanto o regime democrático quanto a doutrina liberal, chegando adefender a ditadura."

Embora historiograficamente Varela se submetesse ao métodopositivista, politicamente havia se afastado da doutrina oficial rio-grandense.Essa doutrina, baseada nos princípios comtianos, apresentava-se como aevolução da lei natural, onde um grupo dirigente, calcado em uma sólidaeducação filosófica, era responsável diante da sociedade e impedia que elacaísse em conflitos". Para os republicanos locais, tanto a democracia quantoas idéias liberais representavam concepções retrógradas e conflitivas, agindoos dirigentes estaduais sempre no sentido de impedir movimentos sociais,apresentando-se como portadores e regedores dos interesses gerais.

Para Alfredo Varela o governo republicano rio-grandense eranefasto e impedia a livre-iniciativa, conforme os pressupostos liberais, paraos quais todo o poder deve ser medido e limitado pelas leis, e cuja principalfunção é permitir a máxima explicitação dos direitos individuais."

No Rio Grande do Sul desse período, o governo era contrário àdivisão dos poderes, e ao fazer a defesa da harmonia entre os órgãos doEstado, sufocava a vida política."

Ao longo da pesquisa tentamos buscar em Varela, através de suascríticas ao centralismo e ao autoritarismo do regime castilhista, a sua posiçãopolítica. As citações são fundadas em sólidos princípios liberais, chegando acriticar o processo de fechamento do Estado ocasionado pela Revolução de1930. Em Res A vite" , de 1935, denuncia o perigo de uma ditadura, mas,embora toda sua oposição a regimes fechados, vemos que Alfredo Vareladiscordava da democracia representativa. Considerava-a imprestável para o

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Brasil e a partir daí foi possível reconhecer que o autor adotou uma posiçãode desprezo para com as instituições democráticas. Isso é visto no momentoem que julga como o mais acertado para o país a adoção do liberalismolibertário. De acordo com Francisco Araújo santos", o pensamento liberallibertá rio é crítico radical do Estado, chegando a considerar como básica apredominância de princípios econômicos sobre a política democrática e atémesmo o engessamento do político em favor de um dinamismo econômico.

Para Varela não existia uma preocupação em questionar a naturezadas instituições políticas nacionais, num momento em que o país entrava emum período de arbítrio, mas sim a preocupação em salvaguardar a esferaeconômica dentro de uma concepção extremada e completamente excludentecomo o liberalismo libertá rio.

Entendemos que essa posição reacionária de Alfredo Varela estáligada a seu discurso historiográfico. Este foi pautado pela procura emesgotar a realidade, em apresentar a história final, pela busca de um.significado extra-humano regedor do processo histórico. Apelando para leisnaturais, Varela mostrou que a história do Rio Grande do Sul progrediu atéo ponto de ruptura como Império, mas essa visão da história, a busca de umsignificado extra-humano nela, tirou de Varela a capacidade de perceber queo significado do processo histórico é dado pelos seres humanos e não poroutras forças. Como escreve Karl Popper, apenas os indivíduos humanospodem progredir e o fazem defendendo e fortalecendo aquelas instituiçõesdemocráticas de que a liberdade depende". Aquelas instituiçõesdemocráticas que, confundindo com as estruturas viciadas da RepúblicaVelha, Alfredo Varela julgava imprestáveis.

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