O discurso polêmico antimágico : considerações ... · 14 A bruxaria e a figura da bruxa, assim...

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O “discurso polêmico antimágico” nas ciências sociais clássicas: considerações preliminares Emmanuel Ramalho 1 Introdução Segundo o antropólogo e historiador italiano Ernesto de Martino (1982), a polêmica antimágica 2 é um fenômeno que perpassa todo o curso da civilização Ocidental 3 . O termo polêmica denota aqui a contraposição à apologia, ou seja, enquanto esta é a defesa de um argumento, a polêmica é o ataque a um argumento. Assim, a polêmica antimágica refere-se ao fenômeno histórico no qual o termo magia foi, desde sua origem no ocidente, não só alvo de ataques, de oposição religiosa, social, política, mas, principalmente, ele próprio usado como uma categoria de exclusão, uma ferramenta de controle social para designar, estigmatizar e marginalizar as ideias, crenças, práticas e comportamentos pertencentes ao Outro 4 – o inimigo, o estrangeiro, o herege, etc. ou para estigmatizar crenças e práticas não aceitas, de forma geral. Essa narrativa serve não só para estigmatizar um oponente, mas, principalmente, para definir por contraste ao Outro a própria identidade cultural, religiosa, social, étnica, etc., ou seja, para definir o Eu. E, obviamente, na oposição ao Outro e seus estigmas, a identidade do Eu é definida de forma positiva. Contemporaneamente, devido à influência das teorias do discurso que tomaram as ciências humanas nas últimas décadas, especialmente através das obras Michel Foucault, é 1 Doutorando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do SOCIUS – Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e Modernidade. E-mail: [email protected] O trabalho baseia-se em considerações preliminares da pesquisa de tese provisoriamente intitulada “Uma análise do discurso polêmico antimágico na socioantropologia clássica” orientada pela Profª. Drª. Fernanda Lemos. 2 O termo polêmico denota aqui um modo de argumentação que busca demonstrar uma tese ao atacar teses opostas. A polêmica se contrapõe, assim, à apologia, a qual busca defender um argumento contra argumentos contrários. 3 O próprio conceito de magia, assim como o de religião, é Ocidental, surge e se desenvolve nessa civilização. 4 A utilização do termo Outro no sentido acima mencionado será recorrente nessa pesquisa, portanto se esclarece que a partir de então ele terá a primeira letra sempre capitalizada para diferenciá-la do uso comum e habitual da palavra outro. A mesma regra será usada para Eu.

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O “discurso polêmico antimágico” nas ciências sociais clássicas: considerações preliminares

Emmanuel Ramalho1

Introdução

Segundo o antropólogo e historiador italiano Ernesto de Martino (1982), a polêmica

antimágica2 é um fenômeno que perpassa todo o curso da civilização Ocidental3. O termo

polêmica denota aqui a contraposição à apologia, ou seja, enquanto esta é a defesa de um

argumento, a polêmica é o ataque a um argumento. Assim, a polêmica antimágica refere-se

ao fenômeno histórico no qual o termo magia foi, desde sua origem no ocidente, não só alvo

de ataques, de oposição religiosa, social, política, mas, principalmente, ele próprio usado

como uma categoria de exclusão, uma ferramenta de controle social para designar,

estigmatizar e marginalizar as ideias, crenças, práticas e comportamentos pertencentes ao

Outro4 – o inimigo, o estrangeiro, o herege, etc. ou para estigmatizar crenças e práticas não

aceitas, de forma geral. Essa narrativa serve não só para estigmatizar um oponente, mas,

principalmente, para definir por contraste ao Outro a própria identidade cultural, religiosa,

social, étnica, etc., ou seja, para definir o Eu. E, obviamente, na oposição ao Outro e seus

estigmas, a identidade do Eu é definida de forma positiva.

Contemporaneamente, devido à influência das teorias do discurso que tomaram as

ciências humanas nas últimas décadas, especialmente através das obras Michel Foucault, é

1 Doutorando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do SOCIUS – Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e Modernidade. E-mail: [email protected] O trabalho baseia-se em considerações preliminares da pesquisa de tese provisoriamente intitulada “Uma análise do discurso polêmico antimágico na socioantropologia clássica” orientada pela Profª. Drª. Fernanda Lemos. 2 O termo polêmico denota aqui um modo de argumentação que busca demonstrar uma tese ao atacar teses opostas. A polêmica se contrapõe, assim, à apologia, a qual busca defender um argumento contra argumentos contrários. 3 O próprio conceito de magia, assim como o de religião, é Ocidental, surge e se desenvolve nessa civilização. 4 A utilização do termo Outro no sentido acima mencionado será recorrente nessa pesquisa, portanto se esclarece que a partir de então ele terá a primeira letra sempre capitalizada para diferenciá-la do uso comum e habitual da palavra outro. A mesma regra será usada para Eu.

comum a caracterização deste fenômeno como discurso entre alguns pesquisadores5.

Contudo, mesmo que não fizesse menção a um discurso no sentido que hoje o termo é

comumente discutido na academia, de Martino já chamava a atenção para a necessidade de

expor as relações de poder que estavam por “trás” da narrativa ocidental sobre magia e que

continuam decidindo o que é aceito como verdade (PASI, 2008).

O discurso polêmico antimágico (DPA) influenciou também a formação da ciência

moderna e está presente nas ciências sociais clássicas6. Para Marco Pasi (Ibid.), as tentativas

contemporâneas de reavivar as noções de magia dos clássicos padecem da debilidade que

advém da não problematização histórica do conceito. Para ele, o estudo acadêmico da magia

só pode se desenvolver através de uma consciência histórica completa das origens e dos

desdobramentos da noção de magia na academia, e isto significa contextualizar as formas

em que este conceito tem sido usado no passado.

Dessa forma, essa pesquisa se propõe a apontar algumas considerações sobre como

o discurso polêmico antimágico se insere e se expressa nas noções e teorias da magia de

alguns cientistas sociais clássicos, como Edward Tylor, James Frazer, Émile Durkheim e

Marcel Mauss7. A metodologia, pelo caráter discursivo do objeto, se fundamenta nas

reelaborações da Análise do Discurso de Michel Foucault feitas por Wouter Hanegraaff.

1. O discurso polêmico antimágico

Antes de analisar as transformações e descontinuidades no desenvolvimento

histórico do DPA, é necessário compreender certas características do discurso polêmico.

5 Alguns dos autores a analisar discursivamente a polêmica antimágica são Wouter Hanegraaff, Henrik Bogdan, Kocku von Stuckrad e Bernd-Christian Otto, este último preferindo o termo discurso de exclusão. 6 Segundo Jeffrey Alexander (1999, p. 24), “Um clássico é o resultado do primitivo esforço da exploração humana que goza de status privilegiado em face da exploração contemporânea no mesmo campo”. 7 A escolha desses cientistas sociais se justifica não só por serem pioneiros na elaboração de noções e teorias sobre magia, mas, principalmente, porque a teoria intelectualista da magia de Tylor e Frazer e a funcionalista/sociológica de Mauss e Durkheim formam as bases da grande maioria das teorias de magia subsequentes nas ciências sociais. A teoria intelectualista assim se define porque explica a magia em termos de processos de pensamento, já a funcionalista ou sociológica explica a magia a partir das condições de sua inserção social (HANEGRAAFF, 2005; PASI, 2006).

Segundo Wouter Hanegraaff (2005b, p. 226-227)8, ele se estrutura a partir das seguintes

condições:

1. Requer um senso de inquietação ou de ameaça (em situações de satisfação total e segurança –

real ou imaginária – não há motivação para se engajar no discurso polêmico). 2. Requer que a fonte

de ameaça não seja totalmente clara e facilmente acessível (se o inimigo está de pé à sua porta

ameaçando matá-lo, você não polemiza contra ele, mas procura atacar ou se defender). 3. Requer

um alvo (se, em contraste com o ponto anterior, não há inimigo – real ou imaginário – que possa ser

atacado, o discurso polêmico morre ao nascer de pura frustração). 4. Requer uma audiência (se

ninguém está interessado em suas polêmicas, o discurso não se desenvolve além do estágio de mero

monólogo). 5. Requer simplicidade, ou seja, o discurso deve ser baseado em oposições simples

(argumentos complexos, com muito espaço para nuances e qualificações, são polemicamente

ineficazes).

Além dessa dinâmica, Hanegraaff (Ibid.), inspirando-se nos procedimentos de

exclusão do discurso de Michel Foucault, estabelece razões e estratégias de exclusão em

discursos polêmicos9. As razões de exclusão são os tipos de objeções feita contra os Outros e

se constituem do perigo, da imoralidade, da irracionalidade e do erro/falsidade. Importante

notar que se a autoidentidade de quem polemiza se constrói pelo contraste com a

identidade alvo, ou seja, o Outro, ela buscará se definir, portanto, através da segurança, da

moralidade, da racionalidade e da verdade. As estratégias de exclusão, por sua vez, são as

formas como o alvo do discurso polêmico e suas crenças, práticas, ideias e comportamentos

são – de preferência – censurados e se constituem da proibição (ao perigo e à imoralidade) e

da ridicularização (à irracionalidade e ao erro/falsidade). Assim, como será visto na análise

histórica do DPA10, inúmeros Outros vão sendo construídos e a cada um será apontado um

ou mais de uma razão para exclusão, assim como a estratégia correspondente11.

A palavra moderna magia tem sua origem na designação, em persa antigo, dada a

determinados sacerdotes da Pérsia, os magus. No século VI a.C., após os constantes

8 Tradução nossa. 9 Essas estruturas teóricas foram estabelecidas por Hanegraaff para o estudo do discurso polêmico antiesotérico, mas também é válido para o discurso polêmico antimágico. 10 Obviamente, pelas poucas páginas disponibilizadas para a produção desta comunicação, a análise histórica aqui ocorre de maneira bastante geral e superficial. 11 Relevante ressaltar que o exposto acima são apenas ferramentas teórico-metodológicas com a função de facilitar a análise dos discursos polêmicos ao enquadrá-los em categorias bem definidas, contudo, a realidade histórica do DPA é complexa e, por vezes, confusa, e tais categorizações nem sempre parecem adequadas.

encontros e trocas culturais entre gregos e persas, a palavra é introduzida na Grécia – sendo

a palavra grega mágoi usada para referir-se a tais sacerdotes e magiké para suas crenças e

práticas – inicialmente ainda sem tons polêmicos, mas a partir do século seguinte, magia

passa a designar na Grécia não só um estereótipo depreciativo relativo a tais sacerdotes

persas, mas, principalmente, estrangeiros, mulheres ou qualquer identidade Outra

considerada perigosa, sendo seus rituais então vistos como falsos, subversivos, e, portanto,

proibidos ou, pelo menos, marginalizados (GRAF, 2005).

Assim, algumas práticas já existentes na Grécia do século VI a.C. que foram

gradualmente sendo atribuídas como práticas mágicas e, portanto, tiveram seus sentidos,

até então neutros ou ambivalentes, reestabelecidos como atividades antissociais e perigosas

foram: epaiode, pharmakon e gòes. Epaiode, comumente traduzida como encantamento,

gradualmente teve seu significado de prática medicinal substituído pela de prática

manipuladora, trapaça. Da mesma forma, gòes, inicialmente significando chorar, prantear e

associado ao ritual de lamento pelos mortos, passa a designar a trapaça e charlatanismo

daqueles que alegam evocar e se comunicar com os mortos. Por sua vez, pharmakon, o ato

de cura através do uso de ervas e comumente associado como prática feminina, passa a ser

identificado como envenenamento ou, mais uma vez, uma forma de engodo (STRATTON,

2007).

Esse discurso antimágico transcorre de forma similar na Roma clássica, tendo a

magia, primeiramente, o significado mais específico de ser uma forma de crença-prática de

sacerdotes persas e, portanto, cercada de estereótipos e, posteriormente, já ao fim do

século I a.C., num significado mais abrangente, o de rituais ilícitos e perigosos que visam

causar danos, sendo tal discurso aplicado na era do Imperador Augusto como forma de

controle social. Assim como na Grécia, também abarcou termos tradicionais, a exemplo de

carmina e venena com significados semelhantes aos de epaiode e pharmakon,

respectivamente, embora venena já teria sido substituído até o século IV pela palavra

maleficium, que exprime um ato mal, perveso e viria a se tornar sinônimo de magia por

excelência (Ibid.).

Antes da cristianização de Roma, os cristãos eram um dos grupos comumente

acusados de magia por serem vistos como estranhos ou pouco romanos, porém, a partir do

século IV, é com a expansão do cristianismo no Império Romano que o discurso polêmico

antimágico ganha vigor12. Apesar de entre os estigmas comumente associados à magia no

cristianismo medieval se manterem alguns provenientes dos discursos de exclusão gregos e

romanos, como o de que determinadas ideias, comportamentos, crenças ou práticas eram

ilegítimas, aparece aqui um novo estigma, por vezes relacionado à razão de exclusão do

perigo e por outras do imoral, e que estará presente desde os primeiros séculos de formação

do cristianismo até a modernidade: a da magia como atividade demoníaca13. Esse estigma

vai estar presente, em particular, no período de caças às bruxas14 nos séculos XIII a XV

(FANGER; KLAASSEN, 2005).

Além disso, o DPA produzido pelo cristianismo desenvolve novos discursos de

alteridade. Os principais alvos de ataques deste discurso polêmico foram povos pagãos e

outros cristãos. A magia era atribuída aos primeiros no intuito de estigmatizar suas crenças e

práticas como uma falsa religião que se opunha à única religião verdadeira, o cristianismo15.

Outros cristãos se tornavam alvos desse discurso devido a disputas por poder dentro da

Igreja Católica ou, já na modernidade, o DPA foi um argumento recorrente de ataque usado

por protestantes contra o catolicismo (STRATTON, 2007).

Segundo Hanegraaff (2005b), o protestantismo produziu um discurso antimágico

mais rígido do que o catolicismo e se opôs a este como religião falsa. Também se opôs ao

que percebeu serem paganismos cristianizados, um conjunto de práticas e conhecimentos

gregos, egípcios, hebraicos que estavam sendo redescobertos, sincretizados e ressignificados

por acadêmicos, filósofos, médicos e teólogos no período da Renascença, como a astrologia,

12 Contudo, antes do século IV o DPA também estava presente no cristianismo. 13 Como dito anteriormente, a partir do século IV magia e maleficium se tornam sinônimos nos territórios de língua latina do Império Romano e isso se deu justamente pela influência cristã na equiparação da magia com o mal e o demônio. 14 A bruxaria e a figura da bruxa, assim como a magia, também são construções culturais frutos de discursos polêmicos da Igreja. 15 Aqui está um dos exemplos em que a teoria nem sempre está exatamente de acordo com a realidade histórica. Apesar de a estratégia preferida para os discursos de erro e falsidade serem, segundo Hanegraaff, a ridicularização, no caso do cristianismo medieval as religiões falsas e, portanto, identificadas como mágicas, eram, geralmente, proibidas.

alquimia e a magia naturalis, essa que só conseguiu escapar – de certa forma – das

polêmicas católicas devido ao esforço de se legitimar como prática não demoníaca, mas

divina, pois lidaria com as forças ocultas da natureza16.

Essa rejeição protestante ao que veio denominar-se ciências ocultas logo também foi

compartilhada nos séculos XVI e XVII por filósofos da natureza e cientistas que produziram a

Revolução Científica e que viria a contribuir na construção de um novo discurso polêmico

antimágico que se estabelece no século XVIII por meio do Iluminismo. “O Iluminismo definiu

sua própria identidade por meio de um discurso polêmico que se apresentou como

totalmente racional, enquanto excluía todas as formas de ‘superstição’ como irracionais”

(Ibid, p. 246), entre essas superstições estavam não só as ciências ocultas, mas também as

ideias, crenças, práticas e comportamentos do primitivo, do selvagem, figura que sob

influência do DPA teológico iria ocupar o lugar do pagão como alvo desse novo discurso

polêmico que opõe não a religião à magia, mas a ciência à magia e que tem na figura

imaginada do primitivo como desprovido de razão e ciência e, portanto, incivilizado, seu

Outro por excelência. A figura do oriental também assumiu a posição de alvo desse discurso

em certas circunstâncias. Embora vista como mais civilizada do que a do primitivo, ainda

assim é uma identidade não ocidental, portanto não seria vista como tão civilizada e racional

quanto essa.

Deve-se notar que a identificação do primitivo e do oriental como Outros do DPA

científico também se explica por outra função político-ideológica desse DPA iluminista –

além da função de construção do Eu – que é a de legitimar os processos de colonização e

imperialismo realizados pelos Estados-Nação europeus modernos. A subjugação desses

selvagens e orientais era justificado como um imperativo moral das nações europeias pois

estariam realizando um processo civilizatório desses povos por meio da educação científica e

cristã, expurgando, assim, seus obscurantismos e superstições mágicos. As ciências sociais,

em particular, vão contribuir na produção do conhecimento que legitime esses processos ao

legitimar com caráter de verdade científica velhas e novas polêmicas antimágicas.

16 Essa magia renascentista pode ser considerada a primeira vez que, de maneira significativa e abrangente, a magia se expressa no ocidente não como uma categoria de exclusão de um DPA, mas como uma espécie de discurso apologético prómágico em que indivíduos se autoidentificaram como magistas.

2. Discurso polêmico antimágico nos clássicos das ciências sociais

Como já mencionado, o discurso polêmico antimágico que surge na modernidade e é

produzido, em especial, pela ciência está, obviamente, presente nos clássicos das ciências

sociais, porém, o discurso teológico cristão também está contido nas noções de magia

desses sociólogos e antropólogos, embora não de forma tão clara e expressiva quanto o

discurso polêmico da ciência. A influência da teologia cristã na produção da verdade

científica no século XIX não é uma novidade, Foucault (1988), em História da Sexualidade – I:

A vontade de saber, demonstra como a scientia sexualis estava profundamente subordinada

aos imperativos morais da espiritualidade cristã. Da mesma forma as ciências sociais do

século XIX e início do XX, sob o pretexto de dizerem a verdade da ciência, reiteravam velhas

polêmicas cristãs contra a magia.

É possível traçar o caminho desse discurso antimágico cristão até às teorias da magia

dos clássicos através de uma análise intertextual, por exemplo. Assim, nota-se que entre as

muitas fontes de consulta desses autores para a elaboração de suas teorias

socioantropológicas da magia estão estudiosos de religião comparada ou filosofia, mas que

também são teólogos17 e que muitas vezes estes não possuem o rigor científico para realizar

uma análise de determinada crença ou prática de outros povos sem o viés confessional. Há

também as fontes puramente teológicas quando o interesse dos clássicos eram as supostas

práticas mágicas de culturas antigas do período clássico ou medieval, em que, geralmente,

as únicas fontes disponíveis eram as de teólogos18. E quando o interesse era nas culturas

contemporâneas aos clássicos, mas distantes deles, em outros continentes, era comum o

uso de relatos de missionários acerca desses povos já que dentre os antropólogos aqui

selecionados todos eram antropólogos de gabinete.

17 Exemplos mais conhecidos de teólogos com marcada influência nas obras de cientistas sociais clássicos são Ernst Troeltsch em Weber e William Robertson Smith em Durkheim e Frazer. 18 Isso é perceptível em Frazer, por exemplo. Porém, Frazer também fazia uso de textos de escritores de gregos e romanos anteriores à cristianização de Roma e que reconhecidamente manifestavam um discurso antimágico, como Virgílio, Teócrito e Ovídeo (STRATTON, 2011), portanto, é perceptível a presença até mesmo do DPA grego e romano na teoria da magia de Frazer. E como a teoria frazeriana foi muito influente nos cientistas sociais subsequentes, ela resulta estar contida também em suas teorias da magia.

Assim, expressões dos discursos antimágicos cristãos nas noções e teorias da magia

dos clássicos são, por exemplo, a concepção de Frazer (1920) de que a religião lida com

deuses, enquanto a magia lida com demônios, ou na noção de Mauss (2003) de que há algo

inerentemente antirreligioso na magia, ou, de forma similar, a ideia de Durkheim (1996) de

que a magia tem um prazer profissional em profanar coisas santas ou mesmo tempo em que

há uma marcante repugnância da religião contra a magia, e, mais uma vez, no entendimento

de ambos de que práticas mágicas são antissociais. Hanegraaff (2005b) chama a atenção

para o fato de que a própria abordagem intelectualista da magia e religião de Tylor e Frazer é

uma herança do princípio protestante de que a religião é baseada e, portanto, definida pela

crença, não pelo ritos, mitos ou símbolos.

Dessa forma, nota-se como antigas razões de exclusão da magia no ocidente como

perigosa e imoral estão presentes nessas teorias, mas é, principalmente, a polarização

verdadeiro/falso que se expressa na construção teórica da magia como o oposto, ou melhor,

o Outro da religião.

É bastante evidente que a distinção entre magia e religião é uma herança direta da teologia cristã e

polêmicas doutrinárias. Implícita ou explicitamente, a religião realmente quer dizer o cristianismo

(ou mais precisamente, "verdadeiro" ou teologicamente correto cristianismo), enquanto que a magia

significa tais coisas como adoração demoníaca e idolatria pagã (ou seja, a religião falsa)

(HANEGRAAFF, 2016, 396)19.

É possível identificar essa associação implícita da categoria religião com o

cristianismo numa observação mais atenta dos vocábulos usados por esses clássicos para

descrever elementos religiosos, por exemplo, no uso da palavra “igreja” por Durkheim para

definir qualquer comunidade moral de aderentes a uma religião (Id., 2003).

Os discursos de exclusão cristãos são mais notáveis nas abordagens funcionalistas,

enquanto que os discursos de exclusão a partir da ciência são mais perceptíveis nas teorias

intelectualistas, contudo, ambas as formações discursivas podem aparecer em qualquer um

desses socioantropólogos e um imbricado no outro, como na citação a seguir de Frazer, que

além de expressar o DPA do protestantismo contra o catolicismo, também evidencia o senso

de ameaça – a primeira condição de um discurso polêmico, como visto na primeira parte

19 Tradução nossa.

deste trabalho – mais claro no discurso de exclusão que vai se construindo nas obras desses

clássicos, e que é uma ameaça à civilização, ou melhor, ao projeto de civilização das

sociedades ocidentais em torno da razão e da ciência:

É sob nossos pés - e não muito longe abaixo deles - aqui na Europa nos dias de hoje [...] Esta fé

universal, este credo verdadeiramente católico, é uma crença na eficácia da magia [...] Entre os

ignorantes e as classes supersticiosas da Europa moderna é o mesmo que era há milhares de anos no

Egito e na Índia, e o que agora é entre os selvagens mais inferiores sobrevivendo nos cantos mais

remotos do mundo [...] a existência permanente de tal camada sólida de selvageria abaixo da

superfície da sociedade [...] uma ameaça permanente para a civilização. Parece que estamos nos

movendo em uma fina crosta que pode a qualquer momento ser quebrada por forças subterrâneas

adormecidas abaixo de nós (FRAZER, 1920, p. 235-236)20.

Além do senso de ameaça, é perceptível na citação de Frazer a razão de exclusão

comum no DPA iluminista e muito presente nas teorias da magia dos clássicos, a da

irracionalidade, comumente referida por adjetivos como os usados acima: ignorante e

supersticioso. E apesar da identidade sob ataque aqui ser a católica, em última instância é a

identidade do selvagem21, do primitivo o alvo desse enunciado e do DPA das ciências sociais

clássicas, seja o selvagem de milhares de anos atrás ou os contemporâneos nos cantos mais

remotos do mundo. Basta olhar as sociedades investigadas por esses autores para construir

suas noções e teorias da magia: dentre os vários povos citados por Tylor (1920), em Primitive

Culture22, há, por exemplo, os Tupis do Brasil, os Bayaks do Bornéu, os Maoris da Nova

Zelândia, Mauss (2003), por sua vez, em Esboço de uma Teoria Geral da Magia, tem como

fonte os dados sobre tribos mexicanas antigas ou australianas, melanésias, malaias,

americanas contemporâneas a ele23.

20 Tradução nossa. 21 Há uma influência do DPA cristão na formação do selvagem como o Outro da ciência. Ele representa o pagão original (HANEGRAAFF, 2005b). 22 O nome da obra já é um enorme indicador para esse argumento. 23 Muitos outros clássicos poderiam ser citados além dos aqui selecionados neste trabalho, como Bronislaw Malinowski, E.E. Evans-Pritchard, Alfred Radcliffe Brown, entre outros. Nota-se a que são todos antropólogos. Tradicionalmente sociólogos da religião preferem analisar grupos ocidentais – para não dizer cristãos. Nicholas Thomas (1991) bem indica que há uma fixação da antropologia no exotismo, na alteridade e na fabricação dessa alteridade, assim como na homogeneização do Outro. Haveria algo como uma afinidade eletiva entre o discurso polêmico antimágico e a epistemologia antropológica?

Como requer as quatro primeiras condições dos discursos polêmicos, os selvagens

representam um alvo não muito claro e acessível, já que é uma figura que vive em terras

distantes e de difícil acesso à maioria dos habitantes das nações europeias da virada do

século XX, conhecidos, em geral, apenas pelas vagas e tendenciosas descrições de

missionários cristãos e funcionários de corporações coloniais. São vistos como uma massa de

ignorantes presentes ao redor do planeta com crenças e práticas demoníacas, falsas,

irracionais que representam uma ameaça ao mundo ocidental civilizado, cristão, uma

ameaça aos empreendimentos coloniais e imperialistas, e isso tudo é transmitido a uma

audiência formada não só da comunidade científica europeia do fim do século XIX e início do

XX, mas da sociedade leiga consumidora do saber científico e curiosa, ao mesmo tempo que

estarrecida, com esse mundo exótico e perigoso lá fora.

O caráter primitivo da magia nas noções e teorias dos clássicos das ciências sociais

também se expressa na perspectiva evolucionista de Tylor e mais desenvolvida em Frazer

que afirma que historicamente teria surgido primeiro a magia, porém, à medida que a

humanidade evoluiu culturalmente essa foi substituída por uma forma de compreensão e

relação com a realidade mais desenvolvida, a religião, até que, finalmente, surgiu a ciência.

Porém, uma outra identidade alvo do discurso antimágico nas ciências sociais

clássicas, embora não tão acentuada quanto a do primitivo, é a do oriental. Também há aqui

uma construção parte real, parte imaginária do discurso científico dos orientalistas. É pelo

contraste com essas duas identidades estigmatizadas que o DPA nas ciências sociais clássicas

constrói a autoidentidade ocidental civilizada moderna24. E assim como uma das formas de

inserção das relações de poder presentes no DPA cristão nas teorias desses clássicos é por

influência de relatos de missionários em outros continentes, é possível que as relações de

poder decorrentes dos processos de colonização e imperialismo dos europeus sobre esses

primitivos e orientais também se insiram através dos relatos de antropólogos a serviço de

corporações colonialistas e imperialistas.

24 Essa associação da magia com qualquer grupo social do mundo que não a de um ocidental moderno se torna ainda mais evidente e problemática quando se percebe que apesar do intenso reavivar mágico que acontecia na Europa desde o século XVIII, com inúmeras obras e sociedades iniciáticas ocultistas aparecendo na virada do século XX, o que as tornaria um excelente e intrigante objeto de estudo sobre a magia e bem na porta desses cientistas sociais, ainda assim não há uma única menção a essa magia ocidental em suas obras.

Por fim, acerca da quinta condição para um discurso antimágico, a de que esse

requer simplicidade e deve ser baseado em oposições simples, isso se expressa no discurso

antimágico das ciências sociais clássicas através da popular – popular justamente por ser

simples – polarização magia vs religião ou magia vs ciência presente em todos os clássicos

aqui analisados. Segundo Hanegraaff (2016, p. 396), em suas construções teóricas acerca das

relações entre ciência, magia e religião, é notável como esses clássicos das ciências sociais

tendem a ser favoráveis à ciência, respeitosos com a religião, porém bastante negativos com

a magia.

A oposição magia vs religião, como já mencionado, se expressa principalmente em

Mauss e Durkheim repetindo os velhos discursos polêmicos de oposição entre cristianismo e

magia. É em Tylor e Frazer, por sua vez, que a magia aparece como o Outro da ciência e

invoca o discurso de polaridade entre o falso e o verdadeiro, sendo a ciência moderna

ocidental a genuína ciência e a magia uma pseudociência. Dessa forma, não seria de se

estranhar que para Tylor (1920, p. 112)25 a magia sobreviva entre aquelas “[...] raças

inferiores que não têm tomado parte, em grande medida, da educação do mundo” enquanto

que o mundo moderno educado pela ciência rejeita a magia como uma superstição

desprezível, uma ilusão perniciosa pertencente aos estágios mais inferiores da civilização.

Quando não invocam a razão de exclusão da magia como falsa ciência, Tylor e Frazer,

invocam a irracionalidade da magia e daqueles que nela acreditam e praticam, perceptível

na noção de a magia comete o erro de confundir realidade subjetiva com objetiva, sendo,

portanto, um erro da razão.

Considerações finais

Portanto, como visto, além do discurso polêmico antimágico moderno produzido, em

especial, pela ciência, está presente nos clássicos das ciências sociais também o discurso

polêmico antimágico cristão e é possível traçar o caminho desse discurso antimágico cristão

até às teorias da magia dos clássicos através de uma análise intertextual e verificar a

25 Tradução nossa.

presença significante de teólogos entre suas fontes. Algumas expressões dos discursos

antimágicos cristãos nas noções e teorias da magia dos clássicos são, por exemplo, a

concepção de que a religião lida com deuses, enquanto a magia lida com demônios e a

noção de que há algo inerentemente antirreligioso na magia.

O DPA iluminista, por sua vez, expressa-se no senso de ameaça que o discurso

polêmico requer, que é uma ameaça à civilização, ou melhor, ao projeto de civilização das

sociedades ocidentais em torno da razão e da ciência, e nas identidades do selvagem e do

oriental, como os Outros construídos como alvo no discurso polêmico antimágico nas

ciências sociais. A polarização magia-ciência se manifesta nas teorias e noções de magia dos

clássicos através do entendimento da ciência como genuína e a magia como falsa ciência,

além percepção de que o pensamento mágico é irracional.

Importante notar que a compreensão histórica da noção de magia evidencia que a

polêmica antimágica é, na verdade, a principal, se não a única, característica da magia, e

demonstra que a magia não se define por determinadas práticas ou crenças universais e

trans-históricas, mas pela sua função ideológica de exclusão do Outro no ocidente. Essa nova

compreensão da magia tem feito com que alguns pesquisadores contemporâneos não

considerem mais válido o uso do termo magia como uma categoria acadêmica de análise.

Contudo, novas abordagens e conceituações de magia atentas à realidade histórica do

discurso polêmico antimágico têm aparecido e promovido uma reconstrução dos estudos

acadêmicos de magia26.

Referências

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26 Ver, por exemplo, o trabalho de Marco Pasi (2008), aqui citado, e Historicising ‘Western Learned Magic’: Preliminary Remarks de Bernd-Christian Otto (2016).

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