o Discurso Filosc3b3fico Na Modernidade Habermas
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Jürgen Habermas
O discurso filosófico da modernidade
Doze lições
Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEI NASCIMENTO
Martins Fontes São Paulo 2002
Esta obra foi pubtiaitta originalmente em alemão com o titulo
DER PHILOSOPHISCHE DtSKVRS DER MODERNE, por Suhrkamp Verias.
CopYríjthl <& Suhrkamp Verias. Frankfurt am Main. 1985.
Copyright O 2000. Urraria Martins Fontes Editora Lula..
Suo Paulo, para a presente edição.
I1 edição
junho de 2000
2' tiragem
abril de 2002
Tradução
LUIZ SÉRGIO REPA
RODNEl NASCIMENTO
Revisão da tradução
Karina Jannini
Marlene Holzhausen
Preparação do original
Andréa Stahef Si. da Silva
Revisão grafica «*=a
Márcia da Cru: Nôboa Leme
Ana Maria de 0. M. Barbosa
Produção gráfica
Geraldo Alves
PaginaçãVFotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na l*ubflcação (CTP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Htberma*. Jürgeii, 1929-
O discurso filosófico da modernidade': doze lições / Jürgen
Habermas: indução Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento, - São
Paulo : Martins Fontes. 2000. - {Coleção lópicos)
Título originai: Der Philosophische Diskurs der Modems,
Bibliografia.
ISBN 85-336-1202-1
1. Civilização modema - Filosofia 2. Filosofia moderna - Século
19 3. Filosofia moderna - Século 20 I. Título. II. Série.
00-2286 CDD-193
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia alenta 193 0
2. Habermas : Filosofia alemã 193
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Lida.
Rua Conselheiro Ramalho. 330/340 0!325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: [email protected] \ http:t!www.martinsfontes.com.br
CAPÍTULO I
A CONSCIÊNCIA DE TEMPO DA MODERNIDADE E SUA NECESSIDADE DE AUTOCERTIFICAÇÃO
i
Na célebre introdução à coletânea dos seus ensaios sobre sociologia da religião. Max Weber desenvolve aquele "problema da história universal" ao qual dedicou toda a obra cientifica de sua vida, a saber, por que fora da Europa "nem o desenvolvimento científico, nem o artístico, nem o político, nem o econômico seguem a mesma via de racionalização que é própria do Ocidente" 1 . Para Max Weber ainda era evidente a relação interna, e não a meramente contigente, entre a modernidade e aquilo que designou como racio-nalismo ocidental 2. Descreveu como "racional" aquele processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, as artes tornadas
1. WEBER, M. Die proleslantische Elhik (A ética protestante). Hcidel-berg, 1973, vol. I.
2. Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Ilandeíns (Teoria da ação comunicativa). Frankfurt am Main. 1981, vol. 1, pp. 225 ss.
4 JÜRGEN HABERMAS
autônomas e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em princípios formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legali-dades internas.
O que Max Weber descreveu do ponto de vista da racionalização não foi apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades mo-dernas. As novas estruturas sociais são caracterizadas pela diferenciação daqueles dois sistemas, funcionalmente interligados, que se cristalizaram em torno dos núcleos organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado. Weber entende esse processo como a institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com respeito a fins. À medida que o cotidiano foi tomado por esta racionalização cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais, que no início da modernidade se diferenciaram principalmente em função das corporações de ofício. No entanto, a modernização do mundo da vida não foi determinada apenas pelas estruturas da racionalidade com respeito a fins. E. Durkheim e G. H. Mead viram que o mundo da vida racionalizado é caracterizado antes por um relacionamento reflexivo com tradições que perderam sua espontaneidade natural; pela universalização das normas de ação e Urna generalização dos valores que liberam a ação comunicativa de contextos estreitamente delimitados, abrindo-lhe um leque de opções mais amplo; enfim, por modelos de socialização que se dirigem à formação de identidades abstratas do eu e que forçam a individualização dos adolescentes. Em linhas gerais, esse é o quadro da modernidade tal como traçado pelos clássicos da teoria social.
Hoje o tema de Max Weber é posto sob uma outra luz, tanto pelo trabalho dos que o reivindicam para si, quanto dos que o criticam. Somente nos anos 50 a palavra "moderni-
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 5
zação" foi introduzida como termo técnico. Desde £iitão caracteriza uma abordagem teórica que retoma a problemática de Max Weber, reelaborando-a com os instrumentos do funcionalismo sociológico. O conceito de modernização refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal; à seculariza-ção de valores e normas etc. A teoria da modernização efetua sobre o conceito weberiano de "modernidade" uma abstração plena de conseqüências. Ela separa a modernidade de suas origens - a Europa dos tempos modernos - para estilizá-la em um padrão, neutralizado no tempo e no espaço, de processos de desenvolvimento social em geral. Além disso, rompe os vínculos internos entre a modernidade e o contexto histórico do racionalismo ocidental, de tal modo que os processos de modernização já não podem mais ser compreendidos como racionalização, como uma objetivação histórica de estruturas racionais. James Coleman vê nisso a vantagem de não mais sobrecarregar o conceito de modernização, generalizado na teoria da evolução, com a idéia de um acabamento da modernidade e, portanto, de um estado final, ao qual deveriam seguir-se desenvolvimentos "pós-mo-dernos" 3.
Sem dúvida, a investigação desenvolvida nos anos 50 e 60 sobre a modernização criou as condições para que a expressão "pós-moderno" pudesse circular também entre os
3. Artigo "Modernízation" (Modernização). In: Encycl. Soe. Science (Enciclopédia cie ciências sociais), vol. 10, pp. 386 ss., aqui p. 476.
6 ÍÜRGENHABERMAS
cientistas sociais. Em face de uma modernização que se move por si própria e se autonomiza em sua evolução, o observador social tem razões de sobra para se despedir do horizonte conceituai do nacionalismo ocidental em que surgiu a modernidade. Porém, uma vez desfeitas as relações internas entre o conceito de modernidade e a sua autocompreensão, conquistada a partir do horizonte da razão ocidental, os processos de modernização que prosseguem, por assim dizer, automaticamente, podem ser relativizados desde o ponto de vista distanciado do observador pós-moderno. Arnold Gehlen sintetizou esta questão em uma fórmula marcante: as premissas do esclarecimento* estão mortas, apenas suas conseqüências continuam em curso. Dessa perspectiva, uma ininterrupta modernização social auto-suficiente destaca-se dos impulsos de uma modernidade cultural que se tornou aparentemente obsoleta; ela opera apenas com as leis funcionais da economia e do Estado, da técnica e da ciência, as quais se fundem em um sistema pretensamente imune a influências. A irresistível velocidade dos processos sociais aparece, então, como o reverso de uma cultura saturada, em estado de cristalização. "Cristalizada", assim designa Arnold Gehlen a cultura moderna, pois "todas as possibilidades que contém foram realizadas em seus elementos essenciais. Além disso, as possibilidades contrárias e as antíteses foram descobertas e integradas, de modo que doravante é improvável que as premissas venham a sofrer alterações ... Se admitirmos essa idéia, perceberemos a cristalização' mesmo em um
* Aufklàrung: o termo tem várias traduções em português: luzes, filosofia das luzes, ilustração, iluminismo, esclarecimento; alguns preferem não traduzi-lo, mantendo a forma alemã. Adotamo? "lluminismo" quando o texto se refere ao movimento intelectual do século XVIII, mas "esclarecimento" quando se trata de um processo histórico mais amplo, próximo do que Habermas entende por racionalização. (N. dos T.)
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 7
domínio tão espantosamente agitado e multicolorido como o da pintura moderna" 4. Como a "a história das idéias se encerrou", Gehlen pode constatar aliviado que "nós chegamos à pós-história" (ibicL, p. 323). Tal como Gottfried Benn, aconselha: "Conte com o que possuis." Esta despedida neocon-sei-vadora da modernidade refere-se, portanto, não à dinâmica desenfreada da modernização social, mas sim à superfície de uma autocompreensão cultural da modernidade aparentemente ultrapassada 5.
No entanto, entre os teóricos que não consideram que tenha ocorrido um desacoplamento entre modernidade e racionalidade, a idéia da. pós-modernidade apresenta-se sob uma forma política totalmente distinta, isto é, sob a forma anarquista. Reclamam igualmente o fim do esclarecimento, ultrapassam o horizonte da tradição da razão, da qual a modernidade européia entendeu outrora fazer parte, e fincam o pé na pós-história. Mas, diferente da neoconservado-ra, a despedida anarquista dirige-se à modernidade como um todo. Ao submergir esse continente de conceitos fundamentais, que sustentam o racionalismo ocidental de Max Weber, a razão revela sua verdadeira face - é desmascarada como subjetividade subjugadora e, ao mesmo tempo, subjugada, como vontade de dominação instrumental. A força subversiva de uma critica à la Heidegger ou à la Bataille, que arranca o véu da razão para exibir a pura vontade de poder, deve' simultaneamente abalar a redoma de aço na qual se
4. GEHLEN, A. "Über kulturelle Kristallisation" (Sobre a cristalização cultural). In: Studitn zur Anthropologic itnd Soziohgie [Estudos sobre antropologia e sociologia). Neuwied, 1963, p. 321.
5. Um ensaio de H, E. Holthusen ("Heimweli nach Geschichte" (Nostalgia da história). In: Mcrkttr, n°. 430, dez. 1984, p. 916) leva-me a concluir que Gehlen poderia ter tomado de empréstimo o tenno "pós-história" do seu parceiro intelectual Ilendrik de Man.
8 JÜRGEN HABERMAS
objetivou socialmente o espírito da modernidade. Dessa perspectiva, a modernização social não poderá sobreviver ao fim da modernidade cultural de que derivou, não poderá resistir ao anarquismo "imemorial", sob cujo signo se anuncia a pós-modernidade.
Por mais distintas que sejam essas versões da teoria da pós-modernidade, ambas se distanciam do horizonte conceituai fundamental em que se formou a autocompreensão da modernidade européia. As duas teorias da pós-modernidade pretendem ter-se apartado desse horizonte, tê-lo dei- 1
xado para trás como horizonte de uma época passada. Ora, Hegel foi o primeiro filósofo que desenvolveu um conceito claro de modernidade; em razão disso é necessário retornar a Hegel se quisermos entender o que significou a relação interna entre modernidade e racionalidade, que permaneceu evidente até Max Weber e hoje é posta em questão. Temos de reexaminar o conceito hegeliano de modernidade para podermos julgar se é legítima a pretensão daqueles que estabelecem suas análises sobre outras premissas. Em todo caso, não podemos descartar a priori a suspeita de que o pensamento pós-moderno se arroga meramente uma posição transcendental, quando, de fato, permanece preso aos pressupostos da autocompreensão da modernidade, os quais foram validados por Hegel. Não podemos excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando mais ürha vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam simplesmente encobrindo com o pós-esclareci-mento sua cumplicidade com uma venerável tradição do con-tra-esclarecimento.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 9
II
Hegel emprega o conceito de modernidade, antes de tudo, em contextos históricos, como conceito de época: os "novos tempos" são os "tempos modernos" 6 . Isso corresponde ao uso contemporâneo do termo em inglês e francês: por volta de 1800, modem times e temps modernes designam os três séculos precedentes. A descoberta do<*'Novo Mundo" assim como o Renascimento e a Reforma, os três grandes acontecimentos por volta de 1500, constituem o limiar histórico entre a época moderna e a medieval. Hegel também utiliza esses termos, em suas lições sobre a filosofia da história, para delimitar o mundo germânico-cristão que, por sua vez, se originou da Antigüidade grega e romana. A classificação, ainda hoje usual (p. ex., para a caracterização de disciplinas de história), em Idade Moderna, Idade Média e Antigüidade (respectivamente História moderna, medieval e antiga), só pôde se compor depois que as expressões "novos tempos" ou "tempos modernos" ("mundo novo" ou "mundo moderno") perderam o seu sentido puramente cronológico, assumindo a significação oposta de uma época enfaticamente "nova". Enquanto no Ocidente cristão os "novos tempos" significavam a idade do mundo que ainda está por vir e que despontará somente com o dia do Juízo Final -como ocorre ainda na Filosofia das idades do mundo, de Schelling -, o conceito profano de tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou: indica a época orientada para o futuro, que está aberta ao novo que há de vir. Com isso, a cesura em que se inicia o novo é deslocada para o passado, precisamente para o começo da época moder-
6. Em re lação ao que se s egue , cf. KosELLECK, R. Vergangene Zukimfl
{() futuro passado). Frankfur t am M a i n , 1979.
10 JÜRGEN HABERMAS
na. Somente no curso do século XVIJI o limiar histórico em torno de 1500 foi compreendido retrospectivamente COTIIO tal começo. Na qualidade de um teste, R. Koselleck formula a questão de saber quando o nostrum aevum, o nosso tempo, passa a ser denominado nova aetas, os novos tempos 7.
Koselleck mostra como a consciência histórica, expressa no conceito de "tempos modernos" ou "novos tempos", constituiu uma perspectiva para a filosofia da história: a presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a partir do horizonte da história em ;sua totalidade. Também o singular coletivo "História", que Hegel já utilizava naturalmente,- foi cunhado no século XVIII: "A 'época moderna' confere ao conjunto do passado a qualidade de uma história universal... O diagnóstico dos novos tempos e a análise das épocas passadas se correlacionam." 8 A isso correspondem a nova experiência do progresso e da aceleração dos acontecimentos históricos e a compreensão da simultaneidade cronológica de desenvolvimentos historicamente não simultâneos 9. Constitui-se então a representação da história como um processo homogêneo, gerador de problemas; de modo concomitante, o tempo é experienciado como um recurso escasso para a resolução dos problemas que surgem, isto é, como pressão do tempo. Õ espírito do tempo (Zei/geist), um dos novos termos que inspiram Hegel, caracteriza o presente como uma transição que se consome na consciência da aceleração e na expectativa da heterogeneidade do futuro: "Não é difícil ver", escreve Hegel no prefácio à Fenome-nologia do espírito, "que nosso tempo é um tempo de nascimento e de passagem para um novo período. O espírito
7. KOSELLECK, R. "Neuzeit" (Época moderna), ibid., 1979. p. 314. 8. KOSELLECK, 1979, p. 327.
9. KOSELLECK, 1979, pp. 321- ss.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
rompeu com seu mundo de.existência e representação e está á ponto de submergi-lo no passado, e [se dedica] à tarefa de sua transformação ... A frivolidade e o tédio que se propagam pelo que existe e o pressentimento indeterminado do desconhecido são os indícios de algo diverso que se aproxima. Esse desmoronamento gradual ... é interrompido pela aurora, que revela num clarão a imagem do novo mundo." 1 0
Uma vez que o mundo novo, o mundo moderno, se distingue do velho pelo fato de que se abre ao futuro, o inicio de uma época histórica repete-se e reproduz-se a cada momento do presente, o qual gera o novo a partir de si. Por isso, faz parte da consciência histórica da modernidade a delimitação entre "o tempo mais recente" e a "época moderna": o presente como história contemporânea desfruta de uma posição de destaque dentro do horizonte da época moderna. Hegel também entende o "nosso tempo" como o "tempo mais recente". Ele data o começo do tempo presente a partir da cesura que o Iluminismo e a Revolução Francesa significaram para os seus contemporâneos mais esclarecidos no final do século XVIII e começo do XIX. Com esse "magnífico despertar" alcançamos, assim pensa ainda o velho Hegel, "o último estágio da história, o nosso mundo, os nossos dias"". Um presente que se compreende, a partir do horizonte dos novos tempos, como a atualidade da época mais recente, tem de reconstituir a ruptura com o passado como uma renovação contínua.
É nesse sentido que os conceitos de movimento, que no século XVIII, juntamente com as expressões "modernidade" ou "novos" tempos, se inserem ou adquirem os seus novos
10. HEGEL, G. W. F. Suhrkamp-Wcrkausgabe, vol. 3, pp. 1 8 - 9 . Dc aqui em diante citado como H.
11. H. , vol. X I I , p. 5 2 4 .
12 JÜRCEN HABERMAS
12. KOSELLECK, R. "Erfahningsraum und Erwartungshorizont" (Campo de experiência e horizonte de expectativa). In: KOSELLECK, 1 9 7 9 , pp. 3 4 9 ss.
13 . BLUMENBERG, H. Legttimilât der Neiaeit (Legitimidade da Idade Moderna). Frankfurt am Main, 1 9 6 6 , p. 7 2 .
significados, válidos até hoje: revolução, progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, espírito do tempo etc. 1 2 Estas expressões tornaram-se palavras-chave da filosofia hegelia-na. Elas lançam uma luz histórico-conceitual sobre o problema que se põe à cultura ocidental com a consciência histórica moderna, elucidada com o auxílio do conceito antité-tico de "tempos modernos": a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normativi-dade. A modernidade vê-se referida a si mesma, sem a possibilidade de apelar para subterfúgios. Isso explica a susceti-bilidade da sua autocompreensão, Ia dinâmica das tentativas de "afirmar-se" a si mesma, que prosseguem sem descanso até os nossos dias. Há poucos anos, H. Blumenberg viu-se na necessidade de defender, com grande dispêndio de indicações históricas, a legitimidade ou o direito próprio da época moderna contra aquelas construções que afirmam uma dívida cultural da modernidade para com o legado do cristianismo e da Antigüidade: "Não é evidente que se coloque para uma época o problema de sua legitimidade histórica, como tampouco é evidente que ela se compreendia em geral como época. Para a época moderna o problema está latente na pretensão de consumar, ou de poder consumar, uma ruptura radical com a tradição e no equívoco que essa pretensão representa em relação à realidade histórica, que nunca é capaz de recomeçar desde o princípio." 1 3 Blumenberg cita como prova uma passagem do jovem Hegel: "Exceto algumas tentativas anteriores, coube sobretudo aos nossos dias
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 13
reivindicar como propriedade dos homens, ao menos em teoria, os tesouros generosamente entregues ao céu; mas qual época terá a força para fazer valer esse direito e dele se apossar?" 1 4
É no domínio da crítica estética que, pela primeira vez, se toma consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si mesma. Isso fica claro quando acompanhamos a história conceituai do termo "moderno" 1 5 . O processo de distanciamento do modelo da arte antiga foi introduzido, no início do século XVIII, pela célebre Que-relle des anciens et des modernes16. O partido dos modernos insurge-se contra a autocompreensão do classicismo francês, quando assimila o conceito aristotélico de perfeição ao de progresso, tal coajo este foi sugerido pela ciência natural moderna. Os "modernos" questionam o"sentido de imitação dos modelos antigos com argumentos histórico-críticos; em contraposição às normas de uma beleza absoluta, aparentemente supratemporal, salientam os critérios do belo relativo ou condicionado temporalmente, articulando com isso a autocompreensão do Iluminismo francês como a de um novo começo de época. Embora o substantivo moder-nitas (junto com o par antitético de adjetivos antiqui/mo-derni))à fosse empregado em um sentido cronológico desde a Antigüidade tardia, nas línguas européias da época moderna, o adjetivo "moderno" foi substantivado só muito mais
14. H., vol. I, p. 209. 15. GUMBRECHT, H. U . Art. "Modern" (Moderno). In: BRUNNER, O, , CON-
ZE, W. & KOSELLECK, R. (orgs.), Geschickllíche Grundbegriffe {Conceitos históricos fundamentais), vol. 4, pp. 93 ss.
16 . JAUSS, H. R. "Urspnmg und Bedeutung der Fortschrittsidee in der 'Querelle des anciens et des modernes"'(Ongem e significado da idéia de progresso na 'Querelle des anciens et des modernes'). In: K.UHN, H. & W l E D M A N N ,
F. (orgs.), Die Philosophie und die Frage nach dem Fortschrilt (A filosofia e a questão do progresso). Munique, 1964, pp. 51 ss.
14 JÜRCEN HABERMAS
tarde, aprox imadamente nos meados do século XIX e, pela
pr imeira vez, ainda no domínio das belas-artes , Isso explica
por que as expressões Moderne ou Modernitàt, modernité,
conservaram até hoje um núcleo de significado estético, mar
cado pela au tocompreensão da arte de v a n g u a r d a 1 7 .
Para Baudela i re a exper iência estética cpnfundia-se,
nesse m o m e n t o , c o m a exper iência histórica da modern ida
de. Na experiência fundamental da modern idade estética,
intensifica-se o problema da autofundamentação, pois aqui
o horizonte da experiência do t empo se reduz à subjetivida
de descentrada, que se afasta das convenções cotidianas. Para
Baudelaire , a obra de arte m o d e r n a ocupa, por isso, um lu
gar notável na intersecção do eixo entre atual idade e eterni
dade: "A modernidade é o transitório, o efêmero, o contigen
te, é a metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutáve l . " 1 8
O ponto de referência da modern idade jtorna-se agora u m a
atualidade que se consome a si mesma, custando- lhe a ex
tensão de um per íodo de transição, de um t empo atual, cons
tituído no centro dos t empos modernos :e que dura a lgumas
décadas . O presente não pode mais obter sua consciência de
si com base na oposição a u m a época rejeitada e ul trapassa
da, a u m a figura do passado. A atual idade só pode se cons
tituir c o m o o ponto de intersecção entre o t empo e a eterni
dade. C o m esse contato sem mediação entre o atual e o eterno,
cer tamente a modern idade n ã o se livra do seu caráter precá-
1 7 . No que se segue, apóio-me em JAUSS, H. R . "Literarische Tradition
und gegenwârt iges Bewusstsein der Moderni tàt" (Tradição literária e cons
ciência atual da modernidade). In; Literaturge.schichte ais Provokation (Histó
ria da literatura como provocação). Frankfurt am Main, 1 9 7 0 , pp. 1 1 ss. Cf.
também: J A U S S , H . R . In: FRIEDEBURG & H A B E R M A S , 1 9 8 3 , pp. 9 5 ss.
1 8 . BAUDELAIRE, Ch. "Der Maler des m o d e m e n Lebens". In: Ges.
Schriften ed. M. Bruns (Melzer). Darmstadt , 1 9 8 2 , vol, I. (trad., Snhre a mo
dernidade. São Paulo, Paz e Terra, 1 9 9 6 , p . 2 5 ) . Baseio-me cm JAUSS, 1 9 7 0 ,
pp. 5 0 ss.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 15
rio, mas sim da sua trivial idade: na concepção de Baudelaire,
ela aspira a que o m o m e n t o transi tório seja reconhecido co
mo o passado autênt ico de um presente futuro 1 ". A moder
nidade afirma-se como aquilo que um dia será clássico; "c lás
s ico" , de agora em diante, é o "c l a rão" da aurora de um novo
m u n d o , que decer to não terá pe rmanênc ia , mas , ao contrá
rio, sua pr imei ra entrada em cena selará t ambém a sua des
truição. Essa compreensão do t empo , radicalizada mais u m a
vez no sur rea l i smo, just i f ica a afinidade entre a modernida
de e a moda.
Baudela i re parte do resul tado da célebre querela dos
ant igos e mode rnos , mas desloca, de maneira característ ica,
o peso do belo absolu to e do belo relativo: "O belo é cons
t i tuído por um e lemento eterno, invariável ... e de um ele
m e n t o relativo, c i rcunstancial , que será ... sucessiva ou
combinadamen te , a época, a moda , a moral , a paixão. S e m
este segundo, que é c o m o o invólucro aprazível , palpi tante,
aperit ivo do divino manjar, o pr imeiro e lemento seria indi
gesto, inapreciável , não adaptado e não apropr iado à natu
reza h u m a n a . " 2 0 Enquanto crítico de arte, Baudela i re subli
nha na pintura moderna o aspecto "da beleza fugaz e passa
geira da vida presente , do caráter daqui lo que o leitor nos
permi t iu chamar ' M o d e r n i d a d e ' " 2 ' . Baudelaire coloca entre
aspas a palavra " M o d e r n i d a d e " ; é consciente do novo uso,
t e rmino log icamente peculiar, desse te rmo. Em conseqüên
cia disso, a obra autêntica está radicalmente presa ao instante
do seu surgimento; exa tamente porque se consome na atua-
19. "Em poucas palavras, para que toda modernidade seja digna dc tor
nar-se antigüidade, é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a
vida humana involuntar iamente lhe confere ." (BAUDELAIRE, Ces. Schrifíen,
vol. IV. p. 288; trad., p. 26.)
20. BAUDELAIRE. Ges. Schriften, vol. IV, p. 2 7 1 ; trad.. p. 10.
2 1 . BAUDELAIRE, GCS. Schn/ien. vol. IV, p 325; trad., p. 70.
16 JÜRGEN HABERMAS
l idade, ela p o d e deter o f luxo constante das tr ivial idades,
r omper a normal idade e satisfazer o anseio imorta l de bele
za durante o m o m e n t o de u m a l igação fugaz do eterno com
o atual.
A beleza eierna revela-se apenas sob o disfarce dos cos
tumes de época. Benjamin irá se referir ma i s tarde a essa
característ ica c o m a expressão " i m a g e m dialét ica". A obra
de arte m o d e r n a encontra-se sob o signo da un ião do autên
tico com o efêmero. Esse caráter de atual idade justif ica tam
b é m a af in idade da arte c o m a moda , c o m o novo, c o m o
pon to de vista do ocioso, do gênio ass im c o m o da criança,
que não d i spõem da pro teção const i tuída por formas de per
cepção convencionais e por isso são ab andonados ; sem defe
sa aos a taques da beleza e dos es t ímulos t ranscendentes ,
ocul tos naqui lo que há de mais cot idiano. O papel do dândi
consis te então em colocar na ofensiva, de m o d o esnobe, esse
t ipo de extracot idianeidade que ele exper imenta , em man i
festá-la com me ios p rovoca t ivos 2 2 . O dândi combina o ócio
e a moda c o m o prazer de provocar espanto , sem nunca ele
m e s m o ficar espantado . E o especial ista do prazer fugaz do
momento , do qual aflora o novo: "Ele busca esse algo, ao qual
se permit i rá chamar de Modern idade ; pois não me ocorre
melhor palavra para exprimir a idéia em questão. Trata-se,
para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poét ico
no his tór ico, de extrair o e te rno do t rans i tó r io . " 2 3
Walter Benjamin re toma esse motivo para tentar en
contrar u m a solução para o problema paradoxal de c o m o
obter cri térios próprios va lendo-se da cont ingência de u m a
22. "Todos participam do m e s m o caráter de oposição e revolta, todos
são representantes do que há de melhor no orgulho humano , dessa necessida
de, muito rata nos homens de nosso tempo, de combater e destruir a trivialida-
de . " BAUDELAIRE, Ges. Schrijien, vol. IV, p. 302; trad., p. 5 1 .
23 . B A U D E L A I R E , Ges. Schrífien, vol. IV, p. 284; tracf?p. 24.
í
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 17
modern idade que se tornou eminentemente transitória. En
quanto Baudela i re se contentara com a idéia de que a cons
telação de t empo e eternidade se realiza na obra de arte au
têntica, Benjamin quer retraduzir essa experiência estética
fundamental em u m a relação histórica. Constrói o concei to
de " tempo-presen te" (Jetztzeif), em que se deposi taram os
fragmentos de um tempo mess iânico ou acabado, c o m a
ajuda do t ema da mímesis, que se tornou, por ass im dizer,
tênue e que fora pressent ido nos fenômenos da moda : "A
Revolução Francesa se via como u m a R o m a ressurreta. Ela
citava a R o m a ant iga como a moda cita um vestuár io anti
go. A m o d a tem um faro para o atual, onde quer que ele es
teja na folhagem do ant igamente . Ela é um salto de tigre em
direção ao passado . ... O m e s m o salto, s o b o livre céu da
história, é o salto dialético da Revolução , como o concebeu
M a r x . " 2 4 Benjamin não se rebela apenas contra a empresta
da normat iv idade de uma compreensão da história que re
sulta da imitação de modelos "passados; ele luta igualmente
contra aquelas duas concepções que , já no terreno da com
preensão rnoderna da história, in te r rompem e neutra l izam a
provocação do novo e do absolu tamente inesperado. Ele se
volta, por um lado, contra a idéia de um tempo homogêneo
e vazio, preenchido pela "obst inada fé no progresso" do evo-
lucionismo e da filosofia da história, mas também, por outro,
contra aquela neutra l ização de todos os critérios que o his-
tor ic ismo opera quando encerra a história em um museu e
desfia "entre os dedos os acontecimentos , como as contas de
um rosá r io" 2 5 . O mode lo é Robespierre, que, citando a R o m a
antiga, invocou um passado correspondente, car regado de
24. BENJAMIN, W. "Über den Begriff der Geschichte". In: Ces. Schriften,
vol. I, 2, p. 701 . Trad., "Sobre o conceito da história". In: Obras escolhidas.
São Paulo, Brasiliense, vol. I, p. 230.
25 . Ibid., p. 704; trad., p. 232.
18 JÜRGEN HABERMAS
t empo-presente , para romper o continuum inerte da história.
Ass im como ele tenta deter o curso inerte da história por
meio de um choque produzido de manei ra surrealista, a mo
dern idade di luida em atual idade tem de colher sua normat i -
vidade das imagens refletidas de passados incitados, tão logo
alcance a autenticidade de um tempo-presente . Estes não se
rão mais percebidos como passados or ig inar iamente exem
plares. O mode lo baudela i r iano do cr iador de mo d a focali
za antes a criatividade que opõe ao ideal estético de imitação
dos mode los clássicos o ato do pressent imento clarividentc
de tais cor respondências .
Excurso sobre
as teses de filosofia da história de Benjamin
N ã o é fácil classificar a consciência do t empo expres
sa nas teses benjaminianas de filosofia da h i s tó r i a 2 0 . Incon
fundíveis são as experiências surrealistas e os motivos da
míst ica j uda ica que es tabe lecem uma pecul iar al iança com
o concei to de " tempo-presen te" . Dessas duas fontes se ali
menta aquela idéia de que o instante autênt ico de um presen
te inovador interrompe o continuum da história e se desprende
de seu curso homogêneo . Tal como ocorre na unif icação
míst ica com a chegada do Mess ias , a i luminação profana do
choque força a u m a suspensão , a u m a cristal ização do acon
tecer m o m e n t â n e o . Para Benjamin não se trata apenas da
renovação enfática de u m a consciência para a qual "cada se
gundo é a por ta estreita pela qual podia penetrar o Mess i a s "
(tese 18). Pelo contrário, Benjamin inverte a or ientação ra
dical para o futuro, que em geral caracteriza a época moder-
26. In: Ges. Sclvifien, vol. I, 2; trad., pp. 222 ss.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE
na, sobre o eixo do " t empo-presen te" , a tal ponto que ela é
transferida para u m a orientação, a inda mais radical, para o
passado . A expectat iva do novo no futuro só se cumpre por
m e i o da reminiscência de um passado opr imido. Benjamin
entende o sinal de u m a suspensão messiânica do acontecer
c o m o " u m a opor tun idade revolucionária de lutar por um
passado o p r i m i d o " (Tese 17). ,
No quadro de suas invest igações sobre a história dos
concei tos , R. Kosel leck caracter izou a consciência moderna
do t empo , entre outros modos , median te a diferença cres
cente entre o " c a m p o de experiência"-e o "hor izonte de ex
pectativa": "Segundo minha tese, amplia-se progressivamen
te na época m o d e r n a a diferença entre experiência e expec
tativa; mais prec isamente , a época moderna só se deixa
compreender c o m o um tempo novo desde o m o m e n t o em
que as expectat ivas c o m e ç a m a se afastar cada vez mais de
todas as exper iências feitas até e n t ã o . " 2 7 A específ ica orien
tação para o futuro da época m o d e r n a só se forma na med i
da em que a mode rn i zação social escancara o c a m p o de
exper iência de m u n d o s da vida de expressão rural e artesa-
nal, próprio da velha Europa^ o mobil iza e desvaloriza c o m o
diretriz que regula as expectat ivas. O lugar dessas experiên
cias legadas pelas gerações precedentes é ocupado então por
aquela experiência do progresso , que confere ao hor izonte
de expectativa, até ai ancorado com firmeza no passado, u m a
"qual idade histórica nova, que s empre pode ser encober ta
pela u t o p i a " 2 8 .
Sem dúvida, Kosel leck desconhece o fato de que o con
ceito de progresso serviu não apenas para a secular ização
de esperanças escatológicas e a abertura utópica do horizon-
27. KOSELLECK, R. "Erfahrungsraum urid Erwartungshorizont" (Campo
dc experiência e horizonte de expectat iva") In: KOSELLECK, 1979, p. 359.
28. K O S E L L E C K . R, 1979, p , 363.
20 JÜRGEN HABERMAS
te de expectat ivas, mas t a m b é m para mais u m a vez obstruir,
c o m o auxí l io de cons t ruções teleológicas da história, o fu
turo visto c o m o fonte de inquietude. A polêmica de Benja
min contra o n ive lamento da apreensão que o mater ia l i smo
histórico faz da história, em termos de teoria da evolução so
cial, dir ige-se a uma tal degeneraçào da consciência de tem
po da modern idade , aber ta ao futuro. Onde o progresso coa
gula, t omando-se no rma histórica, é e l iminada da relação do
presente c o m o futuro a qual idade do novo, a ênfase no co
m e ç o imprevisível . Nesse sentido, para Benjamin o histori-
c i smo é meramen te um equivalente funcional da filosofia
dairhistória. O histor iador empát ico e que compreende tudo
reúne a massa de fatos, isto é, o curso objetivado da história
em uma s imul tane idade ideal, para preencher desse modo
"o t empo vazio e homogêneo" . A relação do presente com o
futuro é ass im privada de toda relevância para a compreen
são do passado: "O materialista histórico não pode renunciar
ao concei to de um presente que não é t ransição, mas pára
no t empo e se imobil iza. Porque esse concei to def ine exata
mente aquele presente em que ele m e s m o escreve a história.
O historicista apresenta a imagem 'e terna ' do passado, o ma
terialista histórico faz desse passado uma experiência única"
(Tese 16),
Veremos que a consciência moderna do tempo, à medi
da que se articula em documentos li terários, sempre volta a
se afrouxar, e que sua vital idade é con t inuamente renovada
por um pensamento radica lmente histórico: dos jovens he-
gelianos até Heideggcr, passando por Nietzsche e Yorck von
Warthenburg . O m e s m o impulso de te rmina as teses de Ben
j amin ; se rvem à renovação da consciência moderna do tem
po. Mas Benjamin sentia-se insatisfeito c o m a variante "do
pensamen to histórico que até então era cons iderado radical.
O pensamento radicalmente histórico pode se caracterizar pela
idéia de história da recepção (Wirkungsgeschichte). Nietzsche
I
O DISCURSO FJL O SÓ FICO DA MODERNIDA DE' 2 1
deu-lhe o n o m e de consideração crítica da história. O Marx
do 18 Brumário pra t icou esse t ipo de pensamento histórico,
o Heidegger de Ser e tempo ontologizou-o. De fato, r eco
nhece-se ainda algo de evidente m e s m o na estrutura coagu
lada no existencial da his tor icidade: aberto ao futuro, o ho
rizonte de expectat ivas de terminadas pelo presente coman
da nossa apreensão do passado . Ao nos apropr ia rmos de
experiências passadas para a or ientação no futuro, o autên
t ico presente se preserva c o m o local de prosseguimento da
tradição e da inovação, visto que uma não é possível sem a
outra, e ambas se a m a l g a m a m na objetividade de um con
texto his tór ico-recept ivo.
Ora, há diferentes versões dessa idéia de história da re
cepção, segundo o grau de cont inuidade e descont inuidade
a ser garantido ou produzido: u m a versão conservadora (Ga-
damer) , uma conservadora-revolucionária (Freyer) e uma re
volucionária (Korsch) . Porém o olhar or ientado para o futu
ro dirige-se sempre do presente para um passado que está
l igado, enquanto pré-história, a nosso respectivo presente ,
como por meio da corrente de um dest ino universal. Para
essa consciência , dois m o m e n t o s são consti tutivos: de um
lado, o arco his tór ico-recept ivo de um acontecer cont ínuo
da tradição, no qual m e s m o o ato revolucionário é assenta
do; e, de outro, a p r e d o m i n â n c i a do horizonte de expectati
vas sobre o potencial de experiências históricas que pode
ser apropriado.
Benjamin não discute expl ic i tamente essa consciência
histórico-receptiva. Mas seus textos pe rmi tem concluir que
ele desconfia igualmente tanto do tesouro dos bens culturais
legados, que devem passar a ser posse do presente , como
também da ass imetr ia da relação entre as at ividades apro-
priadoras de um presente or ientado para o futuro e os obje
tos apropriados do passado. Em virtude disso, Benjamin pro
põe uma drástica inversão entre o horizonte de expectativa
22 JÜRGEN HABERMAS
e o campo de experiência. Atr ibui a todas as épocas passa
das um hor izonte de expectat ivas insatisfeitas, e ao presen
te or ientado para o futuro des igna a tarefa de reviver na re-
miniscência um passado que cada vez lhe seja corresponden
te, de tal m o d o que pos samos satisfazer suas expectativas
com nossa débil força messiânica. De acordo com essa inver
são, dois pensamentos p o d e m se combinar : a convicção de
que a continuidade dos contextos de tradição é instituída tan
to pela barbárie quanto pela cu l tu ra 2 9 , e a idéia de que cada
geração do presente carrega a responsabi l idade não apenas
pelo destino das gerações futuras, mas t a m b é m pelo destino,
sofrido na inocência, das gerações passadas. Essa necessidade
de redenção das épocas passadas , que man tém suas expec
tativas apontadas para nós , lembra aquela representação, fa
miliar às míst icas j uda i ca e protestante, da responsabi l idade
do homem pelo destino de um deus que, no ato da criação, re
nunciou à sua onipotência em benefício da l iberdade do ho
m e m , tornando-a igual à sua.
Mas essas corre lações com a história das idéias não
expl icam mui to . O que Benjamin tem em men te é a idéia al
tamente profana de que o universal ismo ético t ambém tem
de levar a sério as injustiças já sucedidas e, evidentemente ,
irreversíveis; de que há u m a solidariedade das gerações com
seus antepassados , c o m todos aqueles que foram feridos
pela mão do homem em sua integridade física e pessoal; e de
que essa sol idar iedade apenas pela reminiscência pode ser
efetuada e comprovada. A força l ibertadora da rernemora-
ção não deve servir aqui , c o m o desde Hegel até Freud, para
dissipar o poder do passado sobre o presente , mas para dis-
29. "Nunca houve um monumen to da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie. E, assim como a cultura não está isenta de barbárie,
não o é, tampouco, o processo de transmissão da cul tura" (Tese 7).
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 23
sipar a culpa do presente para com o passado: " U m a vez que
irrecuperável é u m a imagem do passado que ameaça desa
parecer com cada instante presente que não se reconhece
visado por ela" (Tese 5).
No contexto dessa primeira lição, esse excurso deve
mostrar c o m o Benjamin entretece mot ivos de procedênc ias
inteiramente diversas, a fim de radical izar mais u m a vez a
consciência histórico-receptiva. O desacop lamento entre o
horizonte de expectat ivas e o potencial de experiência t rans
mit ido possibili ta an tes de tudo, c o m o mostra Kosel leck, a
oposição entre um t e m p o novo, que vive com seus própr ios
direitos, e aquelas épocas passada?» com as quais a era m o
derna rompeu. C o m isso se alterou espec i f icamente a cons
telação do presente na relação com o passado e o futuro. Por
um lado, sob a p ressão dos p rob lemas que afluem do futu
ro, um presente convocado para a a t ividade his tor icamente
responsável p redomina sobre um passado de que se apropria
por interesse própr io ; por outro, um presente que se tornou
s implesmente t ransi tór io se vê p res tando contas por suas in
tervenções e omissões ante o futuro. Ora, quando Benjamin
estende essa responsabil idade orientada para o futuro às épo
cas passadas , aquela cons te lação se altera outra vez: agora a
relação ex t remamente tensa com as alternativas do futuro,
em princípio aber tas , tange de imediato a relação c o m um
passado que é, por sua vez, mobi l i zado pelas expectat ivas.
A pressão dos p rob lemas do futuro intensifica-se j u n t a m e n
te com aquela do futuro que passou (e não se real izou). Ao
m e s m o tempo , po rém, o narcis ismo ocul to da consciência
histórico-receptiva é corr igido por esse movimento de rota
ção. Não mais apenas as gerações futuras, mas t a m b é m as
passadas podem reivindicar a débil força mess iânica da ge
ração presente . A reparação anamnés ica de uma injustiça,
que de fato não pode ser desfeita, mas ao menos reconciliada
— vir tualmente pela reminiscencia , integra o presente no con-
24 JÜRGEN HABERMAS
texto comunica t ivo de uma sol idar iedade histórica univer
sal. Essa anamnese consti tui o contrapeso descentra l izador
em face da per igosa concent ração da responsabi l idade com
a qual a consciência moderna do tempo, voltada apenas para
o futuro, sobrecarregou um presente problemático: que cons
titui, por assim dizer, o nó de uma t r a m a 3 0 .
III
Hegel foi o pr imeiro a tomar c o m o problema filosófico
o processo pelo qual a modern idade se desliga das sugestões
normat ivas do passado que lhe são es t ranhas . Cer tamente ,
na linha de uma crítica da tradição que inclui as experiên
cias da Reforma e do Renasc imen to e reage aos começos da
ciência natural moderna , a filosofia dos novos t empos , da
escolást ica tardia até Kant , já expressa a au tocompreensão
da modern idade . Porém apenas no final do século XVIII o
problema da autocertificação da modernidade se aguçou a
tal pon to que Hegel pôde perceber essa ques tão como p ro
b lema filosófico e, com efeito, como o problema fundamen
tal de sua filosofia. O fato de u m a m o d e r n i d a d e sem m o d e
los ter de estabil izar-se c o m base nas cisões por ela m e s m a
produzidas causa u m a inquietude que Hege l concebe c o m o
"a fonte da necess idade da f i losof ia" 3 1 . Q u a n d o a modern i -
30. Cf. o estudo de P E U K E R T , H. "Aporie anamnetischer Solidaritat"
(Aporia da solidariedade anamnésíca) . In: Wissenêçhaftstheorie, Handhmgs-
theorie, Fundamentale Theologie (Teoria cia ciência, teoria da ação, teologia
fundamental). Düsseldorf, 1976, pp . 273 ss. E t ambém minha réplica a H.
Ot tmann, in; H A B E R M A S , J. Vorstudien undErgànzungcn zur Theorie des kom-
munikativen Handelns (Estudos prévios e complementos para a teoria da
ação comunicalivu). Frankfurt am Main, 1984, pp. 514 ss.
3 1 . H., vol. II, p. 20.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 25
dade desperta para a consciência de si mesma, surge uma ne
cessidade de autocer t i f icação, que Hegel entende c o m o a
necessidade da filosofia. Ele vê a filosofia diante da tarefa
de apreender em pensamento o seu t empo, que, para ele, são
os tempos modernos . Hegel está convencido de que não é
possível obter o concei to que a fi losofia forma de si m e s m a
independentemente do concei to fi losófico da modern idade .
Antes de tudo , Hegel descobre o princípio dos novos
tempos: a subjetividade. Valendo-se desse princípio explica
s imul taneamente a superior idade do mundo m o d e r n o e sua
tendência à crise: ele faz a experiência de si m e s m o c o m o o
mundo do progresso e ao m e s m o tempo do espírito al ienado.
Por isso, a primeira tentativa de levar a modernidade ao nível
do concei to é or ig inalmente uma crítica da modern idade .
De m o d o geral, Hegel vê os t empos modernos caracte
r izados por u m a estrutura de auto-relação que ele denomina
subjet ividade: "O pr incípio do m u n d o moderno é em geral
a l iberdade da subjet ividade, princípio segundo o qual todos
os aspectos essenciais presentes na totalidade espiritual se
desenvolvem para alcançar o seu d i re i to ." 3 2 Quando Hegel
caracteriza a fisionomia dos novos tempos (ou do mundo m o
derno) , e lucida a "subje t iv idade" por meio da " l ibe rdade" e
da "ref lexão": "A grandeza de nosso t empo é o reconheci
mento da l iberdade, a propr iedade do espírito pela qual este
está em si consigo m e s m o . " 3 3 Nesse contexto a expressão
subjetividade compor ta sobretudo quatro conotações: a) in
dividualismo: no m u n d o moderno , a singularidade infinita
mente particular pode fazer valer suas p re tensões 3 4 ; b) direi
to de crítica: o princípio do mundo moderno exige que aqui-
of
32. H., vol. VII, p. 439, mais documentação no art. "Moderne Wel t" (O
mundo moderno) , Obras , vol. de Índices, pp. 417 ss.
33. H., vol. XX, p. 329'. 1 34. H., vol. VII, p. 311 .
26 JÜRGES HABERMAS
lo que deve ser reconhecido por todos se mostre a cada um
c o m o algo l eg í t imo 3 5 ; c) autonomia da ação: é próprio dos
t empos modernos que que i ramos responder pelo que faze
m o s 3 6 ; d) por fim, a p r ó p r i a ^ / o s q / i a idealista: Hegel consi
dera como obra dos tempos modernos que a filosofia apreen
da a idéia que se sabe a si m e s m a 3 7 .
Os acontecimentos-chave históricos para o estabeleci
men to do princípio da subjet ividade são a Reforma, o Ilu-
minismo e a Revolução Francesa. C o m Lutero , a fé religio
sa tornou-se reflexiva; na sol idão da subjet ividade, o inundo
divino se t ransformou em algo posto por n ó s 3 8 . Contra a fé
na autoridade da predicação e da t radição, o protestant ismo
af i rma a soberania do sujeito que faz valer seu discerni
men to : a hóstia não é mais que farinha, as relíquias não são
mais que o s s o s 3 9 . Depois , a Declaração dos Direi tos do H o
m e m e o Código Napoleônico realçaram o princípio da liber
dade da vontade c o m o o fundamento substancial do Estado,
em detr imento do direito histórico: "Cons iderou-se o direi
to e a eticidade c o m o fundados no solo presente da vontade
do h o m e m , já que outrora exist iam apenas c o m o manda
mento de Deus, imposto de fora, escrito no Ant igo e no Novo
Testamento, ou presentes na forma de um diüeito especial em
velhos pergaminhos, enquanto privilégios, ou em tratados." 4 ' 0
A l é m disso, o princípio da subjet ividade determina as
manifestações da cultura moderna . Pr imei ramente , isso vale
para a ciência objetivante que , ao m e s m o tempo , desencan
ta a natureza e liberta o sujeito eognoscente : "Assim todos
35. H., vol. VII, p . 485 .
36. H., vol. XVIII , p. 493
37. H., vol. XX, p . 458.
38. H., vol. XVI, p . 349.
39. H„ vol. XII, p. 522.
40. Ibid.
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 27
os mi lagres foram contes tados; pois a natureza é agora um
sistema de leis conhecidas e reconhecidas , no qual o h o m e m
está em casa, e só é cons iderado onde ele se sente em casa;
ele é livre pe lo conhec imen to da na tureza . " 4 1 Os conceitos
morais dos t e m p o s m o d e r n o s são ta lhados para reconhecer
a l iberdade subjetiva dos indivíduos. Fundam-se , por um
lado, no direi to do indivíduo de discernir como válido o que
ele deve fazer; por outro, fundam-se na exigência de que
cada um pers iga os fins do bem-es ta r part icular em conso
nância com o bem-es ta r de todos os outros . A vontade sub
jet iva ganha au tonomia sob leis universais ; mas "só na von
tade, enquan to subjetiva, pode a l iberdade, ou a vontade que
é em si, ser e fe t iva" 4 2 . A arte moderna revela a sua essência
no roman t i smo ; a forma e o conteúdo da arte românt ica são
de te rminados pela absoluta interioridade. Levada ao con
ceito por Fr iedr ich Schlegel , a ironia divina espelha a expe
riência de si de um eu descent rado, "para o qual todos os
laços es tão rompidos e que somente quer viver na felicida
de que o gozo de si m e s m o p ropo rc iona" 4 3 . A auto-real iza-
ção expressiva torna-se o princípio de uma arte que se apre
senta c o m o forma de vida: "Porém, segundo este pr incípio,
eu só vivo c o m o artista se toda minha ação e exter ior ização
... pe rmanece rem para m i m apenas c o m o aparência e assu
mirem uma forma que fique totalmente sob meu poder . " 1 4
A real idade efetiva somente alcança a expressão artística na
refraçâo subjetiva da a lma sent imental : ela é "uma mera
aparência por me io do Eu".
Na mode rn idade , por tanto , a vida religiosa, o Es tado e
a sociedade , ass im c o m o a ciência, a moral e a arte transfor-
4 1 . Ibiil.
42. H., vol. VII, p. 204.
43 . H., vol. XIII, p. 95 .
44. H., vol. XIII, p. 94.
28 JURGEN HABERMAS
mam-se igualmente em personif icações do princípio da sub-
j e t i v i d a d e 4 5 . Sua estrutura é apreendida enquanto tal na fi
losofia, a saber, como subjet ividade abstrata no cogito ergo
sum de Descar tes e na f igura da consciência de si absoluta
em Kant. Trata-se da estruUira da auto-relação do sujeito cog-
noscente que se dobra sobre si m e s m o enquanto objeto para
se compreender c o m o em uma imagem especular, jus tamen
te de m o d o "especula t ivo" . Kant t oma essa abordagem da
filosofia da reíle.xão c o m o base de suas três "Crí t icas" . Ele
faz da razão o supremo tribunal ante o qual deve se just i f i
car tudo aquilo que em princípio reivindica val idade.
C o m a análise dos fundamentos do conhec imento , a
crítica da razão pura a s sume a tarefa, de criticar o mau uso
de nossa faculdade de conhecimento, , talhada para a relação
com fenômenos . Kant substitui o conceito; substancial de ra
zão da t radição metafís ica pelo concei to de u m a razão cin
dida em seus m o m e n t o s , cuja unidade não tem mais que um
caráter formal. Ele separa do conhec imento teórico as fa
culdades da razão prática e do juízo e assenta cada uma delas
sobre seus próprios fundamentos . Ao fundar a possibi l idade
do conhec imento objetivo, do discernimento mora l e da ava
liação estética, a razão crítica não só assegura suas próprias
faculdades subjetivas e torna t r a n s p a r e n t e ^ arquitetônica da
•íazão, mas t a m b é m as sume o papel de um ju iz supremo pe -
45 . Cf. o resumo no § 124 da Filosofia do direito: "O direito da liber
dade subjetiva constitui o ponto central e crítico que marca a diferença entre a
Ant igüidade e os tempos modernos . Esse direito, em sua infinitúde, é pronun
ciado no cristianismo e converteu-se em princípio universal e efetivo de uma nova
forma do mundo. Fazem parte de suas configurações mais próximas o amor, o
romant i smo, a meta da eterna felicidade do indivíduo e t c , em seguida a m o
ralidade e a boa consciência, depois outras formas que se destacam em parte
como princípios da sociedade civil e como momen tos da constituição política,
que, em parte, se apresentam de um modo geral na história, part icularmente na
história da arte, da ciência e da filosofia" (H., vol. VII, p. 233).
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 29
rante o todo da cultura. C o m o dirá mais tarde Emil Lask, a
filosofia delimita, a partir de pontos de vista exc lus ivamen
te formais, as esferas culturais de valor enquanto ciência e
técnica, direito e moral , arte e crítica de arte, legi t imando-as
no interior desses l imi te s 4 6 .
Até o final do século XVIII , a ciência, a moral e a arte di
ferenciaram-se institucionalmente também como áreas de ati
vidade em que questões de verdade, de just iça e de gosto são
examinadas de m o d o au tônomo, isto é, sob seus aspectos es
pecíf icos de val idade. Por um lado, essa esfera do saber se
isolara tota lmente da esfera da fé e, por outro, das relações
sociais ju r id icamente organizadas assim c o m o do convívio
cotidiano. Nesses âmbi tos reconhecemos prec i samente as
esferas que Hegel compreenderá mais tarde c o m o expres
sões do princípio da subjetividade. Na med ida em que a
reflexão t ranscendental , na qual o princípio da subjetivida
de se apresenta, por assim dizer, em sua nudez , reivindica
ao m e s m o tempo competência jur íd ica perante essas esferas,
Hegel vê na filosofia kantiana a essência do mundo moder
no concentrada c o m o em um foco.
IV
Kant expressa o m u n d o m o d e r n o em um edifício de
pensamentos . De fato, isto significa apenas que na filosofia
kantiana os t raços essenciais da época se refletem como em
um espelho, sem que Kant t ivesse conceitifado a modern i
dade enquanto tal. Só median te u m a visão retrospectiva He
gel pode entender a filosofia de Kant c o m o auto-interpreta
ção decisiva da modernidade . Hegel visa conhecer também o
46. E. Kant, Critica da razão pura, B 779.
30 JÜRGEN HABERMAS
que restou de impensado nessa expressão mais refletida da
época: Kant não considera como cisõcs as diferenciações
no interior da razão, n e m as divisões formais no interior da
cultura, n e m em geral a dissociação dessas esferas. Por esse
motivo, Kant ignora a necess idade que se manifesta c o m as
separações impostas pelo princípio da subjetividade. Essa ne
cessidade se impõe à filosofia assim que a modern idade se
concebe c o m o uma época histórica, ass im que toma cons
ciência da ruptura com os passados exemplares e da neces
sidade de haurir de si m e s m a tudo que é normat ivo , enquan
to problemas históricos. Coloca-se então a questão de saber
se o princípio da subjet ividade e a estrutura de consciência
de si que lhe é imanente são suficientes c o m o fonte de orien
tações normativas, se bastam para "fundar" não apenas a ciên
cia, a moral e a arte, de um m o d o geral, mas ainda estabilizar
u m a formação histórica que se desligou de todos os com
promissos históricos. Agora a questão é saber se da subjeti
vidade e da consciência de si podem obter-se critérios pró
prios ao mundo moderno e que , ao m e s m o tempo, sirvam
para se orientar nele; mas isso significa t ambém que possam
ser aptos para a crítica de u m a modernidade em conflito con
sigo mesma. Como é possível construir, part indo do espírito
da modernidade, uma forma ideal interna que não se limite a
imitar as múltiplas manifestações históricas da modern idade
nem lhes seja exterior?
Posta a questão desse modo, a subjetividade se revela um
principio unilateral. C o m efeito, este possui orna força iné
dita para gerar uma formação da l iberdade subjetiva e da
reflexão e minar a religião, que até então se apresentava c o m o ,
o poder unif icador por excelência. Mas esse m e s m o princí
pio não tem força suficiente para regenerar no médium da
razão o poder unif icador da religião. A orgulhosa cultura
reflexiva do I luminismo rompeu com a rel igião e "a pôs ao
O DISCURSO FILOSÓFICO DA A10 DE RN IDA DE& 3 1
lado de si ou se pôs ao lado d e l a " 4 7 . O reba ixamento da reli
gião conduz a uma dissociação entre fé e saber que o Ilu-
m i n i s m o não é capaz de superar por me io de suas própr ias
forças. Por isso aparece na Fenomenológia do espirito sob
0 t í tulo de m u n d o do espíri to a l ienado de s i 4 8 : "Quan to mais
progr ide a formação , ma i s diverso é o desenvolv imento das
manifestações vitais em que a cisão pode se entrelaçar, maior
é o pode r da cisão ••• è mais ins ignif icantes e es t ranhos ao
todo da formação são" os esforços da vida (outrora a cargo
da rel igião) para se reproduzi r em h a r m o n i a . " 4 0
Essa frase p rovém de um escri to po lêmico contra
Reinhold, o chamado Differenzschrift, de 1801, em que Hegel
concebe a ha rmonia di lacerada da vida c o m o sendo o desa
fio prá t ico e a necess idade da f i losof ia 5 0 . A circunstância
de que a consciência do t empo se des tacou da tota l idade e o
espíri to se al ienou de seu si consti tui para ele j u s t amen te
um pressupos to do filosofar con temporâneo . Outro pressu
posto necessár io sobre o qual a f i losofia pode empreender
sua tarefa é, para Hegel , o concei to de absoluto, t omado de
emprés t imo inic ia lmente de Schel l ing. C o m ele, a filosofia
pode assegurar de an t emão a meta de apresentar a razão co
mo o pode r unif icador. A razão deve cer tamente superar o
estado de cisão em que o pr incípio da subjet ividade arre
messara não só a própr ia razão imís* t a m b é m "o s is tema in
teiro das relações vitais". C o m sua crítica, dirigida diretamen-
47. H„ vol. II, p. 23 .
48 . H., vol. III, pp. 362 ss.
49 . H„ vol. II, p. 22 .
50. " Q u a n d o o poder de unificação desaparece da vida do homem, e as
antíteses perdem sua relação vital e reciprocidade e ganham independência,
origina-se a necessidade da filosofia. Até aqui esta necessidade foi uma con
tingência; porém, sob a cisão dada, é a tentativa necessária de superar a oposi
ção entre subjetividade e objetividade fixas e de conceber como um devir o
ser-que-deveio do mundo intelectual e rea l" (H. , vol. II, p. 22).
32 i JÜRGEN HABERMAS
te aos sistemas f i losóficos de Kant e Fichte, Hege l quer, ao
m e s m o tempo, encont rar a au tocompreensão da modernida
de que neles se expr ime. Ao criticar as oposições filosóficas
entre natureza e espírito, sensibilidade e entendimento, enten-
d mejito e razão, razão prática e razão teórica, j u í zo e imagi
nação , eu e não-eu, finito e infini to, saber e fé, Hegel pre
tende responder à crise que está na cisão; da própr ia vida. De
out ro modo, a crítica filosófica não se poder ia propor a sa
tisfação da necessidade que a suscitou objetivamente. A críti
ca ao ideal ismo subjetivo é, ao m e s m o , t e m p o , a crítica de
uma modernidade que só por esse caminho pode se certificar
do seu conceito e, c o m isso, estabil izar-se sobre si mesma.
Para isso, a crítica não pode nem deve se servir de outro ins
t rumen to senão daquela reflexão na qual reconhece a mais
pura expressão do princípio dos novos tempos*1. Sé a moder
n idade deve se fundar por seus próprios m e i o s , então Hegel
tem de desenvolver o concei to crítico de modern idade , par
t indo de uma dialética imanente ao próprio pr incípio do es
c larec imento .
Veremos comoJHegel executa esse programa e, com isso,
enreda-se em um dilema. U m a vez efetuada a dialética do
esc larec imento , o impulso para a crítica do t e m p o presente
se esgotará, impulso que, entretanto, a co locou em movi
men to . De início, é preciso mos t ra r o que se oculta naquela
"an tecâmara da f i losofia", em que Hegel a comoda "o pres
supos to do abso lu to" . Os mot ivos da fi losofia da unif icação
r e m o n t a m às exper iências de crise do j o v e m Hegel . Elas
estão atrás da convicção de que a razão pode ser convocada,
enquanto puder reconciliador, contra as posit ividades da épo-r c a di lacerada. No entanto , a versão mito-poét ica de uma re
conci l iação da mode rn idade , que Hegel par t i lha inicialmen-
5 1 . H., vol. II. pp. 25 ss.
1
O DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE 33
te com Hõlder l in e Schell ing, pe rmanece ainda presa aos
passados exemplares do crist ianismo primitivo e da Ant igüi
dade. Somente durante o per íodo de Jena, Hegel consegue ,
com o seu própr io concei to de saber absoluto, uma pos ição
que lhe permi te ultrapassar os produtos do esc larec imento -
arte romântica, religião racional e sociedade burguesa -, sem se
orientar por mode los estranhos. C o m esse concei to de abso
luto, Hegel retrocede, todavia, em relação às intuições de j u
ventude: pensa em superar a subjetividade dentro dos l imi
tes da filosofia do sujeito. Disso resulta o dilema de ter de ne
gar afinal à autocompreensão moderna a possibilidade de u m a
crítica da modern idade . A crítica à subjetividade dilatada em
potência absoluta t ransforma-se i ronicamente em repreen
são do filósofo à estreiteza de espírito dos sujeitos, que ainda
não compreende ram sua filosofia nem o curso da história.