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O DIREITO DA UNIÃO EUROPÉIA: Autonomia e princípios.
Fernando Horta Tavares1
Resumo: O Direito da União Européia vem sendo construído desde o Tratado pioneiro de Paris, em 1951, por intermédio de um processo de integração democrático entre os países que compõe a Comunidade Européia, com finalidades, conceitos e dos princípios que lhe são característicos (aplicabilidade direta, efeito imediato, primado, autonomia, primazia e subsidiariedade) não guardam relação com nenhum modelo estatal histórico anterior, tampouco com o Direito Internacional. Este Direito inovador daí surgido representa um marco paradigmático nesta quadra de vivência, que é a da pós-modernidade.
Palavras chaves: Direito Comunitário – União Européia – Tribunal de Justiça das Comunidades Européias - Mercosul
1 INTRODUÇÃO
Em breve o Tratado de Roma que fundou a Comunidade Econômica Européia
(CEE), que se transformou na atual União Européia (EU) com o Tratado de Maastrich de
1992 completará 50 anos. Durante esse meio século de existência a aliança dos países comuns
europeus estabeleceu seus fundamentos, expandiu suas forças, ultrapassou desafios e passa,
ainda, por crises tão gigantescas quanto seu projeto constitucional de proporcionar aos
cidadãos dos atuais vinte e sete (27) Estados-Membros um espaço de liberdade, segurança e
justiça sem fronteiras internas, um mercado interno livre em uma sociedade caracterizada pelo
pluralismo, pela não-discriminação, pela tolerância, a solidariedade e a igualdade entre
1 Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da PUCMINAS e FUMEC. Advogado.
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homens e mulheres. Estes desafios podem ser resumidos pelo sentido dado ao lema da União:
“Unida na diversidade”.
Próximo da data comemorativa, já se levantam vozes contundentes ressaltando os
aspectos mais efervescentes do momento atual por que passa a Comunidade, em especial o
descontentamento da França e Holanda que lançaram um sonoro “não” ao Tratado que
estabelece uma Constituição para a Europa, embora, por outro lado, povos de diversos outros
Estados-Membros já o tivessem ratificado.
Em função do cinqüentenário que se aproxima, optamos por destinar a leitura de
nossos alunos um breve ensaio, que representasse mais uma apresentação dos aspectos
concernentes aos princípios norteadores desse direito inovador, que é o Direito Comunitário,
do que qualquer opinião sobre o mérito das noticiadas e anunciadas crises, o que reservamos
para um próximo artigo.
Tendo em mira os destinatários deste ensaio buscamos desenvolver de forma o mais
didática possível um estudo dos princípios fundamentais da Ordem Jurídica Comunitária, sua
autonomia em relação aos ordenamentos jurídicos nacionais e uma abordagem, embora
superficial, das aplicações possíveis no âmbito do MERCOSUL.
2. O PRINCÍPIO DA APLICABILIDADE DIRETA OU EFEITO IMEDIATO DO
DIREITO COMUNITÁRIO
Em 1957, em Roma, o Tratado da Comunidade Econômica Européia deu origem ao
Mercado Comum Europeu; a partir de 1992 por força do Tratado de Maastrich, e com ele, um
novo complexo jurídico, dotado de autonomia face aos países aderentes, deu surgimento ao
chamado Direito Comunitário.
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O Direito Comunitário se destina a reger as relações recíprocas dos cidadãos, das
instituições comunitárias e dos Estados membros (ARAÚJO, 1995: p. 35-49), e é integrado
por um conjunto de normas constantes dos Tratados, denominado “direito originário”, e pelas
disposições decorrentes dos atos emanados das Instituições Comunitárias, denominado
”direito derivado”.
As chamadas Normas de Direito Comunitário, compreendem assim o direito
comunitário originário, de natureza convencional-constitucional, constituído pelos tratados
constitutivos e por outras convenções internacionais e pelo direito comunitário derivado, de
natureza unilateral, a saber: os regulamentos, que são atos de caráter geral e obrigatório para
todos e diretamente aplicáveis; as diretivas, atos que vinculam o Estado-Membro destinatário
quanto ao resultado, mas deixando às instâncias nacionais a definição do meio e da forma; as
decisões, que são atos obrigatórios somente para seus destinatários e, as recomendações, os
pareceres e outros atos que não são vinculativos.
Quando se diz que um ato não é vinculativo, quer se dizer que ele não tem força
obrigatória para todas as pessoas e agentes envolvidos.
Embora emanando de uma fonte comunitária autônoma, quer dizer uma fonte
exterior ou superior aos Estados membros, a maior parte das normas comunitárias são como
tais - isto é, sem necessidade de quaisquer medidas de “nacionalização” ou “recepção” -
incorporadas na ordem jurídica interna dos Estados-membros para aí serem aplicadas pelos
chamados “Tribunais Nacionais”.
Os Tribunais Nacionais dos Estados-Membros são considerados como tribunais
comuns da ordem jurídica comunitária, e atuam em todos os casos em que da norma
comunitária resulte diretamente para qualquer pessoa um direito ou uma obrigação. Nisto
consiste o princípio da aplicabilidade direta do direito comunitário, considerado essencial pelo
Tribunal de Justiça da União Européia.
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É que o Tribunal, enunciando o princípio ao longo do tempo, o fez sob o
fundamento de que para a plena eficácia – ou efeito útil - dos Tratados Comunitários, os
agentes econômicos do mercado comum – Estados-Membros, corporações empresariais,
pequenas empresas, trabalhadores, assalariados, industriais e comerciantes, profissionais
independentes, etc... - não poderiam estar impossibilitados de invocar perante as jurisdições
nacionais as disposições dos Tratados e dos atos normativos das Instituições Comunitárias e
de fazer valer, nas suas relações recíprocas e em face dos próprios Estados, os direitos que
nesses textos jurídicos pudessem fundar.
As razões da aplicabilidade direta do direito comunitário decorrem igualmente da
jurisprudência do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (TJCE) – ou simplesmente
Tribunal de Justiça Europeu - segundo o qual, o Tratado da Comunidade Européia (CE)
instituiu uma ordem jurídica própria, concebida como instrumento de integração de Estados
participantes que, ao concluírem esse Tratado, exercitaram os seus direitos soberanos criando
um corpo de direito aplicável tanto a eles próprios – Estados-membros, quanto aos seus
cidadãos, corpo de normas que se impõe às suas jurisdições.
Veja-se, aqui a nítida diferença para com as normas de Direito Internacional
Público: qualquer tratado internacional clássico se limita a criar obrigações recíprocas entre os
Estados contratantes, não atingindo, pois, os particulares.
Em suma, para ser aplicável pelo juiz nacional a regra comunitária não precisa ser
“recebida” na ordem jurídica interna mediante qualquer outro procedimento - regido pela lei
constitucional ou ordinária - tendente a “nacionalizá-la”, transformando-a em regra de direito
interno; isto, mesmo quando o tribunal interno solicitado a fazer aplicação da norma
comunitária seja órgão de um Estado “dualista”2. Na verdade, a jurisprudência do TJCE tem
2 Dualista é a denominação teórica que entende que o direito nacional e o internacional constituem duas ordens jurídicas distintas e independentes, sendo que a validade de uma não condiciona a validade da outra. É o sistema adotado por um Estado soberano que, para incorporar um tratado internacional na sua ordem jurídica interna, requer que o Parlamento o ratifique via processo legislativo específico, resultando daí um decreto legislativo devidamente promulgado e publicado e seguindo-se à edição do decreto pelo Chefe do Executivo. É neste momento que o conteúdo do tratado internacional ingressa na ordem jurídica interna com a roupagem de norma
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insistido em proclamar que a ordem jurídica comunitária está integrada no sistema jurídico
dos Estados-membros e se impõe por si própria às respectivas jurisdições.
Campos (1994) aponta alguns casos em que as decisões do TJCE produziram efeito
direto na ordem interna dos Estados, sendo:
a) O Acórdão do TJCE que pronuncia a anulação de um ato da Autoridade Comunitária ao abrigo dos arts. 33-CECA, 173-CE e 146-EURATOM anula este ato erga omnes e produz, sem dúvida, um efeito direto e imediato na ordem interna dos Estados-membros, já que nenhuma autoridade ou jurisdição poderá, doravante, aplicar o ato anulado.
b) O Acórdão pelo qual o TJCE reconhece, na conformidade dos arts.
41-CECA, 177-CE e 150-EURATOM a invalidade de um ato da autoridade comunitária, vincula o juiz nacional “a quo” que não pode aplicar tal ato no ato concreto que é chamado a julgar.
c) O Acórdão pelo qual o TJCE faz a interpretação de uma rega de
direito comunitário no processo de apreciação da questão prejudicial de interpretação estabelecido nos arts. 177-CE e 150-EURATOM vincula o Tribunal nacional “a quo” que fica obrigado a respeitar a interpretação fornecida, aplicando-a ao julgamento de fundo da questão sub judice e
d) O Acórdão do TJCE que declara, na conformidade do art. 169-CE,
que uma disposição do direito nacional viola uma regra comunitária diretamente aplicável implica para as autoridades nacionais competentes proibição de pleno direito de aplicar a prescrição nacional incompatível com o Tratado. Não se trata, neste caso, de revogação formal das disposições internas contrárias às regras comunitárias, mas o Acórdão determina uma interdição geral, para as autoridades nacionais competentes (órgãos legislativos, governamentais ou jurisdicionais) de aplicar aquelas disposições.
Segundo Fernandez (1992: p.12-14) a aplicabilidade direta consiste na não necessidade de
transpassar ou incorporar a norma comunitária ao ordenamento nacional para que esta produza
seus efeitos no território nacional, não necessitando de atividade alguma por parte do Estado (a
exemplo dos regulamentos comunitários).
Já o efeito direto da norma comunitária, prossegue o autor, significa e implica que a
infraconstitucional, como é o caso do Brasil, segundo o comando que emerge do artigo 49 da CF/88. Em se tratando de tratados versando sobre direitos humanos, contudo, após aprovado por 3/5 dos votos dos membros das duas casas do Congresso Nacional, em dois turnos, a norma tem a estatura equivalente à de emenda constitucional (parágrafo terceiro, do artigo 5, da Constituição Brasileira).
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norma comunitária cria direitos e obrigações para os particulares – pessoas físicas ou jurídicas –
que podem ser diretamente invocadas ante os Tribunais internos do Estado-membro, seja de um
particular frente ao Estado ou uma Autoridade Comunitária (efeito direto vertical), seja entre um
particular e outro (efeito direto horizontal).
2.1 O primado do Direito Comunitário
Falar em “primado” é falar de modo a indicar a existência de hierarquia entre coisas, no
caso, entre “direitos”. Para Laureano (1997: p.48), o primado do Direito Comunitário se traduz no
“[...] princípio segundo o qual o Direito Comunitário Originário ou Derivado é hierarquicamente
superior ao Direito nacional dos Estados-membros, anterior ou posterior, de natureza
constitucional ou meramente ordinário”.
A existência dessa hierarquia do Direito Comunitário, que o coloca em plano anterior ao
direito nacional dos Estados-membros reflete no dever do juiz nacional aplicar, em questões
comunitárias, as normas do Direito Comunitário e não o seu próprio Direito quando este se
mostrar incompatível ou contrário àquele.
Vale observar que a sanção ou conseqüência da existência do primado do direito
comunitário sobre as normas internas não é a nulidade da norma jurídica nacional, mas sim a
inaplicabilidade da norma estatal dissonante.
3 AUTONOMIA DO DIREITO COMUNITÁRIO EM FACE DA ORDEM JURÍDICA
ESTATAL
Foi dito no início deste ensaio que o Tratado de Roma, ao instituir uma Comunidade
Econômica e que resultou anos mais tarde no Mercado Comum Europeu (1992), instituiu com
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ele um novo complexo jurídico, um direito inovador, dotado de autonomia face aos países
aderentes - o Direito Comunitário.
A autonomia do Direito Comunitário se apresentou como uma necessidade para o
sucesso dos objetivos perseguidos pelas Comunidades Européias, como apontados na
introdução deste artigo. E não poderia ser diferente, pois se o Direito Comunitário é que se
subordinasse às normas internas, aqueles objetivos não seriam alcançados ou o seriam depois
de muito tempo e não sem muito desgaste jurídico e político. A subordinação, entretanto, não
significa a construção arbitrária do complexo jurídico comunitário, antes, pelo contrário, a
elaboração das normas comunitárias se faz após amplas discussões entre agentes
governativos, Parlamentos Nacionais e os povos dos respectivos Estados-Membros, mediante
referendos.
Para Silva (1995:185), “a autonomia do Direito Comunitário surgiu como o
resultado de um reflexo defensivo do Tribunal de Justiça. Tratava-se, inicialmente, de
preservar a especificidade do direito das Comunidades e as ingerências dos direitos nacionais,
constituindo tal autonomia o fundamento da ordem jurídica comunitária, afirmando ser a
União uma nova ordem jurídica de direito internacional ou, mais simplesmente, uma ordem
jurídica própria”, criação, aliás, do Tratado de Roma.
Por este Tratado e pela aplicabilidade direta do direito comunitário, lembra Araújo
(1995: p.35-49), os Estados participantes limitaram os seus direitos soberanos, criando um
corpo de direito aplicável aos seus cidadãos e a eles próprios e que se impõe às suas
jurisdições. O direito comunitário é, portanto, distinto tanto da ordem jurídica internacional
como da ordem jurídica interna, apresentando-se, portanto, como um ordenamento autônomo.
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3.1 A autonomia do direito comunitário em relação à ordem jurídica internacional
O Direito Comunitário não se confunde com a ordem jurídica internacional, quer em
virtude de sua finalidade própria quer da sua origem específica, como esclarece Campos
(1994:231), acentuando que:
[...] ao contrário do que sucede com outras convenções internacionais, a finalidade dos tratados europeus é instituir não um simples sistema de coordenação de soberanias mas, antes, uma Comunidade autônoma, investida de uma autoridade institucional própria, com vista ao estabelecimento progressivo de uma ordem de subordinação das ordens jurídicas internas e dos interesses nacionais ao interesse comunitário.
Sublinhe-se que o Tribunal das Comunidades, quando da aplicação e interpretação dos
Tratados, exclui o recurso aos princípios do direito internacional geral sempre que tais
princípios lhe pareçam incompatíveis com sua natureza jurídica, a estrutura institucional ou os
objetivos da Comunidade Européia.
Destarte, enquanto os destinatários do Direito Internacional são, normalmente, apenas
os Estados, as normas de Direito Comunitário são destinadas aos Estados-membros e às
Instituições Comunitárias, mas são também, em regra, os simples particulares (indivíduos ou
empresas) sujeitos à jurisdição comunitária.
A autonomia da ordem jurídica comunitária em face do Direito Internacional Público
resulta ainda do fato de que, por um lado, as Comunidades dispõem de sistema autônomo de
produção normativa, a cargo de Instituições agindo no quadro das respectivas competências; e
por outro lado, a interpretação, a aplicação e a hierarquização das normas de Direito
Comunitário dependem quer de órgãos jurisdicionais próprios (o Tribunal de Justiça,
independente tanto dos Estados-Membros tanto das Instituições, que sujeita suas decisões),
quer das jurisdições internas que estão habilitadas a aplicar tais normas comunitárias.
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A autonomia do Direito Comunitário manifesta-se em termos radicalmente diferentes
do Direito Internacional (e também no plano interno) pela resolução de delicadas questões
pela via da aplicabilidade direta, da primazia e da interpretação da norma comunitária.
Já no que respeita a origem, Campos (1994:231) se refere a que “as fontes do direito
comunitário são não apenas os instrumentos internacionais que os Estados-membros da
Comunidade concluíram entre si, mas também os atos que a autoridade institucional está
habilitada a adotar para a boa execução dos seus tratados”.
3.2 A autonomia do Direito Comunitário em relação à ordem jurídica interna dos
Estados-membros
Em razão de sua origem supranacional as normas de direito comunitário têm por
finalidade regular, em certos domínios de atividade, as relações de natureza jurídico-
econômica estatuindo a livre circulação de mercadorias, de pessoas e de capitais, a liberdade
de estabelecimento, o regime de concorrência, a agricultura em suma, as “quatro liberdades”
que dependiam anteriormente, de regras de cada um dos Estados-membros no exercício de
sua soberania e que, por força dos Tratados tornaram-se objeto de interesse comum dos
Estados e passaram a ser elaboradas por uma autoridade distinta da autoridade estatal
anteriormente competente, isto é, a autoridade comunitária age com inteira autonomia em
relação aos Estados sob o exclusive controle de uma jurisdição independente que é o Tribunal
das Comunidades.
Sob outro aspecto, esclarece Campos (1994: 331) que:
[...] a autonomia de direito comunitário em relação às ordens jurídicas dos Estados-membros resulta de que as comunidades Européias constituem uma ordem jurídica própria, a favor da qual os Estados-membros limitaram os seus direitos soberanos e criaram um corpo de direito aplicável aos seus súditos e a si próprios - limitação contra a qual não poderá prevalecer a invocação de disposições de direito interno, seja qual for a sua natureza.
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Logo, conclui o renomado mestre português, a autonomia da ordem jurídica
comunitária implica que ela não é tributária das ordens jurídicas dos Estados-membros e que,
portanto, define as suas relações com estas últimas segundo os seus próprios princípios e
critérios, ou seja, sem subordinação às leis constitucionais ou ordinárias dos Estados.
4 O PRINCÍPIO DA PRIMAZIA
O princípio da primazia implica na impossibilidade do Estado-Membro de opor seu
próprio ordenamento às normas comunitárias.
Pelo acórdão prolatado no caso Simenthal, datado de 1978, o Tribunal demarcou o
conceito de “primazia”, ao afirmar que todo juiz nacional no marco de sua competência, tem a
obrigação de aplicar integralmente o Direito Comunitário e de proteger os direitos que este
confere aos particulares, deixando sem aplicação toda disposição eventualmente contrária da lei
nacional, qual seja, esta anterior ou posterior à norma comunitária.
Por esta razão, segundo o texto do mencionado acórdão, o juiz nacional, encarregado de
aplicar no marco de sua competência as disposições do Direito Comunitário, tem a obrigação de
assegurar o pleno efeito destas normas, deixando sem aplicação, se for necessário, em virtude de
sua própria autoridade, toda disposição contrária da legislação nacional, inclusive aquelas
posteriores ao Direito Comunitário, sem que para isto tenha que pedir ou esperar sua prévia
eliminação pela via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional.
No que concerne à extensão da primazia, como se vê pelo texto de várias decisões do
TJCE, é princípio consolidado que o Direito Comunitário prevalece, em seu conjunto, sobre o
complexo do direito nacional, significando, pois, dizer que ele se afirma diante deste em sua
totalidade qualquer que seja o nível hierárquico.
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5 PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
Historicamente, este princípio é definido como um dever da comunidade maior – no
caso, as Comunidades Européias e suas Instituições - apoiar e estimular a comunidade menor,
os Estados-Membros.
Para Quadros (1995:17-18) o princípio da subsidiariedade traduz a idéia de repartição
de atribuições entre a comunidade maior e a comunidade menor, consistente “na
descentralização, na comunidade menor, ou nas comunidades menores, das funções da
comunidade maior. E a comunidade que ocupa o mais alto grau nessa pirâmide é, nos termos
clássicos, o Estado. Daqui resulta que a comunidade maior só poderá realizar uma dada
atividade das atribuições da comunidade menor se esta, havendo a necessidade de a realizar,
não for capaz de a realizar melhor” (JELINEK apud QUADROS, Fausto. 1955:17-18).
Ao demais disto, o Princípio da Subsidiariedade possui conexão íntima com o
federalismo que, para Jaques Delors (então presidente da Comissão Européia em 1989) seria o
caminho para a reconciliação do que a muitos parece irreconciliável: o nascimento da União
Européia e a fidelidade à pátria de cada um, pensamento que espelha a concepção da
integração européia defendida muitos anos antes por Jean Monnet.
Com efeito, já no preâmbulo do texto que institui o Tratado da União Européia se tem
enunciado o desejo de “aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua
história, cultura e tradições, desejando reforçar o caráter democrático e a eficácia do
funcionamento das instituições, a fim de lhes permitir melhor desempenhar, num quadro
institucional único, as tarefas que lhes estão confiadas”, e no artigo F o compromisso da
União de respeitar “[...] a identidade nacional dos Estados-membros, cujos sistemas de
governo se fundam nos princípios democráticos”.
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De fato, para Quadros (1995:72) o princípio é concebido para se amoldar às intenções
dos Tratados: a União Européia será preferencialmente obra dos Estados membros e dos seus
cidadãos; a integração deve respeitar a identidade histórica, política e cultural dos Estados; o
poder político comunitário deve exercer-se a um nível o mais próximo possível dos cidadãos
e, especialmente, para “dar resposta, na integração européia, às idéias de Democracia, de
Estado de Direito, de Participação e de Descentralização”.
A pedra angular da aplicabilidade deste princípio, prossegue o citado autor português,
“deverá residir na idéia de que a uma progressivamente maior limitação da soberania dos
Estados, resultante no aprofundamento da União Européia, tem de corresponder uma cada vez
maior democratização do processo de decisão da União” (QUADROS, 1995:72).
É importante destacar que se trata de princípio essencial para a União Européia,
inserto no Tratado de Maastrich (art. 3.º-B, parágrafo 2.º) e no Tratado que estabelece uma
Constituição para a Europa (artigo I-11) segundo o qual é aplicável somente nos domínios que
não sejam das atribuições exclusivas da Comunidade, isto é, estas atribuições só serão
prosseguidas pela Comunidade se os Estados não forem capazes de as exercer em
determinadas condições.
Por fim, tal princípio está em harmonia com vários outros princípios fundamentais do
Direito Comunitário, especialmente o princípio da proporcionalidade segundo o qual “a ação
da Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objetivos do presente Tratado”.
6. PERSPECTIVAS JURÍDICO - INSTITUCIONAIS PARA A CONFORMAÇÃO DO
MERCOSUL
Criado pelo Tratado de Assunção (1991) e com formação definitiva a partir do
Protocolo de Ouro Preto (1994), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi instituído
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inicialmente por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai que estabeleceram um cronograma de
integração para se atingir a meta de um mercado comum, a partir de 1994. Há acordos de livre
comércio com Chile e Bolívia e neste ano de 2006 a Venezuela passou a integrar o bloco
como membro efetivo.
O Mercosul encontra-se ainda na zona de livre comércio ou numa zona de união
aduaneira imperfeita (embora exista uma tarifa externa comum para as transações com
estados estrangeiros, esta tem distorções, como abaixo será apontado) e está distante de suas
metas pretendidas, pois o cronograma criado pelos Estados-Membros encontra-se atrasado e
com vários problemas de implantação.
É certo que o Mercosul vem passando por dificuldades de efetivo desenvolvimento
desde a sua criação, por que não se conseguiu implantar efetivamente um espaço
supranacional nos moldes daquele estruturado pela União Européia. Para Basso (1997:p. 25) a
estrutura constitucional dos países que compõem o Mercosul constituem uma barreira à
instituição de um Direito Comunitário dos países do sul, segundo a autora:
[...] muitas são as dificuldades para a concretização do Mercado Comum do Sul. A primeira delas, sem dúvida, são as barreiras constitucionais existentes, principalmente no Brasil e Uruguai. Isto por que, quando os Estados se aproximam para formar um “mercado comum” precisam fazer expressa previsão, em suas constituições, que o direito internacional (fundamentalmente os tratados) tem primazia sobre o direito interno. Além do mais, deve ficar expressamente prevista na constituição dos países-membros a possibilidade de participação destes na formação de um direito comunitário que deverá ter efeito imediato na ordem jurídica interna (nacional), sem precisar de aprovação do parlamento nacional.
Além da necessidade destes ajustes constitucionais, é importante que se revise o
conceito clássico de soberania, “que vem evoluindo desde a conformação das Comunidades
Econômicas Européias, e a percepção de que num “mercado comum” os Estados-membros
amadurecem, deixando a condição de Estado-Nação para assumir a de Estado-Região”
(BASSO 1997:27).
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Aos completar quinze anos, o Mercosul ostenta entraves, distorções e avanços como
os mencionados por Dianni (2006). Entre os primeiros aponta-se que muitos produtos
comercializados no âmbito do território mercosulino ainda estão fora de aplicabilidade da
Tarifa Externa Comum (TEC), inviabilizando sua consolidação; não há um Código Aduaneiro
Comum, ausente, pois, a harmonização aduaneira entre os países; ao contrário do cenário
europeu, não há uma política comercial comum de modo a estabelecer salvaguardas
necessárias contra práticas monopolistas ou antidumping de países fora do bloco e, por
último, há restrições e controle em alguns setores importantes como o comércio automotivo.
A estrutura do bloco sul-americano contém algumas distorções que trazem reflexos no
conjunto do sistema como, por exemplo, o chamado Mecanismo de Adaptação Competitiva
adotado por Argentina e Brasil que resulta na aplicação de salvaguardas as quais, ao seu
turno, fere os próprios princípios do Mercosul ou, ainda, em cenário nitidamente dissonante
da existência de uma Tarifa Externa Comum (TEC), a circulação de mercadorias oriundas de
outros países que ao ingressarem no território do bloco, acabam por pagar impostos quando
deveriam circular livremente.
Avanços existem, e merecem ser apontados, como a “cláusula democrática” cujo objetivo
é a manutenção da democracia, tão cara ao continente; o reforço das demandas dos países que
compõe o bloco quando de negociações com a União Européia e atuação em bloco na ONU, na
OMC, na OEA e na ALCA e, por último, no aumento do comércio dentro do bloco que, no
período da sua criação até 2004 passou de US$ 8,2 bilhões para US$ 33, bilhões, além de várias
mercadorias oriundas do Chile e da Bolívia circularem com tarifas ou muito baixas ou sem tarifas.
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CONCLUSÃO
Como anunciado na introdução, este ensaio visa tão somente apresentar os principais
contornos do Direito Comunitário, focalizando seus princípios fundamentais e sua autonomia
frente aos direitos dos Estados nacionais e ao Direito Internacional.
De se ressaltar que o esforço doutrinário foi de grande importância na formulação dos
mencionados princípios sob os quais se deu viabilidade aos sonhos de Jean Monet de criar uma
Europa livre de guerras e resoluta no sentido de dar solução pacífica aos seus conflitos e pela via
do Direito.
Neste sentido, a estrutura que se criou nestes mais de cinqüenta anos representa um salto
gigantesco dado pelos cidadãos europeus, na construção de uma sociedade democrática e
pluralista, calcada em sólidos fundamentos e garantias de respeito aos direitos fundamentais.
Aqui no cenário sul-americano deparamos-nos com um projeto que pretende estabelecer
um mercado comum cujos percalços podem ser resumidos pela adoção de um modelo diferente
do europeu, sem a participação efetiva dos parlamentos dos países que compõem o Mercosul, sem
consulta às populações respectivas, sem a necessária e prévia harmonização das normas internas
e, principalmente, sem que se criassem Instituições típicas de gestão (executiva, administrativa e
financeira) e de solução de litígios pela via de um devido processo comunitário em que pese os
tímidos avanços apontados.
Direito Comunitário, não obstante as várias velocidades de sua criação, implantação e
aplicação, caminha em passos seguros para o estabelecimento de um novo marco paradigmático
do Direito, compatível com a pós-modernidade e que bem pode servir de modelo, nas exatas
proporções de suas forças sociais, políticas e econômicas, aos países do sul.
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