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O Direito à Moradia em Porto Velho e os projetos de desenvolvimento na Amazônia Relatório da Missão da Relatoria Nacional à Moradia e à Terra Urbana em Porto Velho/RO em maio de 2004

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O Direito à Moradia em Porto Velho e os projetos de desenvolvimento na Amazônia

Relatório da Missão da Relatoria Nacional à Moradia e à Terra Urbana em Porto Velho/RO em maio de 2004

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O Direito à Moradia em Porto Velho

Relatório da Missão da Relatoria Nacional à Moradia e à Terra Urbana em Porto Velho/RO em maio de 2004

e os projetos de desenvolvimento na Amazônia

CATALOGAÇÃO NA FONTEPólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas SociaisCentro de Documentação e Informação

SAULE Jr., Nelson (org.); CARDOSO, Patrícia de Menezes (org.); O direito humano à moradia em Porto Velho e os desafios para o desenvolvimento sustentávelde uma cidade da Amazônia. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. 56p.

Relatório da Missão da Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana - agosto de 2004

ISBN

1. Direitos Humanos. 2. Direito à Moradia. 3. Direito à Moradia Adequada. 4. Condições de Moradia. 5. Polí-ticas Públicas. 6. Participação Cidadã. 6. Movimento por Moradia. 7. Movimento Social Rural. 8. Movimento Social Urbano. 9. Porto Velho (RO). 10. Amazônia. 11. Desenvolvimento Sustentável. I. Título. II. Plataforma DhESC. III. Relatoria Nacional do Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana. IV. Polis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais.

Fonte: Vocabulário CDI

Essa publicação foi viabilizada com o apoio de:

Instituto Pólis, Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC) e Centro de Educação e Assessoria Popular (CEAP)

Ficha Técnica

Coordenação Nelson Saule Jr. e Patrícia de Menezes CardosoAutoria Patrícia de Menezes Cardoso com a colaboração de Thais Chueiri e Julia Cara GiovanettiCoordenação editorial Paula Santoro e Iara RolnikAssistência editorial Miranda ZoppiConselho editorial Agnaldo dos Santos, Iara Rolnik, Juliana Sicoli, Miranda Zoppi, Paula Santoro e Renato CymbalistaProjeto gráfico do miolo Silvia Amstalden FrancoProjeto gráfico da capa e ilustração Marcelo BicalhoEdição e revisão de texto Caia FittipaldiAgradecimentos Elisabeth Grimberg, Breno Altman, Fernanda Carolina Costa, Emanoel Meirelles em nome dos membros do Centro de Educação e Assessoria Popular (CEAP), Arthur Moretti em nome do Movimento dos Atingidos por Barragem de Rondônia e Antônio Roberto Ferreira da Gerência Regional de Patrimônio da União de RondôniaImpressão e fotolitos Max Print

Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia e à Terra Urbana 2003/2004Relator NacionalNelson Saule Júnior ([email protected])Advogado, coordenador do Núcleo de Direito à Cidade do Instituto Pólis

Assessora Nacional da Relatoria da MoradiaPatrícia de Menezes Cardoso ([email protected])Advogada, voluntária das Nações Unidas, membro do Núcleo de Direito à Cidade do Instituto Pólis

Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia e à Terra Urbana 2005/2006Relator NacionalLucia Maria Moraes ([email protected])Urbanista e professora da Universidade Católica de Goiás

Assessora Nacional da Relatoria da MoradiaPatrícia de Menezes Cardoso ([email protected])Advogada, voluntária das Nações Unidas, membro do Núcleo de Direito à Cidade do Instituto Pólis/São Paulo

A Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia faz parte do Projeto Relatores Nacionais da Plataforma DhESC Brasil. www.dhescbrasil.com.brO Instituto Pólis é membro da Plataforma DhESC Brasil e sedia e apóia a Relatoria Nacional da Moradia. www.polis.org.brO Programa de Voluntariado da ONU apóia os Projeto Relatores Nacionais. www.undp.org.br/unv

SumárioApresentação

A Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana

O conceito de Direito à Moradia e as tipologias de violações identificadas

Introdução

Conjuntura urbana em Porto VelhoUrbanização nas cidades da Amazônia e breve histórico do processo de povoamento e desenvolvimento de Porto Velho

Condições de vida e moradia em Porto Velho

A Missão da Relatoria Nacional da Moradia Adequada à Porto VelhoDenúncia recebida e agenda da Missão

As situações de violação ao Direito à Moradia

Ameaça de deslocamento forçado de comunidades ribeirinhas pela construção de duas grandes barragens no Rio Madeira

Ameaça de deslocamento forçado de bairros históricos pela implantação do projeto turístico Beira Rio na orla do Rio Madeira

Insalubridade e precariedade habitacional da Comunidade Vila Princesa, que vive junto a lixão de onde tira seu sustento

Precariedade e falta de segurança jurídica da posse de ocupações urbanas: Tijuca, Mamoré e Flamboyant

Falta de regularização fundiária de bairros de baixa renda: bairros Nacional e São Sebastião I e II

Experiências positivas

O Fórum pelo Plano Diretor Participativo Organização comunitária pela exigibilidade do Direito à Moradia: Bairro Lagoinha e Ocupação Raimundo Cantuária

Audiência Pública

Principais desafios para implementar o Direito à MoradiaA gestão democrática da cidade e os encaminhamentos da 1a Conferência Estadual das Cidades em 2003

Regularização fundiária e o Plano Diretor

Pressupostos para implantação de megaprojetos

A revisão do atual modelo de política energética do Brasil

Tarifas sociais de energia elétrica para a população de baixa renda

RecomendaçõesRecomendações gerais

Recomendações específicas

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Apresentação

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

A Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana

A Relatoria Nacional do Direito à Moradia realizou uma missão à cidade de Porto Velho nos dias 16,17 e 18 de maio de 2004

Esta relatoria, junto com as Relatorias do Meio Ambiente, Saúde, Educação, Trabalho e Alimentação, Água e Terra Rural, integra o Projeto Relatores Nacionais, coordenado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC)1. A Plataforma DhESC é uma rede formada por organizações da sociedade brasileira atuantes no campo da defesa dos direitos humanos e da promoção de políticas pú-blicas que visam a combater as desigualdades sociais e contribuir para a inclusão social e cultural de grupos sociais vulneráveis.

A Relatoria Nacional é um projeto da sociedade civil brasileira inspirado na experiência desenvolvida pelas Nações Unidas de nomeação de relatores especiais, cujo papel é investigar as situações de desrespeito aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais no Brasil, subsi-diando a avaliação da capacidade de implementação des-tes direitos no país bem como elaborando recomendações para a superação dos problemas identificados.

Cada um dos relatores foi nomeado por um con-selho composto de seis organizações da sociedade civil, quatro organismos do Estado Brasileiro e três entidades vinculadas às Nações Unidas2, e conta com o apoio de Assessores Voluntários das Nações Unidas (United Nations Volunteer – UNV).

Dessa forma, trabalha-se para desenvolver no Brasil uma cultura de respeito aos direitos humanos, econô-micos, sociais e culturais protegidos tanto na ordem ju-rídica nacional, por meio da Constituição Brasileira e de instrumentos como o Estatuto da Cidade e o Programa da Nacional de Direitos Humanos, quanto na esfera internacional, por meio da incorporação e ratificação dos tratados internacionais de proteção dos direitos

humanos, dos quais destacamos o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

A iniciativa de proteção dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC) deve ser entendida em função da condição de fragilidade e de subvalorização desta categoria de direitos, quando comparada aos direitos civis e políticos. Isso, porque a efetivação destes direitos entra em choque com a acumulação de capital e com a desigualdade socioeconômica vigentes. Ao defender estes direitos, estamos defendendo como valor supremo o ser humano, bandeira minoritária numa sociedade de consumo que privilegia a defesa do patrimônio e da propriedade. Neste sentido, é preciso estimular e tornar prática corrente a capacidade da sociedade brasileira para monitorar estes direitos, aplicando a legislação de maneira a contribuir para construir uma sociedade mais justa e democrática.

Com este intuito, o trabalho da Relatoria Nacional da Moradia prioriza dar voz às populações vulneráveis. Essa categoria inclui tanto as populações urbanas de baixa renda – sem-teto, moradores de favelas, de conjuntos habitacionais e loteamentos populares, habitações co-letivas como os cortiços –, como as populações rurais e tradicionais – quilombolas, indígenas, populações ribeirinhas, extrativistas, pescadoras, etc. Esses grupos têm em comum o fato de terem sido historicamente esquecidos ou discriminados pelas políticas brasileiras de desenvolvimento.

1 Compõem a coordenação da Plataforma DhESC a Rede de Infor-mação e Ação pelo Direito a se Alimentar (FIAN-Brasil), Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Centro de Justiça Global, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Terra de Direitos, CRIOLA, Ações em Gênero e Cidadania e Desenvolvimento (AGENDE), Sociedade Paraense de Direitos Humanos.

2 O conselho de escolha dos relatores DhESC foi integrado pela Co-missão de Direitos Humanos da Câmara Federal, Departamento de Direitos Humanos do Ministério de Relações Exteriores, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e Secretaria Especial de Direitos Humanos, Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Programa de Voluntariado da ONU (UNV) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), além de seis organizações da Plataforma Brasileira DhESC.

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APRESENTAÇÃO

O Relator Nacional da Moradia é um especialista na área de políticas urbanas e trabalha como voluntário. Na condição de porta voz da sociedade civil brasileira, recebe denúncias de violação do Direito à Moradia e, a partir delas, seleciona os locais onde serão realizadas as missões, de acordo com a tipologia de conflitos e o grau de violações identificadas.

Além de possibilitarem o contato real com as vio-lações relatadas, as missões permitem que seja feita a articulação com a sociedade civil organizada, ecoando sua denúncia, iluminando sua história e seu processo de luta. Além disso, as missões constituem oportunidades para que se coloquem frente à frente os atores envolvidos nos conflitos, geralmente a sociedade organizada e as autoridades governamentais competentes. Em todas as missões identificam-se também experiências e projetos que trabalharam para implementar o Direito à Moradia Adequada, denominadas experiências positivas.

Findas as missões, inicia-se a fase de monitoramento do caso, na qual a Relatoria Nacional da Moradia acom-panha o andamento do quadro investigado, identificando avanços ou retrocessos. Esse trabalho só se torna pos-sível por meio do permanente contato entre a Relatoria e a sociedade civil organizada local, principalmente quando as organizações locais dão prosseguimento a essa luta. O trabalho da Relatoria Nacional da Moradia busca potencializar lutas já existentes, em diferentes partes do Brasil, funcionando como um mediador de conflitos, para dar voz aos grupos historicamente menos favorecidos.

Por fim, mediante a compilação de diversos materiais como vídeos, fitas, notícias de jornal, fotos, documen-tos, panfletos, a Relatoria Nacional da Moradia elabora relatórios, que podem ter tanto um caráter mais geral, abordando a situação do Direito à Moradia no Brasil, com base nas missões realizadas, como mais focalizado, no sentido de expor os casos concretos pertinentes a uma dada localidade averiguados em uma Missão.

Em síntese, o trabalho da Relatoria consiste em:• Receber denúncias de violações ao Direito à Moradia a serem investigadas e/ou encaminhadas aos órgãos públicos competentes como autoridades locais, estaduais e federais (ex. Ministério das Cidades e Ministério da Justiça), para o poder Judiciário e comissões internacionais de direitos humanos (ex. Organização das Nações Unidas – ONU e Organização dos Estados Americanos – OEA).• Realizar missões in loco para investigar situações de violação do Direito à Moradia, ouvindo as vítimas e violadores, organizando Audiências Públicas para o encaminhamento de solução dos conflitos, mobili-zando a sociedade e chamando a responsabilidade dos órgãos públicos competentes.• Monitorar os casos investigados, mediante o acom-panhamento de alguns casos, identificando os diferen-tes tipos de conflito existentes para buscar a forma de implementação do Direito à Moradia Adequada.• Fornecer subsídios para soluções dirigidas e pa-cíficas da situações de conflito, articulando-se junto às esferas governamentais, para que sejam tomadas medidas emergenciais e sejam elaboradas políticas públicas que garantam os direitos humanos econômi-cos, sociais e culturais, com destaque, para o Direito à Moradia Adequada. • Elaborar relatórios anuais de diagnóstico do Direito à Moradia no Brasil e recomendações ao governo e sociedade brasileira para garantia do Direito à Moradia no Brasil contendo: uma parte analítica, so-bre a situação do Direito à Moradia, a partir dos casos de violação investigados e das experiências positivas identificadas na implementação do Direito à Moradia, tais como regularização fundiária, urbanização de favelas, projetos de autogestão (mutirão) e soluções encontradas pelas próprias comunidades, e uma parte propositiva com recomendações para soluções legais por meio da formulação e implementação de políticas públicas. Esses relatórios são divulgados nacional (nas Conferências Nacionais de Direitos Humanos, no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e nos espaços de discussão dos temas cobertos pelas Relatorias) e internacionalmente.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

• Elaborar relatórios de registro das missões expondo as violações existentes, as reivindicações da comu-nidade atingida e as recomendações ao governo e sociedade brasileira para garantia do Direito à Moradia no Brasil, com ênfase na peculiaridade local. Esses relatórios visam a servir de instrumento para a luta da sociedade civil organizada em prol dos seus direitos, divulgando as denúncias e reivindicações e iluminan-do a história e o processo de luta das comunidades.

• Localização: a moradia deve estar inserida em local apropriado para a habitação, afastado de áreas de risco e em local adequado dentro da cidade, próxima das opções de emprego, transporte pú-blico eficiente, dos serviços urbanos como saúde, educação, cultura e lazer;• Adequação cultural: respeito à diversidade cultural e aos padrões habitacionais oriundos dos usos e costumes das comunidades e grupos sociais.O Direito à Moradia Adequada remete também aos

conceitos de Direito à Cidade e gestão democrática, definidos no art. 2°, incisos I e II, da Lei Federal n° 10.257/01 (Estatuto da Cidade):

“Art. 2°: A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cida-de e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, enten-dido como o direito à terra urbana, á moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

II - gestão democrática por meio da participação da população e das associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.

Por meio do trabalho da Relatoria Nacional da Moradia está sendo possível identificar, sistematizar e registrar distintas violações ao Direito à Moradia prati-cadas no Brasil. Ao longo de dois anos de trabalho, foi possível conhecer a situação da moradia em diferentes cidades brasileiras: no meio urbano e rural (Alcântara/MA); na zona costeira (Fortaleza /CE; Recife/PE; João Pessoa/PB; Bertioga/SP) e região amazônica (Porto Velho/ RO); em capitais com relevante patrimônio his-

O conceito de Direito à Moradia e as tipologias de violações identificadas

A Relatoria orienta-se pelo conceito de Direito à Moradia Adequada, previsto no art. 6° da Constituição Federal, que abarca o direito humano de viver com segurança, paz e dignidade. Os seus componentes3

essenciais são:• Segurança jurídica da posse: para garantir a mo-radia contra despejos e deslocamentos forçados e outros tipos de ameaças à posse;• Habitabilidade: a moradia deve ter boas condições estruturais, físicas e de salubridade;• Disponibilidade de serviços e infra-estrutura: acesso à água potável, energia, saneamento básico e tratamento de resíduos sólidos, transporte e ilumi-nação pública;• Custo acessível da moradia: os gastos com a mo-radia devem ser proporcionais à renda e assegurar os demais componentes da Moradia Adequada. O maior problema é justamente o da população de baixa renda, que ganha menos de três salários mínimos. Políticas de subsídios governamentais para essa faixa da população são imprescindíveis para garantir o acesso à moradia da população de menor renda;• Acessibilidade: as políticas sociais devem contem-plar os grupos vulneráveis; 3 Segundo definição do Comentário Geral no4 sobre o Direito à Moradia

Adequada do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

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APRESENTAÇÃO

tórico local ou nacional (Salvador/BA e São Luis/MA); em grandes centros urbanos e regiões metropolitanas (São Paulo/SP; Guarulhos/ SP).

A partir desta investigação, identificaram-se diversos tipos de violações ao Direito à Moradia Adequada. Ao serem relacionadas com a garantia e preenchimento dos componentes do Direito à Moradia, as diferentes violações compõe um quadro de categorias típicas, sendo o conceito de tipologia relacionado com essa clas-sificação das violações em tipos, identificados a partir das experiências das missões realizadas. A Relatoria assume como um de seus papéis identificar os tipos de violações do Direito à Moradia, a fim de subsidiar respostas concretas para enfrentá-los.

Foi sob a ótica da moradia como direito coletivo dos habitantes da cidade, que a Relatoria Nacional investi-gou a situação habitacional de diferentes comunidades urbanas e rurais de Porto Velho.

Nessa missão, foi possível identificar as seguintes tipologias de violação ao Direito à Moradia: (i) ameaça de deslocamento forçado de comunidades tradicionais – o caso da população ribeirinha ameaçada de desloca-mento, pela construção de duas grandes barragens no Rio Madeira; (ii) ameaça de deslocamento forçado de comunidades urbanas de baixa renda – caso da ameaça de deslocamento forçado dos moradores dos bairros históricos da orla do Rio Madeira pela implantação do projeto turístico Beira Rio; (iii) situação de risco à vida e à saúde – caso da comunidade Vila Princesa, que vive junto a lixão de onde tira seu sustento; (iv) preca-riedade e falta de segurança jurídica da posse – caso das ocupações urbanas Tijuca, Mamoré e Flamboyant, (v) Falta de regularização fundiária de bairros de baixa renda – bairros Nacional e São Sebastião I e II.

Introdução

INTRODUÇÃO

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O significado de desenvolvimento econômico é mais amplo que o de enriquecer e crescer. Envolve a diminui-ção da desigualdade social e regional. Envolve a garantia de um padrão de vida digno e a justa distribuição e acesso dos homens às riquezas, sejam estas: renda, território ou recursos ambientais.

No entanto, o modelo de “projetos de desenvolvi-mento” implantado no Brasil tem produzido impactos irreparáveis para as populações tradicionais da Amazônia e para o desenvolvimento de suas cidades. Os deslo-camentos forçados de populações ribeirinhas devido à implantação de projetos turísticos ou a grandes projetos de barragens, gasodutos, rodovias, são exemplos de impactos desses projetos.

A Missão da Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana à Porto Velho, Rondônia, iluminou a relação entre os “projetos de de-senvolvimento econômico” historicamente implantados na Amazônia (e que seguem os modelos do país) e as comunidades tradicionais ou moradores dos núcleos urbanos ribeirinhos. Essa relação de conflito revelou não apenas a natureza das violações dos direitos humanos das populações diretamente atingidas por esses projetos, mas também desmistificou o conflito urbano-ambiental, detectando as suas origens. Evidenciou que a existência de qualidade socioambiental e o efetivo desenvolvimento urbano estão diretamente condicionados ao processo de desenvolvimento adotado pelo Estado Brasileiro, e que temas como a preservação ambiental e a adequação cul-tural são componentes fundamentais do Direito à Moradia Adequada e do Direito à Cidade Sustentável.

Esse relatório é fruto da Missão realizada pela Relatoria, nos dias 16, 17 e 18 de maio de 2004, a Porto Velho, capital do Estado de Rondônia. Tem como objetivo registrar a situação dos direitos humanos econômicos sociais culturais e ambientais das comunidades visita-das dando visibilidade para sua situação de vida e suas reivindicações, bem como apresentar caminhos para a garantia desses direitos. Visa contribuir para a incorpora-ção dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais das populações vulneráveis, sejam estas cul-

turas tradicionais do meio rural ou a parcela mais pobre e marginalizada da população urbana na elaboração de planos e projetos de impacto nas cidades da Amazônia. O relatório identifica o desenvolvimento sustentável como meta e a gestão democrática e controle público como instrumentos para alcançá-lo.

A publicação está dividida em cinco blocos: o pri-meiro deles apresenta o Projeto Relatores Nacionais da Plataforma DhESC e a Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Digna e à Terra Urbana; desenvolve o conceito de Direito à Moradia, abreviação utilizada nessa publicação para o termo Direito Humano à Moradia Digna e à Terra Urbana; e retoma a origem da denúncia de violação aos direitos que provocou a realização dessa Missão.

No segundo bloco, traça-se um breve histórico do processo de povoamento e desenvolvimento de Porto Velho, recuperando aspectos da ocupação do território da região amazônica e sua urbanização a partir da história dessa capital.

No terceiro bloco descreve-se o trabalho desta Relatoria durante a Missão, registrando a situação das comunidades visitadas: comunidades ribeirinhas amea-çadas de deslocamento forçado pela construção de duas barragens no rio Madeira; população de bairros históricos ameaçados de deslocamento forçado pela implantação do projeto turístico Beira Rio na orla do rio Madeira; Comunidade Vila Princesa com condições de insalubri-dade e precariedade na sua vida junto a um lixão de onde tira o seu sustento; ocupações urbanas Tijuca, Marmoré e Flamboyant em situação precária e falta de segurança jurídica da posse; bairros Nacional e São Sebastião I e II, ocupados por população de baixa renda, que necessitam de regularização fundiária. A descrição é feita a partir dos depoimentos dos moradores colhidos nas visitas da Relatoria às comunidades, que permitiram identificar diferentes graus de violação do Direito à Moradia em cada uma delas. Registram-se as reivindicações dos moradores vítimas ou ameçados em seus direitos. Nesse tópico, também é relatada a experiência positiva do Bairro Lagoinha, Ocupação Raimundo Cantuária e da realização

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

da Audiência Pública na qual se debateu a situação da moradia das comunidades ribeirinhas e população de baixa renda em Porto Velho

No quarto bloco são expostos os principais desafios para implementar o Direito à Moradia, que se referem às tarifas sociais, à gestão democrática das cidades, à regu-larização fundiária e ao Plano Diretor, aos pressupostos para implantação de megaprojetos e a necessária revisão do atual modelo de política energética do país.

No último bloco são apresentadas as recomendações gerais e específicas da Relatoria Nacional da Moradia às autoridades governamentais municipais, estaduais e federais responsáveis pela implementação, defesa e garantia dos direitos humanos, em especial, o direito à moradia adequada e o direito à cidade em Porto Velho. Essas recomendações devem orientar a ação do Governo Brasileiro e servem como instrumento para fortalecer a luta dessas comunidades na concretização dos direitos que já estão garantidos na legislação nacional e interna-cional, fazendo cessar e evitar as violações identificadas em favor de uma Porto Velho mais justa e democrática.

Conjuntura urbana em Porto Velho

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Urbanização nas cidades da Amazônia e breve histórico do processo de povoamento e desenvolvimento de Porto Velho

“Porto Velho ... onde os rios ainda governam a vida dos homens”4

A cidade de Porto Velho está situada à margem direita do Rio Madeira, cujas águas caudalosas, segundo os dize-res populares, escondem ouro e esperanças de riquezas. Situada ao extremo noroeste do Estado de Rondônia, a capital tem localização privilegiada, às margens do trecho navegável do Rio Madeira e no entroncamento de duas importantes rodovias da Região Norte (BR-364 e BR-329)5, sendo o pólo de articulação entre a Região Norte e o Sul do país.

Seu processo de crescimento, assim como o das outras cidades amazônicas, esteve condicionado ao auge dos ciclos das matérias primas, que acarretou na oscila-ção do fluxo de desenvolvimento da cidade – enquanto a borracha apresentou valor comercial significativo, houve crescimento; e nos períodos de desvalorização da borra-cha, devido às condições do comércio internacional e a inoperância empresarial e governamental, o processo foi de estagnação e crescimento da pobreza, ocasionando a formação desordenada de aglomerados urbanos, princi-palmente ao longo da BR-364.

De 1917, ano em que foi fundada, até os primeiros 60 anos subseqüentes, o desenvolvimento de Porto Velho esteve umbilicalmente ligado às operações da ferrovia Madeira-Mamoré Railway, a partir de núcleos populacionais remanescentes de sua construção. Empreendida pela empresa norte-americana May Jechyl & Randolph, a estrada de ferro ficou conhecida como “Ferrovia do Diabo”, pelo enorme número traba-lhadores que morreram durante a construção (1872-1912), principalmente pela malária.

Trabalhadores de mais de duas dezenas de nacio-nalidades diferentes foram trazidos pela construção da

ferrovia. Os migrantes e imigrantes moravam em bairros insalubres, de casas de madeira e palha, construídas fora da área de concessão da ferrovia.

A estrada foi um dos primeiros grandes projetos que incidiu sob a região prometendo desenvolvimento, sendo inicialmente criada para o escoamento da produção de borracha ao longo dos 366km que ligam a capital do território de Rondônia a Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia. No entanto, na sua inauguração em 1912, o preço internacional da borracha já despencava, de modo que a ferrovia nunca deu o retorno esperado. As empresas estrangeiras responsáveis pela construção da ferrovia faliram, causa da emigração em massa da população do Alto Madeira.

A história da ferrovia Madeira-Mamoré traduz dois aspectos perversos que acompanham a história de nosso país e, em especial da região amazônica6: a ânsia desen-volvimentista da implantação de projetos de infra-estru-tura que ignoram os direitos humanos das populações locais, expulsando e até dizimando os habitantes, como

4 Frase da página institucional da Prefeitura de Porto Velho, na Internet: www.portovelho.ro.gov.br/historia1.asp. Acessado em 10/09/2005.

5 Em 1960, o presidente Juscelino Kubitschek construiu a BR-364, ligando Cuiabá/MT a Porto Velho/RO e Rio Branco/AC, abrindo o Oeste brasileiro e interligando-o ao resto do país. Em 1983-84, a estrada foi asfaltada, acabando com o principal obstáculo ao esco-amento da produção agropecuária.

6 Neste texto, tratamos como ‘região amazônica’ a Amazônia Legal Brasileira, que corresponde a cerca de 60% do território nacional e é uma construção geopolítica estabelecida desde 1966 para fins de planejamento regional. Possui mais de 5 milhões km2 de extensão, abrangendo os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. Esta região, apesar de sua grande extensão territorial, é pouco populosa. A Amazônia Legal tem a menor densidade demográfica do país (4,14 hab/km2), reunindo aproximadamente 21 milhões de habitantes (2000), que correspondem a 12,4% da população nacional. Fonte: http://www.webciencia.com/17_intro.htm. Acessado em 30 outubro de 2005.

CONJUNTURA URBANA EM PORTO VELHO

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ocorreu com a etnia indígena Karipunas (ocupantes do parque indígena Karipuna no vale do Rio Jaci-Paraná) e Pakaás Novos; e a ausência de um projeto de governo que defenda o interesse público e coletivo à prevalência de in-teresses partidários conformados em função de interesses privados. Assim, o tempo que levou para construí-la, 40 anos, foi praticamente igual à vida útil da ferrovia.

O comércio da borracha definiu o surgimento de novas aglomerações e o desenvolvimento inicial da rede urbana. Com a queda das exportações da borracha, a partir de 1920, esta rede urbana desestruturou-se, provocando o esvaziamento de muitas cidades e o apa-recimento de novas aglomerações.

Em 1943, foi constituído o Território Federal de Guaporé, com capital em Porto Velho, mediante o desmembramento de áreas pertencentes aos Estados de Mato Grosso e Amazonas. A intenção era apoiar a ocupação e o desenvolvimento da região que, em 1956, passa a chamar-se Território de Rondônia.

Até a década de 60, a economia resumiu-se à extra-ção de borracha e de castanha-do-pará. O crescimento acelerado só ocorreu, de fato, a partir das décadas de 60 e 70. A política de incentivos fiscais e os intensos investimentos do governo federal, como os projetos de colonização dirigida, estimularam a migração, em grande parte originária do Centro-Sul. Além disso, o acesso fácil à terra boa e barata atraiu grandes empresários interessa-dos em investir na agropecuária e na indústria madeireira. Nessa época, a descoberta de ouro e cassiterita também contribui para o aumento populacional. Entre 1960 e 1980, o número de habitantes cresceu quase oito vezes, passando, de 70 mil para 500 mil. Somente em 1981, Rondônia ganhou a condição de Estado.

Em 1995, a construção do porto graneleiro na capital Porto Velho, e a abertura, em 1997, da hidrovia do Rio Madeira, mudaram o perfil econômico de Rondônia. Com 1.115 quilômetros de extensão, a hidrovia liga a capital ao porto de Itacoatiara, no Amazonas, barateando o trans-porte de seus produtos agrícolas. Rondônia abastece a Região Nordeste com feijão e milho, e destaca-se também como produtor nacional de cacau, café, arroz e soja.

A formação do Estado de Rondônia e de sua capital são exemplos de que o processo de povoamento e desen-volvimento da Amazônia foi motivado, inicialmente, pelo extrativismo7 em diferentes ciclos. Estes ciclos condicio-naram a dinâmica de crescimento demográfico da região amazônica aos períodos de prosperidade e decadência econômica das áreas de base extrativista, ocasionando um movimento populacional oscilante, caracterizado por fluxos e refluxos.

No século XVIII, as chamadas “drogas do sertão” (plantas medicinais, óleos, resinas, cacau, peles, peixes e carnes secas) despertaram o interesse econômico pela região amazônica. Na segunda metade do XIX, teve início o “Ciclo da Borracha”8, motivado pela demanda crescente de países como Estados Unidos e Europa, que exigiu rápido aumento de produção. Cerca de 400 mil famílias vindas do Nordeste instalaram-se nas áreas de ocorrência da borracha e de sua circulação fluvial.

Apenas a partir de 1960, a ocupação urbana das cidades da Amazônia intensificou-se, em decorrência de uma política de desenvolvimento9 da região amazônica, encabeçada pelo então presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). A lógica dos projetos e planos de desen-volvimento implantados pode ser resumida, de um lado

7 Extrativismo é em geral a denominação utilizada para designar toda atividade de coleta de produtos naturais, sejam de origem mineral (exploração de minerais), animal (peles, carne, óleos), ou vegetal (madeiras, folhas, frutos). Quando se fala em reserva extrativista, devemos entendê-la como a utilização sustentável, ou como a coleta racional na biota, de recursos renováveis destinados ao mercado. O Brasil herdou seu nome da extração do “Pau-Brasil”, o que demons-tra que o extrativismo acompanha a história econômica do país.

8 O extrativismo da borracha sempre esteve ligado ao da castanha, praticado nas mesmas áreas; o primeiro, na época menos chuvosa (maio a novembro); e o segundo, no período mais chuvoso (dezem-bro a março). In: artigo Evolução Histórica do Extrativismo de Rafael Pinzón Rueda. Página institucional do IBAMA na Internet: www.ibama.gov.br/resex/textos//h2.htm, acessado em 30 de outubro de 2005.

9 Como o Plano de Desenvolvimento Nacional (1955-1960) de Juscelino Kubitschek, a Operação Amazônia (1966) de Castelo Branco e o Plano de Integração Nacional (1970) de Médici.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

pelos projetos de colonização regional e investimentos em infra-estrutura, que desencadearam um processo intenso de ocupação, e, de outro lado, por uma política de expansão das fronteiras agrícolas.

O projeto de colonização, ou dos chamados “as-sentamentos dirigidos”, abriu estradas, distribuiu terras, organizou colônias e deu inúmeros incentivos, especial-mente de crédito subsidiado, para atrair empresários do Centro-Sul do país a instalar fazendas agropecuárias e empreendimentos madeireiros na região.

Esta política de destruição da floresta aniquilou o extrativismo em várias regiões, como no Estado do Pará, onde foram derrubados os castanhais mais ricos do país, e no Estado de Rondônia, onde, na área de influência da estrada BR-364, desapareceram seringais e castanhais. Foram dizimadas também diversas áreas extrativistas no Mato Grosso, Maranhão e Acre. De acordo com Rafael Pinzón Rueda10

“Este avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia desestruturou o extrativismo em diversas regiões, transformou áreas extrativistas em pasto para gado, e extrativistas em peões ou pequenos agricultores”.

Muitos seringueiros foram expulsos com violência das suas moradias e das terras em que viviam e traba-lhavam. Parte destes ocuparam seringais abandonados ou glebas do governo, onde se reorganizaram com maior autonomia. No entanto, a política de assentamento de colonos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) se sobrepôs às áreas de extrativismo da borracha, cortando e desmembrando as unidades de pro-dução dos seringueiros (formada pela dispersão natural e sinuosa das espécies vegetais). Esta situação deu origem a sérios conflitos entre colonos e seringueiros.

Tais medidas alteraram a disposição espacial do povoamento amazônico: as estradas pioneiras passaram a atrair migrantes que em busca de terra e trabalho, principalmente o garimpo, formaram vilas, cidades pequenas e médias. O processo de urbanização da Amazônia, baseado na ocupação econômica do território, inverteu, portanto, o padrão de povoamento regional,

tradicionalmente fundamentado na circulação fluvial: as rodovias atraíram o povoamento para a terra firme e novas áreas, abrindo grandes clareiras na floresta e, sob o influxo da nova circulação, a Amazônia foi urbanizada e industrializada acompanhada por sérios problemas sociais e ambientais11.

É importante ressaltar que os eixos de transporte e infra-estrutura, frutos dos investimentos públicos e priva-dos, foram extremamente concentrados, gerando poucos pólos de desenvolvimento e de prestação de serviços.

O processo de ocupação econômica e demográfica da região amazônica teve seu auge a partir da década de 70, quando os governos militares, aproveitando as condições hidrográficas favoráveis da Amazônia (princi-palmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós), que detêm quase 64% do potencial hidrelétrico do país, apostaram na construção de projetos “faraônicos” ou megaprojetos, como as grandes barragens e usinas hidrelétricas. O objetivo principal desta política desen-volvimentista era gerar eletricidade para as indústrias que consomem muita energia (as eletrointensivas12) e para a crescente economia nacional, que passava pelo chamado “milagre brasileiro”.

10 In: Artigo Evolução Histórica do Extrativismo de Rafael Pinzón Rueda. Op. cit.

11 De acordo com a SEDAM (Secretaria de Estado do Desenvol-vimento Ambiental), a área cumulativa desmatada em Rondônia aumentou, de 3.180.000 hectares em 1989, para 5.840.535 hec-tares em 2000, o que significa saltar de 13,33% para 24,49% da área total do Estado. Contudo, é na década de 90 que se registra o maior índice de desmatamento. In: Relatório de Sistematização da Proposta de Rondônia Sustentável, Ministério da Integração nacional, Governos do Estado de Rondônia e Programa Amazônia Sustentável, julho de 2003.

12 Estas empresas além de gastarem muita energia, geram poucos empregos, poluem muito e ainda têm subsídio no preço da energia. Além disso, elas produzem essa energia para outras regiões do Brasil ou para exportar para países como Japão, onde sua instalação é proibida.

CONJUNTURA URBANA EM PORTO VELHO

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A partir dessa época, enquanto já se observava a desruralização populacional no país, na região Norte ela ainda crescia intensamente, tendo seu fluxo arrefecido apenas na primeira metade dos anos 90.

Entre 1970 e 2000, a população urbana da região amazônica dobrou de tamanho, passando de 36% para 70%13. Seu rápido crescimento, contudo, não garantiu uma boa qualidade de vida à população. O quadro social na região é muito grave, marcado por altas taxas de desemprego, prostituição e pobreza. A infra-estru-tura urbana, um dos elementos do Direito à Moradia e essencial para a qualidade de vida da população é, até hoje, uma das mais precárias do país: a água não é tratada, os igarapés14 são transformados em depósito de lixo e esgotos a céu aberto; os resíduos são despejados diretamente nos rios, contaminando as águas.

A intensa migração teve profundas conseqüências em Rondônia. O sonho de enriquecer no “Eldorado” amazônico não se realizara para o grande contingente de migrantes que se deslocou para a região; e as periferias das cidades expandiram-se por meio de ocupações e loteamentos irregulares.

Segundo o IBGE, entre 1980 e 1991, a população residente de Rondônia mais que dobrou, alcançando em torno de 1 milhão de pessoas. Houve, nesta década, um crescimento anual de 7,9% ao ano, o que, comparado com a taxa média brasileira (1,9% a.a.) e com a própria Região Norte (3,9 % a.a.), é considerado explosivo.

Na década de 90, o território passa a perder po-pulação, de acordo com o IBGE; a migração ocorre principalmente em direção a Roraima. Com o esgota-mento da qualidade da terra, em virtude das constantes queimadas, os pequenos agricultores buscam novas fronteiras agrícolas na Amazônia.

Dado o processo de urbanização relatado, Porto Velho tornou-se um caldeirão cultural, onde se misturam hábitos e sotaques de todo país: o Boi-Bumbá e forró (de origem nordestina), o vaneirão (gaúcho), ao tacacá e açaí, o chimarrão, a alpercata, a bota e o chapéu de vaqueiro. O desenvolvimento da pecuária incorporou as festas de peões e, os rodeios, os folguedos juninos.

A expansão urbana da cidade, a exemplo de outros municípios brasileiros, ocorreu de forma rápida e desor-denada, sem que a administração municipal conseguisse acompanhar e gerenciar a ocupação do território. Isto resultou em uma infra-estrutura deficiente, incapaz de atender satisfatoriamente uma população de 335 mil habitantes (IBGE, 2000) espalhadas num território de quase 35 mil km2.

Além disso, a capital de Rondônia teve o seu proces-so de expansão limitado a Oeste pelo Rio Madeira, e ao Norte e ao Sul por áreas de responsabilidade do Exército e Aeronáutica. A mancha urbana atual, com uma extensão aproximada de 150 km2, acompanha de forma grosseira o traçado da rodovia federal BR-364.

Desse breve relato, pode-se constatar que o modelo de desenvolvimento imposto à região amazônica não considerou a necessidade de se promoverem, simulta-neamente, os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das populações originais e tradicionais da região (indígenas, quilombolas, caboclos ribeirinhos, pescadores ou extrativistas), bem como da parcela des-favorecida da crescente população urbana.

Esse quadro revela a adesão ao mito de desenvolvi-mento que, na prática, não trouxe melhoria à qualidade de vida das comunidades locais, produzindo pobreza e desigualdade. A negação desses grupos como prioridade dos projetos governamentais indica que, ao ignorar os valores de identidade e cultura dessas populações, os modos de vida desses grupos étnicos, formadores de nossa sociedade, são ameaçados de extinção. Da mesma

13 Dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2000.

14 Igarapé é o nome que se dá a um trecho inundado de mata, ou ainda a um brejo coberto de vegetação. Os igarapés, também chama-dos igapós ou igarapós, são formados pelas enchentes dos rios.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

forma, as calamidades ambientais produzidas ameaçam o legado da riqueza da biodiversidade brasileira. Por fim, ao se ignorarem os saberes e modo de vida dos povos da Amazônia, o que se impede é a afirmação de modos de vida alternativos à vida nas grandes cidades – opções mais sustentáveis e que não dependem do emprego for-mal, em grande parte escasso nas cidades brasileiras.

Condições de vida e moradia em Porto Velho

A cidade de Porto Velho mostra feridas decorrentes do crescimento desordenado. Os bairros periféricos são formados por aglomerados de habitações precárias de madeira, algumas inclusive cobertas de palha, sem orde-nação ou infra-estrutura. Em grande parte, resultam de ocupações de áreas vazias, por uma população sem-teto, que chegava a capital.

Mesmo os bairros mais antigos e próximos à região central da cidade, a área mais urbanizada em termos de infra-estrutura e serviços urbanos, ainda têm ruas por as-faltar, sem calçadas ou rede de esgoto. Cabe ressaltar que o Centro da cidade, contudo, foi definido no Plano Diretor de 1991, como zona de uso institucional: a maioria dos que ali moram são oficiais do exército e da aeronáutica.

Na época de elaboração do Plano, foi possível iden-tificar significativa quantidade de vazios urbanos dentro do perímetro urbano da cidade. A realidade das áreas vazias, ociosas e subutilizadas na cidade de Porto Velho contrapõe-se à superpopulação dos assentamentos in-formais precários da periferia.

A baixa ocupação das áreas centrais da cidade e a falta de políticas habitacionais para a população de baixa renda forçam a ocupação indevida da periferia, acarretan-do os mais diversos problemas sociais para a população, relacionando-se com a falta de acesso ao transporte, ao trabalho, à educação, à saúde e pela ausência de infra-estrutura básica e serviços públicos.

A precariedade habitacional verifica-se pela ocupa-ção de áreas de risco e de proteção ambiental, localizadas às margens dos igarapés e do Rio Madeira; pela grande maioria dos lotes não terem titulação; pela falta de con-dições de habitabilidade das moradias auto-construídas na periferia, em áreas sem a mínima infra-estrutura; e a conseqüente desordem socioambiental. Também existem moradias construídas com sacos plásticos e papelões, ha-bitadas por pessoas oriundas das migrações internas.

O Relatório Úmidas15 alertou sobre a ineficiência das políticas de fixação do homem ao campo que não estimularam suficientemente o enraizamento das famílias e trabalhadores no território. Esta reflexão indicou que poderia haver um crescimento relativamente acelerado de áreas de habitação precária, como loteamentos ir-regulares e clandestinos, favelas, ocupações, áreas de risco em Porto Velho.

O Relatório identificou uma demanda de 15 mil unidades habitacionais, em 1991, para atender uma população que recebe de três a cinco salários mínimos. Na época, estimou-se em 60 mil o número de moradores sem condições dignas de moradia.

Chama atenção a carência de infra-estrutura básica na cidade. É escandaloso que só 50% da população portovelhense seja abastecida por água potável pela Companhia de Águas e Esgoto de Rondônia (CAERD); e que só 2% seja atendida pela rede de esgotamento sanitário (CAERD, 1997)16. Segundo o IBGE-2000, ape-nas 7,5 mil, dos 84 mil domicílios, possuem banheiro ou esgotamento sanitário; e menos de metade da população é atendida por rede geral de abastecimento de água.

15 De acordo com o Relatório Úmidas, do ano de 1997, elaborado a partir de informações do Planafloro (Plano Agropecuário e Florestal do Estado de Rondônia).

16 Segundo os estudos realizados pelo consórcio Cyro Laurenza Consultoria, Engefoto – Engenharia e Anrolevantamentos S.A. e Policentro, contratado para elaboração da minuta do novo Plano Diretor Porto Velho, em 2003, apenas 1,8% dos domicílios da cidade são atendidos pelo serviço de esgotamento sanitário.

CONJUNTURA URBANA EM PORTO VELHO

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O município de Porto Velho não conta com uma polí-tica municipal de habitação definida e, até a atual gestão (2005-2008), ainda não foi criado um órgão específico para gerir as questões habitacionais e combater o déficit habitacional, da ordem 10,37%.

Os principais obstáculos para garantir o Direito à Moradia Adequada, em Porto Velho, foram levantados no diagnóstico feito na Conferência Municipal das Cidades, em 2003, dos quais destacamos: a irregularidade fundi-ária e a falta de documentação das áreas; a insuficiência de infra-estrutura (água, iluminação pública, saúde e segurança, principalmente nas áreas periféricas, e, em especial, a ausência de saneamento básico); e a má utilização de áreas desocupadas na malha urbana que descumprem a função social da propriedade.

No tocante à situação fundiária, segundo a Gerência Regional de Patrimônio da União, as informações dos órgãos municipais, estaduais e federais são desencontra-das, sendo a falta de integração entre os entes federativos uma das principais dificuldades para a regularização fundiária. A necessidade de regularização das glebas da União utilizadas pelo município, a revisão do perímetro urbano, a ausência de um banco de dados atualizado e a prática de não concluir documentalmente as transa-ções imobiliárias, via lavratura da escritura do imóvel e registro no Cartório de Registro de Imóvel, foram outros problemas apontados.

Destacam-se entre os problemas identificados duran-te as conferências a falta de conhecimento da população a respeito das políticas e dos programas dos governos e da legislação urbana; a falta de ações que incorporem a capacidade de produção de moradia das próprias comu-nidades (autogestão); a falta de dados socioeconômicos e cadastramento de famílias; a falta de alternativa de baixo custo para habitação popular; de integração das políticas habitacionais municipais, estaduais e federal; a baixa capacitação técnica do Executivo municipal; a falta de participação da sociedade na definição das políticas públicas; e a inexistência dos instrumentos de planeja-mento territorial, principalmente o Plano Diretor.

A Missão da Relatoria Nacional à Moradia

Adequada a Porto Velho16, 17 e 18 de maio de 2004

O menino brincavaseu pai ocupavaa terrao menino brincavasua mãe construíaa casaos meninos brincavamseus paissuas mãessuas tiasseus tiosna lutaconsquistandoa moradiadia a diaas mudanças aconteciama posse viroupoesiaa área embairro da cidadania

Poeta Mado - “Das tripas ao Marcapasso”. Porto Velho, Editora Edufro, 2003.Poeta Mado é um poeta popular, membro da CEAP (Centro de Estudos e Assessoria Popular)

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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Denúncia recebida e agenda da Missão

A Missão da Relatoria Nacional pelo Direito Humano à Moradia Adequada ao Município de Porto Velho foi realizada em atenção à denúncia encaminhada pelo Fórum pelo Plano Diretor Participativo de Porto Velho, uma organização espontânea da sociedade, composta de diversas entidades e categorias, que visa a estimular a participação e conseqüente intervenção popular no processo de elaboração e/ou revisão do Plano Diretor de Porto Velho. A denúncia revelava a violação do Direito à Moradia e do Direito à Cidade por dois motivos principais: a falta de participação popular na revisão do Plano Diretor e a ameaça de deslocamento forçado, face à implantação do projeto turístico Beira Rio e do projeto das hidrelétricas de Furnas Centrais Elétricas S.A.

Nos dias 16 e 17 de maio de 2004, a agenda da Relatoria com a sociedade civil compreendeu visitas às comunidades ribeirinhas Santo Antônio e Engenho Velho, ameaçadas de deslocamento pela construção de duas grandes barragens no Rio Madeira; às ocupações urbanas Vila Princesa, Mamoré, Flamboyant e Rio de Janeiro; aos bairros Nacional, São Sebastião I e II; e ao Bairro Triângulo (um dos ameaçados de deslocamento pela implantação do projeto turístico Beira Rio, na orla do Rio Madeira).

Para interlocução das autoridades governamentais, a Relatoria reuniu-se com as secretarias competentes da Prefeitura Municipal de Porto Velho e do Governo do Estado de Rondônia, com a Superintendência Regional do INCRA e a Gerência Regional de Patrimônio da União. A Relatoria participou da reunião em que Furnas apresentou o projeto de instalação da hidrelétrica para os moradores da comunidade Santo Antônio, momento em que não foram esclarecidas as principais perguntas dos moradores e pescadores da região ribeirinha do Madeira, quanto à ameaça de deslocamento, ao número de famílias atingidas e à data de início do projeto.

A Relatoria também participou de um seminário com as entidades do Fórum pelo Plano Diretor Participativo de

Porto Velho e de um debate na Universidade Federal de Rondônia, sobre o Estatuto da Cidade e o Direito à Cidade. Cabe destacar o envolvimento da Gerência Regional de Patrimônio da União, que acompanhou praticamente toda a agenda da Missão.

No dia 18 de maio, foi realizada uma Audiência Pública no Ministério Público Estadual de Rondônia, com a presença de quase todos os atores envolvidos, à exceção da Prefeitura Municipal de Porto Velho e da empresa Furnas Centrais Elétricas.

Participaram das atividades da Missão:• Comunidades e entidades da sociedade civil: Comunidade Vila Princesa, Comunidade Engenho Velho, Comunidade Santo Antônio, ocupação urbana Flamboyant, ocupação urbana Mamoré, ocupação urbana Rio de Janeiro, Bairro Triângulo, Bairro Baixa União, Bairro Nacional, Bairro São Sebastião I e II, Fórum pelo Plano Diretor Participativo de Porto Velho (FPDP), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Fórum de Debates sobre Energia (FOREN), Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Centro de Educação e Assessoria Popular (CEAP), Comissão de Justiça e Paz, Asmolvi Força Sindical, Força Jovem, Associação dos Produtores Rurais de Porto Velho, Igreja Metodista, Rádio Caiari, Tucuxi-Porto Velho, Federação dos Pescadores de Rondônia, Mulheres Negras Raízes, Pastoral do Menor, Associação dos Produtores Hortifrutigranjeiros do Vale do Sol, Centro de Pesquisas de Populações Tradicionais, Unimed, Central de Movimentos Populares (CMP/RO), Sindicato dos Urbanitários, Ceron, Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), União Estadual de Moradia Popular (UEMP/RO), Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), SENGE, OAB/RO, Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Grupo de Pesquisa Energia Renovável e Sustentável, Universidade de Rondônia (UNIRON), União Nacional dos Estudantes (UNE), Secretaria de Juventude do PT.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

• Autoridades federais: Gerência Regional do Patrimônio da União, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA/RO), INCRA/RO, deputado federal Eduardo Valverde (PT) e asses-sores da senadora Fátima Cleide. • Autoridades do Estado de Rondônia: Secretaria de Planejamento Estadual, Gerência de Planejamento, Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB/RO), Ministério Público Estadual (Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e Defesa do Patrimônio Público, Histórico, Cultural e Artístico e Promotoria de Justiça e Cidadania).• Autoridades do Município de Porto Velho: Secretaria de Planejamento Municipal, Secretaria de Educação Municipal, Secretaria de Saúde Municipal, Chefia de Gabinete do Prefeito.

As situações de violação ao Direito à Moradia

Ameaça de deslocamento forçado das comunidades ribeirinhas pela construção de duas grandes barragens no Rio Madeira

As hidrelétricas e os impactos aos direitos humanos

Apesar de as grandes barragens já terem deslocado mais de 1 milhão de pessoas e inundado 34 mil km2

de terras agricultáveis e de florestas, 64% do potencial hidrelétrico restante no Brasil encontra-se na Amazônia e os megaprojetos de hidreletricidade são priorizados pelo governo federal.

A nova Lei n° 10.848/04 definiu o critério de menor preço para o processo de licitação na comercialização de energia elétrica. Isto agrava a situação dos atingidos por barragem, porque a tendência das empresas é conter to-dos os gastos com as questões ambientais e sociais, para chegarem a um valor competitivo. O Ministério de Minas e Energia manifestou-se no sentido de não participar do tratamento da solução das famílias atingidas. Para melhor entendermos a questão: o custo das questões sociais e ambientais, previsto nos orçamentos das obras, gira em torno de 0,5 a 3,0% do total do orçamento da obra, mas em diversas barragens onde a população se organizou, os mesmos gastos variaram entre 25 e 30%.

A opção desse modelo de produção energética já trouxe diversos danos econômicos, sociais, culturais e ambientais para a região Norte do país, como demons-tram as áreas dos reservatórios das hidrelétricas de Tucuruí/PA, Balbina/AM e Samuel/RO.

Os danos para o desenvolvimento local são signifi-cativos por acarretarem penosas conseqüências sociais que envolvem comunidades ribeirinhas, indígenas, qui-lombolas, caboclas, etc. Entre elas estão, por exemplo, o aumento da mortandade dos peixes, a destruição dos iga-rapés – um dos principais locais de pesca dos ribeirinhos – a destruição da biodiversidade da floresta e perda de terras férteis de roçado, pela inundação da várzea do rio, decorrente da construção das barragens. A implantação de barragens, além de retirar a população ribeirinha de suas terras e moradia, impede seu meio de subsistência, já que esta população tem seu modo de vida estruturado a partir da convivência diária com rio.

Em maior escala, o represamento de rios agrava o efeito estufa, pela produção de gás carbônico: quanto maior a concentração de água, maior a concentração de materiais em decomposição e gases nocivos à camada de ozônio.

De acordo com Célio Bermann, professor do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP, as populações ribeirinhas são as maiores vítimas atingidas pela construção das obras, perdendo, invariavelmente, as suas condições de produção e reprodução social. Para o professor,

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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“O fato é que as populações ribeirinhas tiveram violen-tadas as suas bases materiais e culturais de existência. As obras promoveram o deslocamento forçado destas populações, acompanhado por compensações finan-ceiras irrisórias ou inexistentes; o processo de reassen-tamento, quando houve, não assegurou a manutenção das condições de vida anteriormente existentes. Na área das barragens, ocorreram diversos problemas de saúde pública, como o aumento de doenças de natureza endêmica, o comprometimento da qualidade da água nos reservatórios, afetando atividades como pesca e agricultura; e problemas de segurança das populações, com o aumento dos riscos de inundação abaixo dos reservatórios, decorrentes de problemas de operação. Ainda, grandes quantidades de terras cultiváveis ficaram submersas e, em muitos casos, a perda da biodiversidade foi irreversível17”. [grifos nossos]

Acesso à energia

Enquanto os construtores de barragens prometem o desenvolvimento das regiões atingidas, o que se assiste é sua transformação em geradores de energia que ser-virão a outras regiões. A interligação dos sistemas, que permite consumir a energia consumida em qualquer parte do território nacional facilita esta situação. Assim, por exemplo, nas vizinhanças de Tucuruí há localidades sem energia elétrica ao lado da rede de transmissão onde passa a linha de energia que abastecerá as fábricas que produzem o alumínio para exportação.

Quanto o acesso á energia como componente funda-mental de um padrão de vida digno e como componente da Moradia Adequada, é importante verificar para quem se destina a energia produzida pelos grandes projetos18. Bermann chama atenção para o fato de que cerca de 50% da energia elétrica no Brasil ser consumida por indústrias, sendo que 30% se restringe a seis tipos: ci-mento, aço, alumínio, ferro-ligas, petroquímica e papel e celulose, enquanto 20 milhões de pessoas não tem acesso à energia elétrica.

Segundo o professor, o Brasil precisa repensar ur-gentemente o perfil da indústria que quer, pois, quando

repensarmos a produção industrial brasileira, poderemos abrir novas oportunidades para a geração descentralizada de energia no país. Ele cita o exemplo do alumínio, como caso de produção de produtos com alto consumo de energia e baixo valor agregado:

“O alumínio é vendido a um preço insignificante para o mercado internacional e gera pouco emprego. Fiz uma avaliação há pouco tempo sobre a mão-de-obra empregada para produção de alumínio e concluí que é 70 vezes menor do que a gerada pela indústria de alimentos e bebidas e 40 vezes menor do que a gerada pela indústria têxtil”.

Bermann lembra que a geração de energia a partir da biomassa, da energia eólica ou das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) são alternativas mais adequadas ambientalmente e, do ponto de vista econômico-finan-ceiro, já se mostram competitivas. Mas observa: “Não fornecem energia em grande escala, mas essa escala é exigida pelas indústrias, pelos grandes centros urbanos”. Para Bermann, a privatização do setor tirou do Estado a capacidade de pensar a longo prazo, de planejar:

“O que hoje existe no Brasil são os programas nacio-nais de expansão. Cada ano, um comitê de expansão de energia elétrica faz um estudo prevendo o cresci-mento da demanda e, em função disso, estabelecem, de forma indicativa, os empreendimentos que devem ser desenvolvidos para atender o crescimento do mercado. Essa é a única referência de planejamento no Brasil. Os estudos de longo prazo da Eletrobrás não existem mais. O setor elétrico acha que o mercado tem

17 BERMANN, Célio. Hidrelétricas no Brasil: Desafios e Perspectivas, Artigo enviado para publicação na Revista Tempo e Presença n° 317, maio-junho/2001. Rio de Janeiro: Ed. Koinonia, p. 2.

18 Instituto Socioambiental. Energia para quem? . Retirado do si-tio: http://www.socioambiental.org/esp/bm/dest.asp. Acessado em 7/9/2005 (em seção especial sobre as hidrelétricas de Belomonte no Pará).

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

capacidade de resolver a oferta. O interesse público, portanto, fica à mercê do setor privado, o que não é a melhor forma de resolver o problema de energia, que é estratégico num país que tem 20 milhões de pessoas sem acesso à energia elétrica”. [grifos nossos]

Direito à água

O ideal do acesso à água como direito humano tem sido substituído cada vez mais pela referência à água como bem de valor econômico, consolidando-se um tratamento mercadológico sobre esse elemento essencial a qualquer forma de vida, e contrariando os artigos 1° e 2° da Declaração Universal dos Direitos da Água, procla-mada em 1992 pelas Nações Unidas, que caracteriza a água como “condição essencial de vida” e “patrimônio do planeta”19.

Privatizar ou desregulamentar a água significa obstruir as artérias vitais de uma coletividade, minar a capacidade de planejar as políticas públicas com foco na universalidade dos direitos e no controle social. A priva-tização da água para instituições financeiras e grandes investidores sinaliza a maleabilidade institucional do país como um todo, inclusive quanto à soberania. Escancarar as portas para o ingresso de investimentos privados, com suas dinâmicas verticais e incondicionais, provoca a inversão das prioridades do desenvolvimento do país. A distribuição de renda, a sustentabilidade ambiental e a integração regional devem ter como marco a definição da água como bem público, direito fundamental e objeto de gestão participativa.

O olhar das instituições financeiras para a Amazônia revela, neste contexto, uma política de privatização não declarada. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial influenciam políticas globais que gradativamente levam à desregulamentação pública das águas e servi-ços públicos essenciais que garantam o acesso à água. Quando assinam contratos de empréstimos com países pobres, por exemplo, exigem como cláusula contratual o compromisso de privatização das empresas públicas de água. Em vários locais, incluindo o Brasil (que possui 53% da reserva de água da América do Sul e 12% do

total mundial), existe uma forte pressão das multinacio-nais para a privatização da água, fenômeno que já vem acontecendo no caso das barragens.

A construção de barragens insere-se dentro dessa política que restringe o acesso à água e aposta na sua mercantilização, não considerando sua qualidade de bem essencial à vida. A construção de barragens nos leitos dos rios, na prática, impede o acesso das popu-lações ribeirinhas às águas do rio, privatizando alguns trechos. Grandes empresas proprietárias de barragens já manifestaram ao governo serem opostas em ceder a “sua água” dos lagos para criação de peixes ou para outras finalidades, a despeito dos recursos hídricos, bem como o potencial hídrico (de produção de energia, por exemplo), serem bens públicos, de acordo com nossa Constituição Federal.

Para avançar na defesa da água como bem público e sob gestão cidadã, merece destaque a iniciativa de formar uma coalizão de movimentos sociais, sindicatos e ONGs, contra a privatização da água em suas várias modalidades. Essa ação, que uiniu redes e organizações com forte atuação no setor, motivados pela necessidade de criação de um campo de referência comum na luta contra a privatização e a degradação das águas, foi lançada no Instituto Pólis, em São Paulo, no dia 18 de maio de 2005, com o intuito de formar uma coalizão em

19 Em nível nacional, as legislações sobre a água são: Constituição Federal de 1988; Lei Federal no 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Geren-ciamento de Recursos Hídrico, cujo art. 1o estabelece a água como bem de domínio público; a Lei Federal no 9.984/00, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional da Água, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a função de secretaria execu-tiva dos Comitês de Bacia Hidrográfica e de definidora dos valores cobrados pelo uso dos recursos hídricos.

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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defesa da água como bem público e sob gestão cidadã20. Naquele momento, foram identificadas as seguintes questões estratégicas a serem enfrentadas para a luta contra a privatização e a degradação das águas: educação ambiental; monitoramento de contaminação e de áreas de mananciais; participação efetiva na gestão por meio do Sistema Nacional de Recursos Hídricos; denúncia e obstrução das instituições financeiras multilaterais e empréstimos/financiamentos que envolvem a questão da água; medidas de precaução contra a construção e a implementação de barragens e obras de transposição; deslegitimação da tentativa de enquadramento privado do Aqüífero Guarani21 recomendada pelo Banco Mundial; e a luta contra a privatização de empresas estaduais e municipais de saneamento ambiental.

Reunião com a empresa Furnas na Comunidade Santo Antônio

Estima-se que, pela construção de usinas hidrelétricas no Rio Madeira em Porto Velho, cujo potencial hidrelétrico total será comparável à produção de Itaipu, serão inunda-dos 500 km2 de Floresta Amazônica22 entre as cidades de Porto Velho e Abunã, na fronteira com a Bolívia.

O Projeto do Complexo do Madeira, das empresas Furnas Centrais Elétricas S.A. e da Construtora Norberto Odebrecht, está sendo financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O em-preendimento prevê a construção de duas usinas hidre-létricas no Rio Madeira (Santo Antônio e Jirau), tornando o rio inteiramente navegável23. Aproximadamente US$ 5 bilhões24 serão gastos para a construção das usinas.

O Rio Madeira é a segunda maior hidrovia do mundo. É estratégico para o escoamento da produção de grãos, madeira, entre outros produtos como a soja produzida em larga escala no Centro-Oeste. A construção de eclusas e das barragens Jirau e Santo Antônio no Rio Madeira aumentaria o leito do rio permitindo a passagem de navios de maior porte.

A sobreposição de interesses econômicos nacionais e regionais às necessidades das comunidades locais,

conduz a perda de moradias e terra e a falta de acesso à água, retirando da população tradicional os meios de sua subsistência, promovendo a expulsão dessas comu-nidades para a zona urbana, onde passam a depender da inserção no mercado de trabalho urbano e do rece-bimento de salário para sobreviver.

Os estudos e levantamentos produzidos por Furnas não esclarecem as populações atingidas sobre os impactos possíveis. Segundo o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, o inventário produzido não apresenta respostas concretas aos impactos às populações ribeiri-nhas, ao patrimônio histórico ou ao meio ambiente.

20 Estiveram presentes a FBOMS, a REBRIP e Frente Nacional de Saneamento Ambiental, Sintaema, Secretaria Ambiental da CUT, ESPLAR/CE, Terra de Direitos/PR, Terra Azul/CE, Instituto Socioambiental de Desenvolvimento/PR, Rios Vivos/MS, Instituto Socioambiental/SP, Instituto Maurício Grabois, ATTAC, Movimento dos Atingidos por Barrragem/RS, Sindicato dos Engenheiros, Instituto Ipanema/RJ, Instituto de Pesquisa em Ecologia Humana/SP, Fórum Estadual do Lixo e Cidadania/SP, Canindé-Rondônia, ECOA.

21 O Aqüífero Guarani é o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo. Está localizado na região centro-leste da América do Sul, em uma área de 1,2 milhões km2, estendendo-se pelo Brasil (840.000l km2), Paraguai (58.500 km2), Uruguai (58.500 km2) e Argentina (255.000 km2). Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total), abrangendo os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

22 PAIM, Elisangela Soldatelli. “IRRSA – É esta a integração que nós queremos?”. Núcleo Amigos da Terra/Brasil, dezembro 2003. Dispo-nível em: http://www.riosvivos.org.br/arquivos/2118962134.pdf.

23 Segundo o BNDES, o projeto gerará US$ 8 bilhões/ano; destes, a maioria – US$ 6,82 bilhões – estariam relacionados ao “aumento da produção agrícola” na região, ou seja, principalmente pelo es-coamento de soja dos Estados de MT, RO, AM.

24 Diário do Senado Federal. Raupp,Valdir (senador do PMDB), em dezembro de 2003. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/pdf/05122003/40153.pdf.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Foi essa mesma situação que a Relatoria pôde cons-tatar ao participar de reunião em que representantes da empresa Furnas, acompanhados da superintendência do IBAMA/RO e do então representante do Programa Fome Zero25 na região, (Roberto Sobrinho, atualmente prefeito) apresentou o projeto de instalação da hidrelétrica para os moradores da comunidade Santo Antônio.

Os representantes de Furnas informaram que os estudos que diagnosticam os meios físico (solo, água), biótico (flora, fauna) e socioeconômico (caracterização e apoio às comunidades locais) estão sendo conduzidos pela empresa, em parceria com instituições de ensino e pesquisa localizadas na região amazônica, como a Universidade Federal de Rondônia, o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e a Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais26.

Segundo a empresa, os estudos de engenharia adotaram cuidados para que os impactos na construção das usinas hidrelétricas sejam “os menores possíveis”. Assim, as duas barragens terão baixa queda – Santo Antônio, 13,90m; Jirau, 15,20m. As turbinas serão do tipo bulbo, das mais modernas em utilização no mundo. Este tipo de turbina não exige grandes reservatórios, mas grandes volumes e velocidade de água. De acordo com a empresa, as áreas inundadas serão as mesmas das cheias anuais do rio.

A reunião teve explicitamente o caráter de informar os pescadores sobre o projeto, sem qualquer tipo de consulta, nem pela empresa nem por representantes do governo, sobre a vontade dos ribeirinhos de perma-necerem em suas terras. As pessoas foram claramente convidadas para ouvir e não para dialogar, o que se evidenciou, inclusive, pela dificuldade de as pessoas em esclarecer suas perguntas. Esse é o caso de um senhor de cerca de 70 anos, pescador e morador de Santo Antônio que tentou perguntar se poderia continuar pescando na área de onde tira seu sustento desde menino, mas não conseguiu ser ouvido e retirou-se da reunião.

Vale destacar que ainda não existe nenhuma licença autorizando o projeto; apesar disso, a apresentação foi feita como se a implantação do projeto estivesse decidida,

e em momento algum foi dada atenção ao destino da-queles que ali se reuniam. Após questionamentos feitos por esta Relatoria, acerca da agenda de participação e consulta e sobre os estudos de viabilidade do projeto, a população sentiu-se mais à vontade para questionar, mesmo amedrontados. Ainda assim, não se responderam as perguntas dos moradores e pescadores que moram na região quanto à ameaça de deslocamento, o número de famílias atingidas e a data de início do projeto. Sobre os possíveis deslocamentos, o representante de Furnas respondeu que não são de sua responsabilidade.

Visita à comunidade ameaçada de deslocamento: Engenho Velho

Engenho Velho, assim como a Comunidade Santo Antônio, espelham o conflito entre a implantação de uma hidrelétrica e a sobrevivência das comunidades locais de agricultores e pescadores, que sobrevivem da pesca no Rio Madeira e sofrerão os impactos negativos com a construção das usinas hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau, sob a gerência da empresa Furnas S.A.

Segundo expôs Rosieiri Inocenci (socióloga da empresa) durante a Audiência Pública, o projeto de construção das hidrelétricas ainda está em fase inicial de elaboração dos estudos de viabilidade técnica. Esta informação, entretanto, é utilizada como justificativa

25 O Programa Fome Zero é um conjunto de 31 programas e ações integradas que estão sendo implantadas gradativamente pelo governo federal, com o objetivo de garantir segurança alimentar e nutricional aos brasileiros. As iniciativas envolvem todos os ministérios, as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e a sociedade. Segundo o presidente Luis Inácio Lula da Silva, desde 2003 foram investidos 27 bilhões nesse projeto.

26 Informações também disponíveis na Internet, em: http://www.furnas.com.br/negocios_novos_projetos_07.asp

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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para o fato de o projeto não ter sido sequer apresentado às comunidades que serão diretamente atingidas pelo empreendimento. Isso se comprova na fala de Inocenci: “Este empreendimento vai demorar de 10 a 12 anos, não se preocupem, toquem a vida”.

Em visita às comunidades Santo Antônio e Engenho Velho, observou-se um clima de preocupação, mas, apesar da insegurança gerada pela falta de esclarecimento pelo próprio governo, as famílias demonstram resistência a sair de suas terras, como revela o depoimento de Raimunda Curtinho, ex-moradora de Cachoeira Teotônio, que vive há 23 anos em Engenho velho, do outro lado do rio:

“Há 23 anos estou morando aqui. Quero permanecer aqui, não tenho para onde ir. Aqui é o patrimônio da onde a gente vive: da pesca, da roça. Aqui tenho minha verdura e minhas frutas fresquinhas. Até agora o pessoal da hidrelétrica não se manifestou. A gente quer perma-necer no que é da gente. Se a gente for para a cidade, não temos como plantar, pescar, sobreviver (...)

Aqui temos tranqüilidade, podemos criar nossos filhos. Temos tranqüilidade até pra dormir. Começar a vida nesta altura é muito difícil. (...) Não vão inde-nizar o campinho de futebol, nem o de vôlei, nem a prainha”.

Em relação ao modo de trabalho da empresa Furnas, e ao benefício que teria com a implementação das hidre-létricas, Dona Raimunda complementa:

“Pelo que sei, a empresa Furnas ainda não se mani-festou em nossa comunidade. Só falam que têm que fazer a pesquisa e que a hidrelétrica tem que sair. Eles nunca pediram autorização de ninguém para fazer a pesquisa e entrar na nossa terra. A hidrelétrica não vai gerar benefício. Se gerar energia, a gente vai ter que pagar. E não vai ser nem para nós, porque a gente não vai estar aqui. Pelo jeito, não vai trazer benefício nenhum, só medo de perder a terra e risco de vida”.

Para José da Silva Machado, morador de Engenho Velho:

“O nosso problema com o pessoal de Furnas é esse: eles estão dizendo que é só um levantamento. Mas

esse levantamento tem que incluir os moradores. Se eles ficarem só em pesquisa, pesquisa, pesquisa... Precisamos de uma garantia. (...) Prefiro ficar, a receber uma indenização. Pelo menos você já está garantido. Seu sustento está aqui”.

No dia 16 de maio, a Relatoria Nacional da Moradia visitou Engenho Velho, quando realizou uma reunião com mais de 20 pessoas. A comunidade reúne 30 famílias na beira do rio, ao lado da cachoeira Santo Antônio (onde seria construída uma das hidrelétricas), e a 800m do igarapé.

As famílias que hoje vivem da pesca e do roçado perderiam suas terras e a proximidade com o rio pela inundação de terras férteis para a construção das bar-ragens. Os diques para passagem dos navios passariam justamente onde hoje ficam os igarapés dos pescadores, como se vê pela fala do pescador José da Silva Machado, que diz: “O igarapó tem muito peixe. Quando o rio entrar aí dentro (inundação devida à construção da barragem), vai acabar tudo”.

Enquanto se discutia a implantação das hidrelétricas para produção energia, uma das moradoras contou que, para terem acesso à energia, a própria comunidade teve de instalar um transformador, “se fosse para depender do governo, hoje a gente tava no escuro”.

Dado o grande porte da obra e exigência de quali-ficação, Silva não acredita que a mão-de-obra local seja aproveitada. Nos outros empreendimentos similares, a maioria dos trabalhadores foram trazidos de outros Estados, principalmente do Sudeste. Mesmo quando são contrata-dos trabalhadores locais, estes são alocados em postos e funções de menor remuneração atuando como trabalha-dores temporários, sem vínculo empregatício formal.

Em relação às indenizações, como bem notou Wesley Ferreira, representante do Movimento de Atingidos por Barragem: “Quando se fala em indenizações, é para as pessoas se preocuparem, sim. Porque ali está em jogo o sustento da sua família”.

A principal preocupação dos moradores é quanto à indenização de suas áreas de plantação e de lazer, onde seus filhos crescem com liberdade. José Osório de Freitas, 65 anos, gostaria que as casas, “a igrejinha”, as

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

plantações entrassem no valor da indenização: “é muito difícil achar outra área boa, não tenho o costume de viver na cidade. Tudo que temos aqui tem preço, preço alto, valor de uma vida”.

Arthur Moreti, do Fórum de Debate de Energia de Rondônia, durante a Audiência Pública, lembrou que as indenizações pagas são sempre baixas: “Furnas, por exemplo, pagou, por 15 hectares de terra, 624 reais”.

Reunião com Secretário de Planejamento do Governo do Estado de Rondônia

Para Edmundo Lopes, Secretário de Planejamento Administração e Coordenação Geral do Governo do Estado, representando o outro lado da discussão, os benefícios do projeto das hidrelétricas para Rondônia seriam incontestáveis. Ele apontou o aumento da arrecadação por meio de impostos e divisas, e a possi-bilidade de exportação de energia, como medidas que garantiriam melhor qualidade de vida para todos. Para o secretário, os recursos que serão gerados poderão compensar as populações ribeirinhas deslocadas em razão das hidrelétricas.

Posição da Prefeitura Municipal de Porto Velho

De acordo com a notícia “Prefeito busca parcerias e conhece protótipo da hidrelétrica de Jirau”, de 5 de junho de 2005, disponível na página institucional da Prefeitura na Internet, depois da apresentação do protótipo da usina hidrelétrica de Jirau (em funcionamento), tal qual a que será construída no Rio Madeira, feita pelo presidente de Furnas ao prefeito Roberto Sobrinho e à senadora Fátima Cleide, o prefeito declarou:

“Realmente impressiona, mesmo em formato de ex-posição e teste, a grandiosidade de uma obra como essa. É um megaprojeto que tem papel fundamental na retomada do crescimento da capital”.

Segundo a reportagem, o então presidente da Eletrobrás, Silas Rondeau, reconheceu que o projeto de Furnas para construção das usinas em Porto Velho está mais avançado e completo do que o da usina de Belo Monte, no Pará27. Neste caso, o processo foi interrompido graças à organização popular indígena e de organizações ambientalistas, que conseguiram que o Ministério de Minas e Energia redimensionasse mais de uma vez o projeto e os estudos ambientais, integrando a ação dos ministérios do Meio Ambiente e das Minas e Energia para minimizar os impactos socioambientais para as populações locais.

A notícia informa que o estudo dos impactos ambien-tais está sendo apreciado no IBAMA e o próximo passo, caso seja aprovado, é dar início às Audiências Públicas.

É bastante preocupante a posição da Prefeitura, que considera o projeto como decidido e certo, independente dos impactos que tenha para a população ribeirinha portovelhense, como revela a fala do prefeito:

“Eu e a senadora saímos dessa Audiência confiantes. Encaramos as usinas do Rio Madeira como realidade e, em função disso, a Prefeitura já está concluindo o levantamento da mão de obra que será utilizada para iniciar a capacitação”. [grifos nossos]

O posicionamento dos governos (municipal, estadual e federal), favorável a priori, abre caminhos para a imple-mentação do projeto e infringe princípios constitucionais da administração pública, fundamentais para garantir direitos humanos: legalidade, moralidade e impessoali-dade (art. 37 da Constituição Federal). Coloca em risco a defesa dos interesses das populações ribeirinhas, pela

27 O Pará vive uma estranha situação no projeto de Belo Monte: a usina fica em seu território, mas no projeto, tanto a energia quanto os impostos gerados não o beneficiarão. A energia será transmitida para o sistema interligado e abastecerá principalmente as Regiões Nordeste e Centro-Sul. Já o Imposto sobre Circulação de Mercado-rias e Serviços (ICMS) é pago apenas onde a energia é consumida. Fonte: www.oempreiteiro.com.br/oe428/energia.htm, acessado em 15/11/2005.

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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aceitação do discurso dos investidores, em detrimento de uma atitude precaucionária com vistas a resguardar o interesse público contra o projeto, quanto aos impactos que terá e, dentre esses, os danos socioambientais.

Este processo torna as comunidades ribeirinhas mais vulneráveis, ainda mais com a estigmatização promovida e reforçada pela mídia, daqueles que se colocam contra o projeto como avessos ao progresso.

Violações em curso e ameaças de violação identificadas

Aqueles que serão potencialmente atingidos pela implantação das hidrelétricas, na verdade, já são vítimas de violações de direitos humanos.

Violação do Direito à Informação: pela falta de acesso da população a informações sobre o projeto (dimensão, titularidade, riscos e impactos), e sobre seus direitos. A informação é pressuposto para que os cidadãos participem nos processos de decisão política e tem de ser garantida em todo o processo de desenvolvimento de projetos, desde a elaboração, avaliação (estudos e levantamentos) e a im-plementação (art. 5o, inciso XIV, da Constituição Federal). As autoridades demonstram não ter conhecimento sobre os possíveis impactos sociais do projeto.

Violação do Direito à Participação: falta de parti-cipação e diálogo com a população, em momentos de decisão, como, por exemplo, na discussão sobre o termo de referência do estudo de impacto ambiental, quando foram chamados setores da construção civil e engenharia, e foram excluídas as comunidades. As populações locais atingidas devem participar diretamente da definição dos projetos estratégicos a serem implantados em sua cidade (art. 1o, parágrafo único, Constituição Federal; e art. 2o, inciso II, Lei Federal no 10.257/0128), atuando como agentes e beneficiários do desenvolvimento. A partici-pação depende da efetiva e ampla divulgação, em local e tempo apropriados, com procedimentos não apenas consultivos, mas deliberativos.

Violação do Direito à Igualdade e à não-discri-minação: o posicionamento dos governos municipais,

estadual e federal, favorável a priori, abre caminhos para a implementação do projeto, infringe princípios constitu-cionais da administração pública que são fundamentais na garantia de direitos humanos (art. 37, Constituição Federal), e colabora para a “invisibilidade” das comu-nidades tradicionais, dos pontos de vista econômico, social e cultural, apesar de elas serem auto-suficientes e não dependerem do emprego na cidade. Constatou-se também a intimidação dos ribeirinhos pela invasão das propriedades por técnicos contratados por Furnas para fazerem medições e levantamentos, sem qualquer informação prévia a respeito do projeto e alternativas para as famílias. O Estudo de Impacto Ambiental está sendo tratado apenas como uma etapa burocrática do procedi-mento de licenciamento, não como o que parece ser seu verdadeito intutito: um pressuposto indispensável para decidir se o projeto é viável ou não. O posicionamento parcial dos entes públicos discrimina as populações ribei-rinhas, afetando a proteção de seus direitos e promoção de suas potencialidades.

28 Respectivamente correspondentes ao direito à democracia direta e o direito de participar da gestão da cidade.

29 Transcrição do artigo 7o do Decreto no 5.051/04 que regulamenta a Convenção 169 da OIT: “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los dire-tamente”. [grifos nossos]

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Violação ao Direito Humano à Moradia e à regulari-zação fundiária30: pela ameaça de deslocamento forçado da população ribeirinha que, há décadas, vive às margens do Madeira e tem o direito à regularização fundiária no lugar onde vivem e moram (artigos 6o e 186, Constituição Federal; e Lei Federal n° 10.257/01). A falta de segurança jurídica da posse expõe as famílias ribeirinhas ao temor do deslocamento forçado. A outorga da concessão de direito real de uso para as populações ribeirinhas31 (artigos 215 e 216, Constituição Federal) é uma forma de garantir seu Direito à Terra e à Moradia.

Vale destacar que a precariedade da infra-estrutura e dos serviços básicos, assim como a ilegalidade urbana, tendem a ser agravadas, uma vez que o município não tem estrutura urbana para receber o fluxo migratório que acompanhará o empreendimento.

Ameaça de Violação do Direito Humano à Alimentação Adequada: a remoção das comunida-des afetará a Segurança Alimentar e Nutricional das famílias que vivem do extrativismo dos espécimes locais, seja para auto-consumo ou geração de renda. A construção das hidrelétricas do Rio Madeira afetará a disponibilidade de alimentos, já que a construção de barragens e diques tende a aumentar a mortandade de peixes, afetando negativamente o abastecimento local, a subsistência e a renda das comunidades ribeirinhas, como em Engenho Velho.

Ameaça de Violação do Direito Humano ao Meio Ambiente: dado que a degradação ambiental prejudicará a qualidade de vida da população e, especialmente, dos grupos tradicionais que se prevê que sejam expulsos de seu território, sofrendo desestruturação produtiva, social e cultural, pela perda de acesso aos bens ambientais de uso tradicional. O projeto ainda não tem nenhuma licença para sua implantação. Os Estudos de Impacto Ambiental não são meras etapas burocráticas a serem observadas; deve-se considerar que, tecnicamente, os Estudos de Impacto Ambiental podem concluir que os empreendi-mentos não possuem viabilidade socioambiental.

Ameaça de Violação do Direito Humano à Saúde: a construção das barragens pode elevar drasticamente

o número de casos de malária, já muito alto na região. Para os trabalhadores vindos de fora, que não possuem o anticorpo da doença, há risco ainda maior.

Ameaça de Violação à preservação do patrimônio histórico, cultural e ambiental: por as comunidades serem tratadas, no geral, como se fossem ocupantes recentes das áreas, sem que sejam reconhceidos seus direitos culturais expressos pelos modos de criar, fazer e viver das populações ribeirinhas ou beiradeiras, como são conhecidas as que vivem há mais de cem anos na região (art. 216, Constituição Federal); por os sítios ecológicos, paisagísticos e nos quais estão depositadas reminiscências históricas da cidade (por exemplo, Santo Antônio) estarem ameaçados pela inundação das terras das regiões ribeirinhas, decorrentes da construção das barragens na cachoeira de Santo Antônio e Jirau.

30 De acordo com o artigo 16 da Convenção 169 OIT, os povos tradicionais, como regra, não podem ser deslocados das terras que ocupam. O deslocamento depende do “consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa”. Já o artigo 27 c/c 26 da Convenção Americana de DDHH, diz que somente em caso de “guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-Parte”, os povos tradicionais podem ser deslocados. Quanto à justa reparação, os povos deslocados deverão receber terras de qualidade e estatuto jurídico pelo menos igual às terras que ocupavam anteriormente, lhes permitindo cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. A indenização em dinheiro é apenas subsidiária.

31 Os institutos são previstos, respectivamente: Decreto no 271 de 28/2/67 (CDRU), Estatuto da Cidade (Usucapião Coletivo) e Medida Provisória 2.220/01 (Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia).

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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A missão da Relatoria Nacional da Moradia a Porto Velho, ao identificar as ameaças de violações dos direitos humanos das populações ribeirinhas, busca contribuir para a prevenção de violações que podem e devem ser evitadas pelo Governo Brasileiro, em especial pela Prefeitura de Porto Velho. Essa Prefeitura, em nome do interesse local, deve adequar qualquer grande projeto de interesse regional e nacional aos interesses e ne-cessidades das populações locais. A revisão do Plano Diretor da cidade de Porto Velho, feita de forma ampla e participativa, é instrumento fundamental para compa-tibilizar e regulamentar estes projetos, em consonância com as prioridades para o desenvolvimento urbano de Porto Velho, garantindo a todos o direito à cidade sus-tentável e à justa distribuição dos bônus dos projetos de desenvolvimento, de acordo com o Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/01).

Ameaça de deslocamento forçado de bairros históricos pela implantação do projeto turístico Beira Rio na orla do Rio Madeira

“Meu pai trabalhou na estrada de ferro, eu cheguei aqui com 5 anos (...) não tinha rua ... a gente andava na estrada de ferro”Nelson, Bairro Triângulo

No dia 18 de maio de 2004, a Relatoria Nacional da Moradia visitou o Bairro Triângulo, que, junto com os bairros vizinhos – Santo Antônio, Candelária e Baixa da União –, são ameaçados de deslocamento, pela im-plantação do projeto Beira Rio, da Prefeitura Municipal de Porto Velho.

A comunidade denunciou que não foi oficialmente informada, mas escutou rumores de que será implanta-do às margens do Rio Madeira o projeto Beira Rio, um projeto turístico que visa a construir um calçadão de 7km

de extensão, do início da estrada de ferro até a cachoeira de Santo Antônio. Não há informações públicas sobre o projeto, como o montante de recursos envolvidos, a área de abrangência e o modo de participação da população local. Uma das moradoras presente na reunião com a Relatoria expressou o sentimento geral dos moradores: “Nós queremos saber o que vai acontecer com a gente. O pessoal da Prefeitura ainda não se manifestou”.

A construção do calçadão paralelo ao curso do Rio Madeira implicaria o deslocamento da população que vive nos bairros históricos localizados entre o rio e a antiga estrada de ferro Madeira-Mamoré. Além disso, a construção das usinas hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau, também poderá acarretar impactos negativos a essas comunidades.

As obras foram interrompidas. De acordo com a notícia de 4 de setembro de 2005, “Prefeitura elabora projetos para fortalecer turismo” disponível na página institucional da Prefeitura na Internet32, este projeto está dentro do contexto da urbanização da orla do Madeira. É descrito como “uma obra de grande importância que vai mudar radicalmente a entrada da cidade, via Rio Madeira, que, além da geração de emprego, certamente atrairá mais turistas”. Segundo a notícia, a obra, além de criar oferta de empregos, melhoraria a qualidade de vida da população local.

Tradicionalmente, os projetos turísticos, a exemplo das avenidas beira-mar das capitais nordestinas, são empreendimentos de interesse do setor hoteleiro e da construção civil, que acabam destinando a área próxima à praia àqueles que têm maior renda, e as pessoas que antes ali moravam e viviam da praia (como comunidades de pescadores) são afastados da região para regiões peri-féricas; e, da população mais pobre, só pequena parcela pode freqüentar a beira-mar, os hotéis e restaurantes, como empregados.

32 Página na Internet: www.portovelho.ro.gov.br. Acessado em 10/10/2005.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

A Relatoria realizou reunião no Bairro Triângulo, da qual participaram cerca de 40 pessoas dos bairros Santo Antônio, Triângulo e Baixa da União, localizados próximos a região central da cidade. Os moradores contaram que os bairros ameaçados de deslocamento são bairros históricos, remanescentes da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, durante o início da formação da cidade (1912). Além disso, são terras de propriedade da União.

O Bairro Triângulo, um dos primeiros bairros de Porto Velho, constitui o trecho no qual a cidade começou, entre as margens do Madeira e da estrada de ferro Madeira-Mamoré, patrimônio histórico da cidade.

Nesses bairros há ainda outra questão latente: in-compatibilidade entre as tarifas de energia cobradas pela CERON (Companhia de Energia de Rondônia) e o perfil de baixa renda da população. Segundo informações fornecidas pelos moradores, as tarifas de energia elétrica nesses bair-ros são extremamente altas, chegando a 314,00 reais, na residência de uma das moradoras presentes na reunião.

Os moradores reivindicam a regularização fundiária e a transformação da área em Zona Especial de Interesse Social, para a conquista do título de posse da área em que vivem há décadas. Diversos moradores antigos, portadores da história e identidade da região da cidade, participaram da reunião. Nelson, por exemplo, contou:

“Moro aqui há 60 anos, não tenho escritura. Meu pai trabalhou na estrada de ferro e eu cheguei aqui com 5 anos. Não tenho documento da terra. Pagamos IPTU (...) Esse bairro é o mais antigo de Porto Velho. (...) Na década de 50, 60, do ciclo da borracha, da época dos soldados da borracha, não tinha rua (...) a gente andava na estrada de ferro”.

Quanto à possibilidade de deslocamento, Nelson pergunta: “Para onde vamos”?

Raquel de Oliveira da Costa, 76 anos, que sempre morou no Bairro Triângulo, tem uma resposta: “Só saio daqui quando pegar uns sete palmos de terra. Vou deixar mi-nha casa pros meus netos, ninguém mexe comigo não”.

Os moradores do Bairro Triângulo, também se deno-minam ‘beradeiros’ porque nasceram e vivem na beira do rio, ouvindo histórias de pescadores e indo a pescarias

com a comunidade. Também contaram que no mês de junho participam com a quadrilha “Matutos do Triângulo”, do maior arraial aberto do Estado e o 2o maior da Região Norte – conhecido como Flor do Maracujá.

Moizés Filho, que mora há 29 anos na Baixa União, lembra que o lugar que hoje é um esgoto, era um lago onde se tomava banho.

O Bairro Baixa da União está localizado sob uma área alagadiça, que está sendo aterrada pela iniciativa dos próprios moradores. A associação local de moradores impetrou ação solicitando à Gerência de Patrimônio da União a titulação da área e a construção de equipamen-tos comunitários. A ação relata a falta de infra-estrutura, saúde, esgoto e limpeza, demandando que a área seja transformada em área comunitária, com a construção de um posto de saúde e um centro comunitário. A ação relata que a comunidade cuidou do aterro da área, sem a cooperação dos órgãos públicos.

Violações em curso e ameaças de violação identificadas

Violação do Direito à Informação: pela falta de aces-so da população a informações sobre o projeto e sobre seus direitos. A informação é pressuposto para que os cidadãos participem nos processos de decisão política e tem de ser garantida em todo o processo de desen-volvimento de projetos, desde a elaboração, avaliação (estudos e levantamentos) e a implementação (art. 5o, inciso XIV, Constituição Federal).

Violação do Direito à Participação: pela falta de participação e diálogo com a população. As populações locais atingidas devem participar diretamente da definição dos projetos estratégico a serem implantados em sua cidade (art.1o, parágrafo único, Constituição Federal; e art. 2o, inciso II, Lei Federal no 10.257/0133), partici-

33 Respectivamente correspondentes ao direito à democracia direta e o direito de participar da gestão da cidade.

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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pando da justa distribuição dos benefícios, não apenas dos prejuízos dos projetos de desenvolvimento urbano. A participação depende da efetiva e ampla divulgação, em local e tempo apropriados, com procedimentos não apenas consultivos, mas deliberativos.

Violação ao Direito Humano à Moradia e à regulari-zação fundiária: pela ameaça de deslocamento forçado da população dos bairros históricos consolidados que tem o direito à regularização fundiária no lugar onde vive e mora (artigos 6o e 183, Constituição Federal), mediante a outorga gratuita da concessão especial de uso para fins de moradia (Medida Provisória 2.220/01). A falta de segurança jurídica da posse expõe as famílias ribeirinhas ao temor do deslocamento forçado.

Violação do Direito às tarifas sociais de energia: por desobediência ao art. 47 da Lei Federal n° 10.257/01 que prescreve: “Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciadas em função do interesse social”.

Ameaça de Violação às leis de preservação do patrimônio histórico e cultural: pelo tratamento das comunidades em geral, como se fossem ocupantes re-centes das áreas, sem as reconhecer como portadoras da identidade da cidade, e descaso com o patrimônio histórico-cultural representado pelas áreas que ocupam (os primeiros bairros da cidade, que reportam à constru-ção da estrada de ferro Madeira-Mamoré).

Insalubridade e precariedade habitacional da Comunidade Vila Princesa, que vive junto a lixão de onde tira seu sustento

Vila Princesa é uma comunidade existente há sete anos, situada a 7km do Centro de Porto Velho, à margem da Rodovia BR-364. A área é de propriedade municipal, onde está localizado o depósito a céu aberto de lixo. Este lixão ocupa uma larga extensão de área, que se inicia a cerca de 1km da vila de casas, onde moram aproxima-

damente 135 famílias, somando mais de 500 pessoas, das quais 300 são crianças.

As condições de vida da Comunidade Vila Princesa são precárias, devido às condições insalubres de vida, pelo fato de as pessoas morarem próximas ao lixão, área contaminada pela falta de engenharia sanitária e de tra-tamento dos resíduos depositados neste local.

Além disso, não há infra-estrutura urbana (sanea-mento básico, ruas abertas, iluminação púbica, coleta de lixo, abastecimento de água, etc.), faltam equipamentos comunitários, como posto de saúde e escola para a conclusão do ensino fundamental. Não há equipamento de cultura e lazer, apenas televisão, como definem os próprios moradores, desabafando durante a visita da Relatoria: “Aqui é só trabalho. Só há televisão”.

Os moradores da Vila Princesa vivem à margem de qualquer política pública que vise a garantir-lhes um padrão de vida decente, ou seja, moradia e trabalho em condições adequadas. Segundo Anacleto Vanderlei de Andrade: “Se dependesse dos órgãos públicos, a gente aqui ainda estava na base da lamparina”.

Além de omitirem-se, os órgãos públicos discrimi-nam esta população, por exemplo, por entenderem que a comunidade não precisa ser atendida pelo serviço de coleta de lixo. Esse fato é denunciado por Anacleto: “É um nó cego que não desata. A Prefeitura não faz o que pode, nem o que não pode”.

Algumas entidades, como a Universidade Unimed, desenvolvem um trabalho de apoio à comunidade, como a criação do “Projeto de Desenvolvimento Comunitário Integrado da Vila Princesa” que visa a solucionar os pro-blemas prioritários de saúde, meio ambiente, educação e infra-estrutura urbana, além de promover o resgate da ci-dadania por meio da geração de emprego e renda. Desde que foi criado, há cerca de um ano e meio, o Projeto da Vila Princesa, em parceria com outras entidades, em 1999, construiu e equipou uma escola (1a a 4a série) que atende 143 crianças. A Paróquia Nossa senhora de Fátima, a JOCUM e o Banco do Brasil (que empresta um caminhão que semanalmente recolhe doações de material reciclável, que são entregues à comunidade)

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

também são entidades que apóiam a luta da comunidade por um padrão de vida digno.

Quanto ao trabalho e subsistência, o lixão é a única fonte de renda desta comunidade: 99,1% das pessoas trabalham na catação e venda de materiais recicláveis (papéis, latas, garrafas plásticas, etc.) encontrados no meio do lixo.

Os catadores estão organizados em uma cooperativa, devidamente documentada, localizada em um galpão ao lado do lixão na área onde as pessoas moram. O galpão, onde os moradores armazenam o material reciclável co-letado, foi providenciado pela própria comunidade, para o trabalho da cooperativa.

Considerando que toda Vila Princesa vive direta ou indiretamente (por ter um pequeno comércio no local) da catação de resíduos do lixão, a principal reivindicação dos moradores é a implantação do sistema de coleta seletiva e a construção de uma usina de compostagem, para que os resíduos orgânicos também sejam tratados. Além disso, os moradores também reivindicam apoio governamental à cooperativa.

A manutenção de depósito de resíduos sólidos a céu aberto é uma violação às leis que regulam a saúde pública e a proteção ao meio ambiente, por causar a contaminação do solo, do lençol freático e do ar. Além disso, e tão grave quanto morar próximo a este local e, principalmente, trabalhar dentro do lixão, o depósito cria uma situação de alta vulnerabilidade, posto que as pessoas ficam expostas a condições absolutamente insalubres.

Em vista disso, o Ministério Público Estadual, sob o fundamento de existência de risco à saúde e ao meio ambiente, propôs Ação Civil Pública contra o Município de Porto Velho. O Ministério Público Estadual denunciou a contaminação dos igarapés existentes na área que com-promete os lençóis freáticos. O município foi condenado provisoriamente e recorreu da decisão. Caso a sentença seja confirmada, a decisão afetará diretamente a comu-nidade, pois declarará o local como inadequado para a permanência dos moradores e a instalação da usina. A comunidade, por outro lado, reivindica a permanência no

local e a manutenção do depósito de lixo na área, que, tradicionalmente é fonte de renda para os moradores.

A Relatoria Nacional da Moradia, de acordo com disposições da Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal no

9.605/98), enfatiza que os lixões devem ser erradicados e a área em que estão situados deva ser recuperada. Ao mesmo tempo, as pessoas que vivem hoje da catação e triagem dos resíduos devem ser incorporadas em siste-mas públicos de reaproveitamento de resíduos sólidos, de forma a valorizar sua organização e experiência na recuperação de materiais recicláveis, gerando trabalho e renda, como também promovendo condições dignas de trabalho e vida para essas pessoas: moradia, saúde, educação, saneamento ambiental.

O Relator Nacional pelo Direito à Moradia recomen-dou que seja elaborado um Termo de Ajustamento de Conduta, conhecido com TAC, que corresponde a um acordo entre a Prefeitura, comunidade e o Ministério Público, para garantir a implementação de todas as medidas necessárias para garantir o Direito à Moradia e o trabalho em condições adequadas, decidindo conjuntamente o melhor local para a moradia, para a cooperativa e para a usina. Ressalte-se que a área que o município propôs ao Ministério Público para a transfe-rência do depósito, próxima do Rio das Garças, também é inapropriada.

Nas palavras de Elisabeth Gimberg34, “os lixões de-vem ser erradicados com cidadania, sempre que houver pessoas trabalhando nos mesmos” e deve-se construir um aterro sanitário e recuperar a área degradada. A médio prazo, os lixões devem deixar de existir, visto que, implantada a coleta seletiva, os resíduos recicláveis e os compostáveis deverão ser reaproveitados, indo para aterros sanitários apenas o rejeito (resíduos para os quais não existe tecnologia ou mercado para reciclagem).

34 Coordenadora do núcleo de Ambiente Urbano do Instituto Pólis e colaboradora desta publicação.

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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A longo prazo, Grimberg lembra que, mediante uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, discutida junto ao governo federal e que está tramitando no Congresso Nacional,

“deverão ser instituídos mecanismos e instrumentos para reduzir a quantidade de embalagens produzidas, como também a responsabilidade estendida de toda a cadeia produtiva quanto aos resíduos gerados, passi-vos ambientais, para que se criem fundos públicos que financiem sistemas municipais de reaproveitamento de resíduos com inclusão social”.

É importante destacar que a nova gestão municipal vem investindo na comunidade como uma de suas prioridades, tendo garantido a inclusão do transporte coletivo, rede de água e esgoto, urbanização, iluminação pública, limpeza e cascalhamento da comunidade, além de apoiar a participação dos catadores em atividades de capacitação e do Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável (MNCR).

Violações em curso e ameaças de violação identificadas

Violação do Direito Humano à Saúde (art. 196, Constituição Federal): pelas condições insalubres e perigosas de trabalho dentro de um lixão, expondo os catadores a condições precárias de saúde, com risco de contrair doenças e ferimentos pelo contato direto com o lixo contaminado, no qual se multiplicam veto-res transmissores de doenças. O Direito à Saúde deve ser garantido como componente do Direito à Vida e à Dignidade, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e que promova o acesso universal e igualitário ao serviço de saúde.

Violação ao Direito ao Trabalho: a segurança e integridade física do trabalhador são componentes fundamentais do Direito ao Trabalho. As famílias de Vila Princesa, que sobrevivem da catação de resíduos sólidos e separação e venda de materiais recicláveis, trabalham

em condições inadequadas, devido ao contato direto com o lixo, com materiais cortantes, com vetores de doenças. A inexistência de coleta seletiva, que separe o material reciclável dos demais, na fonte geradora, coloca as famílias de Vila Princesa em situação de risco à saúde e em condições indignas de vida. A comunidade está organizada em uma cooperativa que têm experiência na catação, triagem e venda de material reciclável, e deve ser incorporada em frentes de trabalho que a integre em um sistema público de coleta seletiva, triagem e beneficia-mento de recicláveis. Os catadores podem ser integrados em Centrais de Triagem e Unidades de Compostagem, partindo do pressuposto de que a coleta é efetivamente seletiva, e que o sistema garantirá a gestão autônoma do trabalho na cooperativa. Há risco de violação do Direito ao Trabalho, na possibilidade de a comunidade ser afas-tada de suas fontes tradicionais de renda, sem qualquer garantia de melhoria em suas condições de trabalho e sobrevivência.

Violação ao Direito Humano à Moradia e à regula-rização fundiária: pela situação de risco à saúde, con-figurada na necessidade de habitar área de lixão, onde a exposição e o contato com todos os tipos de resíduos sólidos podem contaminar o solo e provocar doenças. Pela precariedade das moradias auto-construídas pela inexistência de infra-estrutura e serviços básicos.

Violação do Direito Humano ao Meio Ambiente (art. 225, Constituição Federal): a existência de depósito de resíduos sólidos a céu aberto, os conhecidos lixões, contamina o solo e o lençol freático e expõe as famílias de Vila Princesa à situação de risco à saúde.

Violação do Direito à Cidade Sustentável: (art. 2o, inciso I, Lei Federal n° 10.257/01): pela degradação ambiental causada pela existência de um depósito de resíduos sólidos a céu aberto, pela carência de serviços básicos e infra-estrutura e de acesso a equipamentos de lazer, cultura; pela distância das áreas centrais onde se concentram as opções de trabalho, e dificuldade de acesso ao transporte.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Precariedade e falta de segurança jurídica da posse de ocupações urbanas: Tijuca, Mamoré e Jardim Flamboyant

As visitas às ocupações urbanas foram realizadas no dia 17 de maio de 2005. Houve uma reunião em cada área, com moradores das comunidades, que relataram suas condições de vida e reivindicações.

A Comunidade Tijuca está localizada ao lado da Comunidade Rio de Janeiro, no Bairro Lagoinha, locali-zado no setor Leste de Porto Velho. A área é de proprie-dade particular, inicialmente pertencendo a Chagas Neto (maior proprietário de terras urbanas de Porto Velho), que a vendeu para outro particular. Hoje, há 22 famílias ocupando a área.

Os moradores denunciaram a conduta ilegal de um ad-vogado, que enganou os moradores, fazendo-os assinar um acordo que determinava a retirada voluntária dos moradores da área, a destruição dos imóveis, a inexigibilidade de qual-quer indenização pelos imóveis e benfeitorias realizadas e, ainda, o pagamento de horários advocatícios.

O Relator Nacional pelo Direito à Moradia, em visita ao local, recomendou à comunidade que procurasse a Ordem dos Advogados e fizesse uma representação contra este advogado e exigindo um outro mediador.

A Ocupação Mamoré teve início no dia 24 de agosto de 2000, quando 48 famílias ocuparam uma área da Prefeitura no Setor Leste da cidade, erguendo seus bar-racos com madeira e lona. Dois dias depois, fiscais da Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA) entra-ram na área e derrubaram todos os barracos construídos. Após o despejo forçado e a destruição dos barracos, as pessoas da comunidade pediram à polícia civil que fizesse uma perícia no local.

No início de 2002, por iniciativa do grupo da ocu-pação Mamoré, após várias tentativas fracassadas de ocupar a área e serem despejados pela Prefeitura, o grupo procurou o apoio de entidades, como o Centro de Educação e Assessoria Popular (CEAP), por meio do

Programa Organização Comunitária, o grupo da Casa do Saneamento, e lideranças do grupo das áreas de risco. Posteriormente, os moradores despejados averiguaram e descobriram que não havia nenhum projeto destinado àquela área e a ocuparam novamente.

A comunidade organizou-se para conseguir a infra-estrutura mínima para viverem na área: abriu poços, me-lhorou os barracos, plantou e fez um galpão comunitário. Os moradores requereram, por um abaixo-assinado, uma torneira comunitária que foi instalada.

Com as entidades de apoio, as famílias da ocupação estabeleceram um calendário e um cronograma de ati-vidades de formação e capacitação. Houve oficinas de organização comunitária, moradia, saneamento, formas de gestão, afinando-se assim a teoria e a prática; e surgiu a possibilidade de criar-se uma Cooperativa Popular de Habitação, um espaço de referência político organizacio-nal e de geração de renda. Todas as oficinas e debates foram realizados em espaços públicos, como escolas e centro de treinamentos da Prefeitura. Oficinas e debates tiveram participação maciça, com maioria formada de mulheres chefes de família de baixa renda.

No dia 27 de setembro de 2003, os fiscais da SEMPLA voltaram, sem mandado judicial, com reforço de policiais militares, e derrubaram dez barracos da ocupação, como meio de intimidar os moradores Os moradores procuraram o Ministério Público, que marcou uma Audiência em janeiro de 2004, na qual o poder público não compareceu.

Não há rede de energia na área, mas as pessoas fazem os “rabixos” (como são chamadas as ligações clandestinas), situação esta já conhecida pela CERON. Não há agentes de saúde a tuando no local assim como atendimento por meio de programas sociais, como bolsa-alimentação e bolsa-família. Como os moradores não têm renda suficiente para andar de ônibus, o principal meio de locomoção é a bicicleta.

A Ocupação Jardim Flamboyant localiza-se na zona Leste de Porto Velho, Bairro Castanheiras e abriga hoje 608 famílias; são 15 hectares, sem saneamento básico ou energia elétrica.

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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Um morador, que se juntou à ocupação por não mais conseguir pagar aluguel com o próprio salário declara:

“Eu morava de aluguel. Minha casa é grande: é de 2,5m por 3,5m. Eu vim porque não tinha onde morar, fui despejado. Meus filhos estão na escola. Hoje me sinto um glorioso, porque tenho um peda-cinho de chão”.

Segundo Anderson Machado, assessor jurídico da CMP, há hoje diversos barracos abandonados, porque os moradores não conseguem suportar a lama que atinge as moradias em época de chuva. Além disso, têm aumenta-do as agressões, furtos e roubos, o que, para Anderson é conseqüência da falta de policiamento.

Violações identificadas nas ocupações urbanas

Violação ao Direito à Moradia Adequada: (art. 6o, Constituição Federal): não atendimento dos cidadãos sem-teto, que se encontram em condições precárias de habitação e sem segurança jurídica da posse, sujeitos a despejos violentos por programas habitacionais destina-dos à população de baixa renda. A situação de moradia nas ocupações é improvisada e precária, e os moradores vivem sob o temor do despejo.

Violação do Direito à Cidade: (art. 2o, inciso I, Lei Federal n° 10.257/01): pela falta de diálogo entre a Prefeitura e o Estado, de um lado, e, de outro, os movi-mentos populares. A falta de diálogo inviabiliza a partici-pação dos movimentos populares na gestão democrática da política e dos projetos habitacionais de interesse social. Pela carência de serviços básicos e infra-estrutura, bem como de acesso a equipamentos de lazer e cultura; pela distância que separa as ocupações e as áreas centrais, onde se concentram as opções de trabalho; e pela difi-culdade de acesso ao transporte público.

Violação do Direito à Igualdade: (art. 5o, Constituição Federal): considerando que condições de igualdade pressupõem um tratamento diferenciado para situações desiguais, a inexistência de políticas especiais que

garantam o acesso a políticas habitacionais específicas para grupos vulneráveis implica a discriminação desses grupos. Verificamos que os cidadãos sem-teto e de baixa renda, e os sem renda (especialmente as mulheres chefes de família, os portadores de necessidades especiais, as crianças e os idosos) não são considerados grupos prio-ritários para atendimento pelo poder público.

Falta de regularização fundiária de bairros de baixa renda: bairros Nacional e São Sebastião I e II

No dia 18 de maio de 2004 a Relatoria Nacional da Moradia realizou reunião com representantes dos bairros São Sebastião I e II e Nacional. A visita à área foi rápida devido ao número de comporomissos da agenda da Relatoria em Porto Velho e participaram apenas cinco pessoas da reunião no Bairro Nacional. Por esta razão não obtivémos muitas informações a repeito do histórico de ocupação e da situação de vida e moradia nos bairros. No entanto, os moradores que participaram de reunião e da Audiência Pública enfatizaram que se trata de uma ocupação antiga que deu origem a bairros de baixa renda consolidados, que estão na luta pela regularização fundiá-ria da área em que vivem há décadas e estão organizados em busca de melhores condições de vida.

Os moradores reivindicam a titulação, a implantação de infra-estrutura adequada nos bairros São Sebastião I e II e Nacional, bem como a implantação de equipa-mentos públicos de lazer e cultura na região. Também denunciaram a situação de risco dos moradores que convivem com o tráfego pesado de caminhões devido à proximidade de área de uso industrial.

Os moradores do Bairro Nacional chamaram atenção para a precariedade de mobilidade para saírem do bairro e se deslocarem ao Centro. Eles mesmos auto-construí-ram uma ponte, devido a absoluta omissão da Prefeitura quanto ao acesso da população do bairro ao restante da cidade. A ponte, de madeira, está em condições precá-rias o que copromete a segurança dos moradores sendo

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

a construção de uma ponte entre o Bairro Nacional e Pedrinhas uma solicitação histórica dos moradores.

Em 24 de outubro de 2005 o Prefeito Roberto Sobrinho, conforme notícia do site da Prefeitura, anunciou a realização de obra para o prolongamento de 800 metros da Avenida Farqhuar, ligando os bairros Nacional e Pedrinhas. Segundo o Prefeito, a obra também ajudará a resolver os problemas do tráfego pesado de veículos e a destruição da única via de acesso ao bairro. A obra será realizada em duas etapas numa parceria entre a Prefeitura e a Caixa Econômica Federal e os recursos serão provenientes de emenda par-lamentar e do orçamento de 2006 da Prefeitura.

Violações identificadas

Violação ao Direito à Moradia Adequada (artigo 6o

da Constituição Federal): visto que os moradores dos bairros consolidados tem direito à regularização fundiária, correspondendo a titulação para a garantia da segurança jurídica da posse e a um projeto de urbanização que garanta condições adequadas de habitabilidade, infra-estrutura e serviços públicos básicos.

Violação do Direito à Cidade: (artigo 2o, inciso I e II da Lei Federal n° 10.257/01): pela ausência de equi-pamentos públicos que garantam serviços públicos de qualidades de saúde, à educação, ao lazer e ao meio ambiente saudável. Pela mobilidade urbana restrita, dificultando o acesso da população a região central e, portanto, o acesso ao trabalho.

Experiências positivas

O Fórum pelo Plano Diretor Participativo

O Fórum pelo Plano Diretor Participativo é uma organi-zação da sociedade civil que tem como objetivo exigir que o Plano Diretor de Porto Velho seja construído em processo participativo. A organização, criada em 17 de outubro

de 2002, durante o seminário “Sociedade Civil e Plano Diretor”, é composta por várias entidades da sociedade civil. São elas: Conselho Regional de Arquitetura (CREA/RO), Sindicato dos Engenheiros (SENGE-RO), Centro de Educação e Assessoria popular (CEAP), Universidade de Rondônia (UNIR), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Sindicato dos Urbanitários (SINDUR), Conselho Regional dos Corretores de Imóveis (CRECI), Comissão de Justiça e Paz (CJP), ASMOLVI, Consulta Popular, Associação Rondoniense de Engenheiros Florestais (APROGERO), Arquidioce de Porto Velho, Partido dos Trabalhadores (PT), Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF), Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários (SEEB), AEEE, Federação dos Trabalhadores na Indústria dos Estados de Rondônia e Acre (FITRAC), Associação de Educação Católica do Brasil (AEC), Associação dos Docentes da Universidade Federal de Rondônia (ADUNIR), Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal de Rondônia (SINTUNIR), AECPRM e Milênio.

O Fórum pelo Plano Diretor Participativo mobilizou-se no contexto do processo de revisão-elaboração do Plano Diretor do município, em 1990, pela Prefeitura de Porto Velho. A primeira Audiência Pública organizada pela Prefeitura, no dia 18 de setembro de 2002, desenca-deou a mobilização da sociedade civil que deu origem ao Fórum pelo Plano Diretor Participativo.

Desde sua criação, o Fórum alcançou diversas re-alizações, das quais se destacam: cursos e seminários sobre o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor, a partir da perspectiva da participação popular; produção de ma-teriais para capacitação e de panfletos para divulgação dos princípios do Fórum; participação nas comissões preparatórias das Conferências Municipal, Estadual e Nacional das Cidades, divulgação por rádio, jornal e tele-visão, do direito de os cidadãos organizados participarem da construção do Plano Diretor; denúncias à Câmara de Vereadores de Porto Velho.

Além disso, o Fórum pelo Plano Diretor Participativo vem tendo uma atuação importante em parceria com o

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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Ministério Público Estadual, no sentido de oferecer sub-sídios para que o Ministério Público os casos em que o Plano foi elaborado ou revisto sem participação popular, mediante a interposição de Ação Civil Pública. Segundo afirmou a Promotora do Meio Ambiente, o Ministério Público Estadual, durante a Audiência Pública, instaurou Inquérito Civil para apurar essas denúncias.

As Comissões de Luta por Políticas Públicas, grupos populares de moradores, têm tido papel fundamental na interlocução com o poder Judiciário, pressionado o Ministério Público no sentido de viabilizar um Plano Diretor Participativo.

O Fórum conseguiu interromper o processo de revisão do Plano Diretor por parte de uma empresa de consultoria de São Paulo, alegando que o material produ-zido não era disponibilizado em linguagem acessível, e as Audiências Públicas eram meramente informativas; com isso, conseguiu repactuar uma agenda de discussão do Plano. No entanto, a atuação do Fórum se enfraqueceu, depois que vários de seus militantes passaram a trabalhar na administração municipal.

A falta de participação popular no processo de revisão do Plano Diretor de Porto Velho verificou-se por:

• Os estudos e propostas não foram disponibilizados para discussão: a Prefeitura não permitia o acesso da população aos estudos produzidos e não divulgava o andamento do processo de elaboração do Plano nem as propostas apresentadas pela consultoria;• As reuniões foram pontuais e apenas informativas, sem a participação da comunidade; não houve o necessário processo de elaboração, proposição e debate das propostas (leitura comunitária, debate das prioridades, aprovação da minuta de lei);• As Audiências Públicas foram meramente informa-tivas e sem debate: as perguntas eram enviadas à mesa, que as selecionava, antes de responder.Diante desta situação o Fórum adotou as seguintes

estratégias:• Criação do Fórum pelo Plano Diretor Participativo de Porto Velho, congregando diferentes segmentos da sociedade;

• Denúncia ao Ministério Público, por Improbidade Administrativa; o Ministério Público requereu que a Prefeitura apresentasse os produtos da consultoria; e investiga a contratação da empresa de assessoria, por preço considerado excessivamente caro;• Denúncia a entidades que atuam na defesa dos Diretos Humanos e do Direito à Cidade, como a Relatoria Nacional da Moradia. A Missão aqui relatada é resultado dessa denúncia; a Missão a Porto Velho, mediou reunião entre a Prefeitura e o Fórum local. Resultados alcançados:• O Fórum realizou debates e seminários a respeito do Plano Diretor e Estatuto da Cidade, debatendo e conso-lidando as propostas da sociedade civil para a cidade;• Após a solicitação do Ministério Público Estadual, a sociedade teve acesso às informações (estudos, diagnósticos, propostas, etc.);• Abriu-se um canal de diálogo entre sociedade e Prefeitura; a Prefeitura comprometeu-se a realizar uma agenda participativa, para ampla discussão sobre o Plano Diretor na cidade; • Formou-se uma comissão (Ministério Público e representantes da sociedade) para avaliar os pro-cedimentos da licitação do Plano Diretor e entrega de produto.• Revogou-se o contrato de consultoria, por irregu-laridades na licitação, identificadas pelo Ministério Público.

Organização comunitária pela exibilidade do Direito à Moradia: Bairro Lagoinha e Ocupação Raimundo Cantuária

Em 1995, foi criado o Bairro Felicidade, hoje chama-do Bairro Lagoinha, que seria destinado a servir como habitação para os funcionários públicos municipais. No entanto, como se tratava de área alagadiça, praticamente ninguém chegou a morar no local.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

O local permaneceu vazio, até que famílias de baixa renda, sem condições de pagar aluguel e à procura de uma alternativa habitacional, o ocuparam. Atualmente, estão assentadas cerca de 540 famílias, fruto de um tra-balho do Programa Organização Comunitária do Centro de Educação e Assessoria popular (CEAP), que teve um acompanhamento iniciado no ano 2000, com plano de ação para a entrega e o assentamento das famílias, que incluía: organização das famílias, por meio da criação e formação de comissões de trabalho; cadastramento e distribuição dos lotes; e elaboração de critérios e prazos de limpeza na área.

Os acordos foram firmados junto ao grupo da ocupação, 40 pessoas que passaram pela organização/formação e se envolveram nas atividades no contexto local, estadual e nacional. Esta experiência organizativa beneficiou crianças, idosos, mulheres e homens, que não tinham onde morar, sendo que a organização da comu-nidade local foi o motor para a conquista da segurança jurídica da posse. Essa conquista sinalizou que o grupo e os moradores tiveram condições de dar continuidade ao trabalho. Assim, no ano de 2002, após consolidado o espaço de moradia, o CEAP retirou-se da área.

Hoje, funcionam ali estabelecimentos comerciais, que possibilitaram a geração de renda para a população local. Foram ainda reservados espaços para escolas, creches e centros comunitários da Igreja Católica. Ainda são várias as reivindicações não atendidas e os desafios a serem enfrentados como, por exemplo, iluminação pública (há iluminação numa única rua, e providenciada pela própria comunidade).

A Ocupação Raimundo Cantuária surgiu entre os anos de 2001 e 2002, e é outro exemplo de conquista de direitos compartilhada entre o CEAP e o Grupo de direção da luta pela posse da terra. Atualmente, há cerca de 250 famílias assentadas, que passaram pelo mesmo processo de organização e formação das famílias assentadas na Ocupação Rio de Janeiro, com formação e capacitação dos grupos; assembléias e reuniões com a comunidade; cadastro das famílias e entregas dos lotes; abertura das ruas, culminando com a legitimação e conquista do

espaço, tornando-se uma moradia reconhecida pelo poder público, com casas construídas, atendimento por serviços de abastecimento de água e energia, área para construção da escola e associação de moradores.

A área ocupada está situada em local valorizado, bastante urbanizado, e pertence à Prefeitura. Este projeto consolidou a criação do grupo de mulheres na comuni-dade que, em conjunto com o grupo de direção da luta pela posse da terra, avançou em defesa do Direito à Moradia; o grupo de mulheres passou a ser referência nos espaços, até o processo final da ocupação, que se deu no primeiro semestre de 2002, quando o CEAP concluiu o acompanhamento dos trabalhos.

Audiência Pública

No dia 18 de maio de 2004, às 14h, a Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia organizou, com o apoio das entidades e organizações sociais de Porto Velho, no auditório do Ministério Público Estadual, Audiência Pública para discussão sobre a situação de moradia das comunidades de Porto Velho e os principais desafios na garantia dos seus direitos.

A Audiência foi dividida em dois blocos de dis-cussão: no primeiro, os seguintes representantes das comunidades de Porto Velho visitadas durante a Missão puderam expor publicamente suas denúncias e reivindicações: Izael (presidente da Cooperativa Vila Princesa); Mônica Mesquita (representante da Comissão de Luta pela Moradia Popular da Comunidade Mamoré); Anderson Machado (assessor jurídico da Central de Movimentos Populares), representando a comunidade Jardim Flamboyant, que, por motivo de força maior, não pode comparecer; João Alves Moura (representante da comunidade Tijuca); José Barros (representante da co-munidade Triângulo); Moisés Soares (representante do Bairro Baixa da União); José Pedro Amaral (representante da Comunidade São Sebastião); e José Silva Machado (representante da Comunidade Engenho Velho). O re-

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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presentante do Movimento de Atingidos por Barragem, Wesley Ferreira, também se pronunciou.

No segundo bloco de discussão, falaram os integran-tes da mesa: Francisco Mato (representante do Fórum pelo Plano Diretor Participativo); Arthur Moreti (do Fórum de Debate de Energia de Rondônia); Antônio Ferreira (da Gerência Regional da Secretaria do Patrimônio da União de Rondônia); Oswaldo Pitaluga (do IBAMA/RO); José Carlos Gadelha (do INCRA/RO); e Airton Pedro Marins Filho (Promotor da Cidadania do Ministério Público Estadual). A mediação esteve a cargo de Nelson Saule Júnior, Relator Nacional pelo Direito à Moradia.

Além das denúncias sobre as precárias condições de vida, falta de infra-estrutura e de serviços públicos, as comunidades relataram sua angústia diante da pos-sibilidade de implantação dos grandes projetos, como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, e o projeto turístico Beira Rio. Na Audiência Pública discutiram-se os seguintes temas:

O processo de revisão do Plano Diretor e sua relação com os grandes projetos

Francisco Mato, representante do FPDP, registrou a ausência de informações e controle sobre o processo de licitação do Plano Diretor:

“O Fórum tem essas indagações, tem essas angústias, porque quer, à luz do Estatuto da Cidade, permitir ao cidadão portovelhense, ao cidadão rondoniense, ao cidadão andino, que daqui a pouco está próximo de nós, que vivam numa cidade possível, culturalmente, socialmente e economicamente”.

Foi apontada a necessidade de discutir-se e rever-se o projeto Beira Rio, na elaboração do Plano Diretor, de modo a trazer para o foco principal as comunidades até hoje relegadas. Como bem pontuou Oswaldo Pitaluga, representante do IBAMA, o Plano Diretor do Município de Porto Velho também deve tratar das questões que envolvem as hidrelétricas do Rio Madeira, que terão impacto na habitação, saúde e transporte da população

local, entre outras questões do município. Sobre a regularização fundiária, Anderson Machado,

da Central de Movimentos Populares, reivindicou que o Plano Diretor defina o Jardim Flamboyant como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS).

Situação fundiária, urbanística e jurídica das comunidades

Todas as comunidades representadas na Audiência Pública ressaltaram as dificuldades fundiárias, urbanísticas e jurídicas das áreas em que moram. A Baixa da União, por exemplo, envolve comunidades localizadas em áreas de risco, como denunciou José Silva Machado de Engenho Velho: “Falta de documentação e a área é de risco”.

A infra-estrutura das comunidades também é pre-cária e os serviços públicos, como coleta de lixo, trans-porte, educação e saúde são praticamente inexistentes. Esta é uma das principais queixas trazidas à Audiência Pública pela população, como fica claro na fala de Izael, da Comunidade Vila Princesa: “Queremos que seja aqui a finalização da coleta de lixo pelo Município e o apoio para montarmos uma cooperativa, associação de cata-dores autônomos”. Ou na fala de José Pedro Amaral, de São Sebastião: “Exigimos saneamento básico. O esgoto é a céu aberto. Queremos pavimentação das ruas e reforma das pontes”. Ou ainda, como reclama Maria Albuquerque, do Bairro Nacional: “Não há água tratada, caixa de ferrugem”.

Contraditoriamente, as taxas de água e luz são altas, e os impostos como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) são definidos sem nenhum critério. Ainda se-gundo Maria Albuquerque:

“Quando chegou o carnê, nós consideramos uma imoralidade. Tanto fazia o local da moradia, uma casa dentro do esgoto, era cobrado o valor de 64,00 reais. O valor do IPTU tinha dois valores distintos, sem critério algum: 31,00 e 64,00 reais”.

Por fim, todas as comunidades ressaltam a inse-gurança jurídica da posse. A regularização fundiária é,

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

portanto, uma providência urgente a ser tomada. Segundo reivindicam Mônica Mesquita, da Comissão de Luta pela Moradia Popular da Comunidade Mamoré, e João Alves Moura, da Tijuca:

“Exigimos a delimitação da área como ZEIS, no Plano Diretor, participação no processo de elaboração do Plano Diretor, beneficiamento dos programas fede-rais como Bolsa-Escola, assistência jurídica gratuita. [Também] Escritura pública, e iluminação pública”.

O gerente fundiário da SEDAM, José Maria da Silva Sales, justifica-se:

“O Estado, desde 1990, vem tentando regularizar essas áreas. São Sebastião I e II têm o projeto urba-nístico definido. Temos dificuldade com o Cartório, que emperra o projeto ao exigir o pagamento para fazer o desmembramento para o recolhimento do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis)”.

Antônio Roberto Ferreira, Gerente Regional da Secretaria de Patrimônio da União, por sua vez, infor-mou que o órgão está iniciando um levantamento das ocupações ao longo da linha férrea Madeira-Mamoré, numa faixa de 30m para cada lado.

A ameaça de deslocamento forçado das comunidades ribeirinhas e bairros históricos

Os depoimentos prestados na Audiência Pública confirmaram o diagnóstico sobre o sentido histórico e o impacto provocado pelos grandes projetos energéticos e turísticos: privilégio para uma minoria e completo desres-peito às comunidades locais, em evidente violação aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Em relação à construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, uma reivindicação direcionada a Furnas, diversas vezes repetida, foi a necessidade de a empresa explicar a forma de implantação do projeto, bem como delimitar o impacto às comunidades. Para agravar a situação, os primeiros estudos de viabilidade não foram sequer apresentados.

Do mesmo modo, a aprovação do projeto Beira Rio, como expôs Antônio Roberto Ferreira, exige o cumpri-mento de certos requisitos, destacando-se: indicação da fonte dos recursos para o projeto, consulta aos órgãos ambientais (IBAMA-SEDAM), delimitação do número de famílias que serão atingidas. Essas providências, no entanto, ainda estão pendentes, contesta José Barros, do Bairro Triângulo:

“[exigimos] esclarecimento sobre o Projeto Beira Rio, em relação ao seu objetivo, a delimitação da área afetada, a maneira como foi feito o processo de licitação e aos impactos sociais, ambientais, culturais e econômicos; e em relação às hidrelétricas”.

Moisés Soares, da Baixa União, também protesta:

“Preservação dos bairros históricos de Triângulo, Candelária, Mocambo, Baixa da União, Cai n’Água; Alto do Bode, pela implantação do projeto turístico Beira Rio na orla do Rio Madeira. Se essas comuni-dades forem deslocadas, elas perderão a sua fonte de trabalho, que vem do rio”.

Wesley Ferreira, representante do Movimento de Atingidos por Barragem confirma a reivindicação:

“Direito à terra é o direito das pessoas poderem decidir se querem ou não sair de suas áreas. (...) Não basta esperarmos pelas autoridades, deputados, senadores, cesta básica. Temos que ir para as ruas, nos organi-zar, levantar nossas bandeiras, porque só a luta que representa o povo, traz benefícios e legitima a luta dos trabalhadores”.

O papel do Ministério Público na defesa dos direitos socioambientais

No tocante aos despejos e às ações de reintegra-ção de posse, Ailton Pedro Marins Filho, Promotor da Cidadania do Ministério Público Estadual, ponderou:

“Sempre as coisas são trazidas até nós após o confli-to, após a existência da propositura da ação, após a imissão do mandado de reintegração de posse. Quase

A MISSÃO DA RELATORIA DA MORADIA ADEQUADA A PORTO VELHO

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sempre, quando o mandado foi cumprido ou está na iminência de ser. Neste momento é muito mais difícil para nós atuar em defesa das garantias constitucio-nais. A minha sugestão é que sejamos informados com antecedência, para que possamos conduzir o processo com intermediação”.

Entre as providências tomadas, estão a instauração de inquérito civil para averiguar o termo de referência do projeto Beira Rio, que, segundo Arthur Moreti, estava em desacordo com a legislação, porque se omitiam os impactos sociais do projeto.

Outro exemplo das iniciativas do Ministério Público foi a Ação Civil Pública instaurada contra o Município de Porto Velho, exigindo que se considerem os danos ambientais e sociais decorrentes do depósito de lixo na área da comunidade Vila Princesa.

Quanto à implantação das duas hidrelétricas, o Ministério Público ainda não tomou nenhuma providência.

Principais desafios para implementar o

Direito à Moradia

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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A gestão democrática da cidade e os encaminhamentos da 1a Conferência Estadual das Cidades em 2003

“Nós não temos espaços legítimos de fala. Qualquer comunidade que resolver colocar suas denúncias no jornal ou no rádio vai ser difícil. Para que tenhamos uma sociedade sustentável, precisamos de espaços democráticos”. Arthur Moreti, representante do Fórum de Debate de Energia de Rondônia

A Relatoria verificou que os projetos estratégicos da cidade não estão sendo discutidos com a população interessada; os principais exemplos disso são o processo de revisão do Plano Diretor, o projeto Beira Rio e o projeto de implantação das hidrelétricas.

A Relatoria constatou que não há um processo trans-parente e participativo de discussão das informações e estudos já produzidos, sobre os projetos prioritários a serem implantados na cidade; a população não tem acesso aos órgãos ou instâncias permanentes aos quais possa recor-rer, tanto para obter informações, como para apresentar os projetos das comunidades. Estas situações configuram uma nítida violação ao Direito à Cidade, cujos principais componentes são o respeito à gestão democrática e ao princípio constitucional das funções sociais da cidade.

A norma prevista no inciso II do art. 2° do Estatuto da Cidade tem como diretriz da política urbana a ges-tão democrática. Esta é implementada por meio da participação dos grupos representativos dos vários segmentos da comunidade, na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

Para que a cidade seja gerida de forma democrática, é preciso respeitar padrões culturais e sociais das cidades onde se dão os conflitos de interesses; esses conflitos têm de ser mediados e negociados em esferas públicas e de-mocráticas. Assume-se como princípio básico da política urbana a discussão dos rumos das cidades com os vários

setores que compõem a sociedade. Garante-se, dessa forma, a participação da população, nas decisões sobre as atividades e as funções urbanas das cidades, por meio dos instrumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade.

O Estatuto da Cidade (artigos 43 e 44) define as ferramentas que o poder público e a sociedade devem utilizar, especialmente no município, para enfrentar os problemas de desigualdade social e territorial nas cida-des. São elas: Conselhos de Política Urbana; Conferências da Cidade; Orçamento Participativo; Audiências Públicas; Iniciativa Popular de projetos de lei; e Estudos de Impacto de Vizinhança.

Com base nestes preceitos legais e na realidade constatada pela Relatoria, recomendam-se as seguintes medidas, em Porto Velho:

• Aplicação do princípio da função social da cidade pelos entes federativos e instituições do Estado bra-sileiro, de forma conjugada aos princípios da função social da propriedade, igualdade e razoabilidade, para a solução pacífica dos conflitos fundiários e de moradia, que resultem em lesão aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais de co-munidades e grupos sociais vulneráveis; • A União, Estados e municípios devem viabilizar espaços de gestão democrática da cidade, como o Conselho e a Conferência das Cidades, e utilizar os instrumentos das Audiências e Consultas Públicas para tomada de decisões sobre projetos de grande impacto sobre a vida dos habitantes da cidade;• A União, Estados e municípios devem garantir a participação dos habitantes de baixa renda ou das populações tradicionais locais nos processos de decisão e produção de leis, políticas, programas e projetos que afetem diretamente suas vidas;• A União, Estados e municípios devem respeitar as decisões tomadas em espaços democráticos e participativos legalmente constituídos no município, sobre assuntos relacionados ao uso e ocupação e implantação de projetos de grande impacto em áreas urbanas ou rurais ocupadas por população de baixa renda ou populações tradicionais;

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

• Os entes federativos devem destinar recursos, prio-ritariamente, para ações de educação e capacitação nas áreas de políticas públicas, gestão e planejamento, direitos e cidadania, especialmente para os jovens, as mulheres e os idosos, constituindo parcerias com universidades, organizações não-governamentais e escolas para executar estas ações;• As instituições do Estado Brasileiro devem pro-duzir, divulgar, disponibilizar e distribuir materiais com linguagem simples sobre programas, projetos e documentos públicos de interesse das comunidades, como a proposta do Plano Diretor de um município. Para garantir o direito à informação, devem ser uti-lizados os meios de comunicação de massa, como programas de rádio e televisão; e deve-se estimular a organização de rádios comunitárias;O Ministério Público Estadual tem-se mostrado

importante aliado, principalmente para garantir a publi-cidade dos atos do Executivo Municipal.

A realização da 1a Conferência Municipal das Cidades, em Porto Velho, é um ponto positivo que merece ser desta-cado, devendo as suas diretrizes deliberadas serem respei-tadas e incorporadas nos planejamentos locais e regionais. Também foi realizada a Conferência Estadual das Cidades de Rondônia. Nessa ocasião, sociedade civil e governo discutiram os temas estratégicos a serem enfrentados para melhoria da qualidade de vida na região. A Conferência é um instrumento fundamental da gestão democrática da cidade. Neste sentido, para a implementação do Direito à Cidade Sustentável e do Direito à Moradia Adequada, é essencial que se enfrentem os temas e propostas nela discutidos, dos quais destacamos as seguintes prioridades para elaborar e implementar uma política habitacional para Porto Velho:

• Formação de banco de dados territoriais e socioe-conômicos pertinentes à área habitacional;• Criação do Conselho Municipal da Cidade e respec-tiva Comissão de Habitação, garantida a participação popular;• Elaboração do Plano Diretor, com ampla participa-ção da sociedade;• Criação da Secretaria de Habitação;

• Regularização fundiária das áreas da União (como nas áreas da Baixa da União e Triângulo) com a defi-nição das vias públicas, equipamentos comunitários e área de preservação;Enfatizamos as seguintes propostas da Conferência

para orientar a gestão municipal:1. Criar um Fundo Municipal para Habitação de Interesse Social, sob controle e gestão da Comissão Municipal de Habitação;2. Definir no Plano Diretor Municipal as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), garantindo moradias populares nos vazios urbanos;3. Simplificar o processo de regularização dos imóveis e reduzir os custos;4. Realizar parcerias entre o poder público, univer-sidades e entidades de classe, para pesquisas de tecnologias alternativas de construção de habitação popular, assim como para assessorar cooperativas de habitação popular;5. Dispensar contrapartida financeira para a im-plementação da Moradia àqueles que não têm renda, inclusive como instrumento de combate à violência urbana; 6. Os critérios de distribuição dos recursos públicos federais, estaduais e municipais para habitação, devem ser definidos pelos respectivos Conselhos das Cidades, eliminando a distribuição de recursos mediante emendas para parlamentares;7. Implementar acordos com o IBAMA, no sentido de aproveitar as madeiras apreendidas de madeireiras clandestinas para projetos de habitação popular;8. Propor e implementar políticas habitacionais que se integrem ao processo de produção de moradia, ações que propiciem geração de renda, acesso a equipamentos comunitários, acompanhamento pré e pós-ocupação e condicionantes para a titulação dos imóveis;9. Revisar a cobrança de IPTU, de forma a torná-la

proporcional à renda do contribuinte;Pôr fim à prática de distribuir recursos públicos

mediante emendas para parlamentares.

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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Regularização fundiária e o Plano Diretor

A Relatoria Nacional constatou que não há política de regularização fundiária no Município de Porto Velho; e que a Prefeitura Municipal tem sido omissa ante a de-manda de comunidades situadas em áreas urbanas, que lutam pela segurança jurídica da posse dos territórios em que vivem e pela urbanização das áreas ocupadas.

Os preceitos da ordem legal urbana brasileira destinados a legalizar e urbanizar as áreas urbanas e rurais consolidadas pela ocupação de população de baixa renda e populações tradicionais, que têm o Direito à Moradia como elemento essencial, são os seguintes: o direito a cidades sustentáveis; os princípios da função social da cidade e da propriedade, da igualdade e justiça social; o desenvolvimento urbano ambien-talmente sustentável e a gestão democrática da cidade.

A regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda é norma federal prevista como diretriz da política urbana no Estatuto da Cidade – Lei Federal n° 10.257/01 (art. 2°, inciso XIV). Deve ocorrer mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, e considerar tanto a situação socioeconômica da população como as normas ambientais.

A recepção dessa norma federal no ordenamento jurídico pátrio significa que o reconhecimento legal e jurídico da moradia e da posse da terra dos moradores de assentamentos informais é obrigação do Estado brasileiro, por meio da atuação dos seus entes federativos. Esta é uma medida fundamental para assegurar o cumprimento da função social da propriedade e, conseqüentemente, para promover o Direito à Moradia Adequada.

O Estatuto da Cidade arrola como instrumentos da política de regularização fundiária, nos termos do inciso V do art. 4°, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), concessão de direito real de uso, concessão de uso espe-cial para fins de moradia, usucapião especial de imóvel urbano, assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos.

Em relação à dimensão da regularização fundiária, a diretriz prevista no Estatuto da Cidade define como componentes essenciais desta política: a urbanização da área ocupada, visando à melhoria das condições habitacionais das moradias existentes, e a legalização da área, mediante a outorga de um título de reconhecimento legal da moradia para os ocupantes da área, passível de ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis. Neste sentido, temos plena concordância com o conceito de regularização fundiária elaborado por Betânia de Moraes Alfonsin, para avaliar os programas de regularização fundiária nas cidades brasileiras, e que pode servir como referência para a definição da política nacional:

“Regularização fundiária é o processo de interven-ção pública sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconfor-midade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária”35.

O papel do município

O município tem a atribuição constitucional, nos termos do art. 182 da Constituição brasileira, de imple-mentar a política urbana voltada a assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, o cumpri-mento da função social da propriedade e o bem-estar de seus habitantes. Isto significa que o município tem papel preponderante para promover a regularização fundiária em seu território.

35 ALFONSIN, Betânia de Moraes. “Regularização fundiária: um Imperativo Ético da Cidade Sustentável – O Caso de Porto Alegre”, In: SAULE, Nelson Saule Jr. (org.). O Direito à Cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999, p.163.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Considerando que o principal instrumento constitu-cional para a promoção da política urbana no município é o Plano Diretor, a política da regularização fundiária mu-nicipal deve ser estabelecida através deste instrumento. Além disso, esta previsão é fundamental, uma vez que cabe ao Plano Diretor definir as exigências fundamentais de ordenação da cidade, bem como os critérios, as medi-das e os instrumentos para assegurar que a propriedade urbana cumpra a sua função social.

Cabe ressaltar que o Plano Diretor, nos termos do parágrafo 2° do art. 40 do Estatuto da Cidade, deverá englobar o território do município como um todo – tanto a área urbana quanto a rural.

Assim, para adotar uma política municipal de regula-rização fundiária dos assentamentos informais, por meio do Plano Diretor ou lei municipal específica (no caso de o Plano Diretor não ser obrigatório, nos municípios com menos de 20 mil habitantes), os municípios devem:

• Constituir um programa de regularização fundiária e urbanização das áreas urbanas e rurais ocupadas por população de baixa renda ou por populações tradicionais;• Estabelecer as diretrizes para a regularização fun-diária de áreas de domínio da União e do Estado;• Delimitar as áreas urbanas e rurais ocupadas por população de baixa renda passíveis de regulariza-ção fundiária, como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS);• Constituir um comitê gestor para cada ZEIS, com participação da comunidade, para elaborar e executar o plano de urbanização da área objeto da regularização fundiária;• Definir os instrumentos que devem ser aplicados pelo município para a regularização das áreas urbanas e rurais ocupadas por população de baixa renda, como o usucapião urbano, a concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso, o usucapião rural, a cessão de posse, a concessão de terras públicas para fins de reforma agrária;• Constituir um programa de assistência jurídica à po-pulação de baixa renda dos assentamentos informais,

para promover as medidas administrativas, judiciais e registrariais cabíveis para fins da regularização fundiária, como o usucapião urbano, a concessão de uso especial para fins de moradia.

Papel da União

• A União deve adotar uma política nacional de regularização fundiária, que atenda todos os componentes do Direito à Moradia. A União deve formular e executar esta política de forma integrada, pelos Ministérios responsáveis pela regularização fundiária das áreas ocupadas por população de baixa renda, em especial o Ministério das Cidades, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria do Patrimônio da União, Ministério da Justiça, Secretaria da Promoção da Igualdade Racial. Esta política deve conter um conjunto de ações integra-das, que envolvam as ações de urbanização, de valorização da memória e identidade dos moradores dos assentamentos informais, que estimule e apóie atividades educacionais e econômicas de geração de renda e trabalho, e a preservação por lei das áreas como de habitação de interesse social e de proteção histórico cultural; todas essas são medi-das que devem englobar a dimensão da política de regularização fundiária.• A União deve constituir uma comissão especial so-bre regularização fundiária formada pelo Ministério das Cidades, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria do Patrimônio da União, Ministério da Justiça e Secretaria Especial de Direitos Humanos, para mapear as situações de conflitos, como amea-ças de deslocamento e despejos forçados, ações de reintegração de posse, implantação de megaprojetos de desenvolvimento que possam resultar em remo-ções e deslocamentos de comunidades, e identificar, nestas situações, as comunidades que têm o direito à regularização fundiária de seus territórios; e, a partir da identificação destas comunidades, priorizar a

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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regularização fundiária como ponto de partida para a solução dos conflitos mapeados.• A revisão da Lei n° 6.766/79 (que trata do par-celamento do solo, em discussão no Congresso Nacional) deve contemplar normas que simplifiquem a regularização das áreas urbanas e rurais ocupadas por população de baixa renda e populações tradi-cionais, principalmente com relação aos aspectos de registro público.

Pressupostos para a implantação de megaprojetos

Controle público dos megaprojetos, mediante:

(i) Organização social: é muito importante a orga-nização e resistência das comunidades ameaçadas e atingidas, a busca de formas de proteção e efetivação de seus direitos, de modo a garantir o seu direito à cidadania, contra a discriminação.

(ii) Consulta pública à população local: uma das formas de conter a sobreposição de interesses efetiva-se a partir da informação e discussão, em Audiências Públicas, que deverão apresentar e orientar os estudos de viabilidade de projetos de grande impacto. A di-mensão da divulgação das Audiências Públicas é fator que pode comprometer o potencial de controle das próprias Audiências; portanto, deve haver contingentes significativos das comunidades diretamente atingidas, significativamente representados nas Audiências, além de especialistas técnicos de organizações que tenham experiência em cada assunto discutido, convocados a colaborar no processo. O Estatuto da Cidade36 prevê a obrigatoriedade de

“audiência do poder público municipal e da po-pulação interessada nos processos de implantação

de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população”.

Também são obrigatórias as Audiências Públicas para discussão e aprovação do Estudo de Impacto Ambiental e do Plano Diretor. Por se tratar de um direito difuso (de todos), toda a sociedade deve ser mobilizada, sendo permitida a requisição de Audiência Pública pe-los próprios cidadãos, quando estes sentirem que seja necessária37.

(iii) Fiscalização dos Conselhos Nacionais: os Conselhos Nacionais são espaços de interlocução entre os diferentes ministérios e entre poder público e sociedade civil. Recomendamos que os megaprojetos do governo federal sejam submetidos à aprovação e discussão nos órgãos participativos auxiliares do Executivo federal, como o Conselho Nacional das Cidades, garantindo maior debate dos projetos estratégicos para o país, o controle e transparência da aplicação de grande montante de recursos públicos, da utilização dos recursos naturais e ocupação do território, bem como, assegurando a repre-sentatividade e participação de outros setores, além dos diretamente interessados no empreendimento.

Justiciabilidade e responsabilização das empresas transnacionais

O ordenamento jurídico brasileiro prevê ações coleti-vas como a Ação Civil Pública, que por meio da sua ampla legitimidade ativa, permitem o controle social, garantindo o acesso à justiça de organizações não-governamentais,

36 Lei no 10.257/01, art. 2o, inciso XIII.

37 Art. 2o da Resolução 9, de 3/12/87, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA).

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Ministério Público, associações civis e, também, pessoas comuns, cidadão, através da ação popular.

Está em discussão junto à ONU um projeto de norma internacional que prevê sanções às companhias transnacionais pelas violações de direitos humanos. O objetivo é consolidar a responsabilidade civil e penal dos líderes das transnacionais e o controle jurídico e social das atividades e métodos de trabalho das empresas multinacionais, seja na produção, na distribuição ou na comercialização.

Gestão compartilhada dos projetos

(i) Plano Nacional de Ordenação Territorial: os projetos de desenvolvimento devem estar inseridos dentro de um planejamento nacional38, discutido entre os diferentes ministérios e com a sociedade, de forma a integrar o planejamento econômico e o planejamento ambiental e urbano; as diretrizes deste planejamento devem condicionar a formulação dos megaprojetos. De outro lado, é indispensável que o Ministério da Integração Regional coordene a integração das três esferas de poder por meio da formulação integrada dos projetos nacionais e a política de desenvolvimento local e regional.

(ii) Participação popular na gestão do projeto: devem existir comitês gestores dos projetos, previstos por lei, que correspondam a espaços democráticos em que o gover-no, o empreendedor e a comunidade atuem na gestão do projeto. Estes espaços devem possibilitar a mediação de conflitos decorrentes da implantação do projeto, equi-librando os diferentes interesses existentes.

(iii) Capacitação dos técnicos: os agentes públicos e privados responsáveis pela implementação do projeto devem ser capacitados para garantir os direitos huma-nos e cumprir suas obrigações legais, incorporando as especificidades das demandas em diferentes regiões do país. Por exemplo, um projeto a ser implantado na Amazônia e outro em um centro urbano exigem quali-ficações técnicas diferenciadas.

Condicionantes para a implantação de megaprojetos

(i) Aplicação da lei de licitação: podem ser adotados no edital de licitação desses projetos mecanismos para garantir e promover os direitos econômicos, sociais, cultu-rais e ambientais das populações, comunidades e grupos sociais vulneráveis que serão afetadas, para que, antes de ter-se de pensar em compensação de danos, os danos não ocorram ou sejam provocados. Deve-se considerar dentro do critério melhor preço também os custos com o passivo ambiental; e, dentro do critério melhor técnica, a capacidade para minimizar os impactos econômicos, sociais, culturais e ambientais sobre a população local.

(ii) Avaliação de Impacto e Equidade Social Cultural e Ambiental: apesar de o Brasil possuir instrumentos legais para a análise dos impactos do desenvolvimento econômico ao meio ambiente (como o Estudo de Impacto Ambiental), as análises, via de regra, concentram-se no dano relativo ao meio ambiente natural (fauna, flora, condições climáticas); essas análises devem englobar o impacto sobre os direitos culturais, sociais e, sobretudo, econômicos, da população diretamente atingida. Os estudos e levantamentos da quantidade de famílias atin-gidas acabam sendo feitos apenas pelo empreendedor. Assim, a multidisciplinariedade e independência dos técnicos que elaboram os estudos são fundamentais. Constatado que a exposição das populações aos riscos ambientais não é equitativa, faz-se necessário avançar

38 O Estatuto da Cidade prevê em seu artigo 4o, inciso I: os “planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” como instrumentos gerais da política urbana.

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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e elaborar uma Avaliação de Equidade Social, Cultural e Ambiental que evidencie o impacto sobre os direitos econômicos, sociais e culturais das populações e grupos sociais afetados. Os conflitos e injustiças ambientais de-vem ser encaminhados como meios para modernizar e democratizar os procedimentos de avaliação de impacto de projetos de desenvolvimento.

A revisão do atual modelo de política energética do Brasil

A participação do Brasil na Conferência Mundial so-bre Energias Renováveis, que terminou no dia 4 de junho de 2004, em Bonn (Alemanha), bloqueou os avanços nas negociações internacionais para a promoção de uma ma-triz energética global sustentável, com maior participação das novas fontes renováveis de energia, surpreendendo todos os países e instituições presentes, pela flagrante contradição com as posições e compromissos que o país vinha assumindo nos últimos anos.

Como resultado do posicionamento intransigente da delegação brasileira, liderada pela então Ministra Dilma Rousseff, “a conferência aprovou uma declaração morna, que não estabelece compromissos e metas claras para a sustentabilidade energética e inclui as grandes hidrelétri-cas como energia renovável, ignorando os seus enormes impactos sociais e ambientais”, critica o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS).

Durante a Rio+10, Cúpula para o Desenvolvimento Sustentável, em setembro de 2002, em Johanesburgo, África do Sul, o governo brasileiro apresentou uma proposta para que as novas fontes de energias reno-váveis correspondessem a 10% da matriz energética mundial até 2010; essa proposta, apesar de não ter sido aprovada, desencadeou a iniciativa do governo alemão de realizar a Conferência Mundial sobre Energias Renováveis. Era esperado, portanto, um papel muito mais construtivo do Brasil em Bonn.

No dia mundial do meio ambiente, a então Ministra de Minas e Energia fez um discurso, no Palácio do Planalto, no qual defendeu as usinas hidrelétricas como a opção mais barata da América Latina para o suprimento de energia, defendendo um papel coadjuvante para as novas fontes, como a eólica, que teriam função comple-mentar, mas não substitutiva.

De acordo com o documento do FBOMS, a ministra Dilma não admitiu qualquer restrição ou qualificação socioambiental a ser imposta a esses empreendimentos e apoiou a posição da delegação de Uganda, para que não fossem adotadas, como critérios para a construção de hidrelétricas, as recomendações da Comissão Mundial de Barragens – organismo independente que produziu o relatório “Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo para a tomada de decisões”. Nesse relatório, é proposta uma avaliação abrangente das opções; o aproveitamento das barragens existentes; a preservação de rios e meios de subsistência; o reconhecimento de direitos adqui-ridos e compartilhamento de benefícios; a garantia de cumprimento e compartilhamento dos rios para a paz; o desenvolvimento e segurança; e um maior grau de transparência para todos os envolvidos.

Em uma mesa-redonda sobre financiamento, en-quanto a ministra Dilma defendeu os financiamentos públicos para as grandes hidrelétricas, oficiais do Banco Mundial e do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento advertiram-na sobre seus impac-tos, recomendando que a Ministra dialogasse com as ONGs.

É preocupante o fato de que 64% do potencial hidre-létrico restante no Brasil encontra-se na Amazônia, e que o país está priorizando o represamento dos grandes rios da região, como o Araguaia, Xingu, Tapajós e Madeira. Antes de planejar medidas de eficiência e racionalização do uso de energia em todos os níveis, de redução das perdas de transmissão, de repotencialização das hidrelétricas velhas e de maior participação nas novas renováveis, o governo Lula vê como prioritários os megaprojetos de hidreletricidade que devem implicar enormes impactos na diversidade biológica e nas populações ribeirinhas e indígenas.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Destacamos alguns argumentos39 que explicitam os impactos negativos causados pelas grandes barragens no mundo:

1. Grandes barragens não apresentam os benefícios de reduzir a pobreza das energias renováveis des-centralizadas;2. Os promotores das grandes represas subestimam os custos e exageram os benefícios: o passivo am-biental relativo aos custos econômicos dos grandes projetos hidrelétricos, o número de pessoas que requerem reassentamento ou compensação por perda de terras, casas e fontes de sobrevivência são subestimados, e, geralmente, essas hidrelétricas geram menos energia do que o prometido; 3. Grandes barragens implicam grandes impactos sociais e ecológicos: de acordo com a Comissão Mundial de Barragens, são responsáveis pelo desalo-jamento de 40 a 80 milhões de pessoas, com muitos dos deslocados recebendo nenhuma ou inadequada compensação, e são um importante fator no rápido declínio da biodiversidade fluvial no mundo todo; 4. Os esforços para mitigar os impactos das grandes barragens falham: muitos impactos das grandes bar-ragens não são reconhecidos ou são subestimados, e as medidas para prevenir ou reduzir seus impactos freqüentemente falham. Mesmo quando as pessoas são reconhecidas como elegíveis para reassentamen-to, raramente têm seus modos de vida restaurados. Existe um recorde similar assombroso de esforços falidos para mitigar os impactos ambientais das grandes barragens; 5. Os promotores das grandes barragens opõem-se às medidas que previnem a construção de projetos destrutivos; 6. Grandes reservatórios podem emitir grande quantida-de de gases que fazem aumentar o “efeito estufa”.Atualmente, diversos estudiosos discutem outras

formas de geração de energia adequadas ao desenvol-vimento socioambiental.

A Resolução no 394 da Aneel, de 4 de dezembro de 1998, define como PCH (Pequena Central Hidrelétrica)

as centrais com potência instalada total de até 30.000kW (30MW) e área inundada máxima de reservatório de 3km2. Tais mudanças visam a incentivar a construção de centenas de novas PCHs em potenciais já identificados, além da energia gerada por elas ter um desconto de 50% nas tarifas de transporte de eletricidade. Além disso, as PCH, diferentes das grandes barragens, não exigem grandes investimentos e o período de implantação é de 2 a 3 anos.

Ainda que a implementação de PCHs não venha a resolver as necessidades de geração de energia elé-trica no país, é inegável que o Brasil poderá aumentar a capacidade de geração através delas, privilegiando projetos de geração para sistemas isolados e atendi-mento às comunidades e propriedades rurais que não têm acesso à energia.

Há também possibilidades de geração de energia a partir do bagaço da cana e casca de arroz (biomassa), do vento (energia eólica) e do sol (energia solar). Estas são alternativas para a produção de energia no Brasil, que independem da exploração do potencial hídrico. As duas últimas fontes são viáveis em todo o país, sendo que os Estados do Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará têm grande potencial de produção de energia eólica. Dentre as fontes alternativas de geração de energia, e acordo com estudos do Professor Guilherme Bahia, gerente do Departamento e Energia Alternativa da Secretaria de Infra-Estrutura de Pernambuco40, a energia solar tem maior custo de implantação, maior custo de geração e menor capacidade de produção de energia. O mesmo estudo aponta que a biomassa e as PCHs possuem menor custo de implantação e geração, e maior capacidade de produção de energia.

39 Fonte: Doze Razões para Excluir as Grandes Barragens das Iniciativas para Energias Renováveis, endossado por mais de 260 grupos e instituições de todo o mundo em: http://www.riosvivos.org.br/canal.php?canal=50&mat_id=3581

40 Disponível em www.guilhermebahia.hpg.ig.com.br/celpe.htm. Acessado em 24/nov–2005.

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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A necessidade de promover um debate público qua-lificado a respeito deste tema deve ser encarada como interesse público nacional, dado os danos já causados para o patrimônio nacional e pela existência de projetos que visam a inundar milhares de quilômetros da riqueza da Floresta Amazônica (Madeira, Tapajós e Xingu). Esta problemática se torna mais complexa, diante do grande potencial hídrico de produção de energia do Brasil. No en-tanto, sem nos restringir ao imediatismo do crescimento, mas querendo avançar para um efetivo desenvolvimento econômico, é imprescindível que todos os danos ambien-tais, sociais, econômicos e culturais causados entrem na conta desta política.

Para levar em conta todos os custos decorrentes do empreendimento, sobretudo os de grande impacto, é ne-cessário identificar o passivo ambiental dele decorrente, sob pena de as populações locais, não o empreendedor, arcarem com estes custos.

O passivo ambiental representa os danos causados ao meio ambiente; implica, assim, obrigação e responsa-bilidade da empresa, para prevenir que ocorram e reparar os danos, quando ocorrerem. A identificação do passivo ambiental está sendo muito utilizada em avaliações para negociações de empresas e em privatizações, pois a res-ponsabilidade e a obrigação pela restauração ambiental podem recair sobre os novos proprietários.

Esta é uma ferramenta de gestão que permite incor-porar, na elaboração do projeto, os reais custos que ele causa à sociedade, planejando as medidas preventivas, mitigatórias e compensatórias necessárias. Uma empre-sa tem passivo ambiental quando ela agride, de algum modo, o meio ambiente, e não dispõe de nenhum projeto prévio para sua recuperação, aprovado oficialmente ou de sua própria decisão.

Segundo Maria Elisabeth Pereira Kraemer, o passivo am-biental é toda e qualquer obrigação de curto e longo prazo, destinada única e exclusivamente a promover investimentos em prol de ações relacionadas à extinção ou amenização dos danos causados ao meio ambiente, inclusive mediante a destinação obrigatória de percentual do lucro da empresa, direcionado a investimentos na área ambiental41.

Por fim, vale registrar que o novo marco regulatório do Setor Elétrico (Lei Federal no 10.848/04) avançou na regulação dos grandes empreendimentos e na garantia de sua compatibilidade com a questão ambiental. Isso, apesar de ter definido o critério de menor preço para o processo de licitação na comercialização de energia elétrica que, como já visto nesse relatório, é negativo por não considerar o critério da melhor técnica. Esse avanço faz necessária a emissão da Licença Prévia do IBAMA dos empreendimentos candidatos à licitação, antes deles irem a leilão (etapa do processo de licitação). Antes desta determinação só era analisada a viabilidade econômica do empreendimento, desconsiderando sua inviabilidade social e ambiental.

Tarifas sociais de energia elétrica para população de baixa renda

Um dos problemas constatados na Missão a Porto Velho é a evidência de que não há tarifas sociais de água e energia elétrica para a população de baixa renda. A mo-dicidade das tarifas dos serviços públicos essenciais é um dos componentes do Direito à Moradia Adequada, visto que não há padrão de vida digno sem direito garantido de acesso à energia elétrica e à água a custos compatíveis com as diferentes faixas de renda da população.

Os moradores do Bairro Triângulo e adjacências são exemplo de parcela da população que paga contas altíssimas de energia e água sem ter renda proporcional a esses gastos.

41 KRAEMER, Maria Elisabeth Pereira. Passivo ambiental. Em: http://www.gestiopolis.com/canales5/fin/passivo.htm. Acessado em 9/11/2005.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

O art. 47 da Lei Federal no 10.257/01 prescreve que “Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciadas em função do interesse social”. É, pois, dever do Estado, das Agências Reguladoras – Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e Agência Nacional de Águas (ANA) – e das concessionárias garantir que a lei seja cumprida.

Considerando que a energia é um serviço essencial e que a garantia de acesso à energia, para todos os cida-dãos brasileiros, é dever do poder público, nos termos do art. 175, da Constituição Federal; e considerando que os novos critérios para a tarifa social definidos pelo governo federal são mais restritivos, a Pro Teste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor; o Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais; Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo; o Instituto Ilumina; a Comissão de Privatização da OAB/SP; o Fórum de Cortiços e Sem-Teto de SP; e a UMM (União Movimento e Moradia) uniram suas forças para reivindicar a revisão dos critérios utilizados para garantir o direito à tarifa social.

A tarifa subsidiada deve atingir uma faixa mais ampla da população classificada como pobre e não se restringir, como hoje, à parcela que vive abaixo da linha da pobreza. “Por exemplo, nas residências que conso-mem até 80kWh por mês, que estão automaticamente dentro da tarifa social, a família não pode ter chuveiro elétrico em casa”, diz Ari Ferreira de Abreu, professor da Universidade Federal de Santa Catarina42. Segundo ele, esse nível de consumo equivale ao uso de um chuveiro por duas horas diárias por mês.

Além disto, sendo um programa de âmbito nacional, a fixação de critérios deve ser adequada à realidade bra-sileira, sempre levando em consideração as diferenças regionais.

No dia 6 de maio de 2003, foi entregue uma proposta ao Ministério de Minas e Energia e à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), para que se fixem novos critérios para conceder os descontos devidos a baixa renda; até agora, não houve qualquer resposta do go-verno federal43.

Os critérios que as entidades reivindicam para a concessão da tarifa social:

• A manutenção do patamar de consumo, porém, com a consideração das diferenças regionais.• O fim da exigência da ligação monofásica.• A concessão do desconto a todos que estejam ins-critos em qualquer programa social governamental federal, estadual ou municipal.• A concessão do benefício para aqueles que, ape-sar de não estarem inscritos em programas sociais, residam em imóvel com até 90m2, com padrão de construção modesto ou precário (informações constantes dos carnês de IPTU, ou em cadastros públicos, de fácil acesso para as concessionárias distribuidoras de energia elétrica).• A concessão do benefício para os consumidores que residam nas zonas de pobreza registradas pelos municípios como favelas e cortiços, definidas como ZEIS na cidade. • A utilização de dados de órgãos oficiais para enquadramento como consumidores de baixa renda torna menos burocratizado o processo de enquadramento e implica respeitar a natureza de essencialidade dos serviços.

42 O engenheiro Ari Ferreira de Abreu, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, no artigo “Tarifa social definida pelo governo é mais restritiva”, Folha de S.Paulo, 9/9/2002.

43 O subsídio, que pode representar desconto de até 65% sobre a tarifa convencional, além da isenção de cobrança de outros encar-gos como o ECE (Encargo de Capacidade Emergencial), o famoso seguro anti-apagão.

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS PARA GARANTIR O DIREITO À MORADIA ADEQUADA

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Por tratar-se de serviço essencial, acabam por pro-liferar as ligações clandestinas, os chamados “gatos”, e o uso descontrolado da energia elétrica, bem essencial para o desenvolvimento da economia do país e para a dignidade da vida humana. Isso implica dizer que, se persistirem as normas inadequadas para a realidade dos consumidores brasileiros, aumentará o custo econômico e social da energia, para o país.

Este cenário de violação de direitos é agravado quan-do se considera o aumento da variação do valor da tarifa, no período entre 1995 e 2003, corresponde a variação média de 310% no Brasil44.

44 Segundo informações retiradas do site da ANEEL, INPC – 222% do IBGE jan. 95 a dez 2003.

Recomendações

RECOMENDAÇÕES

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Recomendações gerais

1. Estabelecimento de gestão e processo democráti-cos, na elaboração e definição dos projetos estratégicos para a cidade, quais sejam:

• a elaboração do Plano Diretor; • o projeto de Furnas Centrais Elétricas S.A. de cons-trução de barragens no Rio Madeira; e• o projeto municipal turístico Beira Rio.

2. Regulação pública do direito de propriedade, mediante a definição de critérios e normas para classi-ficar os imóveis como subutilizados.

3. Constituir comissões (grupos de trabalho) para discutir os projetos a serem executados nas comuni-dades visitadas:

• Continuidade da discussão entre as autoridades competentes, as comunidades visitadas e o Fórum pelo Plano Diretor Participativo de Porto Velho, para que seja encaminhada solução pacífica e sustentável para os moradores e para a cidade de Porto Velho. A título de exemplo: no caso da Comunidade Vila Princesa, os trabalhos deverão ser realizados junto ao IBAMA e ao Ministério Público Estadual para a garantia, tanto do Direito à Moradia Adequada, como da atual forma de subsistência dos catadores. Resta ainda lembrar que a experi-ência deste grupo de trabalhadores, com a coleta e reciclagem do lixo, pode subsidiar a implantação do serviço de coleta seletiva de lixo no Município, idéia que vai ao encontro do interesse manifestado pela municipalidade.

4. Constituir comissões para mediar e conciliar conflitos fundiários, compostas de representantes do governo federal, do Governo do Estado de Rondônia, do Município de Porto Velho e representantes dos morado-res, comunidades, organizações da sociedade, empresas e instituições envolvidas no conflito.

5. Introduzir tarifas com preços diferenciados, considerada a renda dos beneficiários, para os serviços públicos.

6. Construir parcerias entre as três esferas de governo (Município, Estado e União), a Associação de Notariais e os Cartórios, firmando-se um convênio que possibilite a gratuidade do registro dos títulos das comunidades de baixa renda nos Cartórios de Registro de Imóveis, viabilizando assim a regularização Fundiária.

Recomendações específicas

Recomendações ao governo municipal

Do Plano Diretor

• Repactuar o processo democrático de discus-são dos conteúdos do Plano Diretor. Para tanto, deve-se construir uma agenda entre a sociedade civil e o Governo Municipal, que preveja, além de Audiências Públicas, uma Conferência45 Municipal, como meio para garantir um processo amplo e de-mocrático de participação na elaboração e avaliação das políticas públicas que devem estar contidas no Plano Diretor.• Tornar públicos os levantamentos e estudos já rea-lizados pelo Consórcio, para subsidiar a discussão do Plano Diretor com os diversos setores da sociedade, de forma transparente e participativa. Além de dispo-

45 Nos termos do artigo 43, inciso III, do Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/01), as Conferências devem ser realizadas no âmbito na-cional, estadual e municipal. A Conferência deve ser compreendida como um espaço público privilegiado para estabelecer parcerias, dirimir conflitos coletivos e legitimar as ações e medidas referentes à política de desenvolvimento local, devendo estar integrados as diretrizes e políticas para a zona urbana e rural.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

nibilizar levantamentos e estudos, é preciso também facilitar o acesso a eles e aos meios necessários para que a população compreenda satisfatoriamente as informações já produzidas e reunidas.• Elaborar programa de capacitação dos técnicos da Prefeitura e da população acerca dos conteúdos do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor.• Demarcar as comunidades visitadas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) no Plano Diretor, para a execução de programas e projetos de regularização fundiária junto ao Estado e à União para a titulação e implantação de infra-estrutura adequada, como no caso dos bairros São Sebastião I e II e Nacional. Deve ser garantida a participação da comunidade na elaboração do plano de urbani-zação das ZEIS, como prevê o art. 2o, Inciso XIV, do Estatuto da Cidade. • Demarcar as comunidades tradicionais de Porto Velho como Zonas Especiais de Preservação Histórico Cultural, viabilizando sua regularização fundiária e preservando seu potencial turístico. Cabe ao município exercer suas competências constitucionais em todo o seu território, seja em terras particulares, do Estado ou da União. Por isso, são tão importantes o diálogo e a cooperação entre os três níveis de governo, no tocante ao de-senvolvimento urbano.• Regular e conformar projetos de impacto socio-ambiental local, como o Projeto das hidrelétricas de Furnas e o Projeto Beira Rio, os adequando as diretrizes e prioridades identificadas no processo participativo de revisão e elaboração do Plano Diretor (diagnóstico participativo, audiências pú-blicas, etc.) e definidas no Estatuto da Cidade para o cumprimento da função social da propriedade e funções sociais da cidade de Porto Velho.

Do projeto Beira Rio

• Disponibilizar os documentos e estudos acerca do projeto turístico para as comunidades e órgãos competentes (IBAMA, GRPU, MP).

Fazer constar no Plano Diretor a exigência de que se faça Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV)46, como requisito para a realização do empreendimento turístico, vez que este atingiria patrimônio histórico da cidade, o Bairro Triângulo, o mais antigo de Porto Velho, marco onde a cidade nasceu, às margens dos trilhos da estrada de ferro Madeira-Mamoré.

Da Vila Princesa

• Assentar as famílias, que hoje vivem em área insalubre junto a lixão, em área municipal próxima, de forma a garantir o Direito à Moradia Adequada desta população.• Incorporação dos catadores de material reciclável em frentes de trabalho decorrentes da implantação da coleta seletiva pela prefeitura.

Recomendações ao governo federal

Considerando que os bairros urbanos ribeirinhos e as comunidades rurais ribeirinhas constituem patrimônio histórico e ambiental do município, e por serem tradicio-nais, consolidadas e de baixa renda, têm o direito à re-gularização fundiária assegurado constitucionalmente47, encaminhamos as seguintes recomendações:

46 Nos termos dos artigos 36 e ss. do Estatuto da Cidade.

47 O artigo 183 parágrafo 1o da Constituição Federal trata da concessão de uso especial para fins de moradia de áreas públicas urbanas, já regulamentado pela Medida Provisória 2.220/2001. Da mesma forma, o título de concessão de uso (art. 188, parágrafos 1o e 2o da Constituição Federal) ou a concessão de direito real de uso – CDRU (Decreto-Lei no 271/1967) deverá ser outorgado às comunidades rurais ribeirinhas.

RECOMENDAÇÕES

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À Secretaria de Patrimônio da União

Da regularização fundiária das áreas urbanas ribeirinhas da União:

• Que o Setor de Patrimônio da União, junto à Gerência Regional do Patrimônio da União de Rondônia, celebre Convênio de Cooperação Técnica entre a União (Ministério das Cidades), o Estado de Rondônia, o Município de Porto Velho e os Cartórios/Judiciário48, para que se simplifi-que e acelere o procedimento de regularização, e para que se garanta pleno acesso aos Registros Públicos, devendo ser gratuita a primeira inscri-ção do título no Cartório. Recomendamos, como modelo, a experiência do Município de Vitória/ES para garantir o direito à segurança jurídica da posse dos moradores dos bairros Triângulo, Candelária e Baixa União.

Ao Ministério do Desenvolvimento Agrário

Da regularização fundiária das áreas rurais ribeirinhas da União:

• Que o Ministério, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), pro-ceda o levantamento, a delimitação e a titulação das terras ocupadas pelas comunidades ribeiri-nhas tradicionais ameaçadas de deslocamento pela implantação do Projeto de Furnas Centrais Elétricas S.A., como é o caso das comunidades Santo Antônio e Engenho Velho. Recomenda-se a implementação do “Projeto Porto Seguro” da Superintendência do INCRA de Rondônia, que, além da outorga da CDRU para o reconhecimento da titularidade, prevê projeto de desenvolvimento sustentável para as comunidades, facilitando o seu acesso ao crédito49.

Ao IBAMA

Do Projeto de Furnas Centrais Elétricas S.A.

• Democratizar o Termo de Referência do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) a ser elaborado pela empresa Furnas, simplificando o seu conteúdo, mediante a produção de cartilha ou similar, pos-sibilitando o acesso da população às informações sobre o projeto, monitorando e avaliando a sua via-bilidade para o desenvolvimento local e regional.

Ao Ministério de Minas e Energia

Do Projeto de Furnas Centrais Elétricas S.A.

• Elaborar estudo de viabilidade, para determinar se a construção de barragens de grande porte no Rio Madeira e o conseqüente deslocamento da população ribeirinha são realmente a única solução disponível para aproveitar o potencial energético do rio. Neste ponto, a contribuição do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e dos demais Fóruns de pesquisa sobre alternativas sustentáveis de produção de energia é fundamental, no sentido de construir conjuntamente uma nova proposta.

48 Associação dos Notários e Registradores (ANOREG, órgão es-tadual) ou Instituto dos Registradores Imobiliários do Brasil (IRIB, órgão nacional).

49 Faz-se necessário frisar que, independentemente da construção de barragens no Rio Madeira, projeto de longo prazo e ainda em fase inicial de estudos, as comunidades ribeirinhas ameaçadas de deslocamento têm direito ao título de domínio das terras que ocu-pam há décadas, sendo tal demanda hoje prioritária, visto que, na eventualidade da concretização do projeto de Furnas Hidrelétricas, os moradores deslocados deverão receber indenização justa, ou seja, correspondente ao valor da moradia, benfeitorias e do terreno em que vivem e plantam.

50 Conforme pudemos constatar em visita ao Bairro Triângulo, no dia 18 de maio de 2004.

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O DIREITO À MORADIA EM PORTO VELHO

Recomendações ao poder Judiciário

Ao Ministério Público Estadual

Das tarifas de energia elétrica

• Tendo em vista o valor abusivo das contas de energia elétrica para população de baixa renda, che-gando a R$ 300,00) mensais50, cabe ao Ministério Público acionar a empresa responsável (CERON) e, se necessário, a ANEEL, para regularizar o valor das tarifas de energia elétrica, adequando-as à faixa de renda da população beneficiária, obedecendo a norma expressa no Estatuto da Cidade, que prevê a diferenciação das tarifas dos serviços públicos bási-cos em função do interesse social (art. 47).

Do direito à informação

• Apoiar a sociedade civil quanto às garantias expressas nos incisos II e III do parágrafo 4o, art. 40, do Estatuto da Cidade, que prescreve como responsabilidade dos poderes Executivo e Legislativo Municipal a publici-dade dos documentos e informações produzidos na elaboração do Plano Diretor, e o direito de todos os interessados terem acesso a eles, inclusive no que tange aos recursos aplicados ou previstos. No mesmo sentido, garantir a transparência e a

publicidade dos atos relativos ao Projeto Beira Rio, e fiscalizar a legalidade desses atos, do ponto de vista socioambiental.

Ao Ministério Público Federal

Do Projeto de Furnas Centrais Elétricas S.A.

Considerando como diretriz a incorporação das co-munidades locais nos projetos de desenvolvimento econô-mico a serem implantados na região, e para que prevaleça o respeito ao território e à identidade das comunidades em todos e quaisquer projetos, recomendamos:

• Solicitar informações à empresa e aos órgãos federais competentes, para proceder o monito-

ramento do andamento do projeto, avaliando os impactos ambientais e sociais, sobretudo quanto à viabilidade e à necessidade, para o interesse local, de suportar a construção de duas grandes barragens no Rio Madeira. Ao Ministério Público, cabe a função de prevenir possíveis prejuízos51 derivados desses empreendimentos. À Defensoria Pública, Universidades e Socieda-de Civil

Acesso à Justiça e regularização fundiária:

• A prestação de serviço de Assessoria Jurídica e Técnica gratuita à população de baixa renda para a regularização fundiária, envolvendo os trabalhos so-ciais, levantamentos e procedimentos para requerer a titulação, a elaboração de projetos urbanísticos-ambientais. Neste âmbito, as Universidades podem desempenhar importante papel social, se oferecerem projetos de extensão que democratizem os conheci-mentos técnicos e atendam as comunidades locais, como, no caso, as ocupações urbanas Mamoré, Flamboyant e Rio de Janeiro.

51 Prejuízos estes irreparáveis, caso se trate da troca de modos de vida sustentáveis, como o das comunidades ribeirinhas, pelo desemprego na cidade. O deslocamento das populações ribeirinhas, ameaçadas de perder sua forma de subsistência e autonomia, só viria a acirrar os problemas urbanos de Porto Velho.

O Direito à Moradia em Porto Velho e os projetos de desenvolvimento na Amazônia

Relatório da Missão da Relatoria Nacional à Moradia e à Terra Urbana em Porto Velho/RO em maio de 2004

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