O Diferendo

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de Jean François Lyotard.Tradução de Thiago MotaO título do livro sugere (pelo valor genérico do artigo) que uma regra universal de julgamento entre gênerosheterogêneos falta em geral.

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  • O diferendoTtulo original: Fiche de lecture in : LYOTARD, Jean-Franois. Le diffrend.

    Paris : ditions de Minuit, 1983, pp. 9-15.

    Indito em portugus. Traduo: Thiago Mota | [email protected]

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    Ficha de leitura

    Ttulo.

    Diferentemente de um litgio, um diferendo1 [diffrend] seria um caso de conflito entre duas partes (no mnimo) que no poderia ser resolvido equitativamente dado a falta de uma regra de julgamento aplicvel s duas argumentaes. Que uma seja legtima no implicaria que a outra no seja. Se aplicarmos, entretanto, a mesma regra de julgamento a uma e a outra para resolver o diferendo como se este fosse um litgio, causamos um prejuzo a uma delas (no mnimo, e a ambas se nenhuma admite esta regra). Um dano [dommage] resulta de uma injuria contra as regras de um gnero de discurso, ele reparvel segundo essas regras. Um prejuzo2 [tort] resulta do fato de que as regras do gnero de discurso segundo as quais julgamos no so aquelas do ou dos gneros de discurso julgado(s). A propriedade de uma obra literria ou artstica pode sofrer um prejuzo (atentamos para os direitos morais do autor); mais o princpio mesmo de que devemos tratar a obra como o objeto de uma propriedade pode constituir um prejuzo (desconhecemos que o autor seu refm). O ttulo do livro sugere (pelo valor genrico do artigo) que uma regra universal de julgamento entre gneros heterogneos falta em geral.

    1 O termo diferendo um neologismo que se justifica pelo fato de que se trata de um conceito que tem uma acepo tcnica, diferente do uso cotidiano, no vocabulrio de Lyotard. Diffrend traduz-se em geral como conflito, disputa, lide, querela ou litgio e um termo originariamente jurdico.2 A dificuldade de traduo dos termos tort e dommage a mesma: trata-se de conceitos com uma acepo especfica que no se confunde com o uso cotidiano. Optamos, respectivamente, por dano e prejuzo. (Comparar com as tradues alem e inglesa.)

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    Objeto.

    O nico que seja indubitvel, a frase, porque ela imediatamente pressuposta (duvidar que fraseamos em todo caso frasear, calar-se uma frase). Ou melhor: as frases, porque o singular chama o plural (como o plural, o singular) e porque o singular e o plural juntos j so o plural.

    Tese.

    Uma frase, a mais ordinria, constituda segundo um grupo de regras (seu regime). H vrios regimes de frases, raciocinar, conhecer, descrever, contar, interrogar, mostrar, ordenar etc. Duas frases de regime heterogneo no so traduzveis uma pela outra. Elas podem ser encadeadas uma a outra segundo um fim fixado por um gnero de discurso. Por exemplo, dialogar encadeia uma ostenso (mostrar) ou uma definio (descrever) sobre uma interrogao, o objetivo estando no acordo entre as duas partes sobre o sentido de um referente. Esses gneros de discurso fornecem as regras de encadeamento de frases heterogneas, regras que so apropriadas para atingir certos objetivos: saber, ensinar, ser justo, seduzir, justificar, avaliar, emocionar, controlar... No h linguagem em geral, exceto enquanto objeto de uma Idia.

    Questo.

    Uma frase ocorre3 [arrive]. Como encadear sobre ela? Um gnero de discurso fornece por sua regra um conjunto de frases possveis, cada uma depende de um regime de frases. Mas outro gnero de discurso fornece um conjunto de outras frases possveis. H um diferendo entre esses conjuntos (ou entre os gneros que os chamam) porque eles so heterogneos. Ora, preciso encadear agora, outra frase no pode no ocorrer, a necessidade, isto , o tempo, no h no-frase, um silncio uma frase, no h a ltima frase. Na ausncia de um regime de frases ou de um gnero de discurso que goze de uma autoridade universal para resolver, no necessrio que o encadeamento, seja qual for, faa um prejuzo aos regimes ou aos gneros cujas frases possveis permanecem inatualizadas.

    Problema.

    Estando dado 1 a impossibilidade de evitar os conflitos (a impossibilidade da indiferena), 2 a ausncia de um gnero de discurso universal para regul-los ou se se prefere a necessidade que o juiz seja parte, encontrar, se no o que pode legitimar o juzo (o bom encadeamento), ao menos como salvar a honra de pensar.

    Aposta. [enjeu]

    Convencer o leito (a includo o primeiro, o autor) de que o pensamento, o conhecimento, a tica, a poltica, a histria, o ser, conforme o caso, esto em jogo no encadeamento de uma frase sobre uma frase. Refutar o preconceito nele ancorado por sculos de humanismo e de cincias humanas de que h o homem, de que h a linguagem, de que este se serve desta tendo em vista seus fins, de que se ele no consegue alcan-los, por falta de um bom controle sobre a linguagem pelos meios de uma linguagem melhor. Defender e ilustrar a filosofia no seu diferendo com seus dois adversrios: no exterior, o gnero de discurso econmico (a troca, o capital), no interior dela mesma o gnero de

    3 O verbo francs arriver (chegar, ocorrer, acontecer) no encontra um correlato exato em portugus. Seria certo dizer que uma frase chega, mas resolvemos optar por uma frase ocorre.

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    discurso acadmico (o domnio). Mostrando que o encadeamento4 [enchanement] de uma frase sobre uma frase problemtico e que esse problema a poltica, erigir a poltica filosfica distncia daquela dos intelectuais e dos polticos. Testemunhar o diferendo.

    Contexto.

    A virada lingstica da filosofia ocidental (as ltimas obras de Heidegger, a penetrao das filosofias anglo-americanas no pensamento europeu, o desenvolvimento das tecnologias da linguagem); correlativamente, o declnio dos discursos universalistas (as doutrinas metafsicas dos tempos modernos: as narrativas [rcits] do progresso, do socialismo, da abundncia, do saber). Exausto com relao teoria, e o miservel desleixo que o acompanha (novo isto, novo aquilo, ps-isso, ps-aquilo, etc.). Hora de filosofar.

    Pretexto.

    Os dois pensamentos que sinalizam a autor: o Kant da terceira Crtica e dos textos histrico-polticos (quarta Crtica), o Wittgenstein das Investigaes filosficas e dos pstumos. No contexto imaginado pelo autor, eles so eplogos da modernidade e prlogos de uma ps-modernidade honrvel. Eles estabelecem a constatao do declnio das doutrinas universalistas (metafsica leibniziana ou russelliana). Eles interrogam os termos nos quais essas crem poder resolver diferendos (realidade, sujeito, comunidade, finalidade). Eles os interrogam de maneira mais rigorosa do que a da cincia rigorosa husserliana que procede por variao eidtica e evidncia transcendental, ltima fonte da modernidade cartesiana. Ao invs, Kant diz que no h intuio intelectual, e Wittgenstein que a significao de um termo seu uso. O exame livre das frases chega dissociao (crtica) de seus regimes (separao das faculdades, e seu conflito em Kant; desimbricao dos jogos de linguagem em Wittgenstein). Eles preparam o pensamento da disperso (dispora, escreve Kant) que segundo o autor forma nosso contexto. Seu legado deve hoje ser desvencilhado da dvida de antropomorfismo que o onera (noo de uso em ambos, antropologismo transcendental em Kant, emprico em Wittgenstein).

    Modo.

    O modo do livro filosfico, reflexivo. O autor tem aqui por nica regra examinar casos de diferendo e pesquisar as regras dos gneros de discurso heterogneos que ocasionam esses casos. Diferentemente de um terico, ele no pressupe as regras de seu discurso, mas somente que este deve ele tambm obedecer a regras. O modo do livro filosfico, e no terico (ou outro), na medida em que ele tem a descoberta de suas prprias regras como objetivo, e no seu conhecimento por princpio. Ele se interdita por a de resolver a partir de suas prprias regras os diferendos que ele examina (contrariamente ao gnero especulativo, por exemplo, ou analtico). O modo aquele de uma metalinguagem no sentido do lingista (ele tem por objeto frases), mas no no sentido do lgico (ele no constitui a gramtica de

    4 Lyotard afirma mais a frente que o encadeamento das frases a questo central do Diferendo. A tese bsica de uma agonstica dos enunciados que parece ser a de Lyotard no Diferendo (na Condio ps-moderna trata-se antes de uma agonstica de atos de fala e, em ltima instncia, de agentes de palavra). A noo de encadeamento deve ser compreendida, em primeiro lugar, como uma noo lgica, no sentido da ligao, da conexo lgica entre proposies que forma um raciocnio, como na silogstica aristotlica, a teoria da prova, da demonstrao ou da inferncia em Aristteles. O encadeamento a inferncia. As regras de encadeamento so as regras de inferncia, regras que constituem a chamada dimenso sinttica da linguagem. Pensar o encadeamento em termos conflictuais, em termos agonsticos, significa levar a agonstica ao cerne da sintaxe, levar a poltica ao cerne da lgica. Nesse sentido, uma lgica agonstica sempre uma lgica poltica. O conflito entre as frases tem papel decisivo na definio das regras lgicas de inferncia ou de encadeamento. H similaridade entre as regras de inferncia e as leis polticas.

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    uma lngua-objeto).

    Gnero.

    No sentido da potica, o gnero aquele das Observaes, Comentrios, Pensamentos, Notas, relativas a um objeto, isto , a forma descontinua do Ensaio. Um caderno de croquis? As reflexes so dispostas em uma srie de nmeros e grupos em sees. A srie interrompida conforme a oportunidade por Notas, que so notas de leitura de textos filosficos. Mas o conjunto deve ser lido em seqncia.

    Estilo.

    O ingnuo ideal do autor atingir o grau zero do estilo e que o leitor tenha por assim dizer em mos o pensamento. Segue-se s vezes um tom de sabedoria, sentencioso, que convm negligenciar. O ritmo do livro no aquele do nosso tempo. Um pouco caduco? O autor se explica ao fim sobre o tempo de nosso tempo.

    Leitor.

    Filosfico, isto , qualquer um sob a condio de que aceite no chegar ao fim da linguagem e no ganhar tempo. Todavia, a presente ficha de leitura permitira ao leitor falar do livro, se a fantasia o pegar, sem t-lo lido. (Para as Notas, um leitor um pouco mais profissional.)

    Autor.

    Anunciou as presentes reflexes na Prece de desinteresse de Rudimentos pagos (1977) e na Introduo Condio ps-moderna (1979). Se ele no receava ser cansativo, ele confessaria ter comeado este trabalho logo aps a publicao de Economia libidinal (1974). E mesmo... Estas reflexes s puderam ver a luz do dia graas a um acordo firmado entre a universidade de Paris VIII (Vincennes Saint-Denis) e o CNRS, e cortesia de Maurice Cavening e de Simone Debout-Oleszkiewicz, pesquisadores do CNRS. O que o autor, se no o leitor, os agradece.

    Destino.

    Portanto, no haver mais livros no prximo sculo. muito longo para ler, enquanto o sucesso ganhar tempo. Chamar-se- de livro a um objeto impresso de que as mdias, um filme, uma entrevista jornalstica, uma emisso televisiva, um cassete, tero difundido anteriormente a mensagem (o teor em informao) com o nome e o ttulo, e com a venda do qual o editor (que ter tambm produzido o filme, a entrevista, a emisso, etc.) obter um suplemento de lucro, porque a opinio ser que preciso o ter (logo comprar) sob pena de passar por um imbecil, sob pena de ruptura do lao social, cus! O livro ser distribudo como brinde, ele dar um suplemento de lucro financeiro para o editor, simblico para o leitor. Este livro pertence a um fim de srie. Apesar de todos os seus esforos para tornar o pensamento mais comunicvel, o autor sabe que fracassou, que volumoso demais, longo demais, difcil demais. Os promotores sumiram. Para dizer a verdade, sua timidez o impediu de contat-los. Felizmente que um editor, ele tambm (e por isso mesmo) condenado, tenha aceitado publicar este monte de frases.

    Os filsofos jamais tiveram destinatrios institudos, isso no novo. A destinao da reflexo tambm um objeto de reflexo. O fim de srie dura h muito tempo, e a solido. H, porm, o novo. a relao

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    com o tempo, somos tentados a escrever: o uso do tempo, que reina no espao pblico hoje. No se repudia a reflexo porque ela perigosa ou perturbadora, mas simplesmente porque ele faz perder tempo, e no serve pra nada, no serve para ganh-lo. Ora, o sucesso est em ganh-lo. Um livro, por exemplo, um sucesso se a primeira tiragem esgotada rpido. Essa finalidade aquela do gnero econmico. A filosofia pde publicar suas reflexes sob pelo intermdio de muitos gneros (artstico, poltico, teolgico, cientfico, antropolgico), ao preo certamente de desprezo e prejuzos graves, mas enfim... enquanto o clculo lhe parece fatal. O diferendo no diz respeito ao contedo da reflexo. Ele toca sua pressuposio ltima. A reflexo exige que se d ateno ocorrncia, que no se saiba j o que ocorre. Ela deixa aberta a questo: ocorre? [Arrive-t-il?] Ela tenta manter [maintenir] (palavra miservel) o agora [maintenant]. No gnero econmico, a regra que o que ocorre s pode ocorrer se ele j est quite, logo ocorrido [arriv]. A troca pressupe que a cesso anulada antecipadamente por uma contra-cesso, a tiragem do livro anulada por sua venda. E quanto mais rpido feito, melhor.

    Escrevendo este livro, o autor teve o sentimento de s ter por destinatrio o ocorre? [Arrive-t-il?] a ele que as frases que ocorrem chamam. E, bem entendido, ele jamais saber se as frases chegaram [sont arrivs] ao destino. E ele no deve saber disso, por hiptese. Ele sabe somente que esta ignorncia a ltima resistncia que o evento [vnement] pode opor ao uso contbil do tempo.