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1 O diálogo entre caiçaras e africanos através da produção e circulação de objetos utilitários e seus símbolos – séculos XIX e XX CAMILLA AGOSTINI Pós-doutoranda em História – UFF/CNPq A região de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, teve sua expressão econômica fortemente ligada à dinâmica portuária e ao comércio para exportação. Os momentos históricos de maior vulto talvez tenham sido aqueles ligados à produção mais significativa da cana na região, na segunda metade do século XVIII; e, posteriormente, com a cafeicultura. Isto considerando os empreendimentos “oficiais”. Não menos importantes para seus portos, e até mesmo ainda mais, foram as dinâmicas “oficiosas”, como a do tráfico ilegal de escravos na primeira metade do século XIX. Estabelecimentos que atuavam como intermediários nessas dinâmicas “oficiosas” não foram incomuns na costa norte paulista, como pode ter sido o caso do sítio arqueológico São Francisco, tal como abordado em Agostini (2011). No entanto, o interesse aqui é perguntar, para além dos portos, engenhos de cana, propriedades cafeicultoras ou mesmo daquelas com características ilícitas, onde estão as casas simples, de pau-a-pique ou alvenaria, espalhadas pelas praias, moradias de pessoas comumente designadas pela historiografia como “livres e pobres”. Jaime Rodrigues se refere à população “livre e pobre” como o “homem livre, assalariado, ou que vivia de seu próprio trabalho, sem vínculo constante com um único patrão, como artesãos, pequenos comerciantes, roceiros, ou pescadores, por exemplo (RODRIGUES, 2005: 176)”. Esta multiplicidade de personagens que não representavam esferas do poder político e econômico não era de médios ou grandes proprietários, ou, no outro extremo, também não era de escravos. Constituía uma população miscigenada que vinha se formando desde os primeiros contatos de europeus com grupos indígenas. Diegues (2001: 54) faz uma interessante observação sobre estas populações cujas economias operavam em um nível doméstico ou artesanal – atualmente chamadas tradicionais. O autor lembra que elas de fato nunca foram independentes, isto é, sempre estiveram articuladas aos sistemas hegemônicos, como o

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O diálogo entre caiçaras e africanos através da produção e circulação de objetos utilitários e seus símbolos – séculos XIX e XX

CAMILLA AGOSTINI Pós-doutoranda em História – UFF/CNPq

A região de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, teve sua expressão

econômica fortemente ligada à dinâmica portuária e ao comércio para exportação. Os

momentos históricos de maior vulto talvez tenham sido aqueles ligados à produção mais

significativa da cana na região, na segunda metade do século XVIII; e, posteriormente,

com a cafeicultura. Isto considerando os empreendimentos “oficiais”. Não menos

importantes para seus portos, e até mesmo ainda mais, foram as dinâmicas “oficiosas”,

como a do tráfico ilegal de escravos na primeira metade do século XIX.

Estabelecimentos que atuavam como intermediários nessas dinâmicas

“oficiosas” não foram incomuns na costa norte paulista, como pode ter sido o caso do

sítio arqueológico São Francisco, tal como abordado em Agostini (2011). No entanto, o

interesse aqui é perguntar, para além dos portos, engenhos de cana, propriedades

cafeicultoras ou mesmo daquelas com características ilícitas, onde estão as casas

simples, de pau-a-pique ou alvenaria, espalhadas pelas praias, moradias de pessoas

comumente designadas pela historiografia como “livres e pobres”.

Jaime Rodrigues se refere à população “livre e pobre” como o “homem livre,

assalariado, ou que vivia de seu próprio trabalho, sem vínculo constante com um único

patrão, como artesãos, pequenos comerciantes, roceiros, ou pescadores, por exemplo

(RODRIGUES, 2005: 176)”. Esta multiplicidade de personagens que não

representavam esferas do poder político e econômico não era de médios ou grandes

proprietários, ou, no outro extremo, também não era de escravos. Constituía uma

população miscigenada que vinha se formando desde os primeiros contatos de europeus

com grupos indígenas. Diegues (2001: 54) faz uma interessante observação sobre estas

populações cujas economias operavam em um nível doméstico ou artesanal –

atualmente chamadas tradicionais. O autor lembra que elas de fato nunca foram

independentes, isto é, sempre estiveram articuladas aos sistemas hegemônicos, como o

2

escravocrata brasileiro ou o feudal no caso europeu. Ou ainda, mais recentemente, ao

próprio sistema capitalista. Importante é pensar, como chama atenção o autor, que estas

formas dominantes desaparecem, mas elas não. Sempre existiram. Historicamente

sempre se readaptando, operando novas articulações.

Desde pelo menos o século XVIII, um grupo de artesãs (no feminino, pois eram

mulheres em sua maioria esmagadora), “livres e pobres”, esteve espalhado por

pequenos núcleos populacionais ou mesmo em habitações mais isoladas nas praias das

proximidades do centro de São Sebastião, como as praias Deserta, Porto Grande, e,

principalmente, a do bairro São Francisco. É de se notar que em mapa de 1861-8

(Figura 1), assim como em outra representação cartográfica anterior, datada de 1819, o

bairro São Francisco aparece com o registro de considerável aglomeração de habitações

– além do Convento de Nossa Senhora do Amparo (construído por franciscanos em

1664 e ainda nos dias de hoje patrimônio da cidade) –, afastado cerca de 8km do centro

de São Sebastião por certo “vazio” ou baixo adensamento populacional.

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Figura 1: Localização do bairro São Francisco, acerca de 8 km do centro de São Sebastião. Marcado em vermelho, a cima, o bairro São Francisco; em laranja, abaixo, o centro de São Sebastião.1

Nesta “aglomeração” certamente conviviam lado a lado inúmeras artesãs que

ganharam fama com sua atividade de “viver de fazer louça”, ou, como foram

conhecidas no século XX, como as paneleiras de São Sebastião. Os muitos fornos que

ardiam como parte do processo produtivo destas artesãs chegaram a dar nome a uma das

principais ruas na época (há quem diga que não se trata de referência a uma rua

específica, mas ao núcleo do bairro de maneira geral) (Figura 2). Sem registros em

placas atualmente, a Rua do Fogo tem seu nome guardado na memória da população

local até os dias de hoje, reportando à atividade dessas louceiras no passado.

Figura 2 – Antiga Rua do Fogo no bairro São Francisco, cidade de São Sebastião.2

Junto às paneleiras também faziam parte daquele pequeno fragmento de

sociedade residente no bairro São Francisco pescadores, roceiros, constituindo

provavelmente uma população caiçara em formação. Para este trabalho cabe ressaltar o

contexto da ilegalidade de locais vizinhos ao bairro, que deveriam receber africanos

após a lei de 1831, e pensar como esta população “livre e pobre”, de pescadores,

1 Arquivo Nacional – F4 MAP 410 / So. Sebastião Island to Bom Abrigo Island (1861-8); Arquivo Nacional – OG MAP 88 / Côte du Brésil – Mouillage de L´Ile Sn.Sebastião (1819). 2 Fonte: acervo do Departamento de Patrimônio da Prefeitura de São Sebastião.

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roceiros, artesãos, entre outros, interagia com esta dinâmica ilícita, assim como com a

forte presença africana e afrodescendente na época.

Rodrigues (2005: 174) indaga se o medo das elites da “africanização” da

sociedade brasileira, frente a uma demografia que impunha este legado de formas

estéticas, em costumes, sonoridades, sabores, formas de articulação política,

religiosidades, etc., teria se dado da mesma forma entre os estratos mais baixos da

sociedade, não afrodescendentes. Observar pequenos detalhes do cotidiano ajuda a

pensar possíveis respostas a esta pergunta. Considerar a sutileza de significados

implícitos em materialidades cotidianas, como, por exemplo, na estética de panelas de

barro que circulavam em cozinhas oitocentistas é o caminho escolhido aqui para

investigar esta questão.

É possível dizer que há uma espécie de senso comum, ou talvez melhor dizendo,

uma tendência entre os arqueólogos – pesquisadores que tradicionalmente se dedicam

ao estudo dessas materialidades – que os utensílios de barro de produção local (ou seja,

não industrializados ou importados: geralmente as cerâmicas não-torneadas e sem outro

tratamento de superfície que não o alisamento) eram produzidos por escravos neste

tempo do cativeiro, particularmente nos contextos das fazendas, engenhos, unidades

domésticas etc. (AGOSTINI, 1998; SYMANSKI, 2006, 2010; SOUZA, no prelo;

SOUZA E SYMANSKI, 2009). Ainda na década de 1980 Dias Jr. (1988) define um tipo

de cerâmica que surge no período colonial, designada pelo autor como neobrasileira,

que apresentaria características europeias (bases planas e alças) incorporadas a

cerâmicas com manufaturas de um legado indígena. Nesta cerâmica o autor chama

atenção ainda para a possibilidade da contribuição africana com as diversas formas de

decoração incisa.

Um questionamento sobre a conceituação deste tipo cerâmico foi bem delineado

por Souza (2008). Cabe aqui apenas ressaltar que independente da nomeclatura

tendenciosa e generalizações que o termo abarca, vêm sendo amplamente aceitos

estudos que reforçam a possibilidade da influência africana na grande diversidade

decorativa proporcionada pelas incisões, ponteados, entre outras técnicas, nos utensílios

de uso doméstico produzidos com o barro no período escravista no Brasil, nos contextos

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mais variados (SOUZA e SYMANSKI, 2009; SOUZA e AGOSTINI, 2012,

SYMANSKI, 2008, 2010; JACOBUS, 1997; AGOSTINI, 1998).

As considerações feitas neste trabalho buscam entender as interações entre certa

população “livre e pobre” e africanos junto com seu legado a partir de utensílios como

estes mencionados a cima. O conjunto de objetos estudado é procedente principalmente

de uma propriedade vizinha ao núcleo de produtoras de panelas do bairro São Francisco,

além de outras nos arredores. O caso, referido no início deste texto – do sítio

arqueológico São Francisco –, foi estudado como um exemplar intermediário na

recepção de africanos recém-chegados, particularmente durante tráfico ilegal de

escravos (AGOSTINI, 2011), assim como nos seus pormenores paisagísticos

(BORNAL, 1995, 2008).

O conjunto de objetos identificados procedente desta propriedade (junto a vários

documentos sobre este caso em particular, que permitiram seu estudo) – servirá,

portanto, de principal amostra para essa região. Comparações com coleções referentes a

escavações vizinhas indicam que se trata de uma amostra compatível com outras

ocorrências nos arredores. 3 Uma matrícula de escravos datada de 1844 respondendo às

exigências de leis sobre a cobrança da meia siza4, junto com levantamentos

demográficos feitos por outros autores, auxilia no estabelecimento de uma estimativa da

presença africana e afro-brasileira em São Sebastião, e, comparativamente, em cidades

como a Corte, ambas no litoral da região sudeste brasileira. Os mapas populacionais

produzidos pela província de São Paulo, também na primeira metade do século XIX,

contribuem para um levantamento das produtoras de objetos tais como os encontrados

3 Todas as coleções utilizadas como base de análise deste texto fazem parte do acervo da Fundação São Sebastião, recuperadas em escavações coordenadas por Wagner Bornal. Detalhes de todo o do material analisado, que em parte resultou nas interpretações apresentadas neste texto podem ser encontrados em Agostini (2011). 4 Meia Siza foi um imposto criado a partir da chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808, que cobrava 5% sobre todas as transações mercantis envolvendo escravos ladinos (nascidos no Brasil). AESP - Coleção das Leis do Império do Brasil de 1842. Tomo V, Parte II. Rio de Janeiro, 1865, pp.201-207. Reimpresso na Typographia Nacional – Arquivo Histórico do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Sebastião-.

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no sítio arqueológico em questão, permitindo traçar um perfil social destas

personagens.5

Neste sentido, com informações sobre as produtoras de panelas e as próprias

panelas será observada a sugestão dos trabalhos arqueológicos sobre a influência

africana na produção destes objetos. No caso deste estudo, contudo, não como uma

influência direta (sendo africanos(as) ou crioulos(as) as pessoas que as

confeccionavam). Este enfoque desvia da possibilidade interpretativa que estabelece

uma linha direta entre os sentidos do que é produzido por interesses “pessoais” de quem

produz (frequentemente incidindo sobre inferências acerca desses objetos como reflexo

de expressões identitárias); mas permite observar dinâmicas simbólicas e formas de

interação social entre diferentes personagens no tempo do cativeiro.

Vejamos, afinal, quem eram essas mulheres que “viviam de fazer louça” na

primeira metade do século XIX, o que elas estavam produzindo e possivelmente em

diálogo com quem ou com o quê. A designação caiçara tem, segundo dicionários

clássicos brasileiros, certa conotação negativa, tais como “vagabundo”, “malandro”,

“desbriado”, “mandrião” (BARBOSA, 1999; AURÉLIO, 1975), tendo sua origem

etimológica também um sentido pejorativo, mas referente às cercas: do tupi, “cerca

tosca” (CUNHA, 1982). Talvez por esse motivo sejam raras as auto referências em

documentos anteriores ao século XX, quando provavelmente este termo ganha novas

significações. Contudo, não serão foco deste trabalho as políticas e processo de

formação identitária desta(s) população(ões), ainda que possa ser uma contribuição para

observar aspectos de sua história e mesmo levantar algumas questões sobre a sua

participação na sociedade escravista, tão pouco considerada academicamente.

Mas, enfim, por que seriam caiçaras as louceiras oitocentistas de São Sebastião

e não, por exemplo, africanas ou escravas de uma maneira geral? Quem permite esta

sugestão são os referidos mapas populacionais. De um total de 168 ceramistas arroladas

ao longo de quase 30 anos, sendo algumas passíveis de serem acompanhadas no tempo,

é possível resumir de forma objetiva e esquemática suas características gerais:

5 Arquivo Público do Estado de São Paulo, maços populacionais, São Sebastião, 1800-1829, microfilme.

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1) 70% das pessoas arroladas como louceiras eram mulheres, maioria viúvas e

solteiras.

2) Maioria esmagadora dos 30% de homens arrolados como chefes das famílias que

“viviam de fazer louça” tinham mulheres na unidade doméstica que podiam

estar executando o serviço.

3) 47,95% eram de cor branca; 44,52% pardas, com apenas cerca de 8% de negras,

sendo nenhuma africana.

4) Majoritariamente nascidas no local (90,6% das ceramistas com a naturalidade

identificada)

5) Podem ser consideradas como pessoas de poucas posses, sendo seu rendimento

anual menor que 15$000 réis em mais da metade dos casos em que o lucro anual

foi registrado, sendo o maior lucro registrado em um caso, de um ganho de

51$200 réis.

6) Muitas vezes contavam com a presença de agregados em seu núcleo doméstico;

53,85% (35 de 65) desses agregados eram menores de 15 anos. Cerca de 73%

das pessoas que viviam como agregadas eram mulheres, assim como os escravos

que eram representados por cerca de 71% de mulheres também.

7) Dentre os 52% dos escravos das ceramistas que tiveram suas naturalidades

registradas treze eram africanos e nove eram crioulos; dentre os agregados 92%

eram naturais da região, mais particularmente da cidade de São Sebastião, assim

como eram as próprias ceramistas em sua maioria.

8) Onze eram as crianças menores de 15 anos registradas como agregadas; quinze

as escravas nesta mesma faixa etária; além dos 216 filhos, netos, bisnetos,

irmãos ou sobrinhos arrolados menores de 15 anos. Dentre os escravos (total de

42 distribuídos entre as 168 ceramistas) 34,09% deles eram crianças, sendo

21,43 entre 0 e 5 anos. Dentre os agregados 27,7% (18 de 65) estavam entre 0

e 5 anos.

Estas artesãs, possuidoras de baixos recursos, brancas e pardas em sua maioria,

herdeiras de uma tradição local por serem ali nascidas, tinham uma peculiaridade.

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Abrigavam em suas unidades domésticas um número considerável de crianças,

incluindo escravas e agregadas em idade improdutiva. O fragmento da história de duas

africanas, Francisca e Catharina (ambas naturais de Angola), possivelmente mãe e filha,

escravas de uma louceira nas primeiras décadas do século XIX, é interpretado em

Agostini (2010). Nesta leitura a incorporação da pequena Catharina no núcleo produtivo

desta louceira, por exemplo, é questionado. A pequena africana tinha apenas três anos

no primeiro arrolamento desta unidade, que contava, além de Francisca – escrava

africana adulta com a mesma naturalidade de Catharina –, com mais três escravas, duas

agregadas brancas e um agregado “negro” em 1813. Francisca e Catharina desaparecem

da relação de dependentes da referida louceira no mesmo ano.

Catharina serve de exemplo para vários outros casos em que artesãs de poucas

posses deveriam estar sustentando crianças cativas, ou no mínimo as abrigando,

ajudando a garantir, como pode ter sido este caso, vínculos familiares escravos. Esta

situação sugere a possibilidade da existência de uma rede de solidariedade entre

determinada parcela de uma população caiçara – de mulheres viúvas e solteiras – e os

africanos e afrodescendentes da região.

Esta interação também pode ser pensada a partir das miudezas produzidas nestas

unidades “doméstico-produtivas” e circuladas até mesmo dentro dos casarões, fazendas,

engenhos, etc., mas sempre, claro, nas suas cozinhas sobre os fogões, nunca sobre as

mesas das salas de jantar. Como mencionado, os próprios utensílios recuperados em

escavações arqueológicas auxiliam neste olhar.

A diversidade de decorações das cerâmicas a partir da incisão, do ponteado,

entre outras técnicas, que como referido anteriormente sugerem alguma influência

africana, forma inúmeras composições estéticas no corpo das panelas encontradas no

entorno no bairro São Francisco.

Nesta diversidade de composições não é incomum encontrar alguns motivos –

ou signos – específicos que são intencionalmente reproduzidos, compondo desenhos

que se repetem de forma idêntica, ou compondo desenhos com as mais diversas

combinações com outros motivos variados, que por sua vez não se repetem, parecendo

uma produção mais aleatória. Esta observação sugere que tais motivos (ou signos) que

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são intencionalmente reproduzidos podem ter sido um referencial específico, carregando

consigo algum sentido ou significado. Um dos motivos que chama a atenção é um

conjunto de semicírculos concêntricos, como o sinal de dispersão de uma onda (Figura

3).

Figura 3 – Motivo de semi-círculos concêntricos Figura 4 – Escarificação Macua,

foto Christiano Jr., segunda metade do século XIX Acervo: Biblioteca Nacional

Esta representação apresenta forte semelhança com uma escarificação

comumente produzida nas faces de homens de um grupo conhecido como Macua, na

região de Moçambique, ao longo de todo o século XIX, segundo apontam fontes

iconográficas, manuscritos e a literatura de viajantes (SOUZA e AGOSTINI, 2012). A

literatura arqueológica é farta no questionamento sobre a possibilidade de identificações

objetivas de artefatos, relacionando-os a identidades específicas associadas, numa

relação um-a-um, como se fosse possível atribuir um rótulo étnico às coisas. As

identidades não são objetivas e estáticas, mas primordialmente relacionais (BARTH,

1970), e o caso em questão ajuda a pensar neste sentido. Ou seja, na subjetividade e

flexibilidade das identidades; na manipulação, incorporação e adaptação de símbolos

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referentes a identidades específicas não apenas contextualmente, mas também no âmbito

desta(s) relação(ões) contextualmente estabelecida(s).

Neste sentido, no caso da possibilidade de mulheres caiçaras – que ao que parece

viviam em estreito diálogo com as “comunidades escravas” – estarem produzindo

signos africanos (no caso Macua) parece interessante pensar em uma situação de

interação social e reinterpretação simbólica, no lugar de uma auto expressão identitária

materializada nas panelas.

Outro elemento deve ser levado em conta nesta dinâmica: a produção destes

objetos (e seus símbolos) estava direcionada para o comércio, portanto, é preciso

considerar quem os adquiria e sua demanda. Isto é, quais as características deste

mercado atendido pelas artesãs de São Sebastião. É notável a demografia do tráfico de

escravos para a região sudeste, que tem para o período após 1811 (até 1850) um

crescimento vertiginoso de 14.993% na importação de escravos da África Oriental

(FLORENTINO 1995: 87), período de recorrência do “signo Macua” em São

Sebastião; quando na região os Moçambiques eram o quarto grupo numericamente mais

expressivo no registro de traficantes e senhores (v. AGOSTINI, 2011).

O motivo específico da escolha do “signo Maua” ou seus possíveis significados

implícitos talvez não sejam possíveis de se saber mais de 150 anos depois. Um tempo

transcorrido, marcado por inúmeras razões para o acúmulo de silêncios, esquecimentos

e transformações. Mas alguns aspectos que podem ter impulsionado estas escolhas

estéticas fazem pensar.

Brancante (1981: 436) observa a entrada de talhas, panelas e potes registrados na

alfândega do Rio de Janeiro, na segunda década dos oitoccentos, procedentes de São

Sebastião. Por sua vez, Azevedo Marques apontou que São Sebastião estava entre os

mais importantes centros de exportação desses utensílios, com a participação das

louceiras do bairro São Francisco (apud. Brancante, 1981: 436). Já nos primeiros anos

do século XX, a Comissão Geográfica do Estado de São Paulo ressalta a existência da

indústria artesanal de utensílios cerâmicos de São Sebastião, registrando a continuidade

desta tradição na região (apud. BORNAL, 2008: 161).

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Para se ter uma ideia do volume exportado por este comércio de miudezas,

através do porto de São Sebastião – fortemente dominado pelas ceramistas do bairro

São Francisco – só no ano de 1830 foram vendidas, inclusive para a Corte, pelo menos

68.000 peças de barro. No período entre 1829 e 1834 o lucro com essas vendas somou

dez contos de réis no total. Sete contos de réis a mais do que o valor gasto na

importação das caras louças europeias; o que significa um grande volume unidades de

peças cerâmicas sendo levadas e distribuídas para outras localidades, já que tinham um

preço bem mais baixo que as estrangeiras.6

Portanto, estas artesãs, particularmente no século XIX, respondiam não apenas a

um mercado local, mas a demandas como a da própria Corte, por exemplo, como

apontado por Brancante. Imagens como a que Mary Karash (2000:19) cria, nas quais

viajantes deveriam achar que chegavam à própria África ao desembarcarem no Rio de

Janeiro, se somam a assertiva de Reis et. al. (2010: 71) de que esta era “a maior cidade

africana nas Américas ao longo da primeira metade do século XIX”.

Ao que parece, as ceramistas caiçaras estavam não só em diálogo com seus

vizinhos africanos e afro-brasileiros, mas também com uma rede e demanda maior, para

além dos limites do singelo bairro São Francisco, influenciadas possivelmente também

pelas manifestações estéticas africanizadas das ruas de cidades importantes como o Rio

de Janeiro que exibiam em profusão roupas, penteados, marcas corporais, sonoridades,

sentidos nada europeus (KARASCH, 2000: 19). Este “lugar comum” de uma estética

africanizada dominante publicamente nas ruas e particularmente nos espaços de serviço

pode ter propiciado um contexto geral no qual seria socialmente aceito que utensílios de

cozinha, por exemplo, também carregassem as exóticas insígnias de uma estética que,

ainda que subalterna, dominava a cidade.

Até mesmo no Brasil Central podiam com facilidade ser encontradas miudezas

com expressões como estas, ou com uma estética reconhecidamente “africana”, como

foram os produtos que “lembravam a África”, observados por Saint Hilaire em uma

venda destinada aos escravos.

6 A exceção do ano de 1832 cuja relação não foi encontrada. APESP, Ofícios Diversos, Ordem C.O.1277 para os anos de 1830-1833; Ordem C.O.1278 para os anos de 1834-1837.

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Se por um lado africanos – ou escravos de uma maneira geral – teriam interesse

em consumir esta estética, ou mais particularmente algumas insígnias com significados

que lhes eram familiares, haveria também a possibilidade de um senso comum (na

esfera pública inclusive) de que estas expressões materializadas em diferentes suportes,

das mais diversas maneiras, incluindo nos utensílios de cozinha, seriam perfeitamente

condizentes com os parâmetros da sociedade brasileira naquele período, receptora de

uma multidão de africanos que chegavam a todo instante do além-mar. Assim, as

panelas do bairro São Francisco acabariam como suportes de uma estética cujo

referencial era africano, reinterpretada na diáspora pela população caiçara, no caso de

São Sebastião.

Esta linha de pensamento parece se reforçar quando se verifica a diminuição ou

mesmo desaparecimento destas decorações no século XX (BORNAL, 1995: 89;

SHEUER, 1982), quando a presença africana já havia sido diluída por mais de

cinquenta anos do fim do tráfico. Souza e Symanski (2009) notam o desaparecimento da

decoração ao longo do tempo, em Mato Grosso, paralelo ao processo de crioulização na

região, ratificando a influência africana nessas formas de decoração da cerâmica

utilitária.

Figura. 5 – Paneleiras em São Sebastião, no início do século XX – diversidade de formas dos vasilhames.

Fonte: Acervo do Departamento de Patrimônio da Prefeitura de São Sebastião

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Enquanto a decoração passa a ser menos expressiva no século XX, as formas

dos utensílios parecem ser mais variadas (SHEUER, 1982), aproximando-se de peças de

inspiração europeia, tais como chaleiras e outras peças com alças. Seria importante a

recuperação de amostras datadas da segunda metade do século XIX, observando os

diferentes momentos deste processo. É relevante ressaltar a carência de pesquisas

arqueológicas para o período/contextos do pós-abolição, por exemplo, assim como a

pouca atenção deste campo de pesquisa em identificar a experiência de libertos.

O foco em personagens liminares na sociedade, como foi o caso de muitos

libertos, categorias sociais menos valorizadas nas pesquisas, como algumas incluídas na

chamada população “livre e pobre” – que precisam sempre de uma definição contextual

–, caso de comunidades caiçaras em formação, entre outros, permite a valorização de

múltiplas experiências na sociedade escravista brasileira. Parece assim relevante o

cruzamento destas experiências, considerando a pluralidade de personagens que

conviviam e negociavam suas vidas lado a lado, no cativeiro ou na liberdade. Foi neste

sentido que este trabalho tentou contribuir.

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