O DIÁLOGO ENTRE AS IMAGENS LITERÁRIAS E ICONOGRÁFICAS NA CONSTRUÇÃO DO MITO DAS GUERRAS DE...
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O DILOGO ENTRE AS IMAGENS LITERRIAS E ICONOGRFICAS NA
CONSTRUO DO MITO DAS GUERRAS DE FRONTEIRA CONTRA OS NDIOS
DO DESERTO
Flavia Galli Tatsch ([email protected])1
RESUMO
Esta apresentao se ocupar do dilogo, no final do sculo XIX, entre a literatura e a
iconografia na construo de um universo cultural em torno do mito da guerra de fronteira
contra os ndios do deserto. Se a escrita foi o meio privilegiado para a circulao das
idias; as representaes visuais propiciaram uma relao intensa com o tema.
Nas primeiras pinturas, o amerndio era tratado como a fronteira entre a civilizao e a
barbrie. Mas, quando Angel Della Valle pintou La vuelta del Maln (1892), os nativos eram
inimigos vencidos. Nessa poca, o mito do maln (ataque indgena que levava mulheres
brancas como butim) ainda causava um grande impacto no imaginrio dos argentinos,
atraindo um pblico imenso para a exposio da obra de Della Valle.
PALAVRAS-CHAVE: imaginrio; representao, Argentina.
ABSTRACT
This presentation will face the dialogue, at the end of 19th Century, between literature and
iconography in the construction of a cultural universe over the myth of frontier wars against
the Indians of the desert. If writing was a privileged media to promote ideas circulation;
visual representation propitiated an intense relation with the subject.
1 Doutoranda em Histria pelo IFCH/UNICAMP, bolsista FAPESP.
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In early paintings, Amerindian was treated as a boundary between civilization and barbarism.
But, when Angel Della Valle painted La vuelta del Maln (1892), natives were vanquished
enemies. In this period, the myth of maln (Indians assaults that took white women as bounty)
still caused a great impact over Argentinian imaginary, attracting a huge audience to the
exhibition of the Della Valles work.
KEY-WORDS: imaginary; representation, Argentina.
Em 1892, o pintor argentino Angel Della Valle (1852-1903), filho de imigrantes italianos,
terminava aquela que seria considerada a pintura mais importante de sua vida: La vuelta del
maln2. Seu propsito era o de expor a tela na grande exposio comemorativa do quarto
centenrio da chegada de Colombo Amrica, que se realizaria no ano seguinte em Chicago.
Em junho de 1892, numa poca em que no havia salas de exposio em Buenos Aires, La
vuelta del maln foi exposta pela primeira vez na vitrine de um pequeno negcio, o Nocetti y
Repetto. Multides se aglomeraram na calle Florida para v-la e a crtica a celebrou como a
primeira grande de obra de arte indiscutivelmente argentina.
Mas, o que tinha de to atraente nessa obra? Ela representava, nas grandes dimenses de
quadros de gnero histrico, um tema muito conhecido do pblico porteo: um maln de
ndios. O maln era uma expedio de indgena, que atacava e saqueava fazendas e povoados
e que, em meio ao butim de mercadorias, levava uma mulher branca, a cautiva. Essas
incurses se davam nas imensas pampas ao sul de Buenos Aires. Ao longo do sculo XIX,
malones e cautivas mereceram uma ateno muito especial de poetas e escritores. Entre os
pintores, o tema tambm inspirara vrias obras, mas at 1892, nenhuma delas havia tomado
propores semelhantes.
No imaginrio rioplatense, os relatos de malones se transformaram em smbolo do conflito
entre brancos e indgenas, entre aqueles civilizados e os brbaros. Essa dinmica de
identificao e antagonismos esteve presente na reestruturao das sociedades latino-
americanas aps os processos de independncia (TATSCH, 2008). Na formao das
identidades nacionais, a guerra entre o eu e o outro que poderia se o espanhol, o ndio,
as oligarquias rurais e seus caciques, etc. marcava presena.
A guerra de fronteira contra os ndios do deserto teve uma notvel profuso na imprensa e na
literatura durante o sculo XIX. Nesses textos, o corpo da mulher roubada ocupava um lugar
22 leo sobre tela, 186x292cm, Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires, Argentina.
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simblico no centro dos despojos. Alis, o desejo do varo, seminu e brbaro, pelo corpo da
mulher branca um dos arqutipos do imaginrio ertico dede a Antiguidade Clssica.
Na Amrica, um dos mais antigos mitos de fundao o da apropriao sexual de mulheres
indgenas pelo conquistador europeu. Porm, nos relatos de malones h uma inverso
simblica: no era o europeu que despojava os ndios de sua liberdade e de suas terras ... mas,
o indgena que raptava mulheres brancas. E foi exatamente esta imagem de inverso poltica e
de poder que adquiriu uma significao mxima, justificando qualquer tipo de violncia
contra o raptor.
Malones e Cautivas na literatura
A literatura sobre as cautivas teve origem no sculo XVII (IGLESIA, 1987, pp. 11-82), com a
figura de Luca Miranda em La Argentina Manuscrita (1612), de Ruy Daz de Guzmn
(1558-1629). Luca Miranda - a esposa do capito Sebastin Hurtado fora raptada pelo
cacique Siripo, quando do ataque indgena fortaleza onde morava3. A lenda de Luca
Miranda foi perpetuada em crnicas jesuticas e peas de teatro desde o final do sculo XVIII.
Tambm contriburam para isso as constantes expedies indgenas que ocorreram durante o
processo de araucanizao da pampa argentina, quando, efetivamente, mulheres brancas eram
raptadas.
As cativas annimas do deserto se multiplicaram, alimentando o imaginrio e textos diversos
como livros, crnicas e dirios; a ponto de ser difcil discernir a fronteira entre a fico e a
histria real. Os relatos de desejo e violncia, da barbrie do indgena frente pureza da
mulher raptada e a bravura dos homens que procuravam resgat-la deram corpo a uma
literatura de fronteira que se expandiu a passos largos no sculo XIX. Nos textos, o rapto
das mulheres apresentava uma imagem desumanizada dos indgenas, que eram comparados a
foras incontrolveis da natureza. Na viso dos escritores, a lascvia brutal dos indgenas
rompia a tranquila sexualidade dos esposos. Segundo Laura Malosetti Costa, a motivao
ertica do rapto se tornou o foco central das cenas de malones, ofuscando o interesse
econmico destes (MALOSETTI COSTA, 2001, p. 247).
3
3 O drama de Luca Miranda narrado no Canto VII De la muerte del capitn don Nuo de Lara, y su gente; y lo dems sucedido, na obra de Ruy Daz de Guzmn Historia Argentina del descubrimiento, poblacin y conquista de las provincias del Ro de la Plata. Disponvel em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/68049485989571385754491/p0000002.htm#I_13_ Acesso em 20 de julho de 2010.
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Em 1837, Esteban Echeverra (1805-1851) publicava La Cautiva. Esse poema seria
considerado como fundacional da poesia argentina e do programa liberal romntico da
autoproclamada Nueva Generacin das elites letradas portenhas. La Cautiva inaugurava uma
nova era, na qual os temas pampeanos ganhavam novas cores e intensidade. Em suas obras,
Echeverra procurou incorporar elementos do romantismo. Ao contrrio da viso utpica do
movimento europeu que procurava abandonar a civilizao e estimulava o retorno natureza,
o romantismo latino-americano explorava as foras hostis do mundo natural que impunham
obstculos aos projetos civilizatrios dos jovens estados da Amrica Latina. Echeverra
integrava um projeto intelectual que procurava incorporar os elementos do contorno fsico
natureza e paisagem e a realidade humana do pas. A Argentina vivia em choque: de um
lado, a proposio de um modelo de desenvolvimento social e econmico, de outro, a pampa
incivilizada, qual chamava de deserto.4
La cautiva uma descrio romntica do pampa. Trata-se da histria de Maria e Brin que,
capturados, lutam para escapar e retornar cidade. Maria resgata Brin, mas ele falece devido
fraqueza. Tambm ela morreria ao descobrir que o filho havia sido assassinado pelos
indgenas. As personagens correspondem aos esquemas de ideal romntico do homem e suas
paixes. Maria a herona, enquanto os ndios so o oposto da humanidade (TATSCH, 2008).
Em momento algum o poeta via possibilidade de compreenso da condio humana das
populaes amerndias e sua reao frente civilizao que o esmagava e arrasava, aps
sculos de dominao. Nesse perodo histrico, marcado pelo par de opostos civilizao e
barbrie, no era possvel encaixar qualquer tipo de relato que humanizasse os nativos. S
lhes restava a segregao...
A partir de 1870, o indgena no estaria mais no centro da poesia gauchesca. Ele passara a
integrar, juntamente com o deserto, o universo de dificuldades que o gaucho perseguido
enfrentava em sua vida marginal (MALOSETTI COSTA, 2001, p. 252). O drama, agora, se
desenvolvia na fronteira. No necessariamente uma fronteira fsica, mas um lugar de encontro
de culturas, no qual conflitos e interaes possibilitam o surgimento de novas relaes
polticas, sociais, culturais e comerciais.
4
4 Echeverra escreveria na Advertencia ao poema: el desierto es nuestro ms pingue patrimonio y debemos sacar de seno, no solo riqueza para nuestro engrandecimiento y bienestar, sino tambin poesa para nuestro deleite moral y fomento de nuestra literatura. Para este artigo, utilizamos a edio: ECHEVERRA, Esteban. La cautiva. El matadero. 2 Ed. Buenos Aires: Editorial Kapelusz, 1965.
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Em 1878, Jos Hernandez (1834-1886) escreveu La vuelta de Martn Fierro que foi publicada
no ano seguinte. Antes de continuar, vale uma pequena digresso para lembrar o final de El
Gaucho Martn Fierro, de 1872: Fierro e seu companheiro Cruz fogem para o deserto para
viver com os mapuches. O incio de La vuelta narra o relato de ambos vivendo nas tolderias.
Quando Cruz morre, Martn Fierro decide fugir e voltar fronteira. Fierro fica extremamente
comovido quando conhece uma cativa crist. Indignado com o rapto e os maus tratos que
sofria esta mulher, ele mata o indgena que a escravizava. Aps o incidente, regressam
Argentina e Martn deixa a mulher em uma estncia para seguir s seu caminho.5
Echeverra que no tinha conhecido os indgenas e Hernandez que havia vivido nos
pampas criaram modelos que se projetaram na literatura; modelos estes que se
transformaram no mesmo ritmo que a sociedade enfrentava profundas modificaes. No caso
da Argentina, os povos nativos no faziam parte dos planos civilizatrios. Existiram cautivas
no mundo real e na literatura, mas a fico se encarregou de construir o esteretipo e de fix-
lo na imaginao popular.
Malones e cautivas na pintura
Vejamos, agora, como se deu a negociao entre as penas e os pincis para a fixao desse
esteretipo ao longo do sculo XIX. possvel dizer que as representaes visuais
acompanharam a marginalizao crescente dos povos indgenas no territrio argentino. As
primeiras imagens visuais de malones e cautivas surgiram das mos de pintores europeus que
viajaram pelas Amricas.
A primeira pintura que se ocupou do tema foi realizada pelo desenhista-ilustrador-pintor
bvaro Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Entre 1831 e 1847, Rugendas esteve no
Mxico, Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Brasil. Nos pases abaixo do Equador, passou a se
dedicar as vistas urbanas, retratos na paisagem, pintura histrica e cenas costumbristas.6 Suas
obras formalizaram as questes contemporneas e vinham ao encontro das aspiraes dos
artistas locais que buscavam realizar uma arte nacional a partir da pintura costumbrista7.
5
5 HERNANDEZ, Jos. La vuelta de Martn Fierro, cantos VII a X. Disponvel em:http://www.gutenberg.org/files/15066/15066-8.txt. Acesso em 22 de julho de 2010.
6 Interessavam-lhe os diferentes tipos de personagens americanos que encontrou ao longo das viagens: suas formas de vida, hbitos, vestimentas, etc.
7 Por exemplo, na Argentina, Carlos Morel (1823-1894) dedicar-se-ia produo pictrica de gauchos, ndios e costumes locais no final dos anos 1830 e incio da dcada seguinte.
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Rugendas procurava levar em considerao dois aspectos: o carter etnogrfico8 e as
informaes baseadas na histria oral e nas fontes literrias sobre os assaltos indgenas s
vilas fronteirias (DINER e COSTA, 1999). A primeira tela sobre o tema foi pintada
aproximadamente em 1836, quando ainda estava no Chile. Em El rapto de Trinidad Salcedo
araucano com uma cativa na selva (figura 1), v-se uma mulher branca em desespero aps ser
raptada.
Anos depois, durante suas espordicas visitas Argentina, Rugendas estabeleceria amizade
com ningum menos que Esteban Echeverra. La cautiva causaria um grande impacto no
pintor. Do dilogo entre o escritor e o pintor, surgiriam outras pinturas totalmente diferentes
da primeira. El rapto cena de uma batalha entre araucanos e soldados argentinos e a
retirada dos araucanos levando o butim de mulheres (figura 2), pintada na Argentina em
1845. Duas outras obras complementam sua produo sobre o tema (figuras 3 e 4).
(figura 1)Johann Moritz RUGENDAS
El rapto de Trinidad Salcedo araucano com uma cativa na selva, ca. 1836. leo sobre tela, 50,5 x 42,5 cm.
Coleo particular, Santiago do Chile
6
8 A convivncia do pintor com a populao indgena na regio chilena de La Frontera durou pouco mais de um ms, mas lhe rendeu estofo mais do que suficiente para a produo de obras baseadas na vida dos gauchos e dos indgenas.
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(figura 2)Johann Moritz RUGENDAS
El rapto cena de uma batalha entre araucanos e soldados argentinos e a retirada dos araucanos levando o butim de mulheres, 1848
leo sobre tela, 85,5 x 110 cm Coleo Horacio Porcel, Buenos Aires
(figura 3)Johann Moritz RUGENDAS
El regreso de la cautiva, 1845Oleo sobre tela, 78 x 95,5 cm.
Coleccin Bonifacio del Carril, Buenos Aires
7
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(figura 4)Johann Moritz RUGENDAS
El rapto, 1848.leo sobre tela, 33 x 44 cm
Com exceo de El rapto de Trinidad Salcedo (figura 1) e El regreso de la cautiva (figura 3),
as demais telas demonstram uma grande violncia: o selvagem de grande fora fsica; as
batalhas; a tenso do seu corpo; braos para cima; cavalos a galope. Sempre bom lembrar
que a imagem do ndio a cavalo simbolizava a luta entre civilizao e barbrie,
promovida tanto nas cartas de Sarmiento, quanto nas telas de artistas (SCHNEIDER, 2007,
pp.70-98). Todos esses elementos acentuavam a fria da cena. Na outra ponta da
representao, a figura da cautiva, o corpo da mulher branca desprotegida contrasta com o
impulso primitivo do rapto e da apropriao sexual.
Rugendas no seria o nico artista-viajante a se ocupar de indgenas no deserto. o caso de
Eduard Friedrich Poeppig (1798-1868), mdico naturalista que realizou uma expedio
cientfica na Amrica do Sul. No Chile (entre 1826 e 1829), esteve entre os pehuenches e
huilliches. Em seu relato, menciona uma cativa capturada em um assalto realizado pelos
pehuenches no vale do rio Laja. A gravura (figura 5) que acompanhava o texto foi realizada a
partir de desenhos do prprio Poeppig, reproduzidos, posteriormente, a leo (figura 6) pelo
tenente real do Exrcito Saxo e pintor Friedrich Leopold Schubauer (1795- 1852).
8
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(figura 5)Eduard Friedrich POEPPIGPeuhenches a galope.Gravura Biblioteca Nacional de Chile
(figura 6)Friedrich Leopold SCHUBAUERRapto de Trinidad Salcedo, ca. 1836. leo sobre tela, 32,5 x 39,7 Coleo Particular
Jos Hernandez tambm teve uma significativa importncia na divulgao de uma imagem
visual das cautivas. Para as edies de La vuelta de Martn Fierro, ele encomendou a Carlos
Clrice 10 litografias (uma delas a figura 7).
(figura 7)
Finalmente, gostaramos de comentar sobre a obra de Angel della Valle, La Vuelta del Maln
(figura 8). Produzida em grande formato [186 x 292 cm] do gnero histrico, ela apresenta
um ataque indgena em toda sua fria. O quadro recupera a viso romntica inaugurada com
La Cautiva de Echeverra e mostra um franco dilogo com as tradies mencionadas at
ento. Na pampa desolada, os indgenas esto revestidos de todos os signos que os
caracterizam como brbaros: cabeas cortadas de suas vtimas, mercadorias roubadas,
despojos de uma igreja profanada e uma mulher branca, seminua, desvanecida entre os braos
de seu raptor. Porm, quando esta tela foi pintada j no havia mais malones nos pampas. Os
inimigos tinham sido vencidos pela Campaa del desierto, do general Roca. Exterminados ou
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deportados para reservas, eles no estavam mais visveis. Mas, a recordao ainda estava
fresca.9
(figura 8)Angel DELLA VALLE
La vuelta del maln, 1892leo sobre tela, 186x292cm
Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires
Claro que no podemos acusar Della Valle de anacronismo. Estamos falando de imagens que
persistem na memria e que, ao longo do tempo, adquirem novos poderes e ressignificaes.
Como outros artistas e intelectuais da poca, Della Valle buscava em sua obra a renovao da
linguagem plstica e um compromisso poltico de sentidos diversos: o valor da modernidade
urbana frente ao caudilhismo das guerras civis; dos valores cristos frente ao universo
indgena; o progresso na espiritualidade; entre outros.
Buenos Aires passava por uma transformao importante. Sua populao, agora, era formada
por imigrantes europeus e por pessoas que tinham vindo do campo. Recm chegados a esse
ncleo urbano eram atores e espectadores, em seus prprios lugares de residncia, das
transformaes trazidas pelo progresso da cidade. O pblico que se aglomerou em frente
vitrine da Nocetti y Repetto era tanto testemunho da dissoluo de um mundo anterior, quanto
residente urbano de longa data, para quem o sentido de pertencimento natural cidade estava
abalado pelo processo de modernizao, o crescimento material e a instalao massiva de
estrangeiros. Como bem analisou Adolfo Prieto, a colorida iconografia rural se inseria como
10
9 No podemos nos esquecer que 1892, ano de elaborao da obra, comemorava-se o quarto centenrio. Por isso, a conquista do deserto foi evocada como o final de um processo que havia tido incio no descobrimento.
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a nica expresso reconhecvel de identidade nacional dentro da desordem generalizada pela
ingesto cosmopolita (PRIETO, 2006, pp. 98-99).
H ainda um ltimo aspecto a se considerar quando se pensa no imenso pblico que a tela
atraiu. Observemos a figura da cautiva e de seu raptor (figura 9). O par destoa totalmente dos
outros personagens. Ao contrrio das pinturas anteriores, a mulher no se desespera e o
guerreiro indgena, cuja cabea pende sobre a cativa, parece proteg-la com seu brao. O
carter sensual da composio no s distingue a dupla do resto da cena, como de toda a
construo da barbrie.
(figura 9)
Ora, no podemos deixar de evocar, no caso do pblico masculino, a identificao do
espectador-voyer com os protagonistas dessa cena. De todos os crticos que se dedicaram a
falar do quadro e que comentaram sobre a mulher e seu raptor, vale destacar um. A 19 de
setembro de 1892, no dirio Sud-Amrica, Eugnio Auzn escrevera (AUZN apud
MALOSETTI COSTA, 2001, pp. 272-3):
La cabeza cortada que cuelga de la silla del caballo en que va el ms suertudo de los del maln (vean en el cuadro y comprendern por qu ese indio el mas
suertudo), produce la ilusin de una mscara: le falta modelado []
Hay uno que hace girar al aire un incensario guisa de boleadoras; otro, el que
hace de cabeza de cabalgada, va blandiendo un crucifijo con mas bro salvaje que si fuera lanza. Est herido en la frente. Bien hecho! Si hubiera como el otro alguna
buen moza, blanqusima de cutis y aires de Magdalena! Pero un crucifijo! De qu le servir? Miren Vds., exponerse que le rompan la crisma para hacerse de un objeto
perfectamente intil. Se van persignar horrorizados los fieles creyentes; pero digan, hermanos: de qu le puede servir un salvaje un crucifijo sin el misionero
que lo explique?
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Mientras, una hermosa ciudadana!... vamos, es como la libra esterlina, tiene curso bajo todas las latitudes; yo s que en lugar de este indio atolondrado, me robo dos
Magdalenas por falta de una, y si no las puedo llevar caballo me armo de una
carreta.
A barbrie se desfazia com uma provocao fantstica. Eugenio Auzn revelava, em
tom irnico, seu prprio desejo de estar no lugar do ndio raptor. Sabe-se l quantos mais se
sentiram dessa forma!
FontesECHEVERRA, Esteban. La cautiva. El matadero. 2 Ed. Buenos Aires: Editorial Kapelusz, 1965.
GUZMN, Ruy Daz de. Historia Argentina del descubrimiento, poblacin y conquista de las provincias del Ro de la Plata. Disponvel em: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/68049485989571385754491/p0000002.htm#I_13_ Acesso em 20 de julho de 2010.
HERNANDEZ, Jos. La vuelta de Martn Fierro, cantos VII a X. Disponvel em: http://www.gutenberg.org/files/15066/15066-8.txt. Acesso em 22 de julho de 2010.
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