O diálogo das coisas

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Primeiro livro de poemas de Wellington de Melo

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Apresentação Sempre tive a convicção de que a poesia era uma arte

esotérica. Afinal, o labor do poeta é buscar nas profundidades da natureza e de seu ser palavras para exprimir aquilo que, por definição, não deve ser exprimido: as verdades sobre a alma, os sentimentos e a vida. E tudo isso em poucas palavras, mas palavras dotadas de enorme significado; tão pesadas são estas palavras, que de fato precisam ser poucas: longos textos poéticos, como os poucos que puderam ser criados, custam-nos séculos de civilização para compreender, ou ao menos alcançar um módico de compreensão. Gentil é a maioria dos poetas, que suprime seu desejo de expressão e limita suas obras a limpos textos, para que o vulgo possa com elas se deleitar.

Wellington Melo é um verdadeiro poeta. É alguém

especial, no sentido de que é alguém que sempre tentou ver a vida de um jeito diferente, qual seja, do seu próprio jeito. Dotado de grande autenticidade, daqueles tipos que revelam a verdadeira arte humana de sentir e de se expressar, tudo a que Wellington se dedica se transforma em poesia, pois é profundo, colorido e ritmado, desde suas inúmeras e variadas criações artísticas até seus momentos de descontração, jogando jogos de estratégia com os amigos, alcançando mesmo suas aulas de culinária para seus alunos de espanhol.

Nosso poeta é também descontraído e divertido,

como somente os verdadeiramente melancólicos conseguem ser, e também às amizades ele dedica o rigor de dedicação previamente referido. Agora, finalmente, decidiu

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dedicar-se à poesia em si, de modo a constituir sua primeira obra literária. Este livro debutante representa justamente este parto de uma nova era para o escritor, e por isso mesmo é um momento confuso e inebriante. Podemos observar que é um trabalho repleto de sangue, dor, delírio... e também luz, muita luz, aquela presente no âmago de toda nova vida.

Todo livro de poesia, principalmente o primeiro a ser

escrito, é um trabalho deveras ousado. Isto porque o poeta nos dá a oportunidade de vislumbrar seu espírito, seus anseios e memórias. Cansado de permanecer silencioso e ofuscado, seu daimon finalmente encontra num conjunto de palavras sua esperada liberdade, e como ele se delicia com este momento. Aceitemos, então, o presente que Wellington nos proporcionou, de partilhar seu brilho e de compreender ao menos uma fração da beleza que seu coração enlaça. Uma viagem fantástica ao mundo das essências, onde poderemos finalmente presenciar, por um breve momento, o diálogo das coisas.

Recife, janeiro de 2007

Henrique Randau

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O diálogo das coisas segundo Wellington Melo

Essa maneira de olhar de forma aguda para além da

imagem e do sentido usual das coisas tem sido a marca do poeta ao longo dos vários séculos do tempo cronológico. Essa compreensão de que a expressão verbal pode ser ultrapassada por uma linguagem que exceda os dicionários e atinja soberana alturas hipotéticas flutuantes tanto do Everest como do Himalaia, ao som de múltiplos sinos e mensageiros–do-vento na magia sempre presente no cotidiano dos contos de fada. Essa palavra incisiva a salvar do suicídio os possuídos dos apetites míticos atravessados pelo poder que emana das figuras em seu fatal direcionamento ao longo dos milênios, essa cumplicidade silenciosa por sobre as águas da gruta misteriosa a refletir o diálogo da caverna de Platão.

Poesia. Código perpétuo de completa identificação.

O sonho de comunicar calando, de segredar revelando, pensamento e metáfora a atrair a terras desconhecidos desde o pégaso da infância à mandrágora subterrânea, do amor imaginário que dispensa a presença física até aquele exaltado da fúria até o êxtase pacificador. Os objetos/a linguagem/a vida.

Na denominação de Wellington Melo, as coisas/a letra/o sangue.

Mundo fechado onde papéis se acumulam/letra

espiral/respira e se verte entre a linha do horizonte, sangue e palavras retorcidas / e um nome derramado de rancor/do que resta do nome, de novo luz/por trás do lábio inquieto/ de novo luz/ a navalha à luz retorna. Porque em mim repousa/o insensato e o incongruente/ as

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paredes e eu: em algum momento/que já não é o meu; estático/êxtase/estase; o real escapa à vista/à forma volta o sono em volta envolto em pânico. Uma poesia que às vezes necessita de referências espaciais, como em Casa Vazia na Rua do Futuro: na solidão de um casarão vazio/morreu um pedaço do meu passado/na Rua do Futuro/meu nome calado... /a cada foto apagada sorrisos mortos guardo:/ obrigado,obrigado, obrigado. Ou de evocações intimistas a antigas mestras da infância: matematicamente Dona Mércia/enchia a sala de ternura/Dona Júlia provava/cientificamente o amor ao mundo. A letra bebe sangue, afirma, como que imbuído do espírito analítico de Philippe Lejeune em O pacto autobiográfico. A letra comparti-lhando o medo na ocultação: a cada espaço a sombra de minhas memórias atônitas... /faço-me ler mais no que não digo, palavra gargantilha / que aprisiona pensamentos/num tempo elíptico./Ourives? Palavra lâmina arde em brasa /pai/mãe/filha / de ti mesma: queres ser menos/mas não te cabes. Porque a letra essencial / perdeu-se na minha boca de menino/quando minha mãe olhou para o outro lado.

Assim é a poesia de Wellington Melo, grave, enxuta,

no entrelugar do desespero e do êxtase, de Apolo e Dioniso, da memória e da espera, do vazio e da viagem. O amor da palavra entranhado na carne, poeta e mestre, naturalmente, o dom e o preparo. Bem-vindo ao livro como letra impressa, Wellington, que nada lhe acrescentará que já não tenha, mas de cuja sina você não mais se libertará, nesse cotidiano e mágico percurso iniciático. Abracadabra.

Recife, novembro de 2006

Lucila Nogueira

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“Minha letra de sangue se alimenta.

Se não sangra, dorme.”

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A seu Geraldo e dona Iraci, meus pais, pelo sangue.

A Lucila Nogueira e

a Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, pela letra.

A Ana,

por todas as coisas.

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O sangue

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam A lousa fria de um sonhar que é morto!

Fagundes Varela

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Legado Aceito-te inconcluso como meus dias à tua espera à tua espreita à tua chama. Assumo-me imperfeito enquanto durmo e te esqueço e te lacero e te devoro.

- É a ânsia dos dias que nos separa.

?Onde teu sorriso ?Onde essa estrela Aceito-te inconcluso como imperfeito me morro te mato me sorvo.

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O sangue No cadafalso de minha lembrança busco o momento em que morreu meu legado. É na escuridão dessa hora que se esconde minha amargura. A fúria de minha juventude ceifou a tola esperança suspensa de querer ser eterno. Por que me nega a palavra confessar de certo meu crime? Minha pena em letra estanque escreve mil vezes:

- Não viverás além de ti. E minha dor procura nas coisas a resposta para o horror.

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Espera Esqueci como queria teu sorriso pois não o conheci. Mas nunca sorrirás Não provarás as dores do mundo. Não agradeças. O silêncio de tuas coisas guarda meu pesadelo. No silêncio do Nada repousas e esperas o momento do encontro. Nunca virá. Teu algoz, acorrentado, te espera. Espera. Espera. Espera.

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Tempo Porque o tempo e o dia e a fome sugam tua essência É que te vejo preso em cada brinquedo quebrado É que me pego buscando na minha memória teu nome esquecido. É porque te desejo que o eterno porto distante me deixas te deixo me esqueces...

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Acalanto Dorme, dorme que a espera será para ti meu sonho. Dorme, dorme que teu perdão acalmará minha pena. Dorme, dorme na doce calma do afeto, no silêncio a que te condenei. Dorme, dorme Pois todas as canções que te guardei esperam sedentas teu suspiro. Dorme, dorme Um dia, uno comigo e meu sangue, serás todos os que te precederam. Dorme, dorme Que um dia em meu leito de morte esperarei tua lágrima inocente. E dormirei, dormirei...

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A letra

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:

Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles

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Gênese

Se não há sangue que alimente o verso busco na gênese da letra o fruto. ?Como nasce me pergunto e a resposta em letra torna E renasce palavra em peito mudo pelo veio do mundo do tempo escasso. É labor da língua não há cansaço A palavra pétala logo ramalhaço.

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Sem métrica simétrico sintético sinta-se seu soma o seio semente mas a fúria se faz força sentido fagulha forja a forma.

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Obviedade O tema teima em fugir torna foge forje o que se queira mas não se tema que o tema fuja. E não fuja do tema.

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Silêncios Busco ritmo feito fera. Afeito à forma retumba na soleira do pensamento o ponto certo de que alcance o seio do verso e ressoe surda a pausa perfeita.

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Letras e números Entre letras e números, as primeiras. Mas as primeiras a tocar-me o peito? Professoras, foram de números. Matematicamente Dona Mércia enchia a sala de ternura. Dona Júlia provava cientificamente o amor ao mundo. Dona Júlia já se foi. Uniu-se ao cosmos que amava. Dona Mércia... guardo-lhe a letra e o carinho. Onde anda? Escrevendo vidas em números.

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A letra bebe sangue Muda o tempo a dor não muda: emudece a forma. Minha letra de sangue se alimenta. Se não sangra, dorme. Como bebeu a pluma sangue e lágrima bebe a tecla a cada toque.

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S Sibilante soa surdo este som arfante. Serpenteia, precede o silêncio espiralado do não. Escorre o verso beija a língua sorvedouro de som. Sobre meu dente te liberto a dor.

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Esconderijos Minha letra compartilha meu medo de fazer-me ver. A cada espaço a sombra de minhas memórias atônitas, de meus crimes de minhas fomes. Faço-me ler mais no que não digo, no que desejo esconder de olhos acusadores perdidos numa tarde cinzenta, mas que não me abandonam, insistem em perguntar

- por quê? Diante da dúvida que sangra, fechadas feridas no verso abertas enquanto no peito. Eternamente. Ternamente Na mente Mente. “Mentes” .

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Ofício Ourives? Não. A palavra não se doma. Dorme, apenas. A penas. Doce lâmina etérea anzol que fisga lembranças perdidas Gargantilha que aprisiona pensamentos num tempo elíptico. Ourives? Não.

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Lâmina A Lucila Nogueira arde em brasa teu nome e aguarda, fera, onde a língua se encerra do teu olho (lâmina) num suspiro toda carne lacera flamejante tua letra, pletora, pulsa serpente e nos rubros os rios de fêmea concreta teu voraz aceno a presa espera pai mãe filha de ti mesma: despedaças o anjo terrível em chamas que te espreita

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Autopoiesis Se me recrio À imagem que me negam Em novas vidas Sobrevivo E temo voltar à sombra minha Ao que querem que seja Ao papel que acham que me cabe

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Mínimo A Lourival Holanda sondo minha memória em busca de tua etérea presença. sorvo de tua aura alva e plena a exuberância de tua simplicidade: queres ser menos mas não te cabes

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A letra essencial A letra essencial é lampejo apenas. Perdeu-se na minha boca de menino quando minha mãe olhou pro outro lado. A letra essencial a escrevi contra o vidro suado de um ônibus com meus dedos de infante. A letra essencial está adormecida no meu silêncio entre um fôlego e outro. A letra essencial é a que ainda não escrevi é o não-dito que penso antever na linha seguinte. A letra essencial me espera no túmulo onde a escreverei já morto esperando dizer o que o tempo não deixou.

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As coisas

Todas as coisas aterradoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que

esperam que as socorramos. Rilke

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Ponto Cada ponto de fuga foge formas, formo uma espiral E teu dente menos forma forma um início de delírio E papéis se acumulam letra espiral respira e se verte entre a linha do horizonte vertical que agora uma rocha rompe em mil gotas ?o olho busca ?o ponto ?busca

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Fuga do passado nada do passado a dor do passado um ponto escuro o passado e o tempo o passado e um corte o passado e um nome no passado cores no passado letras no passado o que não foi do passado o esquecimento do passado imagem que se vai do passado a fuga.

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Um nome A imagem e o nome e nada dentro e meu peito minúsculo nada em sangue entre o ar cortante que do nada volta que em volta do teu corpo envolto de ira desaba e toca o instante e retumba onde ontem do vento vinha a tua fúria o vento via tua fúria Retumbam Sangue e palavras retorcidas e um nome derramado de rancor, do que resta do nome do na da

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Luz A Ana De novo luz Perdido num poço o desejo e uma criança e o sono despertam depois do inverno flamejante De novo luz Um beijo que se esconde na pálpebra entreaberta dum pequeno gigante e seu silêncio enfurecido De novo luz Por trás do lábio inquieto sublime repousa o medo primordial e um toque trêmulo de um recomeço De novo luz Dentro do fio a navalha à luz retorna a dor adormece e se detém o corte se a luz se ama

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Paredes Ainda o som de ser sempre sem sentido e sem norte Porque em mim repousa o insensato e o incongruente E ainda a forma de descer a meu modo ao molde Porque ainda me vem ao ver que só sinto o fim A minha ainda só e sempre substituível dor. As paredes e eu em algum momento que já não é meu: meu sorriso

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Pedaços de coisas tudo se desfaz e os pelos que caem todos os dias sistematicamente e à volta de desejos de ser uno fragmentos meus no chão me mostram horizontalmente o devir ?ou seria o vento que leva pelo, poeira e tão só vento e tudo tão só imagem mas não, porque me sinto fragmento me desloco, recomeço e nada é como não deveria ser ?como deveria ser

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Ladrilhos Agora, circundo de mim ao redor Eu rôo o chão e o véu do que ainda não é sonho e mergulho em ladrilhos e levanto para ver rostos não há rostos bem-vindo ao horizonte ou ao começo de tudo ou à eternidade

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Número 1 De anos vêm entre sons e esquecimentos as muitas formas de ver-te só De tocar-te em mim a pena de sentir apenas um sussurro sobressai o alento De um sopro vem a que julgava perdida: tua imagem em mim partida.

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Número 2 Pois se me julgo perdidas as falas adormecidas e caladas ?Por que titubeio em lançar ante mim palavras do passado

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Número 3 estático êxtase estamos todos estáticos ?ou eu pragmático estático esta é a verdade estase.

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Sombra do minuto o real escapa à vista à forma volta o sono em volta envolto em pânico noto que nada comprova o agora por hora, sou impressão só sem demora meu nome desaparece e não existo

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Casa vazia na Rua do Futuro A seu Oliveira e Elvira Na solidão de um casarão vazio morreu um pedaço do meu passado. Na Rua do Futuro, meu nome calado, luminosas sombras ensaiam um adeus. Quanto devo e quanto esqueço. A mão estendida agora jaz no abismo dissoluto de minh’alma como uma boa lembrança ou um sorriso na cabeceira da mesa. Quanto tive e quanto ofereci. Olho os degraus da escada esmaecidos. Olho mais uma vez no prenúncio do soluço. A cada foto que apagada sorrisos mortos guardo: obrigado, obrigado, obrigado.

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Teu sorriso e uma gota em algum momento que já não é meu Meu sorriso e a noite descendo líquida a noite lágrima A noite empapada de som e um véu escuro de sol um sol ausente, dissoluto, só. Teu sorriso e uma gota em algum momento de sol em uma lágrima que não é minha.

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