O dialeto de comunidades minoritárias na Russia

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SEGUNDA-FEIRA, 24 DE MAIO DE 2010 geral 09 a Históri a do Salvamento de línguas Minoritárias na antiga União Soviética Experiência pode inspirar no salvamento do idioma alemão nativo de Biguaçu A antiga União Soviética (1917-1991) conseguiu duas grandes proezas na educação: eliminar o analfabetismo quase por completo e o de transformar línguas minoritárias, desprezadas, de nativos analfabetos, em idiomas oficiais de universidades e com traduções até mesmo dos grandes clássicos da literatu- ra mundial, segundo o professor Carlos Amaral Freire, poliglota que estudou 120 línguas e residente em Morro das Pedras, Florianópolis, com a autoridade de quem conferiu tudo isso in loco, em suas viagens àquele país. Quando os comunistas tomaram o poder em 1917, a esmagadora maioria da população da Rússia e países satélites que formavam a antiga União Soviética era analfabeta. Um dos primeiros de- safios do novo regime foi justamente o de alfabetizar sua população. E eles ar- regaçaram as mangas. Dentro dessa política de educação em massa, o novo regime determinou que os idiomas minoritários também re- ceberiam a mesma atenção. Mas o grande problema era que a maioria daquelas lín- guas, faladas por inúmeros povos e tribos tão diferentes entre si no vasto território da União Soviética, um país e um conti- nente ao mesmo tempo, onde- só para se ter uma ideia- há 11 fusos horários, nem sequer tinham escrita. Portanto, para começo de qualquer conversa, os linguistas do Ministério da Educação da antiga União Soviética começaram pelo básico: o de criar uma escrita para essas línguas e depois elabo- rar dicionários, gramáticas e manuais. Em seguida, concentravam-se em for- mar professores nativos para que estes posteriormente fossem alfabetizar as crianças da comunidade. Divulgação E a coisa não parava por aí, segundo prof. Freire. O governo soviético pa- trocinava a publicação de livros, jornais, revistas e impressos em geral na língua minoritária. Programas radiofônicos e televisivos completavam a política não só de resgate do idioma, mas o de sua plena divulgação. E assim o “milagre” se fez. Dialetos que em 1917 nunca tiveram um registro escrito sequer, 10 ou 20 anos depois, já estavam munidos de grandes bibliotecas. Os soviéticos foram mais adiante ainda. Até universidades foram criadas cujos idiomas de trabalho eram as lín- guas minoritárias. Quer dizer, o cidadão poderia até formar-se numa faculdade usando seu idioma nativo, ao lado do oficial, o russo. Dizer que isso foi uma verdadeira revolução cultural é até redundância. O leitor já se perguntou por que Jorge Amado foi até pouco tempo atrás, antes de Paulo Coelho, o escritor bra- sileiro mais traduzido no mundo? Claro, as oficinas de tradução de línguas mi- noritárias organizadas pelo Ministério da Educação da antiga União Soviética encarregaram-se de disponibilizar a obra de Jorge Amado para toda sorte de línguas exóticas daquele país. Comparar essa experiência linguística da antiga União Soviética com a do Brasil, realmente é um contraste completo. Contraste Tal como a antiga União Soviética, o Brasil também é um país com grande número de idiomas minoritários. São 210, para quem acha o Brasil é um país monolíngue. Nem vamos longe. Aqui mesmo em Biguaçu, só para exemplificar, tirando o português, a língua oficial, falam-se tam- bém outras quatro línguas: o alemão na- tivo Hunsrück, um dialeto italiano cha- mado trentino na região de Sorocaba, o holandês em Tijuquinhas e o guarani mbyá, na aldeia indígena de São Miguel e outras duas no interior do município. Se Jorge Amado foi traduzido para quase todas as línguas da antiga União So- viética, aqui no Brasil, o mesmo escritor nunca foi traduzido para qualquer língua minoritária brasileira, fazendo jus ao di- tado “Santo de Casa não faz milagre. O resgate de idiomas minoritários brasileiros é feito sem os recursos gov- ernamentais. Geralmente ocorre por obra de missionários religiosos. Por ex- emplo, no Brasil atua uma instituição norte-americana chamada “Summer Institute of Linguistics”, uma instituição com objetivos religiosos missioneiros, que financia linguistas e antropólogos que pesquisam idiomas indígenas. Em cinco décadas de atuação no Brasil, o Summer Institute contribuiu para o sal- vamento ou, tal coisa não foi possível, pelo menos para o registro de línguas in- dígenas, muitas a caminho da extinção. Comparação Mas o resgate de idiomas minor- itários no Brasil não chega ao nível de sofisticação tal como ocorreu na antiga União Soviética. Geralmente o resgate aqui não passa dos estágios iniciais que são a elaboração de uma escrita, um léxico mais elementar, um manual básico ou algum estudo acadêmico. Já a fase da alfabetiza- ção, tradução e publicação de livros e outros impressos e criação de uma imprensa escrita e radiodifusão para divulgar o idioma, no Brasil soa até a “excentricidade”. Na União Soviética, o resgate das lín- guas minoritárias viabilizou-se porque o governo financiou tudo. Como era um re- gime comunista, não havia fins lucrativos. No Brasil, é diferente. É um país capitalista, que visa lucros e resgate de idiomas de minorias está longe de ser um negócio rentável. Apesar de nossa realidade, da quali- dade lamentável da nossa escola pública, do fato que educação não é prioridade no Brasil etc e tal, é possível fazer algo talvez próximo do que foi feito na antiga União Soviética. Terá de haver, no míni- mo, boa vontade. Antônio Carlos O vereador Altamiro Kretzer (PT) e o secretário de educação, Fábio Egert, estão trabalhando atualmente para viabilizar a cooficialização do idioma alemão nativo Hunsrück no município de Antônio Carlos. Trata-se de uma ini- ciativa inédita e algo sem precedentes na história do estado de Santa Catarina. Certamente esse projeto será aprova- do e deve ser no segundo semestre deste ano. O desafio mesmo virá depois: o de se estabelecer uma escrita, publicar manual e dicionário, organizar o ensino da língua nas escolas, entre outras atividades de res- gate e divulgação do idioma. No resgate do Hunsrück, podem-se seguir os mesmos passos da antiga Un- ião Soviética. Mas e o dinheiro? Eis o grande desafio. Na realidade, nada é impossível, mas os envolvidos nesse projeto terão de driblar muitas dificuldades e serem muito criativos para fazer multiplicar o pouco dinheiro que terão disponível para viabilizar o que é preciso fazer.

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Page 1: O dialeto de comunidades minoritárias na Russia

SEGUNDA-FEIRA, 24 DE MAIO DE 2010 geral 09

a História do Salvamento de línguas Minoritárias na antiga União Soviética

Experiência pode inspirar no salvamento do idioma alemão nativo de Biguaçu

A antiga União Soviética (1917-1991) conseguiu duas grandes proezas na educação: eliminar o analfabetismo

quase por completo e o de transformar línguas minoritárias, desprezadas, de nativos analfabetos, em idiomas oficiais de universidades e com traduções até mesmo dos grandes clássicos da literatu-ra mundial, segundo o professor Carlos Amaral Freire, poliglota que estudou 120 línguas e residente em Morro das Pedras, Florianópolis, com a autoridade de quem conferiu tudo isso in loco, em suas viagens àquele país.

Quando os comunistas tomaram o poder em 1917, a esmagadora maioria da população da Rússia e países satélites que formavam a antiga União Soviética era analfabeta. Um dos primeiros de-safios do novo regime foi justamente o de alfabetizar sua população. E eles ar-regaçaram as mangas.

Dentro dessa política de educação em massa, o novo regime determinou que os idiomas minoritários também re-ceberiam a mesma atenção. Mas o grande problema era que a maioria daquelas lín-guas, faladas por inúmeros povos e tribos tão diferentes entre si no vasto território da União Soviética, um país e um conti-nente ao mesmo tempo, onde- só para se ter uma ideia- há 11 fusos horários, nem sequer tinham escrita.

Portanto, para começo de qualquer

conversa, os linguistas do Ministério da Educação da antiga União Soviética começaram pelo básico: o de criar uma escrita para essas línguas e depois elabo-rar dicionários, gramáticas e manuais. Em seguida, concentravam-se em for-mar professores nativos para que estes posteriormente fossem alfabetizar as crianças da comunidade.

DivulgaçãoE a coisa não parava por aí, segundo

prof. Freire. O governo soviético pa-trocinava a publicação de livros, jornais, revistas e impressos em geral na língua minoritária. Programas radiofônicos e televisivos completavam a política não só de resgate do idioma, mas o de sua plena divulgação.

E assim o “milagre” se fez. Dialetos que em 1917 nunca tiveram um registro escrito sequer, 10 ou 20 anos depois, já estavam munidos de grandes bibliotecas.

Os soviéticos foram mais adiante ainda. Até universidades foram criadas cujos idiomas de trabalho eram as lín-guas minoritárias. Quer dizer, o cidadão poderia até formar-se numa faculdade usando seu idioma nativo, ao lado do oficial, o russo.

Dizer que isso foi uma verdadeira revolução cultural é até redundância.

O leitor já se perguntou por que Jorge Amado foi até pouco tempo atrás, antes de Paulo Coelho, o escritor bra-

sileiro mais traduzido no mundo? Claro, as oficinas de tradução de línguas mi-noritárias organizadas pelo Ministério da Educação da antiga União Soviética encarregaram-se de disponibilizar a obra de Jorge Amado para toda sorte de línguas exóticas daquele país.

Comparar essa experiência linguística da antiga União Soviética com a do Brasil, realmente é um contraste completo.

ContrasteTal como a antiga União Soviética,

o Brasil também é um país com grande número de idiomas minoritários. São 210, para quem acha o Brasil é um país monolíngue.

Nem vamos longe. Aqui mesmo em Biguaçu, só para exemplificar, tirando o português, a língua oficial, falam-se tam-bém outras quatro línguas: o alemão na-tivo Hunsrück, um dialeto italiano cha-mado trentino na região de Sorocaba, o holandês em Tijuquinhas e o guarani mbyá, na aldeia indígena de São Miguel e outras duas no interior do município.

Se Jorge Amado foi traduzido para quase todas as línguas da antiga União So-viética, aqui no Brasil, o mesmo escritor nunca foi traduzido para qualquer língua minoritária brasileira, fazendo jus ao di-tado “Santo de Casa não faz milagre.

O resgate de idiomas minoritários brasileiros é feito sem os recursos gov-ernamentais. Geralmente ocorre por

obra de missionários religiosos. Por ex-emplo, no Brasil atua uma instituição norte-americana chamada “Summer Institute of Linguistics”, uma instituição com objetivos religiosos missioneiros, que financia linguistas e antropólogos que pesquisam idiomas indígenas. Em cinco décadas de atuação no Brasil, o Summer Institute contribuiu para o sal-vamento ou, tal coisa não foi possível, pelo menos para o registro de línguas in-dígenas, muitas a caminho da extinção.

ComparaçãoMas o resgate de idiomas minor-

itários no Brasil não chega ao nível de sofisticação tal como ocorreu na antiga União Soviética. Geralmente o resgate aqui não passa dos estágios iniciais que são a elaboração de uma escrita, um léxico mais elementar, um manual básico ou algum estudo acadêmico. Já a fase da alfabetiza-ção, tradução e publicação de livros e outros impressos e criação de uma imprensa escrita e radiodifusão para divulgar o idioma, no Brasil soa até a “excentricidade”.

Na União Soviética, o resgate das lín-guas minoritárias viabilizou-se porque o governo financiou tudo. Como era um re-gime comunista, não havia fins lucrativos.

No Brasil, é diferente. É um país capitalista, que visa lucros e resgate de idiomas de minorias está longe de ser

um negócio rentável. Apesar de nossa realidade, da quali-

dade lamentável da nossa escola pública, do fato que educação não é prioridade no Brasil etc e tal, é possível fazer algo talvez próximo do que foi feito na antiga União Soviética. Terá de haver, no míni-mo, boa vontade.

Antônio CarlosO vereador Altamiro Kretzer (PT)

e o secretário de educação, Fábio Egert, estão trabalhando atualmente para viabilizar a cooficialização do idioma alemão nativo Hunsrück no município de Antônio Carlos. Trata-se de uma ini-ciativa inédita e algo sem precedentes na história do estado de Santa Catarina.

Certamente esse projeto será aprova-do e deve ser no segundo semestre deste ano. O desafio mesmo virá depois: o de se estabelecer uma escrita, publicar manual e dicionário, organizar o ensino da língua nas escolas, entre outras atividades de res-gate e divulgação do idioma.

No resgate do Hunsrück, podem-se seguir os mesmos passos da antiga Un-ião Soviética. Mas e o dinheiro? Eis o grande desafio.

Na realidade, nada é impossível, mas os envolvidos nesse projeto terão de driblar muitas dificuldades e serem muito criativos para fazer multiplicar o pouco dinheiro que terão disponível para viabilizar o que é preciso fazer.