O Dia Da Tempestade

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Rosamunde Pilcher

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Contra-capa: "A genialidade de Rosamunde Pilcher é construir personagens com os quais nos importamos de fato." 

Daily Express "A britânica Pilcher é profunda conhecedora da alma humana." Sunday Times O dia da tempestade é um romance de personagens protagonizado por Rebecca Bayiiss, jovem londrina que vive longe da mãe e nunca soube do paradeiro do pai, um talentoso pintor e ex-oficial da Marinha. Buscando aproximar-se do passado, Rebecca parte para Boscarva, na península britânica da Cornualha, onde conhece pessoas ambíguas que se revelam aos poucos. Grenville Bayliss, seu avô irritadiço e teimoso; Joss Gardner, o carpinteiro habilidoso por quem Rebecca nutre sentimentos conflitantes; Andréa, uma jovem instável apaixonada por Joss; Eliot, seu primo ambicioso, envolvido em negócios escusos; e Pettifer, o criado leal a Greenville Bayiiss. A cada página surgem novos c inesperados personagens, habilmente construídos com a criatividade humana e literária de Rosamunde Pilcher.

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O dia da tempestade Rosamunde Pilcher nasceu em 1924 na Cornualha, Inglaterra. Aos 25 anos publicou seu primeiro livro usando o pseudônimo de Jane Fraser. Somente em 1955, Pilcher passou a assinar com o nome verdadeiro e, aos 63 anos, tornou-se reconhecida mundialmente com a publicação do best seller Os catadores de conchas. Talentosa romancista e contista, suas histórias costumam tratar das complexas relações familiares, sempre ambientadas nas mais belas paisagens da Grã-Bretanha. A escritora tem livros publicados em mais de trinta países.

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1 Tudo começou numa segunda-feira, num final de janeiro. Um dia aborrecido de uma aborrecida época do ano. O Natal e o ano-novo já haviam passado e caído no esquecimento, mas a nova estação ainda não havia começado a se revelar. Londres estava fria e úmida, as lojas apinhadas de vã esperança e roupas "para viagem". As árvores dos parques erguiam-se rendadas e desfolhadas contra o céu melancólico e, abaixo, a grama pisada parecia insípida e morta de tal modo que era impossível acreditar que pudesse algum dia voltar a ser coberta por montes de açafrão roxo e amarelo. Era um dia como outro qualquer. O despertador me acordou e deparei-me com a escuridão, embora esmaecida pela grande quantidade de janelas descortinadas, através das quais eu avistava o topo dos plátanos iluminados pelo brilho alaranjado dos longínquos postes de luz das ruas. Não havia móveis em meu quarto, exceto um sofá-cama onde eu dormia e uma mesa de cozinha que eu pretendia pintar, quando tivesse tempo, e lustrar com uma camada de cera. O chão de lambris era nu. Uma caixa de laranjas servia de mesa-de-cabeceira e uma outra, cheia de coisas, fazia a vez da cadeira. Ergui o braço para acender a luz e observei o ambiente deserto com extrema satisfação. Era tudo meu. Meu primeiro apartamento. Eu tinha me mudado havia apenas três semanas, mas ele pertencia somente a mim. Com ele, eu podia fazer o que bem entendesse. Recobrir as paredes brancas com cartazes ou pintá-las de laranja. Lixar o chão ou enchê-lo de cores. Eu havia começado a adquirir um interesse particular por lojas de quinquilharias e antigüidades, e não passava por uma sem vistoriar a vitrine à procura de algum tesouro que eu pudesse me dar ao luxo de comprar. Foi assim que adquirira a mesa, e já andava de olho num espelho dourado antigo, mas não tive coragem de entrar na loja e descobrir quanto me custaria. Talvez eu o pendurasse bem acima da lareira ou na parede defronte à janela, para que refletisse o céu e a árvore, formando uma pintura dentro da moldura adornada. Essas doces fantasias tomaram-me algum tempo. Olhei novamente para o relógio e notei que começava a ficar tarde; saí da cama e caminhei descalça até a minúscula cozinha, onde acendi o gás e coloquei a chaleira no fogo. O dia havia começado. O APARTAMENTO FICAVA em Fulham, no segundo andar de uma casinha que pertencia a Maggie e John Trent. Eu os conhecera no Natal que passara com Stephen Forbes, sua esposa Mary e sua numerosa prole desleixada, em sua grande e desmazelada residência em Putney. Stephen Forbes era meu patrão, dono de uma livraria na Walton Street, onde eu trabalhava havia um ano. Sempre foi muito generoso comigo e quando descobriu, por intermédio de uma das moças, que eu passaria o Natal sozinha, ele e Mary apressaram-se em me convidar - na verdade, convocar - para passar os três dias na companhia deles. Havia bastante espaço, ele insistira vagamente, um quarto no sótão, uma cama no quarto de Samantha, em algum lugar, eu não iria me importar, não é? E poderia ajudar Mary a assar o peru e catar todos os pedacinhos de papel de seda do chão. Analisando por esse ângulo, decidi aceitar o convite e me divertir a valer. Não há nada como um Natal em família, com crianças, barulho, embrulhos e presentes, e ainda um pinheirinho de Natal enfeitado com bolas brilhantes e objetos decorativos, feitos em casa. No dia seguinte ao Natal, depois de pôr as crianças na cama, os Forbes ofereceram uma festa aos adultos, embora tivéssemos continuado a fazer brincadeiras e jogos infantis, e Maggie e John Trent juntaram-se a nós. Os Trent eram recém-casados; ela, filha de um membro graduado de Oxford que Stephen conhecera em seus dias de estudante. Era uma daquelas pessoas sorridentes e expansivas, e depois de sua chegada a festa ganhara um novo ritmo. Fomos apresentadas, mas só tivemos oportunidade de conversar num jogo de mímicas, quando nos sentamos lado a lado no sofá, tentando adivinhar os gestos incoerentes que Mary esboçava a fim de nos fazer entender o nome de um filme. - Rose Marie! - gritou alguém, sem razão aparente. - Laranja mecânica! Maggie acendeu um cigarro e afundou-se no sofá, derrotada. - É demais para mim - disse ela, virando a cabeça para me olhar. - Você trabalha na loja de Stephen, não é? - Trabalho.

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- Irei até lá, na semana que vem, gastar todos os meus vales-livro. Ganhei uma dúzia deles no Natal. - Sorte sua. - Acabamos de nos mudar e quero ter uma porção de coisas sobre a mesinha de centro para que nossos amigos pensem que sou incrivelmente inteligente... Então alguém gritou: - Maggie, é a sua vez. - Céus! - ela respondeu e levantou-se, de modo afetado, a fim de saber o que teria que representar para o grupo. Não me lembro o que era, mas observando-a fazer-se passar alegremente por boba, meu coração ficou feliz por ela, e desejei encontrá-la novamente. E A ENCONTREI, É CLARO. Cumprindo a promessa, ela apareceu na loja alguns dias após a festa, usando um casaco de pele de carneiro, uma saia roxa comprida e uma bolsa enorme, repleta de vales-livro. Eu não estava atendendo ninguém naquele momento e saí de trás de uma pilha de romances de capas reluzentes para saudá-la: - Olá. - Ah, que bom que você está aí. Esperava encontrá-la. Pode me ajudar? - Claro. Juntas, escolhemos um livro de culinária, uma biografia comentadíssima e um volume espantosamente caro sobre pinturas impressionistas para a lendária mesinha de centro. Tudo isso somou um pouco mais do que o valor dos vales-livro, e então ela tateou sua bolsa e retirou dali um talão de cheques a fim de pagar a diferença. - John vai ficar furioso - disse ela alegremente, enquanto escrevia a quantia com uma caneta vermelha encapada com feltro. O cheque era amarelo e a mistura das cores formou um efeito engraçado. - Ele diz que estamos gastando dinheiro demais. Aí está. - Ela virou a folha e escreveu o endereço no verso. - 14 Bracken Road, SW6 - leu em voz alta, caso eu não entendesse sua letra. -Ainda não me acostumei a escrever o endereço. Acabamos de nos mudar. É extremamente excitante, nós a compramos livre de ônus, acredite se quiser. Nossos pais entraram com o sinal e John estudou uma maneira de arranjar um empréstimo para cobrir o restante. Mas é claro que, por conta disso, tivemos que deixar o segundo andar disponível para pagarmos a hipoteca, mas acho que tudo dará certo - ela sorriu. - Você precisa conhecê-la. - Eu adoraria - falei enquanto embrulhava meticulosamente suas compras, preocupada com as dobras do papel. Ela me observava. - Sabe, é extremamente rude ter que dizer isso, mas eu não sei o seu nome. Sei que é Rebecca, mas de quê? - Rebecca Bayliss. - Por acaso sabe de alguma pessoa distinta que esteja interessada em alugar um apartamento sem mobília? Olhei para ela. Nossos pensamentos estavam tão sintonizados que nem precisei falar. Atei o nó do embrulho e cortei o barbante. - Que acha de mim? - Você? Está procurando um lugar para morar? - Não estava até então. Mas agora estou. - É apenas um quarto com cozinha. Teremos de compartilhar o banheiro. - Não me importo, se você não se importar. E se eu puder pagar o aluguel. Não sei quanto está querendo. Maggie me disse. Engoli, fiz alguns cálculos de cabeça e respondi: - Creio que poderei pagar. - Você tem mobília? - Não. Eu divido um apartamento mobiliado com duas amigas. Mas acho que poderei arranjar alguma coisa. - Você fala como se estivesse desesperada para sair de lá. - Não, não estou desesperada, mas gostaria muito de morar sozinha. - Bom, seria melhor ver o apartamento antes de se decidir. Qualquer noite dessas, pois John e eu trabalhamos. - Esta noite? - foi impossível disfarçar minha impaciência e excitação, e Maggie riu. - Combinado. Hoje à noite - concordou ela, pegando o esmerado embrulho de livros e preparando-se para sair. Subitamente, entrei em pânico. - Eu... eu não tenho o endereço... - Claro que tem, bobinha, está no verso do cheque. Tome o ônibus 22. Aguardarei você por volta das 19 horas. - Estarei lá - prometi. SACOLEJANDO DENTRO DO ÔNIBUS que descia a Kings Road, precisei conter o entusiasmo. Aquilo era um tiro no escuro. O apartamento poderia ser totalmente inviável, grande ou pequeno demais, ou ter alguma

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inconveniência. Qualquer coisa era melhor do que ficar desapontada. E, realmente, olhando de fora, a casinha não tinha nada de extraordinário: um sobradinho de tijolos vermelhos, portas adornadas e janelas de vitral. Mas dentro da casa de número 14 tudo era claro e novo, a tinta da parede era fresca e os tapetes, novos. Maggie usava um velho jeans e um suéter azul. - Desculpe por estar vestida desse jeito, mas tenho que fazer todo o serviço doméstico quando volto do trabalho, por isso geralmente troco de roupa ao chegar. Vamos subir e ver o apartamento... Pendure seu casaco no corrimão. John ainda não chegou, mas eu o avisei de que você viria, e ele achou ótimo... Falando sem parar, ela subiu as escadas e entrou na sala vazia que dava para os fundos da casa. Acendeu a luz. - O apartamento fica para o lado sul e tem vista para um pequeno parque. Os antigos donos construíram um terraço aqui em cima, por isso você terá uma espécie de sacada no telhado. Ela abriu uma porta de vidro e nós duas saímos na noite fria e escura; senti o cheiro da terra úmida e da folhagem do parque e observei a vasta escuridão da noite, anelada pelas luzes dos postes das ruas. Uma rajada gelada de vento soprou subitamente; o vulto negro do plátano farfalhou e seu ruído confundiu-se com o ronco do avião a jato que passava naquele instante. - Parece que estamos no campo - comentei. - Bom, talvez algo tão bom quanto isso - ela estremeceu. - Vamos entrar antes que congelemos. Tornamos a entrar e Maggie mostrou-me a pequenina cozinha decorada com um armário fundo; no patamar da escada ficava o banheiro que iríamos compartilhar. Finalmente, descemos para a sala de estar aquecida e bagunçada, e Maggie encontrou uma garrafa de sherry e um saco de batatas fritas que ela jurou estarem velhas, mas que me pareceram boas. - Você ainda quer o apartamento? - ela perguntou. - Mais do que nunca. - Quando pretende se mudar? - O mais breve possível. Na semana que vem, se puder. - E as moças que dividem o apartamento com você? - Elas encontrarão outra pessoa. Uma delas tem uma irmã que está vindo para Londres. Espero que ela fique com meu quarto. - E a mobília? - Ah... darei um jeito. - Imagino - disse Maggie sem cerimônia - que seus pais vão querer visitá-la, eles sempre querem. Quando me mudei para Londres, minha mãe me presenteou com alguns tesouros que ela guardava no sótão e toalhas de linho... - sua voz foi sumindo. Eu a observei em silêncio, e ela finalmente riu de si mesma. - Já estou eu novamente abrindo a boca e me intrometendo em sua vida. Desculpe minha falta de tato. - Eu não tenho pai e minha mãe está fora do país. Ela mora em Ibiza. É por isso que quero ter um lugar só para mim. - Sinto muito. Eu deveria saber, você passou o Natal com os Forbes... Quero dizer, eu deveria ter imaginado. - Você não tinha como saber. - Seu pai morreu? Era óbvio que ela estava curiosa, mas de uma maneira franca e amistosa, e me pareceu ridículo não querer tocar no assunto e me calar como sempre fazia quando alguém perguntava sobre minha família. - Acho que não - respondi, tentando soar como se aquilo não importasse. - Acho que ele mora em Los Angeles. Ele era ator. Minha mãe fugiu com ele aos 18 anos. Mas ele enjoou da vida caseira ou achou que sua carreira era mais importante do que ter uma família. De qualquer maneira, o casamento durou apenas alguns meses, até que ele deixou minha mãe e eu nasci. - Que coisa horrível ele fez. - Suponho que sim. Nunca refleti muito a esse respeito. Minha mãe raramente falava dele. Não que o assunto a magoasse, mas porque ela apagou o passado. Sempre foi assim. Olha sempre para a frente de uma maneira particularmente otimista. - Mas o que aconteceu depois que você nasceu? Ela voltou a morar com os pais? - Não. Nunca. - Quer dizer que ninguém mandou um telegrama dizendo "Volte, está tudo perdoado"? - Não sei. Honestamente, não sei. - Deve ter sido a maior confusão quando sua mãe fugiu de casa, mas, mesmo assim... - sua voz se perdeu no vento. Ela parecia incapaz de compreender uma situação que eu havia aceitado com resignação a vida inteira. - Que tipo de gente faria uma coisa dessas com a própria filha?

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- Não sei. - Você deve estar brincando! - Não. Honestamente, eu não sei. - Quer dizer que não conhece seus próprios avós? - Não sei nem quem são. Ou quem foram, talvez. Nem sei se continuam vivos. - Você não sabe nada? Sua mãe nunca lhe contou nada? - Ah, sim... às vezes mencionava algumas histórias do passado em nossas conversas, mas nada que indicasse alguma coisa. Você sabe como as mães conversam com os filhos, relembrando coisas que aconteceram e coisas que costumavam fazer quando pequenas. - Mas... Bayliss - ela franziu a testa. - Não é um nome muito comum. Ele me faz lembrar alguma coisa, mas não sei o quê. Você não conseguiu nenhuma pista? Ri diante de sua insistência. - Você fala como se eu quisesse saber. Mas, francamente, eu não quero. Se você não conheceu seus avós, não sente falta deles. - Mas você não fica imaginando... - ela procurou as palavras -... onde moravam? - Sei onde eles moravam. Na Cornualha. Numa casa de pedras com jardins debruçados sobre o mar. E minha mãe tinha um irmão chamado Roger, que morreu na guerra. - Mas o que ela fez depois que você nasceu? Deve ter saído à procura de um emprego. - Não, minha mãe tinha algum dinheiro guardado. Uma herança de uma velha tia ou qualquer coisa assim. É claro que nunca tivemos carro ou nada desse tipo, mas nos arranjamos bem. Ela possuía um apartamento em Kensington, no porão da casa de uns amigos. Moramos lá até eu completar 8 anos, quando então fui para o internato, e em seguida... nos mudamos... - Internatos custam caro... - Não era nenhum internato famoso. - Sua mãe se casou novamente? Olhei para Maggie. Sua expressão era de ávida curiosidade, mas ela estava sendo amável. Decidi que, tendo ido tão longe, deveria lhe contar o restante. - Ela... não era exatamente do tipo casadoura... Mas sempre foi uma mulher bastante atraente, não me lembro de nenhuma época em que não houvesse um homem a postos... E como eu estava sempre na escola, imagino que não havia razão para ela continuar sendo circunspecta. Eu nunca sabia onde iria passar as férias. Uma vez foi na França, na Provença; outra, aqui, na Inglaterra. E certa vez passamos o Natal em Nova York. Maggie ouviu o que eu disse e fez uma careta. - Não parece ter sido muito divertido para você. - Mas era educativo. - Eu havia aprendido a fazer disso uma piada. - Pense nos lugares que conheci e nos lugares extraordinários em que morei. Certa vez, no Ritz de Paris; outra, numa casa fria e horripilante em Denbighshire. Dessa vez era um poeta que queria criar ovelhas. Não me lembro de ter-me sentido tão feliz como quando eles terminaram o relacionamento. - Ela deve ser uma mulher linda. - Não, mas os homens acham que sim. Ela é bastante alegre, imprudente e confusa, e acho até que alguns a consideravam amoral. Irritante. Tudo para ela é "brincadeira". É sua palavra predileta. Contas a pagar são brincadeira, assim como malas perdidas e cartas não respondidas. Ela não sabe lidar com dinheiro e não tem senso de responsabilidade. Uma pessoa difícil de se conviver. - O que ela está fazendo em Ibiza? - Está vivendo com um sueco que conheceu por lá. Foi para ficar com um casal de amigos e conheceu esse homem; em seguida, recebi uma carta em que ela dizia que iria morar com ele. Disse que ele é terrivelmente nórdico e melancólico, mas que possui uma linda casa. - Há quanto tempo não a vê? - Uns dois anos. Saí de sua vida aos 17 anos. Fiz um curso de secretariado e me empreguei em serviços temporários até que finalmente fui trabalhar com Stephen Forbes. - Gosta de lá? - Gosto muito. - Quantos anos você tem? - Vinte e um. Maggie sorriu novamente, balançando a longa cabeleira, maravilhada.

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- Quanta coisa você já fez - disse, sem parecer compdecida de mim, e sim com uma pitada de inveja. - Com 21 anos eu estava envergonhada dentro de um vestido de noiva, atrás de um velho véu cheirando a naftalina. Não sou exatamente uma mulher tradicional, como minha mãe, mas, como gosto muito dela, costumo fazer suas vontades. Fiquei imaginando como seria a mãe de Maggie. E comentei, lançando mão de um velho clichê, pois não consegui pensar em outra coisa para dizer: - Ora, há gosto para tudo. - Naquele momento, ouvimos a chave de John mover-se na fechadura e não tocamos mais no assunto de mães e famílias. ERA UM DIA COMO OUTRO qualquer, porém premiado. Na última quinta-feira eu havia trabalhado até tarde com Stephen, na tentativa de completar o levantamento do estoque de janeiro, e, em troca, ele havia me dispensado de trabalhar naquela manhã, portanto eu teria até a hora do almoço para fazer o que quisesse. Decidi dar uma faxina no apartamento (o que não levaria mais do que meia hora), fazer algumas compras e levar uma pilha de roupas sujas até a lavanderia. Às 1 lh30 eu já havia terminado meus afazeres e vestira o casaco para sair, sem pressa, para o trabalho; pretendia caminhar até lá e talvez almoçar mais cedo, antes de chegar à loja. Era um daqueles dias frios, úmidos, escuros, que nunca clareiam. Caminhei pela manhã melancólica, subindo a New Kings Road na direção oeste. Ali, algumas lojas vendiam antigüidades, camas usadas e molduras para quadros, e pensei conhecer todas elas, mas de repente me vi diante de uma que eu nunca havia notado. O exterior era pintado de branco, as janelas de preto, e havia ainda um toldo como proteção contra a garoa iminente. Olhei para cima a fim de descobrir como a loja se chamava e li o nome TRISTRAM NOLAN escrito em caprichadas letras de fôrma pretas acima da porta. Esta ficava entre vitrines repletas de bugigangas, e, a fim de observar o que a loja continha, parei na calçada banhada pela claridade das várias lâmpadas acesas lá dentro. A maioria dos móveis era vitoriana, e haviam sido reestofados, restaurados e envernizados. Um sofá de botões, de braços largos e pernas espiraladas, uma caixa de costura, uma pequena fotografia de cãezinhos de estimação sobre uma almofada de veludo. Olhei além da vitrine e observei a loja por dentro; foi então que vi as cadeiras de cerejeira. Era um par de cadeiras de encosto côncavo, pernas delgadas e assentos bordados com rosas. Eu as desejei. Exatamente daquele jeito. Podia vê-las em meu apartamento e ansiei desesperadamente por tê-las. Por um momento, hesitei. Aquela não era uma loja de cacarecos e o preço deveria ser bem acima do que eu poderia pagar. Mas, afinal de contas, não havia problema algum em perguntar. Antes de perder a calma, abri a porta e entrei. A loja estava vazia, mas o barulho da porta se abrindo e fechando fez soar uma campainha e, no mesmo instante, ouvi os passos de alguém descendo as escadas, a cortina de lã atrás da porta dos fundos sendo puxada para o lado e um homem apareceu. Acho que esperava ver alguém mais maduro, vestido formalmente, de acordo com o ambiente e o estilo da loja, mas a aparência daquele homem balançou minhas expectativas vagas e preconcebidas. Ele era jovem, alto e vestia calça jeans - de um azul suave e desbotado, que mais parecia uma segunda pele - e uma jaqueta de brim azul, igualmente velha e desbotada, com as mangas dobradas, revelando os punhos da camisa axadrezada que ele usava por baixo. Trazia um lenço de algodão atado ao pescoço e, nos pés, um par de mocassins macios, decorados com franjas. Naquele inverno, as pessoas mais inverossímeis andavam por Londres vestidas de caubóis; porém, de alguma forma, aquele parecia verdadeiro, e suas roupas gastas, tão genuínas quanto ele. Olhamos um para o outro e então ele sorriu, e por alguma razão isso me pegou de surpresa. Como não gosto de ser pega de surpresa, desejei-lhe bom-dia com uma certa frieza. Ele puxou a cortina atrás de si e veio em minha direção suavemente. - Posso ajudá-la? Podia ter a aparência de um autêntico e ferrenho americano, mas no instante em que abriu a boca ficou claro que não era. Não sei por que isso me incomodou. A vida que eu havia levado com minha mãe me deixara com uma forte desconfiança dos homens em geral, principalmente dos impostores, e aquele jovem, acabei decidindo, era um impostor. - Eu... eu queria saber sobre as cadeirinhas, as de encosto côncavo. - Ah, sim. - Ele se aproximou de uma delas e pôs a mão sobre o encosto. Os dedos de suas mãos eram alongados e sua pele tinha um tom moreno. - Há apenas esse único par. Olhei para as cadeiras na tentativa de ignorar sua presença. - Gostaria de saber quanto custam.

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Ele se agachou ao meu lado a fim de procurar a etiqueta de preço, e observei seus cabelos grossos e rentes ao colarinho, bastante escuros e brilhantes. - Você está com sorte - ele me disse. - Elas estão com um preço mais baixo, pois o pé de uma delas se quebrou e o conserto não ficou perfeito. - Ele se levantou, surpreendendo-me com sua altura. Seus olhos, castanho-escuros, eram ligeiramente encovados e tinham uma expressão que considerei desconcertante. Ele me deixava pouco à vontade e minha antipatia por ele começou a virar aversão. - Quinze libras pelo par - ele disse -, mas, se quiser esperar e puder pagar um pouco mais, posso mandar refazer o conserto e cobrir a junta quebrada com verniz. Isso a deixaria mais resistente e com uma aparência melhor. - Ela não está boa como está? - Está boa para você - disse o jovem - mas, se receber um convidado grande e gordo, ele poderá acabar no chão. Houve uma pausa enquanto eu o observava. Esperei friamente. Seus olhos transbordavam de uma alegria maliciosa que eu não tinha intenção de compartilhar. Não gostei da idéia de receber um homem gordo e grande para jantar. Finalmente perguntei: - Quanto custaria o conserto do pé da cadeira? - Cerca de 5 libras. Isso significa que cada cadeira sairia por 10. - Vou levá-las. - Ótimo - disse ele, colocando a mão no quadril e sorrindo amistosamente, como se aquilo encerrasse a transação. Concluí que se tratava de um funcionário completamente ineficiente. - Quer que eu pague por elas agora ou deixe um depósito...? - Não há necessidade. Pode pagar quando vier buscá-las. - Bom, quando ficarão prontas? - Em uma semana. - Não quer anotar meu nome? - Não, a menos que queira me dizer. - E se eu não voltar nunca mais? - Então terei que vendê-las a outra pessoa. - Não quero perdê-las. - Não vai perdê-las - disse ele. Fechei a cara, irritada com suas maneiras, mas ele apenas sorriu e foi até a porta abri-la para mim. Um ar gelado entrou na loja e, do lado de fora, uma garoa começara a cair; a rua estava escura como se fosse noite. Ele se despediu e eu esbocei um sorriso frio de agradecimento, passando por ele em direção à escuridão da rua. Assim que saí, ouvi a campainha soar quando fechou a porta da loja. O dia tornara-se, de uma hora para outra, execrável. Meu prazer em comprar as cadeiras havia sido arruinado pelo irritante vendedor. Não costumo antipatizar com as pessoas à primeira vista e estava aborrecida não apenas com ele, mas comigo mesma, por ser tão vulnerável. Continuei refletindo sobre aquilo enquanto descia a Walton Street e entrava na livraria de Stephen Forbes. Nem o conforto lá de dentro nem o cheiro agradável de tinta de impressão conseguiram melhorar meu deplorável humor. A loja possuía três andares: os livros novos ficavam no primeiro piso, os usados no segundo e os raros no terceiro. O escritório de Stephen ficava no porão. Observei que Jennifer, a outra vendedora, estava atendendo um cliente, e a outra pessoa na loja era uma senhora de casaco de tweed absorta na seção de jardinagem. Sendo assim, caminhei em direção ao pequeno vestiário, desabotoando o casaco enquanto andava; foi então que ouvi os passos pesados e inconfundíveis de' Stephen subindo as escadas, e parei para esperá-lo. Stephen apareceu no momento seguinte, alto, curvado, de óculos, com sua expressão costumeira de vaga benevolência. Costumava usar ternos escuros com aparência de amarrotados e, pelo adiantado da hora, o nó de sua gravata começava a se afrouxar, revelando o primeiro botão da camisa. - Rebecca - ele chamou. - Sim, estou aqui.... - Ainda bem que a encontrei. - Veio até mim, falando em voz baixa, para não incomodar os clientes. - Há uma carta para você lá embaixo; foi remetida de seu antigo endereço. É melhor se apressar em recebê-la. Franzi a testa. - Uma carta? - É. Correspondência aérea com vários selos estrangeiros. Há uma certa urgência nela. Minha irritação com relação ao episódio das cadeiras perdeu-se em meio à súbita apreensão. - É de minha mãe? - Não faço idéia. Por que não vai descobrir?

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Desci a escada íngreme até o porão, iluminado naquele dia escuro por longas lâmpadas presas ao teto. O escritório encontrava-se incrivelmente bagunçado - como sempre -, apinhado de cartas, embrulhos, arquivos e pilhas de livros velhos, caixas de papelão e cinzeiros que ninguém se lembrava de esvaziar. A carta estava em cima do mata-borrão de Stephen, bem á vista. Peguei o envelope de correspondência aérea, repleto de selos da Espanha e com o carimbo do correio de Ibiza. Mas a letra pontiaguda não me era familiar. Fora enviada ao meu antigo endereço, então riscado, e sob ele havia o endereço da loja em letras grandes e infantis. Fiquei imaginando quanto tempo ela teria ficado sob a porta da frente até que uma das meninas tivesse a idéia de enviá-la para a loja. Sentei-me na cadeira de Stephen e abri o envelope. Dentro havia duas folhas finas de papel de carta, e a data do cabeçalho era de 3 de janeiro - quase um mês atrás. Minha mente captou um sinal de tragédia e, temerosa, comecei a lê-la. Querida Rebecca: Espero que não se importe de chamá-la pelo primeiro nome, mas sua mãe me falou muito a seu respeito. Escrevo-lhe porque sua mãe está muito doente. Faz algum tempo que ela não se sente bem. Gostaria de ter-lhe escrito há mais tempo, mas ela não me permitiu. Contudo, agora tomei as rédeas da situação e, com a aprovação do médico, quero lhe dizer que acho que deveria vir visitá-la. Se isso for possível, informe-me, por meio de um telegrama, o número de seu vôo a fim de que eu possa ir buscá-la no aeroporto. Sei que está trabalhando e que talvez não lhe seja possível fazer tal viagem, mas lhe recomendo que não perca tempo. Receio que vá encontrar sua mãe bastante mudada, embora ainda mantenha vivo o seu otimismo. Com votos de felicidade, Sinceramente, Otto Pedersen Permaneci incrédula, olhando para a carta. As palavras formais não diziam nada e, ao mesmo tempo, diziam tudo. Minha mãe estava muito doente, talvez à morte. Havia um mês, ele me pedia que não perdesse tempo e fosse visitá-la. Naquele momento em que eu acabara de receber sua carta, talvez ela já estivesse morta - e eu não tinha ido vê-la. O que ele pensaria de mim, esse Otto Pedersen que eu nunca tinha visto, cujo nome, inclusive, eu desconhecia até então?

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2 Li a carta novamente e, mais uma vez, as finas folhas de papel farfalharam em minhas mãos. Permaneci ali, sentada à mesa, até que Stephen finalmente desceu a escada para falar comigo. Virei a cabeça e o olhei. Ele notou minha expressão e perguntou: - O que diz a carta? Tentei lhe contar, mas não consegui. Em vez disso, entreguei-lhe a carta e, enquanto ele a lia, debrucei-me sobre a mesa, roí as unhas, com amargura e ódio, lutando contra uma terrível ansiedade. Stephen terminou de lê-la rapidamente. Jogou a carta sobre a mesa e inquiriu: - Você sabia que ela estava doente? Balancei a cabeça. - Quando foi a última vez que teve notícias dela? - Há quatro ou cinco meses. Ela nunca me escrevia -olhei para ele e comentei, furiosa e com um nó na garganta: -Isso foi há quase um mês. Essa carta ficou no apartamento e ninguém se lembrou de mandá-la para mim. Ela já deve estar morta e eu nem cheguei a vê-la. Ele deve ter pensado que eu não me importo com ela! - Se ela tivesse morrido - comentou Stephen -, ficaríamos logo sabendo. Agora não adianta se lamentar, não há tempo para isso. Precisamos fazer com que você chegue a Ibiza o mais rápido possível e comunicar ao Sr. Pedersen a hora de sua chegada. Nada mais importa. - Não posso ir - respondi, fazendo careta para chorar como se fosse uma criança de 10 anos. - Por que não pode ir? - Porque não tenho dinheiro para pagar a passagem. - Ora, minha querida, deixe isso comigo... - Mas não posso permitir que você... - Pode, sim, e se teimar em me pagar, deixarei que me devolva o dinheiro em cinco anos e com juros, se isso a faz sentir-se melhor. E agora, pelo amor de Deus, não toquemos mais nesse assunto... Imediatamente, ele pegou o catálogo telefônico, comportando-se de modo absolutamente eficiente, diferente do seu jeito de ser. - Você tem passaporte? Ninguém vai exigir que tome injeções de varíola nem nada aborrecido assim. Alô? British Airways? Gostaria de fazer uma reserva no primeiro vôo para Ibiza. - Lançou-me um sorriso, enquanto eu tentava conter as lágrimas e o descontrole, embora já me sentisse um pouco mais aliviada. Não há nada como ter um homem maduro e gentil para tomar conta de tudo nos momentos de estresse emocional. Ele pegou um lápis e um pedaço de papel e começou a fazer anotações. - Sim, quando? Ótimo. Pode fazer a reserva, por favor? Srta. Rebecca Bayliss. E a que horas chega a Ibiza? E o número do vôo? Muito obrigado. Obrigado. Sim, eu mesmo vou levá-la ao aeroporto. Ele pôs o fone no gancho e examinou, satisfeito, os rabiscos ilegíveis que fizera com o lápis. - Está tudo certo. Você viaja amanhã de manhã, faz uma conexão em Palma de Maiorca e chega a Ibiza às 7h30.

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Vou levá-la ao aeroporto. E não comece a discutir de novo, pois não ficarei tranqüilo enquanto não a vir embarcando naquele avião. E agora vamos passar um fax para o Sr. Otto Pedersen - disse ele, apanhando a carta novamente -, na Villa Margareta, Santa Catarina, Espanha, a fim de comunicar sua chegada. - Sorriu para mim de um modo tão confiante e jovial que me encheu de esperança. - Nunca poderei agradecer-lhe... - comentei. - Não quero que me agradeça - disse Stephen. - É o mínimo que posso fazer. VOEI NO DIA SEGUINTE, num avião semilotado de esperançosos turistas em férias de inverno. Carregavam com eles seus chapéus de palha, alheios ao improvável resplandecer do sol, e seus rostos, assim que desembarcamos em Palma em meio a uma garoa persistente, denotavam desapontamento e, não obstante, uma resoluta esperança de que o dia seguinte certamente seria melhor. A chuva não cessou durante as quatro horas que precisei esperar no saguão lotado do aeroporto, e o vôo para Ibiza foi turbulento, com nuvens pesadas e úmidas. Mas, assim que as transpusemos e atravessamos o mar, o tempo clareou. As nuvens tornaram-se menos densas e mais esparsas, revelando o céu azul-esverdeado e limpo do entardecer, e abaixo o longínquo mar encapelado mostrava-se raiado pelo clarão cor-de-rosa do sol poente. Estava escuro quando aterrissamos. Escuro e úmido. Sob o céu iluminado pelas estrelas do Sul havia apenas o cheiro de combustível, mas, à medida que eu caminhava pela pista empoçada em direção às luzes do edifício do terminal, sentia o vento suave tocar meu rosto. Era uma brisa cálida que recendia a pinho, um cheiro que evocava as viagens de férias de verão que eu costumava fazer quando menina. Naquela época tranqüila do ano, o avião não viera cheio. Não custei muito para liberar-me da alfândega. Com o passaporte carimbado, apanhei minha mala e caminhei para o saguão de chegada. Havia os costumeiros grupos de pessoas aguardando a chegada dos vôos ou sentados apaticamente nos compridos bancos de plástico. Parei para ver se havia alguém à minha espera, mas não avistei ninguém que se parecesse com um escritor sueco à minha procura. Então um homem que acabara de comprar o jornal num quiosque virou-se para mim. Nossos olhares atravessaram o saguão e se encontraram; ele dobrou o jornal e caminhou na minha direção, enfiando-o no bolso do casaco como se já não tivesse mais utilidade para ele. Era um homem alto e magro, com cabelos que podiam ser louros ou brancos - era impossível identificar a cor exata sob a claridade da luz elétrica e impessoal. Antes que ele estivesse a meio caminho do piso lustroso, sorri na tentativa de ser identificada e, enquanto se aproximava, pronunciou meu nome - Rebecca? - de maneira interrogativa, ainda sem saber ao certo se eu era a pessoa que ele procurava. - Sim. - Sou Otto Pedersen. Apertamos as mãos e ele fez uma mesura formal com o corpo. Seus cabelos, percebi então, eram louros e mostravam seus primeiros fios grisalhos, e seu rosto, intensamente bronzeado, era fino e ossudo, a pele ressecada e ligeiramente enrugada, provavelmente em razão de longas exposições ao sol. Os olhos eram muito pálidos, mais cinza do que azuis. Usava um suéter preto e um paletó bege, cujos bolsos possuíam pregas como as de uma camisa de safári, e um cinto frouxo com a fivela pendente. Cheirava a loção de barba e tinha uma aparência asseada, como se tivesse sido posto para quarar. Ao nos encontrarmos, subitamente pareceu difícil dizer alguma coisa. Vimo-nos pressionados pelas circunstâncias de nosso encontro, e percebi que ele estava tão inseguro quanto eu. Só que Otto era também urbano e bem-educado, e assim se portou, carregando minha mala e perguntando-me se aquela era toda a minha bagagem. - Sim, é só isso. - Então vamos para o carro. Se preferir esperar aqui, posso buscá-lo e poupar-lhe a caminhada... - Vou com você. - Está do outro lado da rua, no estacionamento. E assim fomos juntos até o carro, novamente em meio à escuridão. Ele me guiou ao estacionamento semivazio. Parou diante de um Mercedes preto, abriu o carro e colocou minha mala no banco traseiro. Segurou a porta para eu entrar, antes de dar a volta e sentar-se ao meu lado. - Espero que tenha feito uma boa viagem - disse ele, polidamente, enquanto deixávamos o terminal do aeroporto e entrávamos na estrada. - Estava um tanto turbulento em Palma. Tive que esperar quatro horas. - Sim. Não há vôos diretos nesta época do ano. Engoli. - Quero explicar-lhe o motivo de não ter respondido à sua carta. Mudei de endereço e só a recebi ontem pela manhã. Não foi encaminhada a mim, como vê. Foi muita gentileza sua ter-me avisado; você deve ter achado estranho não ter obtido resposta.

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- Imaginei que algo assim tivesse acontecido. O inglês dele era perfeito, apenas os sons das vogais e uma certa formalidade na maneira como se expressava traíam sua origem. - Tive medo, ao receber sua carta, que fosse tarde demais. - Não - disse Otto. - Não é tarde demais. Algo em sua voz me fez olhar para ele. Seu perfil tornava-se bem definido contra o brilho amarelado da iluminação das ruas, sua expressão era séria e grave. - Ela está morrendo? - perguntei. - Sim - disse Otto. - Ela está morrendo. - O que ela tem? - Câncer no sangue. Leucemia, como é chamado. - Há quanto tempo ela está mal? - Há cerca de um ano. Mas esteve gravemente doente antes do Natal. O médico achou que deveríamos tentar uma transfusão de sangue e eu a levei para o hospital. Mas isso não lhe fez bem, pois assim que a levei de volta para casa, seu nariz começou a sangrar intensamente, e tivemos que chamar uma ambulância para levá-la novamente para o hospital. Ela passou o Natal internada e só depois teve alta para voltar para casa. Foi então que escrevi para você. - Gostaria de ter recebido a carta quando chegou. Ela sabe que eu vim? - Não, não contei a ela. Você sabe como ela adora surpresas e como detesta ser desapontada. Achei que havia uma chance de algo dar errado e você não estar nesse vôo. -Ele sorriu friamente. - Mas é claro que estaria. Paramos num cruzamento para esperar uma carroça passar; as patas da mula produziam um som agradável na estrada empoeirada e um lampião balançava na parte traseira da carroça. Otto aproveitou a oportunidade para tirar um cheroot do bolso do casaco e o acendeu com o isqueiro do painel. A carroça passou, nós prosseguimos. - Quanto tempo faz que não vê sua mãe? - Dois anos. - Deve esperar uma grande mudança. Receio que ficará chocada, mas tente fazer com que ela não perceba. Continua bastante vaidosa. - Você a conhece bem. - Mas é claro. Desejei perguntar-lhe se ele a amava. A pergunta estava na ponta da língua, mas achei que não nos conhecíamos o suficiente e que seria impertinente fazer uma pergunta tão íntima e pessoal. Além do mais, que diferença faria? Ele a conhecera e quisera ficar com ela, havia-lhe dado uma casa para morar, e agora, quando ela estava doente, tratava-a com carinho apesar da aparente frieza. Se aquilo não era amor, o que seria então? Após algum tempo, começamos a conversar sobre outras coisas. Perguntei-lhe há quanto tempo vivia na ilha e ele respondeu que morava ali havia cinco anos. Viera primeiro em seu iate e gostara tanto do lugar que voltara no ano seguinte para comprar uma casa e estabelecer-se no local. - Você é escritor... - Sou, mas também leciono história. - Escreve livros sobre história? - Já fiz isso. No momento, estou trabalhando numa tese acerca da ocupação moura dessas ilhas e do sul da Espanha. Fiquei impressionada. Até onde me lembrava, nenhum dos amantes anteriores de minha mãe tinha sido, nem de longe, intelectual. - Sua casa fica muito longe? - A uns 8 quilômetros daqui. A vila de Santa Catarina era praticamente inexplorada quando vim para cá. Agora, entretanto, há grandes empreendimentos hoteleiros e receio que vá terminar igual ao restante da ilha. Não. Como alguns locais da ilha. Ainda é possível ficar totalmente isolado se você a conhecer bem e estiver de carro ou de barco. Estava quente no carro e por isso abri a janela. O vento suave da noite soprou em meu rosto, percebi que estávamos no campo, passando por pequenos bosques de oliveiras, e de vez em quando surgia um clarão da janela de alguma fazenda, brilhando através dos contornos bulbosos e pontiagudos dos cactos. - Estou feliz que ela esteja aqui. Quero dizer, se ela tiver que morrer, ficou feliz que seja num lugar assim, ao sul, com o calor do sol e o cheiro de pinho - comentei. - Sim - disse Otto. E prosseguiu, formal como sempre. -Acho que ela é muito feliz.

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Seguimos em silêncio pela estrada deserta, os postes telegráficos corriam para encontrar os faróis do carro. Percebi então que estávamos correndo em paralelo com o mar, que se estendia pelo horizonte escuro e invisível, salpicado aqui e ali pelas luzes dos barcos pesqueiros. No instante seguinte apareceu, diante de nós, o contorno iluminado do vilarejo. Passamos por uma placa que dizia SANTA CATARINA e logo nos vimos cruzando a rua principal; um cheiro de cebola, óleo e carne frita pairava no ar. A música flamenca chegou aos nossos ouvidos pelas portas abertas, e rostos escuros e distraidamente curiosos viraram-se para nos ver passar. Num momento, deixamos o vilarejo para trás e mergulhamos na extensa escuridão; diminuímos a marcha quase imediatamente para vencer a curva íngreme que levava a uma estreita passagem ladeada por uma plantação de amendoeiras. Os faróis penetravam na noite escura; à frente, avistei a quinta, branca e quadrada, entrecortada por janelinhas furtivas, um lampião aceso pendendo sobre a enorme porta da frente. Otto freou o carro e desligou o motor. Descemos, ele retirou minha mala do banco traseiro e guiou-me pelo caminho de cascalhos. Abriu a porta e me deu passagem para que eu entrasse à sua frente. Estávamos no hall, iluminado por um lampadário de ferro batido e decorado com um longo sofá recoberto por uma manta de cor clara. Um jarro alto, azul e branco, ao lado da porta, continha uma série de bengalas e guarda-sóis. Enquanto Otto fechava a porta da frente, uma outra foi aberta à nossa frente por uma mulher pequena, de cabelos negros, que usava um macacão cor-de-rosa e chinelos de dormir. - Señor. - Maria. Ela sorriu, revelando alguns dentes de ouro. Ele lhe fez uma pergunta em espanhol, ela respondeu, e ele então virou-se para mim a fim de formalizar as apresentações. - Esta é Maria, que cuida de nós. Eu disse a ela quem você é... Estendi a mão e Maria a segurou: cumprimentamo-nos com sorrisos e acenos de cabeça. Ela então virou-se para Otto e falou mais alguma coisa. Em seguida ele lhe entregou minha mala e ela se retirou. - Sua mãe esteve dormindo, mas está acordada agora. Deixe-me guardar seu casaco. Desabotoei o casaco e ele me ajudou a colocá-lo sobre o braço do sofá. Em seguida atravessou a sala até alcançar uma outra porta, fazendo um gesto para que eu o seguisse. Obedeci e, subitamente, fiquei nervosa, temerosa pelo que iria encontrar. Entramos no salão da casa. Uma enorme sala de teto baixo e paredes brancas como o restante da casa, decorada com uma mistura agradável de moderna mobília escandinava e antigüidades espanholas. O chão de cerâmica era coberto por tapetes e havia uma enorme quantidade de livros e quadros, e, no meio da sala, uma mesa redonda expunha, de maneira organizada e encantadora, revistas e jornais. O fogo queimava numa enorme lareira de pedras; à sua frente havia uma cama e, paralelamente, uma mesa baixa e comprida com um copo e uma jarra de água, alguns gerânios cor-de-rosa num jarrinho, livros e um abajur aceso. O abajur e as chamas da lareira eram as únicas fontes de luz da sala, mas, da porta, pude ver o contorno estreito, como corcovas, dos cobertores cor-de-rosa, a mão e o braço delgados que se estendiam ante a aproximação de Otto, que parou sobre o tapete da lareira. - Querido - ela disse. - Lisa. - Ele segurou e beijou sua mão. - Você não demorou muito, afinal. - Maria me disse que você adormeceu. Sente-se pronta para receber uma visita? - Uma visita? - Sua voz era uma ameaça. - De quem? Otto ergueu os olhos para mim; caminhei até o seu lado e disse: - Sou eu. Rebecca. - Rebecca. Minha filha querida. Oh, que brincadeira agradável. Ela ergueu os dois braços para mim, e eu me ajoelhei diante dela para beijá-la. Seu corpo não oferecia resistência ou apoio, de tão magra que estava, e, ao tocar seu rosto, senti sua pele fina como papel sob meus lábios. Foi como beijar uma folha há muito tempo arrancada da árvore pelo vento. - Mas o que está fazendo aqui'? - Ela olhou sobre meus ombros para Otto e de volta para mim. Fingiu seriedade. -Você não pediu a ela que viesse, pediu? - Imaginei que gostaria de vê-la - disse Otto. - Achei que a deixaria mais alegre. - Mas, querida, por que não me contou? Sorri. - Queríamos fazer-lhe uma surpresa. - Mas eu adoraria saber, para poder aguardar ansiosamente sua chegada. É o que sempre fazíamos antes do Natal. Metade da felicidade era antecipada. - Ela me soltou e eu me sentei sobre os calcanhares. -Você vai ficar? - Por um dia ou dois.

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- Ah, que maravilha., Poderemos conversar bastante. Otto, Maria já sabe que ela vai ficar? - É claro. - E sobre o jantar? - Está tudo arranjado... Jantaremos juntos, aqui, só nós três. - Ora, vamos tomar alguma coisa. Um drinque. Tem champanha? Otto sorriu. - Acho que posso conseguir uma garrafa. Na verdade, acho que me lembrei de colocar uma no gelo para uma ocasião como esta. - Ah, que homem sábio. - Devo pegá-la já? - Por favor, querido. Ela pegou minha mão e foi como segurar ossos de galinha. - Beberemos ao nosso encontro - ela disse. Otto saiu para buscar o champanha e ficamos sozinhas. Encontrei um banquinho e puxei-o para perto a fim de sentar-me ao seu lado. Entreolhamo-nos, e ela não conseguia parar de sorrir. O sorriso deslumbrante e seus brilhantes olhos castanhos continuavam os mesmos, da mesma forma que seus cabelos negros que se espalhavam como tinta sobre o travesseiro branco feito neve. Por outro lado, sua aparência estava terrível. Nunca pensei que alguém pudesse ficar tão magra e continuar viva. E o mais assustador era que ela não estava pálida nem descorada; sua pele tinha um tom escuro, como se passasse quase todo o tempo tomando sol. Mas ela estava excitada. Não conseguia parar de falar. - Só um homem doce e querido como ele saberia quanto eu adoraria vê-la. O único problema é que estou tão entediante agora, não sinto vontade de fazer nada, ele deveria ter esperado até eu melhorar, para que pudéssemos nos divertir juntas, ir nadar, sair de barco, fazer piqueniques e outras coisas. - Posso voltar - eu disse. - Mas é claro que sim. - Tocou meu rosto como se precisasse do contato para se convencer de que eu realmente estava ali. -Você está linda, sabia? Possui o colorido de seu pai, com esses grandes olhos verdes e esses cabelos dourados. E adorei o modo como o prendeu. - Sua mão passeou pela trança jogada para a frente, como uma corda sobre meu ombro direito. - Faz você parecer uma personagem de conto de fadas; sabe, aqueles livros antigos com ilustrações mágicas. Você é muito bonita. Balancei a cabeça. - Não, não sou. - Ora, você está linda e isso é ótimo. Querida, o que você tem feito? Há séculos que não tenho notícias suas. De quem será a culpa? Minha, creio. Sou uma negação para escrever cartas. Contei a ela sobre a livraria e o novo apartamento. Ela achou graça do que contei. - Você é muito engraçada, construindo um pequeno ninho para si mesma sem ter alguém para compartilhá-lo. Ainda não conheceu ninguém com quem queira se casar? - Não. Nem ninguém que queira se casar comigo. Ela fez uma cara maliciosa. - E o homem para quem trabalha? - Ele é casado, tem uma mulher encantadora e um monte de filhos. Ela deu uma risadinha afetada. - Isso nunca me incomodou. Ah, querida, que mãe terrível eu fui para você. É um milagre você não ter colecionado as mais horripilantes neuroses, obsessões ou qualquer uma dessas doenças de hoje em dia! Você não parece ter nenhuma delas; por isso, talvez essas coisas todas não a tenham prejudicado tanto. - É claro que não me prejudicaram. Ajudaram-me a amadurecer- acrescentei. - Gostei de Otto. - Ele não é divino? Tão correto, escrupuloso e setentrional. E tão inteligente... Tenho sorte por ele não exigir que eu seja tão brilhante quanto ele! Sente-se feliz por eu diverti-lo. Em algum lugar da casa, um relógio deu sete badaladas e, quando a última soou, Otto voltou à sala carregando uma bandeja com uma garrafa de champanha num balde de gelo e três copos de vinho. Observamos Otto retirar a rolha com habilidade e a bebida dourada escorrer dentro dos copos; cada um serviu-se de uma taça e a erguemos, sorridentes e felizes pela inesperada comemoração. - Um brinde a nós três e aos tempos felizes - disse minha mãe. - Ah, que brincadeira divina. Mais tarde mostraram-me meu quarto, que era, ao mesmo tempo, simplesmente um luxo e suntuosamente simples, não sei dizer qual dos dois. Havia um banheiro dentro dele; tomei banho e troquei de roupa, colocando calças compridas e uma blusa de seda; escovei os cabelos e os trancei novamente; em seguida voltei ao salão. Otto e minha mãe estavam me aguardando; ele também se trocara para o jantar, e minha mãe usava um penhoar azul-bebê

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e um xale de seda bordado com rosas que pendia sobre seus joelhos, as franjas roçando o chão. Tomamos mais um drinque até que Maria serviu o jantar sobre uma mesa baixa em frente à lareira. Minha mãe não parou de falar - lembrou os velhos tempos em que eu era ainda uma menina. Achei que Otto ficaria chocado, mas ele não se chocou de modo algum; mostrou-se curioso e bastante surpreso e fazia perguntas, estimulando minha mãe a contar mais. - ... e aquela fazenda terrível em Denbighshire... Rebecca, lembra-se daquela casa horrorosa? Quase morríamos de frio e o fogo tinha que ficar aceso o tempo todo. Esse foi Sebastian - ela explicou para que Otto entendesse. - Todos pensávamos que ele seria um poeta famoso, mas não era melhor poeta do que fazendeiro. Na verdade, era pior. E eu não sabia como deixá-lo sem ferir seus sentimentos, mas até que tive sorte, pois Rebecca teve bronquite e eu arranjei a desculpa perfeita. - Não foi tanta sorte para Rebecca - completou Otto. - Foi sim. Ela detestava aquela situação tanto quanto eu; ele tinha um cachorro horrível que estava sempre ameaçando mordê-la. Querido, será que tem mais champanha? Ela quase não comia nada, mas bebia o champanha aos golinhos, um copo após o outro, enquanto Otto e eu nos deliciávamos com os quitutes de Maria. Quando terminamos e os pratos foram retirados, minha mãe sugeriu que ouvíssemos música e Otto colocou um concerto de Brahms no toca-fitas, bem baixinho. Mamãe continuou a falar, como um brinquedo de corda que só pára quando fica rodando no chão e finalmente se quebra. Alegando ter trabalho a fazer, Otto desculpou-se e nos deixou a sós, sem se esquecer de reabastecer a lareira com novos tocos de madeira e certificar-se de que tínhamos tudo de que precisávamos. - Ele trabalha todas as noites? - perguntei, assim que saiu. - Quase sempre. E todas as manhãs. Ele é bastante meticuloso. Acho que é por isso que nos damos tão bem, por sermos inteiramente diferentes. - Ele a adora - afirmei. - É verdade - confirmou minha mãe. - E o melhor de tudo é que ele nunca sequer tentou me modificar; simplesmente me aceita com minhas fraquezas e meu passado sombrio. - Ela tornou a tocar minha trança. - Você está cada vez mais parecida com seu pai... Sempre achei que você se parecia comigo, mas não é verdade, está parecida com ele. Ele era muito bonito. - Sabe, eu nem sei qual era seu nome. - Sam Bellamy. Mas Bayliss é um nome bem melhor, não acha? Além do mais, eu a criei sozinha e sempre achei que você era minha e de mais ninguém. - Gostaria que me falasse dele. Você nunca me disse nada a seu respeito. - Há tão pouco a dizer. Ele era ator e bonito demais para se descrever. - Mas onde vocês se conheceram? - Ele chegou na região da Cornualha com uma companhia de teatro para apresentar peças de Shakespeare ao ar livre. Tudo era tremendamente romântico, as noites azuis do verão, o cheiro da grama molhada de orvalho, a música divina de Mendelssohn, e Sam representando Oberon. "Pela casa, a luz tremeluzente Do fogo adormecido e apagado; Os elfos, gnomos e duendes São leves feito aves nos galhos." - Tudo era mágico. E me apaixonar por ele fazia parte da magia. - Ele estava apaixonado por você? - Nós dois achávamos que sim. - Mas você fugiu e casou-se com ele... - Foi. Mas só porque meus pais não me deram outra alternativa. - Não compreendo. - Eles não gostavam dele. Desaprovavam nosso relacionamento. Diziam que eu era jovem demais. Minha mãe me perguntava por que eu não me casava com um jovem do local, sossegava e parava de me exibir. E o que as pessoas diriam se eu me casasse com um ator? Às vezes eu achava que ela só se importava com isso, com a opinião dos outros. Como se eu me importasse com o que os outros iriam dizer. Essa era, incrivelmente, a primeira vez que eu a ouvia mencionar sua mãe. E falei, cautelosamente, instigando-a: - Você não gostava dela? - Oh, querida, isso foi há tanto tempo. É tão difícil de me lembrar. Mas ela me sufocava e me reprimia. Às vezes eu achava que ela tentava me asfixiar com suas convenções. E Roger foi morto, e eu senti tanto a sua falta. Tudo

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teria sido diferente se Roger estivesse lá - ela sorriu. - Ele era tão amável. Quase amável demais. Um verdadeiro VP desde o início. - O que é um VP? - Vítima das prostitutas. Ele sempre se apaixonava pelas moças impossíveis. Até que se casou com uma. Uma bonequinha loira, com cabelos de boneca e olhos azuis de porcelana. Minha mãe a achava um doce. Eu não a suportava. - Como era seu nome? - Mollie - ela fez uma careta como se o simples fato de mencionar aquele nome a incomodasse. Soltei uma risada. - Ela não pode ter sido tão ruim assim. - Eu achava que era. Tão loucamente metódica. Sempre limpando a bolsa de mão, colocando os sapatos na fôrma ou esterilizando os brinquedos do bebê. - Então ela teve um bebê? - Teve um menininho. Coitadinho, ela insistiu em chamá-lo de Eliot. - É um nome bonito. - Oh, Rebecca, é nojento. - Era óbvio que nada do que Mollie fazia era visto com bons olhos por minha mãe. -Sempre senti pena daquela criança por estar atrelada àquele nome horrível. E, de alguma forma, ele fez jus ao nome, sabe como são as pessoas, e, após a morte de Roger, o pobrezinho sofreu ainda mais, sempre pendurado no pescoço da mãe e dormindo de luz acesa. - Acho que está sendo maldosa. Ela deu uma gargalhada. - Sim, eu sei, não foi culpa dele. Provavelmente se tornou uma boa pessoa, se sua mãe lhe tiver dado alguma chance. - O que será que aconteceu com Mollie? - Não sei. Tampouco me importo. - Minha mãe era sempre cruelmente precipitada. - É como um sonho. Como se lembrar de personagens de um sonho. Ou talvez... - ela baixou o tom de voz -... talvez eles fossem reais e eu fosse o sonho. Eu me senti desconfortável, pois estava ficando claro que eu a estava forçando a falar. - Seus pais ainda estão vivos? - Minha mãe morreu no Natal que passamos em Nova York. Lembra-se daquele Natal? O frio, a neve e as lojas tocando "Jingle Bells"? Quando o Natal passou, desejei nunca mais ouvir aquele raio de canção novamente. Meu pai me escreveu, mas obviamente a carta demorou meses para chegar, seguindo-me por meio mundo. E então era tarde demais para responder à carta, dizendo alguma coisa. Além disso, não tenho jeito para escrever cartas. Provavelmente ele pensou que eu nem me importei. - Você nunca escreveu? - Não. - Também não gostava dele? Ao que parecia, esse era um assunto delicado. - Oh, eu o adorava. Ele era maravilhoso. Era um homem incrivelmente bonito, atraente e assustador. Ele era pintor. Já lhe contei isso? Um pintor. Eu havia imaginado tudo, menos que ele fosse um pintor. - Não, você nunca me contou. - Ora, se você teve algum tipo de educação, deveria ter suspeitado. Grenville Bayliss. Esse nome não lhe diz nada? Balancei a cabeça com pesar. Era terrível nunca ter ouvido falar num avô famoso. - Bem, e por que lhe diria? Nunca fui de levá-la a galerias de arte ou museus. Pensando bem, nunca fui boa em coisa alguma. É um milagre você ter lidado tão bem com a minha negligência materna. - Como ele era? - Quem? - Seu pai. - Como você o imagina? Considerei a pergunta e lembrei-me de Augustus John. - Boêmio, barbudo, leonino... - Errado - disse minha mãe. - Ele não era nada disso. Começou ávida na Marinha, que lhe deixou um estigma indelével. Sabe, ele só se decidiu a ser pintor com quase 30 anos, quando abdicou de uma carreira promissora. Isso quase partiu o coração de minha mãe. Para ela, mudar-se para a Cornualha e morar numa casa em Porthkerris era uma afronta somada à injúria. Acho que ela nunca o perdoou por ter sido tão egoísta. Adorava reinar em Malta e

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devia gostar de ser a esposa do comandante-chefe. Devo acrescentar que ele foi feito por encomenda para tal função: olhos azuis, postura altiva e temível. Nunca perdeu a pose de militar. - Mas você não o temia? - Não. Eu o amava. - Então, por que não voltou para casa? Ela franziu a testa. - Não podia. Nunca faria isso. Coisas terríveis haviam sido ditas por todos nós. Velhos ressentimentos e verdades vieram à tona; ameaças foram feitas, ultimatos foram dados. E quanto mais se opunham a mim, mais determinada eu ficava, e tornou-se cada vez mais impossível admitir que eles tinham razão e que eu havia cometido um erro crasso. Se tivesse voltado para casa, nunca mais sairia de lá. Eu sabia disso. E você não me pertenceria mais, você seria da sua avó. E isso eu não suportaria. Você era preciosa demais para mim - ela sorriu e concluiu a explanação de modo tristonho. - E nós nos divertimos, não foi? - Claro que sim. - Eu gostaria de ter voltado. Algumas vezes cheguei perto disso. Era uma casa maravilhosa. Boscarva era o seu nome, e o lugar se parecia um pouco com este vilarejo, bem no alto da montanha, diante do mar. Quando Otto me trouxe aqui pela primeira vez, lembrei-me de Boscarva. Mas aqui é quente e os ventos são brandos; lá chovia muito, ventava forte e o jardim era escondido por sebes altas para proteger os canteiros de flores dos ventos marinhos. Acho que o vento era o que minha mãe mais detestava naquele lugar. Ela costumava vedar todas as janelas e trancar-se dentro de casa para jogar bridge com as amigas ou bordar. - Ela nunca fazia nada com você? - Nunca. - Mas quem tomava conta de você? - Pettifer e a Sra. Pettifer. - Quem eram? - Pettifer servira na Marinha também; cuidava do meu pai, limpava a prataria e, de vez em quando, passava por motorista. A Sra. Pettifer se encarregava da comida. Não preciso nem dizer como eles eram agradáveis. Sentar ao lado do fogão com eles, vê-los preparar torradas e ouvir o vento batendo nas janelas, sabendo que estávamos protegidos... isso me fazia sentir tão segura. E costumávamos ler a sorte nas xícaras de chá... - sua voz baixou, incerta de suas lembranças. E então ela corrigiu: - Não, essa era Sophia. - Quem era Sophia? Ela não respondeu. Seu olhar estava perdido no fogo da lareira, dando a impressão de estar longe dali. Talvez nem tivesse me escutado. Finalmente ela disse: - Depois que minha mãe morreu, eu deveria ter voltado. Não agi direito me afastando deles, mas eu nunca fui dotada de fibra moral. Mas, sabe, existem coisas em Boscarva que pertencem a mim. - Que tipo de coisas? - Uma papeleira, eu me lembro. Pequenina, com gavetas laterais e um tampo que se abre. Alguns jades que meu pai trouxe da China e um espelho veneziano. Essas coisas eram minhas. Por outro lado, eu já me mudei tantas vezes que teriam sido um estorvo - ela olhou para mim, franzindo um pouco a testa. - Mas talvez você não as considere um estorvo. Você tem mobília nesse seu apartamento? - Não, praticamente nenhuma. - Então vou tentar reavê-las para você. Deve estar tudo em Boscarva ainda, se a casa não tiver sido vendida, queimada ou qualquer coisa assim. Você gostaria que eu tentasse recuperar essas peças? - Mais do que tudo. Não apenas pelo fato de eu precisar de mobília, mas por terem pertencido a você. - Oh, querida, que doçura, que linda essa sua procura por raízes. Eu nunca suportei ter raízes. Sempre achei que elas iriam me atrelar a algum lugar. - E eu sempre achei que elas iriam me fazer pertencer a algum lugar. - Você pertence a mim - ela disse. Ficamos conversando até as primeiras horas da manhã. Por volta da meia-noite, ela me pediu para encher sua jarra d'água. Descobri sozinha o caminho da cozinha deserta para atender ao seu pedido e notei que Otto, num gesto gentil, havia se recolhido em seu quarto para que pudéssemos ficar juntas. E, finalmente, quando sua voz mostrou-se cansada e suas palavras rareadas pela exaustão, eu lhe disse que eu também precisava descansar, o que era verdade; levantei-me, as pernas dormentes de ter ficado tanto tempo sentada, espreguicei-me e coloquei mais alguns tocos na lareira. Então retirei um dos travesseiros para que ela pudesse deitar e dormir. O xale de seda havia escorregado para o chão, eu o apanhei, o dobrei e o coloquei sobre uma cadeira. Curvei-me para beijá-la e desligar o abajur, deixando-a à luz do fogo. Quando eu estava saindo da sala, ela disse, da mesma forma que dizia quando eu era criança: - Boa noite, meu amor. Até amanhã.

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NA MANHÃ SEGUINTE, acordei cedo, com os raios de sol que se infiltravam pelas fendas das persianas. Levantei da cama, abri a janela e apreciei a manhã radiante do Mediterrâneo. Saí pela porta da varanda de pedras que circundava toda a extensão da casa e observei a montanha debruçada sobre o mar, a cerca de 1,5 quilômetro de distância. A terra cor de areia estava coberta pelas delicadas flores cor-de-rosa das amendoeiras. Voltei para o quarto, me vesti e tornei a sair -atravessei a varanda, um lance de escada e o jardim bem cuidado. Dei a volta por um muro baixo de pedra e prossegui em direção ao mar. Em seguida, me vi num arvoredo, cercada por amendoeiras. Parei, olhei para cima e avistei uma profusão de flores cor-de-rosa; por trás delas despontava o céu de um azul pálido e limpo. Eu sabia que cada flor daquelas carregava uma fruta preciosa que, a seu tempo, seria frugalmente colhida, mas mesmo assim não resisti e arranquei um único raminho; e o estava segurando quando, mais ou menos uma hora depois, após ter caminhado até o mar, refiz todo o caminho de volta sobre a montanha, em direção à casa. O caminho era mais íngreme do que parecia. Parando para respirar, ergui a cabeça a fim de olhar a casa e vi Otto Pedersen parado na varanda, observando minha chegada. Por um instante, ambos ficamos em silêncio; então ele começou a descer o jardim para me encontrar. Caminhei mais lentamente do que antes, segurando ainda o raminho de flor. Eu já sabia. Soube antes mesmo de ele se aproximar e eu poder observar a expressão de seu rosto; mas continuei subindo por entre o arvoredo, e finalmente nos encontramos perto do pequeno muro de pedra. Ele disse meu nome, só isso. - Eu sei. Não precisa me dizer - respondi. - Ela morreu durante a noite. Quando Maria entrou na sala para acordá-la... estava tudo acabado. Ela teve uma morte serena. Ocorreu-me que não estávamos nos esforçando muito para confortar um ao outro. Talvez porque não fosse necessário. Ele estendeu a mão para me ajudar a pular o muro e continuou segurando-a enquanto atravessávamos o jardim até a casa. Ela foi enterrada segundo a lei espanhola naquele mesmo dia, no pequeno cemitério do vilarejo. Presentes, apenas o padre, Otto, Maria e eu. Quando terminou, depositei o ramo de flor de amendoeira sobre seu túmulo. VOEI DE VOLTA PARA LONDRES na manhã seguinte, e Otto me levou ao aeroporto em seu carro. A maior parte do tempo ficamos em silêncio, mas quando nos aproximamos do terminal ele disse subitamente: - Rebecca, não sei se isso importa para você, mas eu teria me casado com Lisa. Eu teria me casado com ela, mas tenho uma esposa na Suécia. Não vivemos juntos há muitos anos, mas ela não pode se divorciar de mim por motivos religiosos. - Você não precisava me contar isso, Otto. - Queria que soubesse. - Você a fez muito feliz. Tomou conta dela. - Fico feliz que tenha vindo. Fico feliz que a tenha visto. - Sim. - De repente senti um nó na garganta e meus olhos se encheram de lágrimas doloridas. - Sim, eu também estou feliz. No aeroporto, conferidas minha passagem e a bagagem, ficamos parados olhando um para o outro. - Não precisa esperar - eu disse. - Pode ir. Detesto despedidas. - Está bem... mas primeiro... - ele enfiou a mão no bolso do casaco e retirou dali três pulseiras finas de prata. Minha mãe nunca as tirara do pulso. Estava com elas na noite anterior. -Fique com isto. - Ele pegou minha mão e as colocou em meu pulso. - E isto. - Do outro bolso ele retirou um maço de libras. Colocou-o na palma da minha mão e fechou meus dedos sobre ele.'- Estava em sua bolsa... portanto, isso lhe pertence. Eu sabia que aquelas notas não estavam na bolsa dela. Ela nunca carregava dinheiro na bolsa, a não ser algumas moedas para telefonar e algumas promissórias vencidas e amassadas. Mas havia algo na expressão de Otto que não me deixou recusá-las, assim peguei o dinheiro e o beijei, e ele virou-se sem dizer uma palavra. Voltei para Londres num estado miserável de indecisão. Emocionalmente, eu estava vazia, consumida pela dor. Fisicamente, estava exausta, mas não consegui dormir nem comer a refeição que a aeromoça me oferecera. Ela me trouxe um chá e tentei bebê-lo, mas seu gosto era amargo e eu o deixei de lado. Era como se uma porta fechada há muito tempo tivesse sido aberta, mas só uma frestinha, e eu teria que decidir se a abriria toda ou não, embora o que estivesse atrás dela fosse escuro e repleto de incertezas.

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Talvez eu devesse ir até a Cornualha, procurar a família de minha mãe, mas o que eu ouvira falar de Porthkerris não era nada encorajador. Meu avô devia ser muito velhinho, solitário e, provavelmente, uma pessoa amarga. Lembrei que não havia feito nenhum acordo com Otto Pedersen sobre quem comunicaria a ele a morte de minha mãe, e assim havia uma grande possibilidade de que, se fosse encontrá-lo, eu tivesse que lhe dar a notícia. Além disso, eu o culpava um pouco por ter deixado sua filha ter feito o que fez da vida. Eu sabia que ela era impulsiva e teimosa, mas ele certamente poderia ter sido um pouco mais positivo em sua maneira de lidar com ela. Poderia tê-la procurado, oferecido ajuda, desejado conhecer sua neta. Mas ele não fez nada disso e certamente essa era uma grande barreira entre nós. E, não obstante, eu desejava ter raízes. Não que eu quisesse necessariamente viver com elas, mas as queria ali. Havia coisas em Boscarva que pertenceram à minha mãe e que agora pertenciam a mim. Ela queria que eu ficasse com elas, expressara sua vontade, e então talvez fosse minha obrigação ir à Cornualha reclamar o que me era de direito; porém, ir até lá por essa única razão parecia uma atitude fria e mesquinha. Recostei a cabeça, cochilei e tornei a ouvir a voz de minha mãe. "Nunca o temi. Eu o amava. Deveria ter voltado." E ela mencionara um nome - Sophia - que eu nem conseguia imaginar quem era. Por fim, adormeci e sonhei que havia chegado. Mas, em meu sonho, a casa não tinha forma e a única coisa que parecia real era o barulho do vento fresco e frio que soprava do mar aberto para a terra. CHEGUEI A LONDRES no começo da tarde, mas o dia escuro perdera sua forma e significado, e eu não tinha idéia do que fazer com o que restava dele. Peguei um táxi e fui para a Walton Street, à procura de Stephen Forbes. Encontrei-o no segundo andar, examinando uma caixa de livros de uma casa antiga que acabara de ser vendida. Não havia mais ninguém com ele, e quando apareci no patamar da escada ele levantou-se e caminhou em minha direção, imaginando que eu fosse uma cliente. Quando viu que era eu, sua expressão mudou. - Rebecca! Você voltou. Fiquei ali, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. - Voltei. Cheguei às 2 horas. Ele me fitou com uma interrogação no olhar. - Minha mãe faleceu ontem de manhã. Cheguei a tempo. Tive uma noite com ela e conversamos bastante. - Entendo - disse Stephen. - Fico feliz por você tê-la encontrado. - Ele afastou alguns livros da beirada da mesa e apoiou-se nela, cruzando os braços e olhando para mim através dos óculos. - O que pretende fazer agora? - perguntou. - Não sei. - Parece exausta. Por que não tira uns dias de folga? - Não sei - repeti. Ele franziu a testa. - O que você não sabe? - Não sei o que fazer. - Qual o problema? - Stephen, já ouviu falar de um artista chamado Grenville Bayliss? - Céus, já. Por quê? - É meu avô. Stephen olhou-me com atenção. - Deus do céu. Quando foi que descobriu? - Minha mãe me contou. Nunca ouvi falar dele - tive que admitir. - Mas deveria. - Ele é conhecido? - Foi, há 20 anos, quando eu era garoto. Havia um Grenville Bayliss sobre a lareira da sala de jantar na antiga casa de meu pai, em Oxford. Fez parte da minha vida, eu diria. Um mar cinza e tempestuoso e um barco pesqueiro com uma vela marrom. Costumava me sentir mareado só de olhar para ele. Ele era um especialista em paisagens marinhas. - Ele foi marinheiro. Quero dizer, esteve na Marinha Real. - Faz sentido. Esperei que continuasse, mas ele se calou. Finalmente, perguntei: - O que devo fazer, Stephen? - O que quer fazer, Rebecca?

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- Nunca tive uma família. - Isso é muito importante? - Agora é. - Então vá procurá-lo. Há algum motivo que a impeça de ir? - Estou com medo. - De quê? - Não sei. De ser esnobada, eu acho. Ou ignorada. - Existem rixas de família tão terríveis assim? - Existem. E relações cortadas. Palavras duras foram ditas. Esse tipo de coisa. - Sua mãe sugeriu que você fosse? - Não. Não com essas palavras. Mas ela disse que havia coisas lá que pertenciam a ela. Achou que eu deveria tomar posse delas. - Que tipo de coisas? Contei a ele. - Sei que não é muita coisa. Talvez nem valham a viagem, mas eu gostaria de guardar alguns objetos que pertenceram a ela. Além disso... - tentei fazer da história uma piada - ... eles podem me ajudar a encher alguns espaços vazios do meu apartamento. - Acho que pegar o que lhe pertence deve ser uma razão secundária para ir à Cornualha. A primeira deve ser fazer as pazes com Grenville Bayliss. - Suponhamos que ele não queira fazer as pazes. - Então não haverá mal algum nisso. A não ser, talvez, um pouco de orgulho ferido, mas isso não irá matá-la. - Você está tentando me convencer a ir - disse a ele. - Se não queria meu conselho, então por que veio me ver? Ele tinha razão. - Não sei - admiti. Ele riu. - Você não sabe muita coisa, não é? - e, quando ri de volta, ele disse: - Olhe. Hoje é quinta-feira. Vá para casa e durma um pouco. E se amanhã for cedo demais, então vá à Cornualha no domingo ou na segunda. Mas vá. Vá conhecer o lugar, conhecer seu avô. Poderá levar alguns dias, mas não importa. Não volte para Londres até ter feito tudo o que puder. E se conseguir suas bugigangas, muito bem, mas lembre-se de que elas têm importância secundária. - Sim, eu sei. Ele se levantou. - Então vá - disse. - Tenho muito o que fazer além de servir de conselheiro para você. - Posso voltar a trabalhar quando tudo terminar? - Deve. Não posso me arranjar sozinho sem você. - Então, tchau - eu disse. - Au revoir - disse Stephen, e como se num gesto decorrente de uma reflexão tardia, ele se inclinou, desajeitado, para me beijar. - E boa sorte! Eu já havia gasto um bocado de dinheiro em táxis, por isso caminhei, carregando minha mala, até o ponto de ônibus e aguardei a condução chegar e me levar de volta a Fulham. Distraída, o olhar perdido na paisagem da janela, nas ruas cinzentas e tumultuadas, tentei fazer alguns planos. Iria à Cornualha, como sugerira Stephen, na segunda-feira. Nessa época do ano não seria difícil conseguir lugar no trem ou encontrar uma vaga para dormir, quando finalmente chegasse a Porthkerris. E Maggie cuidaria de meu apartamento. Pensar no apartamento me fez lembrar as cadeiras que comprara antes de ir a Ibiza. Aquele dia parecia bastante distante. Mas, se eu não as fosse buscar, eles as venderiam, como ameaçara o desagradável vendedor. Com isso na cabeça, saltei do ônibus alguns pontos antes de casa, a fim de ir à loja pagar pelas cadeiras e certificar-me de que elas estariam esperando por mim quando eu voltasse de viagem. Enchi-me de coragem para negociar mais uma vez com o jovem de jeans, porém, assim que entrei e a campainha da porta soou anunciando minha chegada, observei com certo alívio que não era ele quem estava atrás da mesa, nos fundos da loja, e sim outro homem, mais velho, de cabelos grisalhos e barba escura. Ele aproximou-se, tirando o par de óculos de aro de chifre do rosto, enquanto eu deixava minha mala no chão, aliviada. - Boa tarde. - Oh, boa tarde. Eu vim por causa de um par de cadeiras que comprei na segunda-feira. De cerejeira, com encosto côncavo. - Ah, sim, sei quais são. - Uma delas precisava de conserto.

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- Já está pronta. Vai levá-las agora? - Não. Estou com uma mala. Não posso levá-las. E vou viajar por alguns dias. Pensei que, se pagasse por elas agora, vocês poderiam guardá-las até a minha volta. - Mas é claro - ele tinha uma voz grave e charmosa e, quando sorria, sua expressão, um tanto saturnina, se iluminava. Comecei a abrir a bolsa. - Posso pagar em cheque? Tenho o cartão do banco. - Certamente... Não prefere usar minha mesa? Aqui está a caneta. Comecei a preencher o cheque. - Em nome de quem devo fazer o cheque? - Em meu nome. Tristam Nolan. Senti-me gratificada em saber que era ele o dono daquela linda lojinha e não o vaqueiro deselegante. Preenchi o cheque e o cruzei, entregando ao homem. Ele ficou parado, de cabeça baixa, lendo-o, e levou tanto tempo que achei que tinha esquecido de escrever alguma coisa. - Eu coloquei a data? - Sim, está perfeito. - Olhou para mim. - É apenas o seu nome: Bayliss. Não é muito comum. - Não, não é. - É parente de Grenville Bayliss? Carregar este nome, exatamente agora, era extraordinário e, ao mesmo tempo, não tão extraordinário assim. Era o mesmo que fazer parte de algo relevante de que nunca se tivera notícia. - Sou - respondi. E então, por não haver nenhuma razão para não lhe dizer a verdade, completei: - É meu avô. - Extraordinário - ele disse. Fiquei confusa. - Porquê? - Vou lhe mostrar. - Colocou meu cheque sobre a mesa e tirou, de trás de outro móvel, uma grande pintura a óleo numa moldura dourada. Ele a ergueu, colocando o peso de uma das quinas sobre a mesa, e eu vi que era do meu avô. Sua assinatura estava no canto, e a data, embaixo, era de 1932. - Acabei de comprá-lo. Precisa ser limpo, é claro, mas eu o acho muito charmoso. Dei um passo à frente, a fim de inspecioná-lo de perto, e notei as dunas de areia sob a luz da noite e dois garotos nus, debruçados sobre um amontoado de conchas. O estilo provavelmente estava fora de moda, mas a composição era interessante - o colorido delicado e vigoroso -, como se os garotos, embora vulneráveis em sua nudez, conservassem a valentia e impusessem respeito. - Ele era bom, não era? - perguntei, sem conseguir esconder o tom de orgulho na voz. - Sim, um grande colorista. - Pôs a pintura de volta no lugar. - Você o conhece bem? - Eu não o conheço. Nunca o vi. Ele não disse nada, apenas ficou aguardando que eu explicasse melhor o que havia dito. Para preencher o silêncio, continuei. - Mas decidi que talvez seja a hora. Na verdade, estou indo para a Cornualha na segunda-feira. - Mas isso é esplêndido. As estradas estão vazias nesta época do ano, é uma linda viagem. - Vou de trem. Não tenho carro. - Ainda assim, é uma bela viagem. Espero que o sol apareça. - Muito obrigada. Andamos em direção à porta. Ele a abriu, eu apanhei minha mala. - Cuidará das cadeiras para mim? - Certamente. Adeus. E divirta-se em na Cornualha.

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3 Mas o sol não apareceu. A segunda-feira amanheceu cinzenta e depressiva como sempre, e minha vaga esperança de que o tempo melhorasse à medida que o trem rumasse para o oeste caiu por terra, uma vez que o céu escurecia e o vento soprava mais forte a cada quilômetro. Por fim, o dia dissolveu-se numa chuva copiosa. Não havia nada para se ver através das janelas encharcadas, salvo os contornos anuviados de montanhas e fazendas e, de vez em quando, um aglomerado de telhas de um vilarejo visto de relance ou ainda uma estação semivazia de alguma cidadezinha anônima. De um Plymouth, consolei-me, seria diferente. Poderia atravessar a ponte Saltash e chegar a outro país, outro clima, onde reinariam chalés cor-de-rosa, palmeiras e o brilho tênue do sol de inverno. Mas, obviamente, o que aconteceu

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foi que a chuva caiu ainda mais incessantemente; quanto mais me deparava com os campos encharcados e as árvores desfolhadas pela ventania, mais remotas ficavam minhas esperanças. Comecei a me sentir desencorajada. Eram quase 16h45 quando chegamos ao entroncamento que anunciava o fim da viagem para mim, e a escuridão da tarde havia sucumbido ao crepúsculo. Assim que o trem diminuiu a marcha ao longo da plataforma, avistei uma palmeira descomunal, com a silhueta de um guarda-chuva quebrado contra o céu torrencial, e a chuva que caía tremeluzia e dançava diante do sinal luminoso que mostrava "St Abbotts, baldeação para Porthkerris". O trem finalmente parou. Ajeitei a mochila nos ombros e abri a porta pesada, que imediatamente se soltou da minha mão com a força do vento. O súbito impacto do forte vento gelado, proveniente do mar escuro, me fez arfar; no ímpeto de saltar do trem, segurei minha mala e pulei na plataforma. Segui o fluxo dos viajantes por sobre a ponte de madeira até o prédio da estação mais ao longe. A maioria dos outros passageiros encontrou-se com amigos que aguardavam ou atravessaram, intencionalmente, o saguão à procura do toalete. Eu os segui cegamente, sentindo-me totalmente perdida e estranha, na esperança de que me guiassem a um ponto de táxi. Mas, quando saí da estação, não avistei táxi algum. Permaneci ali, à espera de alguém que me oferecesse uma carona, envergonhada demais para pedir, até que o rastro das lanternas do último carro, inevitavelmente, desapareceu no alto da montanha em direção à estrada principal, e fui forçada a voltar ao guichê de passagens a fim de conseguir alguma ajuda. Encontrei um cabineiro empilhando gaiolas de galinhas num morrinhento depósito de encomendas. - Com licença, tenho que ir a Porthkerris. Onde posso tomar um táxi? Ele balançou a cabeça lentamente, desanimador, e respondeu: - Há um ônibus. Passa de hora em hora. - Levantou os olhos para o relógio na parede cujos ponteiros moviam-se morosamente. - Você acabou de perder um, vai ter que esperar um pouco. - Posso chamar um táxi pelo telefone? - Não há muitos táxis nesta época do ano. Deixei a mochila pesada deslizar para o chão, e nos fitamos um ao outro, ambos derrotados diante da gravidade da situação. Meus pés molhados começavam lentamente a congelar. Enquanto isso, ouvi, mais alto do que a tempestade, o motor de um carro descendo velozmente a montanha. Falei, aumentando o tom de voz a fim de me fazer ouvir: - Preciso pegar um táxi. Onde tem um telefone? - Há uma cabine bem ali... Saí à procura da cabine, puxando a mochila atrás de mim, e foi então que ouvi o carro parar do lado de fora da estação; a porta bateu, ouvi os passos de alguém que corria e, em seguida, surgiu um homem, batendo violentamente o portão da estação contra o vento gelado. Sacudiu o corpo como um cão antes de atravessar o saguão e desaparecer atrás da porta do depósito. Eu o ouvi dizer: - Olá, Ernie. Acho que chegou uma encomenda para mim. De Londres. - Olá, Sr. Gardner. Noite horrível, não? - Terrível. A estrada está alagada. Parece que é aquele ali... lá adiante. Sim, é esse. Quer que eu assine? - Ah, sim, o senhor tem que assinar. Aqui está. Imaginei o papel sendo desamassado sobre a mesa, o toco de lápis retirado de trás da orelha de Ernie. E, por Deus, não conseguia me lembrar de onde conhecia aquela voz, nem por que ela me parecia tão familiar. - Ótimo. Muito obrigado. - Não tem de quê. O telefone e o táxi foram esquecidos por um momento, e grudei os olhos na porta esperando o homem reaparecer. Quando ele surgiu, carregando uma enorme caixa cheia de etiquetas vermelhas onde se lia VIDRO, olhei as pernas longas, o brim azul encharcado de lama até os joelhos e a capa de chuva preta, coberta de pingos de chuva. Seu cabelo estava grudado à cabeça, e ele me viu pela primeira vez e ficou paralisado, segurando o pacote nas mãos como uma oferenda. Seus olhos negros oscilaram de perplexidade, e então ele me reconheceu. Esboçou um sorriso e exclamou: - Santo Deus! Era o homem que me vendera as duas cadeirinhas de cerejeira. Fiquei boquiaberta, sentindo obscuramente que alguém havia me preparado uma armadilha maldosa e injusta. Se algum dia precisei de um amigo foi naquele momento, e o destino havia decidido me enviar a última pessoa na Terra que eu queria tornar a ver. E ser vista, assim, encharcada e desesperada, foi a gota final. Seu sorriso se abriu. - Que coincidência fantástica. O que está fazendo por aqui?

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- Acabei de descer do trem. - Aonde está indo? Tive de contar a ele. - A Porthkerris. - Alguém vem buscá-la? Por pouco não menti e disse que sim. Qualquer coisa para me livrar dele. Mas eu nunca soube mentir, e era provável que ele viesse a descobrir a verdade. Então respondi que não, e continuei, tentando parecer auto-suficiente, como se pudesse tomar conta de mim sozinha: - Vou chamar um táxi. - Vai demorar horas para chegar. Estou indo para Porthkerris, eu lhe dou uma carona. - Ah, não precisa se incomodar... - Não é incômodo algum, estou indo mesmo para lá. Essa é toda a sua bagagem? - É,mas... - Então vamos. Eu ainda hesitei, mas ele pareceu considerar o assunto encerrado, dirigindo-se até a porta para abri-la, aparando-a com as costas e esperando que eu o seguisse. Portanto passei à sua frente e entrei na escuridão furiosa da noite. Sob a luz tênue, avistei a pequena caminhonete estacionada, com o pisca-alerta ligado. Deixando a porta bater atrás de si, ele foi até o carro e guardou delicadamente a caixa na parte traseira; pegou minha mochila e a colocou ao lado da caixa, cobrindo apressadamente os dois volumes com um velho pedaço de lona. Fiquei observando-o, mas ele disse: - Vá entrando, não faz sentido os dois se molharem. Eu obedeci, acomodando-me no banco do passageiro, apertando a bolsa entre as pernas. Quase ao mesmo tempo ele entrou no carro, batendo a porta com força e ligando o motor como se não houvesse tempo a perder. O carro rugiu montanha acima, deixando para trás a estação e entrando na estrada principal, em direção a Pothkerris. - AGORA ME DIGA UMA COISA. Pensei que morasse em Londres - ele disse. - E moro. - Veio passar férias aqui? - Mais ou menos. - Isso soa bem e meio vago. Vai ficar em casa de amigos? - Vou. Não. Não sei. - O que quer dizer? - Só isso. Quero dizer que não sei - fui rude, mas não pude evitar. Não conseguia controlar as palavras. - Bom, é melhor se decidir antes de chegar a Porthkerris. De outro modo, vai passar a noite na praia. - Eu... vou ficar num hotel. Só por uma noite. - Assim é melhor. Qual hotel? Lancei-lhe um olhar exasperado e ele respondeu, ponderando: - Bom, se não me disser, não vou poder levá-la até lá. Ele parecia estar me encurralando. Respondi: - Não fiz reserva em nenhum hotel. Pensei em fazer isso ao chegar. Lá tem hotéis, não tem? - Porthkerris está cheio deles. Há um hotel em cada esquina. Mas nessa época do ano a maioria está fechada. - Conhece algum que esteja aberto? - Conheço. Mas vai depender de quanto pode pagar. Ele me olhou de esguelha, notando meu jeans remendado, meus sapatos puídos e meu velho casaco de couro que eu conservava por ser quente e confortável. Mas, naquele momento, minhas roupas cheiravam a cachorro molhado. - Podemos ir de um extremo ao outro. Do Castle, no alto da montanha, onde se troca de roupa para jantar e dançar o foxtrote ao som de uma orquestra, até a Sra. Kernow, que oferece cama e café-da-manhã, em Fish Lane. A Sra. Kernow eu recomendo. Ela cuidou de mim por três meses ou mais antes de eu ter meu próprio canto, e seu preço é bem acessível. Fiquei interessada. - Seu próprio canto? Quer dizer que mora aqui? - Agora moro. Há seis meses. - Mas... e a loja na New Kings Road... onde comprei as cadeiras? - Eu estava oferecendo uma ajuda por um ou dois dias. Chegamos a um cruzamento e, diminuindo a marcha, ele virou-se para mim. - Já foi pegar as cadeiras? - Não. Mas já paguei por elas. Ainda estarão lá quando eu voltar. - Ótimo - disse o jovem.

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Guiamos em silêncio por alguns instantes. Passamos por um vilarejo e por sobre um trecho de mata selvagem acima do mar; e então descemos uma estrada arborizada dos dois lados. Através dela, através de troncos retorcidos e galhos torturados pelo vento, surgiram de repente, lá embaixo, as luzes cintilantes de uma cidadezinha. - É Porthkerris? - É. E vai ter que me dizer se quer ficar no Castle ou em Fish Lane. Engoli. O Castle estava fora de questão, era óbvio, mas, se eu fosse para Fish Lane, ficaria sob o jugo daquela criatura manipuladora. Eu não tinha vindo a Porthkerris por outro motivo a não ser o de me encontrar com Grenville Bayliss, e estava com um incômodo pressentimento de que, se eu me envolvesse com aquele homem, ele grudaria em mim feito um carrapicho. - Não, o Castle não... - respondi, querendo que ele sugerisse algo mais modesto, mas ele encurtou logo a conversa. - Isso é ótimo - ele disse, sorrindo. - Então vai para a casa da Sra. Kernow, em Fish Lane. Não vai se arrepender. Minha primeira impressão de Porthkerris, em meio à escuridão e à tempestade, era, no mínimo, de uma cidade estranha. Naquela noite lúgubre, parecia quase desabitada; as ruas desertas e molhadas refletiam a luz e as valas escoavam a água da chuva. Em alta velocidade, entramos num bairro de ruelas e becos desnorteantes e fomos dar numa rua que margeava a enseada; fizemos a volta para entrar novamente no labirinto de ruas de pedras e casas aleatórias e assimétricas. Finalmente, viramos numa rua estreita, com casas de varandas verdes e portas no nível da calçada. Tudo parecia bonito e decente. Cortinas de renda velavam as janelas e olhei de relance algumas estatuetas de meninas ao lado de cachorros e grandes vasos verdes com flores ornamentais. Enfim, o carro diminuiu a marcha e encostou. - Chegamos. - Ele desligou o motor, e pude ouvir o gemido do vento e o barulho próximo do mar. A rebentação estourava na areia e as ondas que retrocediam produziam um longo silvo. - Sabe, não sei o seu nome - ele comentou. - Rebecca Bayliss. E eu não sei o seu. - Joss Gardner... é o apelido de Jocelyn e não de Joseph. Após ter dado essa informação desnecessária, ele desceu do carro e tocou a campainha e, enquanto aguardava, virou-se para retirar minha mochila de debaixo da lona. A porta se abriu e ele foi banhado por um veio de luz cálida que emanou do interior da casa. - Joss! - Olá, Sra. Kernow. - O que está fazendo aqui? - Trouxe-lhe uma hóspede. Disse a ela que a senhora tinha o melhor hotel de Porthkerris. - Oh, meu Deus, não costumo receber hóspedes nesta época do ano. Mas entrem, saiam da chuva, que tempo, hein? Tom foi até o alojamento da guarda costeira, parece que houve um chamado da via Trevose, mas eu não sei direito, não ouvi nenhum rojão... De alguma forma, estávamos todos do lado de dentro, com a porta fechada, e mal havia espaço para os três no estreito hall. - Venham para perto da lareira... está bem quente aqui, vou pegar uma xícara de chá para vocês, se quiserem... - nós a seguimos até uma sala de estar pequenina e aconchegante, porém desarrumada. A Sra. Kernow ajoelhou-se para atiçar o fogo e despejar mais carvão na lareira e, pela primeira vez, pude dar uma boa olhada nela: uma senhora pequena, de idade, que usava óculos, chinelos de dormir e um avental sobre o vestido marrom. - Não queremos chá - ele lhe disse. - Só queremos saber se tem uma cama para Rebecca, por uma ou duas noites. Ela ficou de pé ao lado da lareira. - Bem, não sei... Olhou para mim, incerta, e, a julgar pela minha aparência e pelo casaco cheirando a cachorro, não a culpei por ficar em dúvida. Fiz menção de abrir a boca, mas Joss se adiantou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. - Ela é uma moça de respeito e não vai roubar os talheres. Eu lhe garanto. - Bem... - a Sra. Kernow sorriu. Seus olhos eram bonitos, de um azul bastante claro. - O quarto está vazio, então talvez ela possa ficar. Mas não vou poder lhe oferecer o jantar de hoje à noite, não esperava ninguém, não tenho nada em casa, além de um pastelão de carne. - Tudo bem - disse Joss. - Eu posso alimentá-la. Eu quis protestar, mas fui novamente contida. - Vou deixá-la aqui para que se instale e desfaça as malas, e voltarei às... - ele olhou rapidamente para seu relógio - 19h30, para buscá-la. Está bem? - Olhou casualmente para mim. -A senhora é um anjo, Sra. Kernow, e eu a amo como a uma mãe. - Pôs o braço em volta dela e a beijou. Ela pareceu encantada; em seguida, ele me dirigiu um

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sorriso amistoso e derradeiro, dizendo: - Vejo você mais tarde - e saiu. Ouvimos o ronco do motor do carro descendo a rua. - É um rapaz adorável - a Sra. Kernow me disse. - Ele morou aqui comigo durante uns três meses... Agora venha, traga sua malinha que vou lhe mostrar seu quarto. É claro que ele vai estar frio, mas eu tenho um aquecedor elétrico que você pode usar, e a água do chuveiro é boa e quente, caso queira tomar um banho... Sempre digo que ficamos tão emporcalhados quando andamos nesses trens imundos... O quarto era pequeno como os demais cômodos da casa, mobiliado com uma cama de casal enorme que ocupava quase todo o espaço. Mas estava limpo e logo estaria aquecido. Depois de mostrar-me onde ficava o banheiro, a Sra. Kernow desceu as escadas e deixou-me à vontade. Ajoelhei-me perto da janela baixa a fim de cerrar as cortinas. O velho caixilho da janela tinha sido bem vedado com pedaços de borracha para evitar a entrada do vento, e o vidro escuro estava molhado de chuva. Não havia nada para se ver, mas fiquei ali mesmo assim, imaginando o que estava fazendo naquela casinha e tentando descobrir por que o reaparecimento de Joss Gardner me causara um inexplicável incômodo.

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Eu precisava de defesas. Precisava criar confiança e auto-estima, relegando o papel de pária resgatada em que subitamente me encontrava. Um banho quente e roupas limpas me ajudaram a recuperar a calma. Ajeitei o cabelo, maquiei os olhos, refresquei o corpo com o restinho da colônia cara que havia no vidro, e estava quase pronta a recobrar a compostura. Eu havia retirado um vestido da mochila inseparável e o pendurara na tentativa de que parecesse menos amassado; vesti o traje preto de mangas compridas, meias finas pretas e um par de sapatos de salto com fivelas antiquadas que havia encontrado, há tempos, num quiosque da Portobello Road... Enquanto apertava as tarraxas dos brincos de pérola, ouvi, em meio ao farfalhar do vento tempestuoso, o som da pequena caminhonete de Joss Gardner, os pneus trepidando sobre a rua de pedras. O carro soltou um guincho, parando ruidosamente em frente à casa, e logo em seguida ouvi sua voz no andar de baixo, chamando primeiro pela Sra. Kernow e em seguida por mim. Continuei, lentamente, a apertar a tarraxa do brinco. Peguei a bolsa e o casaco de couro. Eu o havia colocado ao lado do aquecedor elétrico na esperança de que secasse, mas ele continuava úmido. O calor tinha apenas enfatizado o odor de cachorro que andou na chuva, e continuava pesado feito chumbo. Pendurei-o no braço e desci as escadas. - Olá. - Joss, no corredor, olhou para mim. - Ora, que transformação. Sente-se melhor agora? - Sim. - Deixe-me levar seu casaco... Ele o puxou do meu braço, na intenção de me ajudar a carregá-lo, e fez um gesto cômico, flexionando os joelhos por causa do peso. - Não pode usar isto, vai levá-la ao chão. E ainda está molhado. - Não tenho outro. Ainda brincando com o casaco, ele começou a rir. Minha auto-estima começou a se esvair de mim, e devo ter aparentado minha fraqueza, pois ele parou de rir de repente e chamou a Sra. Kernow. Assim que ela apareceu, com uma expressão exasperada e, ao mesmo tempo, amável, ele enrolou o casaco e o colocou em seus braços, pedindo-lhe que o secasse para mim; em seguida, desabotoou e tirou sua capa de chuva preta e acomodou-a, com uma certa graça, sobre meus ombros. Por baixo, ele usava um leve suéter cinza e um cachecol de algodão amarrado no pescoço. - Agora - ele disse - estamos prontos. - E abriu a porta para a cortina de chuva. Protestei: - Mas você vai se molhar. - Depressa - ele respondeu, e eu me apressei em sair. Ele saiu atrás de mim, e logo estávamos de novo na caminhonete, quase completamente encharcados; fechamos bem as portas do carro para nos protegermos da tempestade, embora pequenas poças d'água no meu assento e em meus pés me fizessem suspeitar de que o fiel automóvel não fosse mais tão inviolável quanto já fora um dia. Ligou o motor ruidoso, levando-nos para longe dali, e, considerando o volume de água fora e dentro do carro, parecia que estávamos dando uma volta num barco veloz e furado. - Aonde estamos indo? - perguntei. - Ao Anchor. É logo ali. Não é muito chique. Importa-se? - Por que me importaria? - Poderia se importar. Poderia preferir o Castle. - Dançar o foxtrote ao som de uma orquestra? Ele sorriu e respondeu: - Não sei dançar foxtrote. Ninguém nunca me ensinou. Atravessamos a Fish Lane, viramos uma ou duas esquinas e passamos sob uma arcada de pedra que dava para uma pequena praça. Num de seus lados, havia um hotel baixo e antigo. Uma luz cálida atravessava as pequenas vidraças da entrada arqueada, e o letreiro - onde estava escrito HOTEL -sobre a porta balançava e rangia com o vento. Havia uns quatro ou cinco carros parados do lado de fora, e Joss estacionou cuidadosamente a caminhonete num lugar estreito entre dois outros carros, desligou o motor e disse: - Um, dois, três e corra. E nós dois percorremos, a toda a velocidade, a curta distância entre o carro e o toldo da entrada. Ali, Joss sacudiu o corpo levemente, espanou a chuva da superfície macia do suéter, retirou a capa de chuva dos meus ombros e abriu a porta para que eu entrasse à sua frente. Lá dentro estava quente, o teto era baixo e o lugar tinha o mesmo cheiro dos velhos pubs: cerveja, fumaça de cachimbo e madeira embolorada. Havia um bar com bancos altos e mesas espalhadas pelo salão. Dois homens de idade jogavam dardos num dos cantos. O barman olhou para nós e disse: - Oi, Joss.

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Joss colocou a capa de chuva num cabideiro e me levou até ele a fim de nos apresentar. - Tommy, esta é Rebecca. Rebecca, este é Tommy. Ele mora aqui desde garoto; o que quiser saber a respeito de Porthkerris ou das pessoas que moram aqui, pergunte a ele. - Como vai? - dissemos. - Tommy tinha cabelos grisalhos e muitas rugas. Aparentava ser marinheiro nas horas vagas. Sentamo-nos nos bancos, e Joss pediu um uísque com soda para mim e um com água para si. Enquanto Tommy preparava os drinques, os dois conversaram amenidades como normalmente fazem os homens nos pubs. - Como estão as coisas? - perguntou Tommy. - Nada mal. - Quando vai abrir? - Na Páscoa, talvez, se tiver sorte. - Está tudo pronto? - Mais ou menos. - Quem é o carpinteiro? - Eu mesmo. - Vai economizar um bom dinheiro. Minha atenção se dispersou. Acendi um cigarro e olhei à minha volta, gostando do que via. Os dois velhos jogavam dardos; um jovem casal, de jeans e cabelos compridos, curvados sobre a mesa e um par de drinques, discutiam, com ávida e intensa concentração, o existencialismo? Pintura? Como iriam pagar o aluguel? Alguma coisa que os interessava profundamente. Um grupo de quatro pessoas mais velhas, vestidas elegantemente: os homens constrangidamente casuais e as mulheres inadvertidamente formais. Imaginei que estivessem hospedados no Castle e entediados com o tempo, e que talvez tivessem vindo visitar a região mais pobre da cidade. Não pareciam à vontade ali, como peixes fora d'água, e mal podiam esperar para retornar ao conforto das almofadas de veludo no grande hotel na montanha. Meus olhos passearam pelo salão, e foi então que avistei o cachorro. Era um lindo cão, um setter grande e marrom, de pelagem bonita e lustrosa. Seu rabo era uma pluma sedosa de pêlo cor de cobre contrastando com o piso cinza lajeado. Ele estava parado ao lado do dono e, de vez em quando, o rabo se mexia lentamente num movimento de aprovação, um aplauso particular. Intrigada, inspecionei o homem que parecia ser o dono daquela criatura invejável e o achei quase tão interessante quanto seu animal. Sentado, com o cotovelo na mesa e o queixo apoiado sobre o punho, ele deixava à mostra o perfil claro e distinto, quase como se estivesse posando para mim. Sua cabeça tinha um contorno perfeito e seu cabelo espesso mais parecia uma raposa prateada, o tipo de pessoa que começa a ficar grisalha antes da hora. O único olho que seu perfil me permitia observar era profundo e escuramente sombreado, o nariz era longo e aquilino, a boca encantadora, o queixo fortemente torneado. E, pela extensão do pulso que emergia do punho da camisa xadrez, pela manga da jaqueta cinza de tweed, pelo modo como acomodava as pernas sob a mesinha, suspeitei que fosse alto, provavelmente mais de 1,90 metro. Enquanto eu o observava, ele riu subitamente de algo que seu companheiro lhe dissera. Isso chamou minha atenção para o outro homem e fiquei surpresa, pois, por alguma razão, eles não combinavam em nada. Enquanto um era esbelto e elegante, o outro era baixo, gordo, de rosto vermelho; vestia um blazer azul-marinho apertado e o colarinho da camisa parecia enforcá-lo. Não estava excessivamente quente dentro do pub, mas havia um brilho de suor sobre sua sobrancelha avermelhada, e notei que o cabelo castanho ostentava um corte um tanto ingênuo, de modo que um longo cacho oleoso fora penteado para cima e para o lado, disfarçando a cabeça quase completamente careca. O homem com o cachorro não estava fumando, mas o gordo subitamente apagou seu cigarro no cinzeiro cheio que havia sobre a mesa, como se quisesse enfatizar seu ponto de vista, e quase instantaneamente alcançou o bolso para retirar dali uma caixa prateada e pegar outro cigarro. Mas o homem com o cachorro decidira que era hora de ir. Tirou a mão do queixo, puxou o punho da camisa para trás a fim de consultar o relógio e terminou seu drinque. O homem gordo, aparentemente aquiescendo à decisão do outro, acendeu impacientemente seu cigarro e engoliu seu uísque. Os dois começaram a se levantar, empurrando as cadeiras, produzindo um rangido estridente, abominável. O cão se levantou, o rabo fazendo círculos exultantes. Em pé, um tão baixo e gordo e o outro tão magro e alto, os dois pareciam mais diferentes do que nunca. O magro apanhou uma capa de chuva pendurada no espaldar da cadeira e a jogou sobre os ombros feito um manto, e virou-se em nossa direção, caminhando para a porta. Por um instante fiquei desapontada, pois de frente sua estampa não estava à altura do perfil promissor e intrigante que possuía. Em seguida esqueci o desapontamento, pois, de repente,

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ele reconheceu Joss. E Joss, provavelmente sentindo sua presença, parou de falar com Tommy Williams e virou-se para ver quem estava atrás dele. Por um segundo ambos pareceram desconcertados, e em seguida o homem alto abriu um sorriso que delineou suas bochechas e enrugou seus olhos, e era impossível não se sentir atraída por tamanho charme. - Joss. Há quanto tempo! - Sua voz era agradável e amistosa. - Oi - disse Joss, sem descer do banco. - Pensei que estivesse em Londres. - Não. Voltei. O rangido da porta chamou minha atenção. O outro homem, o gordo, saíra silenciosamente. Presumi que tivesse um encontro urgente e não pensei mais no assunto. - Direi ao velho que encontrei você. - Faça isso. Os olhos encovados moveram-se em minha direção e voltaram-se para Joss. Esperei ser apresentada, mas isso não aconteceu. Por alguma razão a falta de tato de Joss era um tapa na cara. Finalmente: - Bom, nos veremos por aí- disse o homem alto. E partiu. - Claro - concordou Joss. - Boa noite, Tommy - ele se despediu do barman, enquanto abria a porta e deixava o cão passar à sua frente. - Boa noite, Sr. Bayliss - respondeu o barman. Senti minha cabeça girar como se alguém a tivesse puxado. Ele já havia desaparecido, deixando a porta balançando atrás de si. Sem pensar, deslizei do banco para segui-lo, mas uma mão segurou meu braço detendo-me, e virei-me para encontrar Joss me segurando. Por um surpreendente minuto nossos olhares se chocaram, e eu me libertei de sua mão. Ouvi o barulho do motor do carro lá fora. Era tarde demais. - Quem é ele? - perguntei. - Eliot Bayliss. Eliot. O menino de Roger. O filho de Molhe. O neto de Grenville Bayliss. Meu primo. Minha família. - Ele é meu primo. - Eu não sabia. - Você sabe meu nome. Por que não contou a ele? Por que não me deixou conhecê-lo? - Vai encontrá-lo logo. Está muito tarde e você está molhada demais para reuniões familiares. - Grenville Bayliss é meu avô também. - Achei que deveria haver alguma ligação - disse Joss, friamente. - Tome outro drinque. A essa altura, eu estava bastante chateada. - Não quero tomar mais nada. - Nesse caso, vamos jantar. - Também não quero comer. Pensei que realmente não quisesse. Não queria mais ficar nem um minuto com aquele homem mal-educado e despótico. Observei-o terminar seu drinque e descer do banco e, por um momento, imaginei que ele fosse respeitar minha vontade; iria me levar de volta a Fish Lane e me deixar com fome. Mas, por sorte, ele não deu atenção ao meu blefe; simplesmente pagou pelos drinques e, sem dizer uma palavra, levou-me a uma porta, nos fundos do bar, que dava para a escadaria de um pequeno restaurante. Eu o segui, pois parecia não haver mais nada a ser feito. Além disso, estava faminta. A maioria das mesas já estava ocupada, mas uma garçonete reconheceu Joss e veio lhe desejar boa noite, levando-nos para a que, decerto, era a melhor mesa do restaurante, situada num nicho estreito com vista para a baía. Pela janela, avistei os contornos dos telhados lavados pela chuva e, mais além, a escuridão líquida da enseada manchada pelo reflexo difuso dos postes de luz da beira do cais e pelas luzes dos barcos pesqueiros. Nós nos entreolhamos. Eu continuava zangada e não queria olhar para ele. Pus-me a desenhar com o dedo sobre a toalha de mesa e o ouvi pedir o jantar. Aparentemente, eu não estava autorizada a fazer minha própria escolha. Ouvi a garçonete dizer: "Para a senhorita também?", como se estivesse surpresa com seu comportamento descuidado, e Joss respondeu que "Sim, para a senhorita também", e a garçonete saiu, deixando-nos sozinhos. Após algum tempo, olhei para ele. Seu olhar sombrio encontrou o meu, sem piscar. O silêncio cresceu entre nós, e tive a ridícula sensação de que ele estava esperando que eu me desculpasse com ele. Comentei em seguida: - Se não quer que eu fale com Eliot Bayliss, talvez possa me falar sobre ele. - O que quer saber? - Ele é casado? - foi a primeira pergunta que passou pela minha cabeça.

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- Não. É um homem atraente - Joss admitiu. - Mora sozinho? - Não, mora com a mãe. Eles têm uma casa no alto de High Cross, a uns 10 quilômetros daqui, mas há cerca de um ano mudaram para Boscarva, para ficarem com o velho. - Meu avô é doente? - Não sabe muito sobre sua família, não é? - Não - disse, num tom desafiador. - Há uns 10 anos, Grenville Bayliss teve um enfarte. Foi quando parou de pintar. Mas parece que é forte como um touro e teve uma recuperação milagrosa. Não quis sair de Boscarva e então ficou com um casal... - Os Pettifers? Joss franziu a testa. - Como sabe a respeito dos Pettifers? - Minha mãe me contou - lembrei-me das antigas reuniões realizadas na quentura da cozinha. - Nunca imaginei que eles ainda estivessem lá. - A Sra. Pettifer morreu no ano passado, e seu avô ficou sozinho com Pettifer. Grenville Bayliss está com 80 anos, e Pettifer não está muito atrás. Mollie Bayliss queria que ele vendesse a propriedade de Boscarva e que os dois fossem para High Cross, mas o velho é teimoso feito uma mula; sendo assim, ela e Eliot acabaram se mudando para lá. Meio a contragosto, devo acrescentar- ele se inclinou na cadeira, esticando as mãos compridas sobre a beirada da mesa. - Sua mãe... chama-se Lisa? Fiz um gesto afirmativo com a cabeça. - Eu sabia que Grenville tinha uma filha e uma neta, mas não dei muita importância ao fato de seu sobrenome ser Bayliss. - Meu pai deixou minha mãe antes de eu nascer. Ela nunca usou o sobrenome dele. - Onde está sua mãe agora? - Ela morreu... há alguns dias. Em Ibiza - reiterei - há apenas alguns dias -, pois de repente tudo me pareceu distante. - Sinto muito - ele fez um gesto vago, por não ter o que dizer. - Seu avô sabe disso? - Não sei. - Você veio para lhe dar a notícia? - Suponho que terei que lhe contar. - Tal idéia me pareceu assustadora. - Ele sabe que está aqui? Em Porthkerris? Meneei a cabeça. - Ele nem me conhece. Nunca nos encontramos. Nunca estive aqui antes. - E finalmente admiti: - Não sei nem como chegar até a casa. - De uma forma ou de outra - disse Joss -, você vai deixá-lo chocado. Fiquei aflita. - Ele está muito fraco? - Não, ele não está fraco. É bastante forte. Mas está ficando velho. - Minha mãe dizia que ele era assustador. Ainda é? Joss fez uma careta, nada fazendo para me consolar. - É terrível - respondeu. A garçonete nos trouxe a sopa. Estava grossa, marrom e quentíssima. Eu estava tão faminta que tomei tudo, até aparecer o fundo do prato, sem dizer uma palavra. Quando finalmente descansei a colher, levantei os olhos e vi que Joss estava rindo de mim. - Para quem não queria comer, até que não foi mal. Mas dessa vez eu não me rebelei. Empurrei o prato de sopa vazio e pousei os cotovelos sobre a mesa. - Como sabe tanto a respeito da família Bayliss? - perguntei a ele. Joss havia engolido a sopa às pressas como eu e agora estava passando manteiga num pãozinho, sendo enlouque-cedoramente vagaroso. - É simples - respondeu ele. - Estou fazendo um trabalho em Boscarva. - Que tipo de trabalho? - Bom, restauro móveis antigos. E não me olhe desse jeito, não lhe fica bem. - Restaura móveis antigos? Deve estar brincando. - Falo sério. E a casa de Grenville Bayliss é cheia de peças antigas e valiosas. Ele já ganhou muito dinheiro e investiu grande parte em antigüidades. E agora, algumas delas precisam urgentemente de conserto, não que jamais tenham sido polidas, mas o aquecedor central que ele instalou há alguns anos as deixou arruinadas. As gavetas encolheram, o verniz ressecou e rachou, e as pernas das cadeiras se quebraram. Por acaso... - ele acrescentou, distraidamente -... fui eu que consertei a perna de sua cadeira de cerejeira.

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- Há quanto tempo trabalha com isso? - Vejamos, saí da escola com 17 anos e estou com 24 agora, então faz mais ou menos sete anos. - Mas é preciso aprender... - Ah, claro. Primeiro, estudei marcenaria e carpintaria quatro anos numa escola profissionalizante de Londres e, quando já estava apto, empreguei-me como aprendiz de um velho marceneiro por mais dois anos, em Sussex. Morei com ele e sua esposa, fiz de tudo um pouco na oficina e aprendi tudo o que sei. Fiz algumas contas. - São apenas seis anos. Você disse sete. Ele riu. - Tirei um ano de férias para viajar. Meus pais diziam que eu estava ficando provinciano. Meu pai tem um primo que administra um rancho de gado nas Montanhas Rochosas, no sudoeste do Colorado. Trabalhei lá como rancheiro durante nove meses ou mais - ele franziu a testa. - Do que está rindo? Contei a ele: - A primeira vez que o vi, lá na loja... achei que parecia um rancheiro... parecia mesmo. E, de alguma forma, fiquei incomodada. Ele sorriu. - E sabe o que você parecia? Parei de rir. - Não. - A líder de um orfanato bem administrado. E isso incomodou a mim. Um breve lance de esgrima, e mais uma vez estávamos em lados opostos. Olhei-o com antipatia, enquanto ele terminava, alegremente, de tomar a sopa; a garçonete retirou os pratos vazios e trouxe uma garrafa de vinho tinto. Não tinha ouvido Joss pedir o vinho, e o observei encher os dois cálices com seus dedos longos e finos; gostava da idéia de eles trabalharem com madeira e coisas antigas e bonitas, moldando e medindo, polindo e criando formas. Peguei o cálice de vinho que, contra a luz, brilhava feito rubi. Comentei: - É tudo o que está fazendo em Porthkerris? Restaurando a mobília de Grenville Bayliss? - Por Deus, não. Estou abrindo uma loja. Aluguei um prédio junto à enseada há cerca de seis meses. Venho aqui de vez em quando desde então. E agora estou tentando colocar tudo em ordem antes da Páscoa ou do Pentecostes ou quando realmente começarem as vendas de verão. - É uma loja de antigüidades? - Não, de móveis modernos, vidros e tecidos. Mas vou continuar restaurando antigüidades. Tenho uma oficina para isso. Reservei um quartinho no último andar, onde moro atualmente, e é por isso que pôde ficar com meu quarto na casa da Sra. Kernow. Um dia, quando você achar que sou digno de confiança, poderá conhecer onde moro. Ignorei sua investida. - Se trabalha aqui, o que estava fazendo naquela loja em Londres? - Na loja de Tristam? Já lhe falei, ele é meu amigo; sempre passo por lá quando vou à cidade. Franzi a testa. Havia tantas coincidências. Nossas vidas pareciam entrelaçadas, como as cordas de um embrulho. Olhei-o terminar o vinho e mais uma vez senti o mesmo incômodo de antes. Eu sabia que deveria lhe fazer uma porção de perguntas, mas, antes de começar, a garçonete voltou à nossa mesa, trazendo filés, vegetais, batatas fritas e as tigelas de salada. Tomei um gole do vinho e fiquei olhando para Joss; quando a garçonete saiu, perguntei: - O que Eliot Bayliss faz? - Eliot? Gerencia uma oficina de automóveis em High Cross, especializada em carros usados de alta potência, Mercedes, Alfa Romeo. Se você tiver o tipo certo de talão de cheques, ele poderá conseguir qualquer coisa para você. - Você não gosta dele, gosta? - Eu nunca disse que não gostava. - Mas não gosta. - Talvez fosse mais correto dizer que ele não gosta de mim. - Porquê? Ele olhou para cima e fez uma cara engraçada. - Não faço a menor idéia. Agora, por que não come seu filé antes que esfrie? ELE ME LEVOU PARA CASA. Continuava chovendo e eu estava mortalmente cansada. Joss parou o carro em frente à casa da Sra. Kernow, mas deixou o motor ligado. Eu lhe agradeci, desejei-lhe boa noite e ameacei abrir a porta mas, antes disso, ele me segurou. Virei para olhá-lo. - Amanhã. Vai a Boscarva? - ele perguntou. - Vou.

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- Vou levá-la. - Posso ir sozinha. - Você não sabe onde é. Além disso, é uma longa caminhada montanha acima. Virei pegá-la de carro. Às 11 horas? Discutir com ele era o mesmo que argumentar com um rolo compressor. E eu estava exausta. - Está bem - respondi. Ele abriu a porta para mim e a empurrou. - Boa noite, Rebecca. - Boa noite. - Vejo-a pela manhã.

5 O vento não parou de soprar a noite inteira. Quando acordei, a janelinha do meu quarto, na casa da Sra. Kernow, formava um painel quadrado azul-claro, atravessado por nuvens brancas que navegavam a uma certa velocidade. Fazia frio, mas eu me levantei da cama bravamente e desci as escadas à procura da Sra. Kernow. Encontrei-a do lado de fora, no pequeno quintal atrás da casa, pendurando na corda a roupa lavada. A princípio, batendo lençóis e toalhas, ela não me viu, mas quando apareci entre uma camisa e uma anágua velha e remendada ela se assustou. O susto a divertiu e ela soltou uma risada estridente, como se nós duas fôssemos um mecanismo de duplo efeito. - Você me deu um susto. Pensei que ainda estivesse dormindo! Dormiu bem? Esse vento enjoado continua a soprar, mas parou de chover, graças a Deus. Quer tomar seu café-da-manhã? - Uma xícara de chá, talvez. Ajudei-a a pendurar o restante da roupa, e então ela pegou a cesta vazia e eu a segui para dentro da casa. Sentei-me à mesa da cozinha; ela pôs a chaleira no fogo e começou a fritar toucinho. - Jantou bem ontem à noite? Foi ao Anchor? O restaurante de Tommy Williams é muito bom, está sempre cheio, no verão e no inverno. Ouvi quando Joss a trouxe para casa. Ele é um rapaz adorável. Senti falta dele quando se mudou. Às vezes eu vou até sua casa fazer uma faxina e trago sua roupa suja para lavar. É triste um jovem como ele ter de viver sozinho e não ter ninguém com quem contar. - Acho que Joss pode tomar conta de si mesmo. - Não está certo um homem fazer o trabalho de uma mulher. - Era óbvio que a Sra. Kernow não acreditava no movimento de libertação da mulher. - Além do mais, ele vive ocupado demais trabalhando para o Sr. Bayliss. - A senhora conhece o Sr. Bayliss? - Todo mundo o conhece. Ele mora aqui há quase cinqüenta anos. É um dos moradores mais antigos. E foi um pintor maravilhoso antes de adoecer. Costumava expor suas telas todos os anos, e vinha muita gente de Londres, gente famosa, todo mundo. É claro que ultimamente não o temos visto. Ele não pode mais descer e subir a montanha como costumava fazer, e é um pouco arriscado para Pettifer dirigir aquele carro enorme por essas estradas estreitas. Além disso, no verão o tráfego fica intenso por causa dos turistas. O lugar fica abarrotado deles. Às vezes parece que metade da população do país está nesta cidadezinha. Ela virou o toucinho num prato e o colocou à minha frente. - Agora coma antes que esfrie. - Sra. Kernow, o Sr. Bayliss é meu avô - contei-lhe. Ela olhou para mim e franziu a testa. - Seu avô?- e em seguida: -Você é filha de quem? - De Lisa. - Filha de Lisa. - Ela puxou uma cadeira e foi se sentando lentamente. Notei que a tinha chocado. - Joss sabe disso? Isso parecia irrelevante. - Sim, contei para ele ontem à noite. - Ela era uma garotinha adorável - ela me encarou. -Posso vê-la em você... a única diferença era que tinha cabelos castanhos e você é loura. Sentimos falta dela quando se foi e nunca mais voltou. Onde está agora? Contei a ela. Quando terminei, ela disse: - E o Sr. Bayliss não sabe que está aqui? - Não. - É melhor se apressar. Ande logo. Ah, eu queria estar lá para ver a cara do velho. Ele venerava sua mãe... Uma lágrima brilhou. Rapidamente, antes que fôssemos levadas pelo sentimentalismo, falei: - Não sei como chegar lá.

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Tentando me explicar, ela me confundiu ainda mais; por fim, encontrou um velho envelope e um toco de lápis e desenhou um mapa simplificado. Olhando para ela, lembrei-me da promessa de Joss de chegar às 11 horas e levar-me para Boscarva em sua caminhonete caindo aos pedaços, mas de repente me pareceu uma idéia bem melhor ir imediatamente, sozinha. Além do mais, na noite anterior eu havia sido completamente submissa e condescendente. Não faria mal algum ao vasto ego de Joss chegar aqui e descobrir que eu havia ido sem ele. Tal pensamento me animou consideravelmente e subi as escadas para pegar o casaco. Lá fora, fui instantaneamente açoitada pelas rajadas de vento que formavam um túnel pela rua estreita, como uma corrente de ar numa chaminé. Era um vento gelado, cheirando a maresia, porém, quando o sol despontou por detrás das nuvens galopantes, a luminosidade revelou-se fascinante, resplandecente, e, acima, as gaivotas gritavam e velejavam no azul do céu com suas asas brancas. Caminhei e logo estava subindo a montanha por estreitas estradas de pedra - ladeadas eventualmente por algumas fileiras de casas -, por lances de escada e vielas íngremes. Quanto mais altura eu ganhava, mais forte tornava-se o vento. A medida que eu caminhava, a cidade tornava-se menor, e o oceano se revelava, azul-escuro, raiado de jade e púrpura e salpicado de carneirinhos brancos. Espalhava-se pelo horizonte dominado pelo céu e, abaixo, a cidade e a enseada pareciam insignificantes brinquedos. Fiquei olhando para ela, tomando fôlego, e de repente aconteceu uma coisa engraçada. Aquele lugar não era inteiramente novo para mim, ao contrário, parecia-me totalmente familiar. Senti-me em casa, como se tivesse retomado para um lugar em que morara a vida inteira. E embora eu mal tivesse pensado em minha mãe desde que tomara a decisão de vir a Porthkerris, ela estava subitamente ao meu lado, subindo os degraus das ruas com suas pernas longas, sem fôlego, esforçando-se como eu. Fui confortada pela sensação de déjà-vu. Fez-me sentir menos sozinha e bem mais encorajada. Continuei a subir, feliz por não ter esperado por Joss. Sua presença me incomodava, mas eu não fazia idéia do motivo. Ele havia sido, afinal, bastante franco comigo, tirando minhas dúvidas e me explicando tudo o que eu quis saber. Era óbvio que não havia nenhuma simpatia entre ele e Eliot Bayliss, coisa que eu compreendia facilmente. Os dois não tinham nada em comum. Eliot, embora com certa relutância, estava morando em Boscarva. Era um Bayliss e a casa seria, a seu tempo, sua casa. Por outro lado, a presença de Joss em Boscarva lhe dava a liberdade de ir e vir quando bem quisesse. Podia ser encontrado ali, inesperadamente, nas horas mais estranhas do dia, talvez quando sua presença não era nem conveniente nem bem-vinda. Fiquei imaginando-o tão à vontade com todos, às vezes sendo intrometido e, o pior de tudo, sem fazer idéia do problema que estava causando. Um homem como Eliot ficaria ressentido com tal comportamento, e Joss, por sua vez, reagiria a tal ressentimento. Entretida com os pensamentos e no afã da subida, deixei de observar o que me cercava, mas agora a estrada se aplainara sob meus pés e pude parar e apreciar a paisagem à minha volta e me certificar da direção a ser tomada. Eu estava no topo da montanha, disso eu tinha certeza. A cidade ficara para trás; à frente estendia-se o litoral escarpado, que se curvava a distância e margeava o prado verdejante, remendado por miniaturas de fazendolas e campinas, atravessado por vales profundos, por grossos estrepeiros e olmeiros atrofiados, onde riachos estreitos corriam para encontrar o mar. Olhei ao meu redor. Aquilo também era uma campina. Ou havia sido, um ano atrás. E talvez, desde então, a fazenda tivesse sido comprada, as máquinas de terraplanagem trazidas, as velhas sebes destruídas, a terra rica revolvida e aplainada e uma nova propriedade estivesse sendo erguida. Tudo parecia por terminar. Máquinas misturavam cimento, um caminhão de carga encalhara num mar de lama, pilhas de tijolos e concreto espalhavam-se por toda parte e, diante de tudo, como um estandarte envaidecido, um tapume anunciava o responsável pelo massacre. ERNEST PADLOW VANTAJOSAS CASAS AFASTADAS À VENDA Dirija-se à Alameda do Mar, Porthkerris Telefone: Porthkerris 873 As casas eram realmente afastadas, mas só um pouco. Menos de 3,50 metros entre si, e as janelas davam de frente umas para as outras. Meu coração lamentou os prados e as oportunidades perdidas. Enquanto eu estava ali parada, redesenhando mentalmente todo o projeto, um carro surgiu atrás de mim, parando em frente ao tapume. Era um antigo jaguar azul-marinho, e o homem que desceu dele, batendo a porta atrás de si com um barulho surdo, usava um casaco de

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operário e carregava uma prancheta e um punhado de papéis que balançavam ao vento. Virou-se e me viu, hesitou apenas por um segundo para então caminhar em minha direção, tentando ajeitar o cabelo sobre a careca. - Bom dia. Seu sorriso me era familiar, como se fôssemos velhos conhecidos. Eu já o tinha visto antes. Na noite passada. No Anchor. Conversando com Eliot Bayliss. Ele desviou o olhar para o tapume. - Pensando em comprar uma casa? - Não. - Mas deveria. A vista daqui é ótima. Franzi a testa. - Não quero comprar uma casa. - É um bom investimento. - O senhor é o mestre-de-obras? - Não - ele olhou para o tapume atrás de si com um certo orgulho. - Sou Ernest Padlow. - Sei. - A vista daqui de cima é linda... - Olhou a devastação à sua volta com uma certa dose de satisfação. - Tinha um bocado de gente querendo este lugar, mas a dona da terra era uma viúva, e eu consegui convencê-la a me vender. Fiquei surpresa. Enquanto falava, ele puxou um cigarro e o acendeu; não chegou a me oferecer um, seus dedos eram manchados de nicotina e ele me parecia o homem menos charmoso do mundo. Voltou a atenção para mim. - Por acaso já fomos apresentados antes? - Não. - Turista? - Sou, de certa forma. - É melhor fora da alta estação. Não tem muita gente. - Estou procurando por Boscarva - falei. Pego de surpresa, ele perdeu o ar bondoso. Seus olhos tornaram-se agudos como seixos em seu rosto corado. - Boscarva? A propriedade do velho Bayliss? - É. Sua expressão tornou-se ardilosa. - Procurando por Eliot? - Não. Ele esperou que eu acrescentasse alguma coisa à resposta. Como não o fiz, ele tentou fazer uma piada. - Bom, é o que sempre digo: quanto menos se fala, menos se briga. Se quer ir a Boscarva, pegue aquela estradinha que desce a montanha. Cerca de 1 quilômetro. Verá a casa mais embaixo, em direção ao mar. Ela possui telhas de ardósia e um enorme jardim em volta. Não há como errar. - Obrigada - sorri polidamente. - Adeus. Virei-me e comecei a andar, sentindo que seu olhar me seguia. E então ele voltou a falar e eu me virei para ouvi-lo. Ele estava sorrindo, novamente como se fôssemos velhos amigos. - Se quiser uma casa, decida-se logo. Elas são um estrondoso sucesso de vendas. - Tenho certeza que são. Mas não, obrigada. A estrada levava montanha abaixo, em direção ao mar azul, e agora eu estava realmente no campo, numa fazenda de prados pastados por cabeças de gado de aspecto dócil. Violetas selvagens e prímulas floresciam nas sebes viçosas, e o sol brilhou naquele instante, transformando a grama espessa em verde-esmeralda. Fiz uma curva e avistei os portões brancos entre duas muretas de pedra; a entrada de carros fazia uma curva e sumia de vista, e altas sebes de olmeiros inclinavam-se empurradas pela fúria implacável dos ventos. Não consegui enxergar a casa. Parei diante dos portões abertos e olhei para a entrada de carros, sentindo minha coragem esvair-se de mim como a água de uma banheira cuja tampa fora retirada do ralo. Não conseguia imaginar o que fazer nem o que dizer, caso conseguisse chegar à casa. Minha mente estava, inesperada e compassivamente, voltada para mim mesma. De dentro da propriedade, mesmo sem ver, ouvi o ronco do motor de um carro vindo a alguma velocidade pela estrada, em minha direção. Quando o carro se aproximou, um modelo esporte antigo, com a capota abaixada, saí da frente para que ele passasse e subisse a montanha, tomando o mesmo caminho pelo qual eu havia chegado, mas ainda pude avistar o motorista e o grande setter sentado no banco traseiro, com um ar delirante e satisfeito de qualquer cão sendo levado para um passeio em carro aberto. Pensei não ter sido notada, mas estava enganada. O carro freou em seguida fazendo os pneus cantarem e uma chuva de pedrinhas voarem das rodas traseiras. E então ele deu marcha à ré e foi voltando, com menos velocidade, ao

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lugar onde eu estava, até que parou e seu motor foi desligado. Eliot Bayliss, com um dos braços apoiados sobre o volante, observou-me por sobre o banco vazio do passageiro. Usava um casaco de pele de carneiro e sua expressão era de contentamento ou talvez de perplexidade. - Olá - disse ele. - Bom dia. - Senti-me uma tola em meu casaco velho, com o vento soprando os cabelos sobre meu rosto. Tentei afastá-los da cara. - Parece perdida. - Não, não estou. Ele continuou a me olhar fixamente, franzindo levemente a testa. - Eu a vi na noite passada, não foi? No Anchor? Com Joss. - Foi. - Está procurando por ele? Pelo que sei, ainda não chegou. Isto é, se ele decidir vir hoje. - Não. Quero dizer, não estou procurando por ele. - Então por quem está procurando? - perguntou Eliot gentilmente. - Eu... eu queria ver o velho Sr. Bayliss. - É um pouco cedo para isso. Ele não costuma aparecer antes do meio-dia. - Ah. Eu não havia pensado nisso. Devo ter externado em meu rosto minha decepção, pois ele continuou a falar do mesmo modo gentil e amistoso: - Talvez eu possa ajudá-la. Sou Eliot Bayliss. - Eu sei. Quero dizer... Joss me contou ontem à noite. Uma pequena ruga surgiu entre suas sobrancelhas. Naturalmente, ele estava intrigado com meu relacionamento com Joss. - Por que quer ver meu avô? - E, como não respondi, ele inclinou-se para abrir a porta do carro e disse, com uma certa autoridade: - Entre. Entrei no carro e fechei a porta. Pude sentir seu olhar sobre mim, sobre meu casaco surrado e o jeans remendado. O cachorro inclinou-se para a frente e farejou minha orelha; seu focinho estava frio, e pus o braço direito sobre meu ombro esquerdo para acariciar sua orelha longa e aveludada. - Como ele se chama? - perguntei. - Rufus. Rufus, o Vermelho. Mas isso não responde à minha pergunta, responde? Fui salva por mais uma interrupção. Outro carro. Mas dessa vez era o furgão dos Correios, sacolejando alegremente estrada abaixo. O furgão freou e o carteiro baixou o vidro da janela para falar com Eliot de maneira jovial: - Como posso entrar e entregar a correspondência se você estaciona o carro na frente do portão? - Desculpe - disse Eliot, inabalável, saindo do carro para pegar a correspondência e os jornais das mãos do carteiro. - Eu levo. Vai economizar a viagem. - Ótimo - disse o carteiro. - Seria bom se todos fizessem meu trabalho por mim. - E, com um sorriso e um aceno, continuou seu caminho, provavelmente rumo a alguma fazenda distante. Eliot entrou no carro novamente. - Bem - disse ele, sorrindo para mim. - O que vou fazer com você? Eu mal o ouvi. A pilha de cartas foi deixada em seu colo e por cima havia um envelope aéreo com o selo de Ibiza, endereçado ao Sr. Grenville Bayliss. A caligrafia pontiaguda era inconfundível. Um carro é um bom lugar para confidências. Não tem telefone e não se é interrompido inesperadamente; então falei: - Essa carta. A que está em cima. É de um homem chamado Otto Pedersen, que mora em Ibiza. Eliot, franzindo a testa, pegou o envelope nas mãos. Virou a carta e leu o nome de Otto. Olhou para mim. - Como sabia? - Conheço sua letra. Eu o conheço. Ele está escrevendo para... para seu avô, para lhe contar sobre a morte de Lisa. Ela morreu há cerca de uma semana. Ela morava com Otto em Ibiza. - Lisa. Lisa Bayliss? - Sim. Irmã de Roger. Sua tia. Minha mãe. - Você é filha de Lisa? - Sou. - Virei o rosto e olhei-o nos olhos. - Sou sua prima. Grenville Bayliss é meu avô também. Seus olhos tinham uma cor estranha, verde-acinzentados, como seixos lavados pela correnteza de um riacho. Não demonstraram surpresa nem prazer, apenas me encararam sem expressão. Finalmente ele disse: - Ora, por essa eu não esperava.

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Não era bem isso que eu desejava ouvir. Ficamos em silêncio, pois eu não conseguia pensar em nada para dizer, e então, como se tomasse uma decisão súbita, ele jogou a pilha de cartas em meu colo, ligou o carro e fez a volta para entrar no portão da casa. - O que está fazendo? - perguntei. - O que você acha? Levando-a para casa, é claro. Casa. Boscarva. Fizemos uma curva na estradinha da propriedade e lá estava ela, esperando por mim. Nem pequena, nem grande demais. Uma casa de pedras acinzentadas, escondida por um telhado rasteiro e cinza, uma varanda em semicírculo com a porta aberta aos raios solares, e lá dentro pude ver o piso de lajotas vermelhas, uma série de vasos de flores, gerânios cor-de-rosa, vermelhos e fúcsia. Acima, uma cortina esvoaçava numa das janelas do segundo andar, e a fumaça subia alto pela chaminé. Ao descermos do carro, o sol saiu de trás de uma nuvem e, capturado pelos braços abertos da casa protegida do vento norte, subitamente o tempo ficou quente demais. - Venha - disse Eliot, seguindo o caminho, com o cachorro atrás de si. Passamos pela varanda e entramos no saguão escuro revestido de papel e iluminado pela enorme janela na curva da escadaria. Eu havia imaginado Boscarva como uma casa antiga, triste e nostálgica, cheia de velhas lembranças. Mas ela não se parecia com nada disso. Era vigorosa e transpirava vivacidade. Sobre a mesa, havia papéis, um par de luvas de jardinagem e uma coleira de cachorro. Por detrás de uma das portas chegavam os sons de vozes da cozinha e o estardalhaço da louça de cerâmica. No segundo andar, um aspirador de pó zumbia. E havia um cheiro de pedra escovada, piso velho encerado e anos e anos de cinzas de lenha. Eliot parou no primeiro degrau da escadaria e chamou: - Mamãe! -, mas, como não houve resposta, apenas o barulho do zumbido do aspirador de pó, ele disse: - É melhor vir comigo. Voltamos ao saguão e passamos por uma porta que dava para uma sala de estar comprida e de teto baixo, revestida em tons pastel e com sensível aroma de flores primaveris no ar. Na lareira entalhada em pinho e adornada com ladrilhos holandeses o fogo crepitava jovialmente, e três janelas altas, com cortinas de seda bege, davam para uma varanda lajeada; além da balaustrada, enxerguei a linha azul do mar. Permaneci no meio dessa sala charmosa, enquanto Eliot Bayliss fechava a porta e dizia: - Bem, aqui está. Por que não tira o casaco? Fiz isso. Estava muito quente. Coloquei-o sobre uma cadeira onde ele ficou parecendo uma enorme criatura morta. - Quando chegou aqui? - ele perguntou. - Ontem à noite. Peguei o trem em Londres. - Você mora em Londres? - Moro. - E nunca esteve aqui antes? - Nunca. Eu não sabia nada sobre Boscarva. Não sabia que Grenville Bayliss era meu avô. Minha mãe nunca me contou até a noite em que morreu. - Onde entra Joss nessa história? - Eu... - Era complicado demais para explicar. - Eu o conheci em Londres. Aconteceu de ele estar na estação quando meu trem chegou. Foi uma coincidência. - Onde está hospedada? - Na casa da Sra. Kernow, em Fish Lane. - Grenville está velho. E doente. Sabe disso, não sabe? - Sei. - Acho que... essa carta de Otto Pedersen... deveríamos ter cuidado. Talvez minha mãe fosse a pessoa ideal para... - Sim, é claro. - Foi sorte você ter visto a carta primeiro. - Foi. Achei mesmo que ele fosse escrever. Mas estava com medo de ter que dar a notícia a todos vocês. - E agora ele já fez isso por você - ele sorriu, e de repente pareceu mais novo... desmentindo os olhos de cor estranha e os cabelos grossos e prateados. - Por que não espera aqui enquanto vou tentar achar minha mãe e apresentá-la a você? Gostaria de uma xícara de café? - Se não for incômodo. - Incômodo algum. Vou pedir a Pettifer. - Ele abriu a porta atrás de si. - Fique à vontade. A porta se fechou suavemente, e ele desapareceu. Pettifer. "Pettifer também esteve na Marinha, ele cuidava de meu pai e às vezes servia de motorista, e a Sra. Pettifer era a cozinheira." Assim dissera minha mãe. E Joss me dissera que a Sra. Pettifer havia morrido. Mas, no passado, ela levava Lisa e o irmão até a cozinha e preparava torradas com manteiga. Fechava as cortinas contra a escuridão e a chuva e fazia as crianças sentirem-se seguras e queridas. Sozinha, observei a sala onde me deixaram esperando. Notei um armário envidraçado cheio de tesouros orientais, inclusive algumas pequenas peças de jade, e fiquei imaginando se seriam as que minha mãe mencionara. Olhei à

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minha volta, imaginando que talvez pudesse encontrar o espelho veneziano e a pequena papeleira, mas minha atenção foi desviada para o quadro sobre o console da lareira e fui até lá olhá-lo de perto, esquecendo-me do restante. Era o retrato de uma moça, vestida como nos anos 1930, magra, de seios achatados, vestido branco ajustado nos quadris, e os cabelos castanhos e curtos revelavam com encantamento o pescoço comprido, inocente e esguio. Ela posava sentada num banco alto, segurando uma única rosa de caule comprido, mas não era possível ver seu rosto, pois ela não estava olhando para o pintor, e sim por alguma janela que captava o brilho do sol. O efeito das cores era rosa e dourado, com o raio de sol infiltrando-se através do tecido fino do vestido branco. Era encantador. A porta se abriu de repente atrás de mim, e eu me virei, sobressaltada, enquanto um senhor de idade entrava na sala, imponente, calvo, um tanto curvado e caminhando com cautela. Ele usava óculos sem aro e uma camisa listrada com um colarinho engomado e fora de moda e, sobre ela, um avental branco de açougueiro. - É você a jovem que deseja uma xícara de café? Ele possuía uma voz profunda e lúgubre que, somada à sua aparência sombria, o fazia parecer um legítimo agente funerário. - Sim, se não for muito trabalho. - Leite e açúcar? - Sem açúcar. Só com um pouco de leite. Eu estava olhando o retrato. - Sim. É muito bonito. Seu nome é "A Dama Segurando a Rosa". - Não dá para ver seu rosto. - Não. - Foi o meu... Foi o Sr. Bayliss quem o pintou? - Ah, foi. O quadro estava na Academia, podia ter sido vendido centenas de vezes, mas o comandante nunca se desfaria dele - enquanto falava, retirou os óculos cuidadosamente e olhou-me com atenção. Seus olhos cansados eram pálidos. Ele disse: - Por um momento, quando falou, a se-nhorita me lembrou uma pessoa. Mas você é jovem demais e ela deve estar na meia-idade agora. E seu cabelo era preto como o melro. Isso era o que a Sra. Pettifer costumava dizer. Preto como a asa de um melro. - Eliot não lhe contou? - perguntei. - O que o Sr. Eliot não me contou? - O senhor está falando de Lisa, não está? Sou Rebecca. A filha dela. - Ora. - Um pouco hesitante, ele colocou de volta seus óculos. Um brilho tênue de prazer transpareceu em suas feições sombrias. - Então eu estava certo. Nunca me engano nesse tipo de coisa. - Ele se aproximou, estendendo a mão calejada.-É um grande prazer conhecê-la... Um prazer que pensei que nunca fosse ter. Achei que nunca viria. Sua mãe veio com você? Desejei que Eliot tivesse tomado as coisas um pouco mais fáceis para mim. - Minha mãe morreu. Morreu na semana passada. Em Ibiza. É por isso que estou aqui. - Ela morreu. - Seus olhos se umedeceram. - Sinto muito. Sinto muitíssimo. Ela deveria ter voltado. Deveria ter voltado para casa. Todos nós queríamos vê-la novamente. -Tirou do bolso um lenço e assoou o nariz. - E quem - perguntou ele - vai contar ao comandante? - Eu acho... que Eliot foi buscar a mãe. Sabe, há uma carta para o meu avô que chegou essa manhã. Veio de Ibiza, do homem que... tomava conta de minha mãe. Mas se o senhor acha que não é uma boa idéia... - O que eu acho não fará diferença - disse Pettifer. - E quem quer que conte ao comandante não irá amenizar sua dor. Mas vou lhe dizer uma coisa: sua presença irá ajudar muito. - Obrigada. Ele assoou o nariz novamente e guardou o lenço. - O Sr. Eliot e a mãe... bem, essa não é a casa deles. Mas ou o comandante e eu nos mudávamos para High Cross ou eles se mudavam para cá. E eles não estariam aqui se o médico não tivesse insistido. Eu disse a ele que nós poderíamos dar conta de tudo, o comandante e eu. Estivemos juntos todos esses anos... Mas não somos mais jovens como antes, e o comandante teve esse enfarte... - É, eu sei... - E, depois que a Sra. Pettifer faleceu, não ficou ninguém para cozinhar. Não tem problema, eu mesmo posso cozinhar, mas ocupa um bom tempo tomar conta do comandante, e eu não gostaria de vê-lo andando pela casa mal ajambrado. - Não, é claro que não... Fui interrompida pela porta batendo. Uma voz masculina e forte chamou: - Pettifer? - E Pettifer disse: - Com licença um instante, senhorita. - E saiu, no intuito de investigar, deixando a porta aberta.

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- Pettifer! Ouvi Pettifer dizer, ao que pareceu, com grande satisfação: - Olá, Joss. - Ela está aqui? - Quem? - Rebecca. - Sim, está aqui, na sala de estar... Eu estava justamente indo lhe servir uma xícara de café. - Traga duas, por favor, meu bom amigo. Preto e forte, para mim. Seus passos aproximaram-se da sala e, em seguida, ele estava ali, emoldurado no batente da porta, pernas longas, cabelos negros e, é claro, com raiva. - O que, diabos, acha que está fazendo? - inquiriu. Senti meu pêlo se eriçar, como um cão desconfiado. Sua casa, Eliot havia dito. Aquela era Boscarva, minha casa, e se eu estava ali ou não, Joss não tinha nada a ver com isso. - Não sei do que está falando. - Fui buscá-la e a Sra. Kernow me disse que você já havia saído. - E daí? - Eu lhe disse para me esperar. - Decidi não esperá-lo. Ele fez silêncio, enfurecido, mas, por fim, pareceu aceitar o fato inevitável. - Alguém já sabe que você chegou? - Encontrei Eliot no portão e ele me trouxe até aqui. - Onde ele foi? - Procurar a mãe. - Já viu mais alguém? Grenville? - Não. - Alguém já contou a Grenville sobre sua mãe? - Chegou uma carta, essa manhã, de Otto Pedersen. Mas acho que ele ainda não leu. - Pettifer deverá levá-la para ele. Pettifer deverá estar lá quando ele a ler. - Pettifer não parece pensar assim. - Eu penso assim - completou Joss. Sua interferência, aparentemente afrontosa, deixou-me sem palavras, mas enquanto ficamos olhando um para o outro através da sala lindamente acarpetada e por sobre o grande jarro de narcisos perfumados, vieram os sons das vozes e dos passos pelas escadas, em nossa direção. Ouvi uma voz feminina dizer: - Na sala de estar, Eliot? Joss murmurou alguma coisa que me pareceu inconveniente e dirigiu-se para a lareira, ficando de costas para mim e de frente para as chamas. No minuto seguinte, Mollie apareceu à porta, hesitou por um instante e então caminhou em minha direção com a mão estendida. - Rebecca - (Finalmente uma calorosa acolhida.) Eliot veio atrás dela e fechou a porta. Joss nem mesmo se virou. Imaginei que Mollie deveria estar com mais de 50 anos agora, mas era difícil acreditar. Ela era rechonchuda e bonita, os cabelos louro-claros estavam charmosamente penteados, seus olhos eram azuis, a pele fresca e levemente salpicada de sardas, o que ajudava a criar uma impressionante ilusão de mocidade. Usava uma saia azul, um cardigã e uma blusa de seda creme; as pernas eram finas e bem torneadas, as unhas estavam lindamente pintadas de rosa-claro e, nas mãos, ela trazia muitos anéis e pulseiras de ouro. Perfumada, imaculadamente preservada, ela me fazia lembrar uma gatinha charmosa enroscada bem no centro de sua almofada de cetim. - Espero que isso não seja um choque para vocês - comentei. - Não, não é um choque, é uma surpresa. E sua mãe... Sinto tanto. Eliot me contou da carta... Nesse instante, Joss saiu de frente da lareira. - Onde está a carta? Mollie virou-se para ele, admirada, e era impossível dizer se só então ela o notara ou se já o tinha visto e simplesmente decidira ignorá-lo. - Joss. Achei que não viesse hoje. - Acabei de chegar. - Já conhece Rebecca, eu suponho.

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- Sim, já nos conhecemos - ele hesitou, parecendo fazer um esforço enorme para se recompor. Então sorriu, arrependido, virou-se para apoiar o ombro largo contra o aparador da lareira e se desculpou. - Perdão. Sei que não é da minha conta, mas a carta que chegou essa manhã... onde está? - Em meu bolso - respondeu Eliot, falando pela primeira vez. - Por quê? - Eu apenas acho que Pettifer deveria dar a notícia ao velho. Acho que Pettifer é a única pessoa que poderia fazer tal coisa. Houve uma pausa. Em seguida, Mollie quebrou o silêncio e virou-se para o filho. - Ele tem razão - admitiu ela. - Grenville é mais chegado a Pettifer. - Por mim, está tudo bem - disse Eliot, porém seu olhar, que se fixara em Joss, estava frio de antagonismo. Eu não o culpava, estava do seu lado. Joss tornou a dizer: - Perdão. Mollie foi educada. - Não tem de quê. É muita gentileza sua estar preocupado. - Não é da minha conta mesmo - disse Joss. Eliot e sua mãe aguardaram pacientemente. Por fim, ele enfiou a carapuça, tirou o ombro do console da lareira e disse: - Bem, se me dão licença, preciso trabalhar. - Almoça conosco? - Não, só poderei ficar por algumas horas. Tenho que voltar para a loja. Vou comer um sanduíche no bar. - Deu um sorriso amável para nós todos, sem deixar pistas de seu comportamento anterior. - Obrigado assim mesmo. E saiu, modesto, arrependido, aparentemente colocando-se em seu lugar. Mais uma vez, como um jovem trabalhador, um empregado, com um trabalho a fazer.

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- Deve desculpá-lo. Ele nem sempre é o mais diplomático dos homens - disse Mollie. Eliot soltou uma breve gargalhada. - Essa é a declaração mais branda do ano. Ela virou-se para mim a fim de explicar: - Ele está restaurando parte da mobília para nós. Está velha e precisa de conserto. É um carpinteiro maravilhoso, mas nunca sabemos quando vai chegar nem quando vai sair! - Um dia - disse seu filho - vou perder a paciência com ele e socar seu nariz até entrar na nuca. - E sorriu charmosamente para mim, piscando, encobrindo a ferocidade de suas palavras. - Também tenho que ir. Já estava atrasado antes e agora estou mais ainda. Rebecca, você me dá licença? - Claro. Sinto muito, acho que a culpa é minha. E obrigada por ter sido tão gentil... - Estou feliz por ter parado. Eu já devia saber como era importante. Vejo-a mais tarde... - Sim, claro - disse Mollie apressadamente. - Ela não vai embora agora que nos encontrou. - Bem, vou deixar vocês duas para que se conheçam melhor... -Virou-se em direção à porta, mas sua mãe o interrompeu gentilmente. - Eliot. - Ele se virou. - A carta. - Ah, sim, claro. - Tirou do bolso a carta fatídica, já um pouco amassada, e a entregou a Mollie. - Não permita que Pettifer faça disso um carnaval. Ele é um velho sentimental. - Não permitirei. Sorriu novamente e despediu-se de nós duas: - Nós nos veremos no jantar. E se foi, assobiando para o cachorro enquanto sumia no corredor. Ouvimos a porta da frente abrir e fechar e o ronco do motor do carro. Mollie virou-se para mim. - Então - disse ela - venha sentar-se à lareira e contar-me tudo sobre você. E assim o fiz, como já havia contado a Joss e à Sra. Kernow; porém, dessa vez, eu me vi gaguejando um pouco ao falar que Otto e Lisa viviam juntos, como se tivesse vergonha disso, coisa que nunca sentira antes. Enquanto falava e Mollie escutava, tentei imaginar por que motivo minha mãe a detestava tanto. Talvez fosse apenas uma antipatia natural. Era óbvio que elas nunca tiveram nada em comum. E minha mãe nunca foi muito tolerante com mulheres que a aborreciam. Já com os homens era diferente. Os homens eram sempre divertidos. Mas, para minha mãe, as mulheres tinham que ser muito especiais para que ela tolerasse sua companhia. Não, não poderia ter sido culpa de Mollie, de modo algum. Sentada ao seu lado, perto da lareira, resolvi que seríamos amigas e que talvez isso pudesse compensar, de uma maneira menor, a falta de confiança que Lisa demonstrara a ela. - E por quanto tempo vai poder ficar em Porthkerris? Seu emprego... você terá que voltar? - Não. Eles me deram uma licença por tempo indefinido.

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- Vai ficar aqui conosco? - Bem, aluguei um quarto na casa da Sra. Kernow. - Sim, mas ficaria muito melhor aqui. Não há muito espaço, esse é o único problema; terá que dormir lá em cima, no sótão, mas é um quartinho adorável, se não se incomodar com o teto inclinado e souber como não machucar a cabeça. Veja, Eliot e eu estamos no quarto de hóspedes e, além disso, minha sobrinha está passando uns dias comigo. Talvez você faça amizade com ela. Será bom para ela ter alguém jovem por aqui. Imaginei onde estaria a tal sobrinha. - Quantos anos ela tem? - Só 17. É uma idade difícil e acho que a mãe dela pensou que seria uma boa idéia se ela saísse de Londres por um tempo. Eles moram lá, sabe, e ela tem uma porção de amigas, e lá há tanta coisa para se fazer... - Estava com dificuldade para achar as palavras exatas. - De qualquer forma, Andréa ficará aqui por uma ou duas semanas para mudar um pouco de ares, mas suponho que esteja entediada. Imaginei meus 17 anos, colocando-me no lugar de Andréa, hospedando-me naquela casa aconchegante, recebendo toda a atenção de Mollie e Pettifer, com o mar e os penhascos à minha frente, as campinas convidando-me para longas caminhadas e as ruelas tortuosas e secretas de Porthkerris esperando para serem exploradas. Conhecer tudo aquilo teria sido o paraíso, impossível me sentir entediada. Fiquei pensando se eu e a sobrinha de Mollie teríamos alguma coisa em comum. - Claro - continuou ela -, como você já deve saber, eu e Eliot estamos aqui apenas porque a Sra. Pettifer morreu e os dois velhos não podem ficar sozinhos. Temos a Sra. Thomas, que vem todas as manhãs para ajudar nos afazeres da casa, mas eu faço a comida e mantenho o lugar o mais limpo e arrumado que posso. - As flores são adoráveis. - Não suporto uma casa sem flores. - E a sua casa? - Minha querida, está vazia. Terei que levá-la a High Cross um dia desses para mostrá-la a você. Comprei um par de chalés antigos logo depois da guerra e os reformei. Embora não devesse dizer isso, a casa é muito charmosa. E, é claro, bastante conveniente para a oficina de Eliot; de qualquer modo, morando aqui, ele está permanentemente viajando. - Acredito que sim. Ouvi passos vindo do corredor novamente; em seguida a porta se abriu e Pettifer aproximou-se, cautelosamente, carregando uma bandeja repleta de delícias do café-da-manhã, inclusive um grande e fumegante jarro de prata. - Oh, Pettifer, obrigada... Ele se aproximou e parou, sustentando o peso da bandeja, e Mollie levantou-se para pegar um banco, colocando-o com agilidade sob a bandeja para que o velho pudesse baixá-la antes que tudo fosse ao chão. - Esplêndido, Pettifer. - Uma das xícaras era para Joss. - Ele está lá em cima, trabalhando. Deve ter esquecido do café. Não tem problema, beberei por ele. E Pettifer... - ele endireitou as costas lentamente, como se todas as suas juntas envelhecidas doessem. Mollie pegou a carta de cima do console da lareira, onde a havia colocado por segurança. -Nós achamos, todos nós, que talvez fosse melhor se você contasse ao comandante sobre sua filha. Seria melhor, imaginamos, se a notícia viesse de você. Importa-se? Pettifer pegou o fino envelope azul. - Não, madame. Farei isso. Estava justamente indo acordar o comandante e arrumá-lo. - Seria muita gentileza sua, Pettifer. - Tudo bem, madame. - E diga a ele que Rebecca está aqui. E que ela vai ficar. Teremos que fazer a cama no sótão, mas acho que ela ficará bem confortável. Novamente, um brilho iluminou o rosto de Pettifer. Fiquei imaginando se ele já havia sorrido alguma vez, ou se suas feições tinham sucumbido permanentemente àquelas linhas lúgubres, e fosse fisicamente impossível para ele expressar alegria. - Fico feliz que vá ficar - ele disse. - O comandante vai gostar disso. Quando ele saiu, eu disse: - Você deve ter muito o que fazer. Não seria melhor eu deixá-la à vontade? - Você terá que buscar suas coisas na casa da Sra. Kernow. Como poderíamos resolver isso? Pettifer poderia levá-la, mas ele está ocupado com Grenville agora, e eu tenho que falar com a Sra. Thomas para arrumar seu quarto e então começar a pensar no almoço. O que vamos fazer? - Eu não fazia idéia. Certamente eu não poderia carregar

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sozinha toda a minha bagagem montanha acima. Mas, felizmente, Mollie respondeu à sua própria pergunta: - Já sei. Joss. Ele poderá levá-la e trazê-la de volta em sua caminhonete. - Mas Joss não está trabalhando? - Ah, vamos interrompê-lo por essa vez. Não é sempre que lhe pedimos um favor. Estou certa de que ele não vai se importar. Venha, vamos procurá-lo. Pensei que ela fosse me levar a alguma dependência esquecida ou um galpão onde encontraríamos Joss, cercado por aparas de madeira e o cheiro de cola quente, mas, para minha surpresa, ela guiou-me para cima, e eu me esqueci de Joss, pois aquelas eram minhas primeiras impressões de Boscarva, onde minha mãe fora criada, e eu não queria perder nada. A escada não tinha tapete, as paredes eram revestidas de madeira até a metade e de papel escuro da metade para cima e estavam repletas de pinturas a óleo. Tudo contrastava com a sala de estar elegante e feminina do andar de baixo. No segundo andar, o corredor dava acesso tanto para a esquerda quanto para a direita, havia uma cômoda alta de nogueira envernizada e estantes apinhadas de livros; continuamos a subir. O último piso era revestido de forro vermelho e tinta branca, e mais uma vez o corredor dava acesso aos dois lados; Mollie virou à direita. Ao final desse corredor, havia uma porta aberta e, de dentro, vieram as vozes de um homem e de uma moça. Ela pareceu hesitar e então apertou o passo, determinada. De costas, subitamente, sua aparência era altiva. Eu a seguia, e ela atravessou o corredor e a porta, e demos num sótão que havia sido transformado, com a ajuda de uma clarabóia, num ateliê ou sala de bilhar; num dos cantos havia um sofá de assento de couro e braços e pés de carvalho maciço. Todavia, agora, esse quarto frio e arejado estava sendo utilizado como oficina, e Joss estava no centro, cercado de cadeiras, molduras quebradas, uma mesa com o pé torto, alguns retalhos de couro, ferramentas, pregos e uma geringonça a gás, na qual repousava um recipiente de cola de aparência repugnante. Enrolado num surrado avental azul, ele estava adaptando, cuidadosamente, uma linda peça de couro escarlate ao assento de uma das cadeiras, e enquanto trabalhava era entreíido por uma companhia feminina e jovem, que se virou distraída para ver quem adentrara o quarto e, conseqüentemente, interrompera o agradável tête-a-tête. Mollie chamou: - Andréa! - E então, menos rispidamente: - Andréa, eu não sabia que estava aqui. - Ah, estou aqui há horas. - Já tomou o café-da-manhã? - Não estou com vontade. - Andréa, esta é Rebecca. Rebecca Bayliss. - Ah, sim. - Ela desviou o olhar para mim. - Joss estava me falando a seu respeito. - Como vai? - disse eu. - Ela era bastante jovem e magra, e sua cabeleira comprida e sedosa escorria pelo rosto; era bonita, exceto pelos olhos pálidos e ligeiramente protuberantes, não melhorados pela enorme e deselegante quantidade de rimei. Vestia, inevitavelmente, jeans e uma camiseta de algodão não completamente limpa e que revelava, sem sombra de dúvida, o fato de que ela não usava nada por baixo. Calçava um par de sandálias que pareciam botas ortopédicas, pintadas de verde e roxo. Em torno do pescoço trazia um cadarço de bota com uma pesada cruz de prata num vago estilo céltico. Andréa, pensei, tão entediada em Boscarva. Fiquei incomodada com o fato de ela e Joss estarem falando a meu respeito. Tentei imaginar o que ele lhe teria dito. Ela não se mexeu, permaneceu na mesma posição em que estava, com as pernas escarranchadas, apoiadas numa velha e pesada mesa de mogno. - Oi! - disse ela. - Rebecca vai ficar aqui - Mollie os informou. Joss olhou para ela, a boca cheia de tachas, os olhos brilhando de interesse e um cacho do cabelo negro caindo sobre a testa. - Onde ela vai dormir? - perguntou Andréa. - Pensei que a casa estivesse lotada. - No quarto do corredor- respondeu a tia asperamente. - Joss, poderia me fazer um favor? - Ele cuspiu as tachas na palma da mão e levantou-se, ajeitando o cabelo para trás com o punho. - Pode levá-la agora à cidade e avisar a Sra. Kernow que ela vai ficar aqui, depois ajudá-la com as malas e trazê-la de volta a Boscarva? Seria muito inconveniente? - De modo algum - respondeu Joss, mas o rosto de Andréa assumiu uma expressão de tédio e resignação. - É uma amolação, sei disso, você está ocupado, mas seria de muita ajuda para mim... - Não há problema. - Joss deixou de lado o pequeno martelo e começou a desatar o nó do avental. Ele me encarou. -Estou ficando acostumado a levar Rebecca para lá e para cá. Andréa bufou - se de raiva ou impaciência era impossível dizer -, levantou-se e saiu do estúdio, deixando a impressão de que tivemos sorte de escapar sem uma monumental batida de porta.

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LÁ ESTAVA EU DE VOLTA ao ponto onde havia começado, com Joss, apertada na pequena caminhonete caindo aos pedaços. Saímos de Boscarva em silêncio, pelo terreno em construção do Sr. Padlow e pelo declive da montanha que dava acesso à cidade. Joss quebrou o silêncio. - Então tudo deu certo. - Deu. - Gosta de sua família? - Ainda não conheci todo mundo. Não conheci Grenville. - Vai gostar dele - ele disse. Mas a maneira como falou soava: Vai gostar dele. - Gostei de todos. - Que bom. Olhei para ele. Usava sua jaqueta de brim azul e um suéter de malha azul-marinho. Seu semblante parecia fleumático. Achei que seria fácil irritar-me com ele. - Fale-me de Andréa - pedi. - O que quer saber sobre ela? - Sei lá. Qualquer coisa. - Ela tem 17 anos e acha que está apaixonada por um rapaz que conheceu na Escola de Artes, e seus pais não aprovam o namoro, por isso ela veio passar uma temporada com a tia Mollie. E anda entediada. - Parece que ela o fez seu confidente. - Não há mais ninguém para conversar naquela casa. - Por que ela não volta para Londres? - Porque ela só tem 17 anos. Não tem dinheiro. E acho que não tem coragem de desafiar os pais. - O que ela faz o dia inteiro? - Não sei. Não fico lá o dia inteiro. Parece que não acorda antes da hora do almoço e depois senta em frente à televisão. Boscarva é uma casa de velhos. Não se pode culpá-la por estar entediada. - Só os entediados ficam entediados - falei sem pensar. Essas palavras, certa vez, foram dirigidas a mim pela sábia e bem-intencionada diretora da escola. - Isso - observou Joss - soa inescrupulosamente hipócrita. - Não quis ser hipócrita. Ele sorriu. - Você nunca se sentiu entediada? - Ninguém que viveu com minha mãe se sentiria entediado. - Você pode ser uma dor-de-cabeça, mas nunca foi um tédio - ele citou. - Exatamente. - Ela deve ter sido ótima. Exatamente o meu tipo de mulher. - Era o que a maioria dos homens achava. Ao chegarmos a Fish Lane, a Sra. Kernow havia saído, mas Joss tinha uma chave. Entramos na casa e eu subi para pegar a mala e a mochila enquanto ele escrevia um bilhete para ela, explicando o que havia acontecido. - E como vou pagá-la? - perguntei assim que desci as escadas, com a mochila nas costas. - Resolvo isso da próxima vez que me encontrar com ela. Já lhe expliquei no bilhete. - Mas eu mesma posso pagar. - É claro que pode, mas me deixe fazer isso por você. -Joss pegou minha mala e tomou o rumo da porta, e não me pareceu oportuno argumentar com ele. Mais uma vez minhas coisas foram colocadas na parte traseira do automóvel e mais uma vez nos dirigimos para Boscarva, mas, dessa vez, Joss pegou a estrada da enseada. - Quero lhe mostrar minha loja... Quero dizer, vou apenas lhe mostrar onde fica. E se quiser entrar em contato comigo algum dia, saberá onde me encontrar. - Por que eu iria querer entrar em contato com você? - Sei lá. Pode precisar de algum sábio conselho; ou de dinheiro; ou apenas de diversão. Ali está ela, não há como se enganar. Era uma casa alta e estreita, localizada entre duas casas baixas e largas. Possuía três altos pavimentes com uma janela em cada andar, e o primeiro piso parecia estar em reforma, com as paredes por pintar e grandes círculos de cal espalhados sobre o vidro espelhado da janela da frente. Ao passarmos pela loja, com o carro sacolejando sobre o paralelepípedo, eu disse: - É bem localizada, vai pegar todos os turistas que vêm para cá gastar dinheiro. - É o que espero.

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- Quando poderei visitá-la? - Venha aqui na semana que vem. Vai estar mais ou menos pronta. - Certo. Semana que vem. - Combinado - disse Joss, enquanto virava a esquina da igreja. Ele engatou a segunda marcha na caminhonete e iniciamos nossa jornada montanha acima, acompanhados de um barulho parecido com o de um motor de motocicleta mal regulado. De volta a Boscarva, foi Pettifer quem, ouvindo que havíamos chegado, surgiu à porta da frente, enquanto Joss retirava minha bagagem do carro. - Joss, o comandante está no escritório. Pediu-me que levasse Rebecca até ele tão logo chegassem. Joss olhou-o. - Como ele está? Pettifer baixou a cabeça. - Não tão mal. - Está muito chateado? - Ele está bem... agora; deixe a mala que eu a levo para cima. - Não vai fazer nada disso - disse Joss, e, pela primeira vez, fiquei satisfeita com seu jeito mandão. - Eu levo isso lá para cima. Onde ela vai dormir? - No sótão... do outro lado da sala de bilhar, mas o comandante disse que queria vê-la assim que chegasse. - Sei disso - sorriu Joss -, e o tempo na Marinha são cinco minutos antecipados. Mas ainda dá para levar a moça ao seu quarto, por isso pare de se preocupar, velho amigo. Enquanto Pettifer ainda protestava, segui Joss pelos dois lances de escada que subira de manhã. Não se ouvia mais o ruído do aspirador de pó, mas havia no ar um cheiro de carneiro assado. Foi então que percebi que eu estava faminta e minha boca encheu-se de água. As pernas longas de Joss deixaram-me para trás, e quando cheguei ao quarto de teto inclinado, que agora era meu, ele havia colocado minhas malas no chão e estava abrindo a janela do sótão. Fui recepcionada por uma rajada de vento frio e salgado. - Venha ver a vista. Pus-me ao seu lado. Avistei o mar, os penhascos, o dourado das samambaias e os primeiros círios amarelos do arbusto. E, abaixo, ficava o jardim de Boscarva, o qual, por causa da balaustrada de pedra da varanda, não me foi possível avistar da janela da sala de estar. Ele fora construído sobre uma série de encostas que desciam junto com a montanha; ao fundo, encurralado num canto da parede do jardim, havia um chalé de pedra com telhas de ardósia. Não, não era um chalé, talvez fosse um estábulo, com um amplo sótão sobre ele. - O que é aquela casa? - perguntei. - É o ateliê - respondeu Joss. - Era lá que seu avô costumava pintar. - Não parece um ateliê. - Do outro lado parece. Toda a parede do lado norte é feita de vidro. Ele mesmo projetou o lugar, que foi construído por um pedreiro local. - Parece que está fechado. - E está. Fechado e trancado. Não é aberto desde que ele teve o enfarte e parou de pintar. Estremeci de repente. - Está com frio? - perguntou Joss. - Não sei. - Saí de perto da janela, desabotoei o casaco e joguei-o sobre a cama. O quarto era branco com tapete vermelho escuro. Havia um guarda-roupa embutido, estantes repletas de livros e uma bacia para lavar as mãos. Aproximei-me dela e joguei o sabonete na água morna. Sobre a bacia havia um espelho cujo reflexo revelou uma imagem desgrenhada e ansiosa. Percebi quanto eu estava nervosa por ter que me encontrar com Grenville pela primeira vez e como era importante ele ter uma boa impressão de mim. Sequei as mãos, abri a mochila e retirei uma escova de cabelo e um pente. - Ele foi um bom pintor, Joss? Acha que ele foi um bom artista? - Acho. Da escola antiga, é claro, porém magnífico. E um esplêndido colorista. - Puxei o elástico da ponta da trança, sacudi os cachos e voltei ao espelho para começar a escovar os cabelos. Sobre o reflexo do meu ombro, vi que Joss me observava. Ele ficou calado enquanto eu me arrumava e refazia a trança. Quando ajeitei as pontas, ele disse: - A cor é linda. Parece milho. Deixei a escova e o pente de lado. - Joss, não devemos deixá-lo esperando. - Quer que eu vá com você? - Por favor.

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Percebi então que era a primeira vez que eu lhe pedia ajuda. SEGUI-O ESCADA ABAIXO, pelo corredor e pela sala de visitas, até uma porta que ficava no fim do corredor. Joss a abriu e enfiou a cabeça pela fresta. - Bom dia - ele disse. - Quem está aí? Joss? Entre... - a voz tinha um tom mais agudo do que eu imaginava, como se fosse de um homem bem mais jovem. - Trouxe alguém que deseja vê-lo... Joss escancarou a porta e pôs as mãos nos meus ombros para, gentilmente, impelir-me a entrar. Era um quarto pequeno, com janelas que davam para um terraço pavimentado e um jardim secreto, aquecido pelos raios solares e fechado por sebes densas. O fogo crepitava na lareira; as paredes eram cobertas de telas e livros; e havia um modelo, sobre o console da lareira, de um velho navio da Marinha. O escritório continha ainda fotografias em porta-retratos de prata, uma mesa entulhada de papéis e revistas e um vaso chinês azul e branco repleto de narcisos. Quando entrei, ele já estava se levantando, com a ajuda de uma bengala, de uma poltrona de couro vermelho semivirada na direção da quentura do fogo. Fiquei impressionada com o fato de Joss não tê-lo ajudado a levantar-se, e comecei a dizer: - Oh, por favor, não precisa... Mas a essa altura ele já estava de pé e ereto, e um par de olhos azuis me examinava calmamente sob supercílios salientes e sobrancelhas brancas e arrepiadas. Percebi então que eu havia me preparado para encontrá-lo num estado patético: velho, fraco, talvez até um tanto trêmulo. Porém, Grenville Bayliss, aos 80 anos, possuía ainda uma aparência altiva. Bastante alto e aprumado, engomado e barbeado, cheirando levemente a rum aromático, ele conferia crédito a seu criado Pettifer. Usava um blazer azul-marinho de talhe militar, calça de flanela cinza com vincos e chinelos de veludo com suas iniciais bordadas em dourado. Sua pele era bastante bronzeada, sua calva era marrom como uma castanha, sob os ralos fios de cabelos brancos, e eu imaginei que ele ocupasse seu tempo naquele jardim secreto e ensolarado, lendo o jornal matutino, distraindo-se com um cachimbo, observando as gaivotas e as nuvens alvas navegando pelo céu. Olhamos um para o outro. Desejei que ele dissesse alguma coisa, mas ficou apenas me olhando. Torci para que ele gostasse do que estava vendo e fiquei aliviada por ter tido tempo de escovar o cabelo. E então ele disse: - Nunca estive numa situação como esta antes. Não estou bem certo de como devemos nos cumprimentar. - Eu poderia lhe beijar - eu disse. - Por que não faz isso? E assim fiz, dando um passo à frente e erguendo o rosto, e ele curvou o corpo ligeiramente para que meus lábios tocassem a pele macia e limpa de seu rosto. - Bem - ele disse -, por que não nos sentamos? Joss, venha se sentar conosco. Mas Joss se desculpou, dizendo que, se não iniciasse logo seu trabalho, não produziria nada o dia inteiro. Mas ficou tempo suficiente para ajudar o velho a sentar-se em sua poltrona e nos servir um cálice de sherry da garrafa que estava na mesinha. Por fim, falou: - Vou deixá-los a sós. Vão ter muito o que conversar -e, com um aceno jovial, ele se foi, fechando a porta suavemente atrás de si. Grenville disse: - Creio que você o conhece muito bem. Puxei uma cadeira a fim de poder sentar à sua frente. - Nem tanto. Mas ele tem sido muito atencioso e... -tentei imaginar a palavra certa - conveniente. Quero dizer, ele sempre está por perto quando precisamos. - E nunca quando não precisamos? - Não tinha certeza se concordava inteiramente com isso. - É um rapaz habilidoso. Está restaurando todos os meus móveis. - Sim, eu sei. - Um bom carpinteiro. Mãos divinas. - Colocou de lado o cálice de sherry e, mais uma vez, fiquei à mercê daquele olhar azul penetrante. - Sua mãe morreu. - Sim. - Há uma carta desse amigo Pedersen. Disse que tinha leucemia. - Sim. - Você o conhecia? Contei a ele sobre minha viagem a Ibiza e sobre a noite que passei com Otto e minha mãe. - Então ele era um homem decente? Bom para ela?

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- Era. Imensamente gentil. E a adorava. - Fico feliz que ela tenha terminado seus dias com alguém decente. A maioria dos companheiros que ela escolhia era simplesmente um bando de pulhas. Sorri diante do adjetivo antiquado. Lembrei-me dos criadores de ovelhas e do americano que usava camisas da Brooks Brothers e imaginei se gostariam de ser chamados de pulhas. Provavelmente nem saberiam o significado. - Acho que às vezes ela se deixava levar um pouco por eles - comentei. Um brilho iluminou seu olhar. - Parece que você adotou uma atitude bastante experiente. - Sim, adotei. Há muito tempo. - Ela era muito geniosa. Mas foi a garotinha mais encantadora que se pode imaginar. Eu a pintava com freqüência. Ainda guardo uma ou duas telas de Lisa quando criança. Vou pedir a Pettifer para procurá-las e mostrá-las a você. Mas depois ela cresceu e tudo mudou. Roger, meu filho, foi morto na guerra, e Lisa estava sempre em forte desavença com a mãe, fugia em seu carro e não voltava para casa à noite. Acabou se apaixonando por esse tal ator e foi isso. - Ela estava realmente apaixonada por ele. - Apaixonada - seu tom era de desgosto. - É uma palavra exagerada. A vida é muito mais do que estar apaixonado. - É, mas precisamos descobrir isso sozinhos. Ele fez uma careta engraçada. - Você já descobriu? - Não. - Quantos anos tem? - Vinte e um. - Você é madura para 21. E eu gosto do seu cabelo. Você não se parece com Lisa. Nem com seu pai. Você se parece com você mesma. Ele pegou o cálice de sherry, levando-o cuidadosamente à boca, sorveu a bebida e tornou a colocá-la sobre a mesinha ao lado da poltrona. Nessas ações cautelosas, ele realmente denunciava a idade e a falta de firmeza. - Ela deveria ter voltado para Boscarva. Teria sido bem-vinda a qualquer momento que retornasse. Por falar nisso, por que você não veio? - perguntou. - Eu não sabia a seu respeito até a noite que antecedeu a morte de minha mãe. - Era como se ela tivesse varrido o passado de sua vida. E quando a mãe dela morreu, e eu lhe escrevi para dar a notícia, ela não respondeu à minha carta. - Estávamos em Nova York naquele Natal. Ela só recebeu sua carta meses depois. E então lhe pareceu tarde demais para responder. Além disso, ela não era muito dada a escrever cartas. - Você a está defendendo. Não se ressente do fato de que ela a afastou deste lugar? Você poderia ter crescido aqui. Boscarva poderia ter sido seu lar. - Ela era minha mãe. É isso o que importa. - Você está discutindo comigo. Ninguém discute comigo hoje em dia. Nem mesmo Pettiffer. Não tem graça. -Mais uma vez, fiquei presa àqueles olhos azuis que insistiam em me encarar. - Já conheceu Pettifer? Servimos juntos na Marinha há um século. E Mollie e Eliot? Já os conheceu? - Já. - Eles não deveriam estar morando aqui, mas o médico insistiu. Não faz muita diferença para mim, mas é trabalhoso para o pobre Pettifer. E Mollie trouxe também uma sobrinha, uma menina desagradável de peitos caídos. Você já a viu? Tentei disfarçar o riso. - Já, por um instante. - Um instante pode ser tempo demais. E Boscarva? O que achou de Boscarva? - Adorei. O que cheguei a conhecer, adorei. - A cidade está crescendo montanha acima. Havia uma fazenda em seu topo, que pertencia a uma velha mulher chamada Sra. Gregory. Mas esse tal construtor a convenceu a vender-lhe a fazenda e agora eles terraplenaram os campos, deixando-os lisos como panquecas, e estão erguendo uma porção de casas. - Eu sei. Eu as vi. - Bom, elas não poderão ir muito longe, pois a fazenda nos fundos desse lugar e os campos dos dois lados da estrada me pertencem. Eu os comprei quando comprei Boscarva, em 1922. Você nem imagina como foi barato. Um pedaço de terra em volta da gente dá uma sensação de segurança. Lembre-se disso. - Vou me lembrar. Ele franziu a testa. - Qual é mesmo seu nome? Eu já esqueci.

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- Rebecca. - Rebecca. E como vai me chamar? - Não sei. Como quer que eu o chame? - Eliot me chama de Grenville. Pode me chamar assim também. Soa mais íntimo. - Está certo. Bebemos nosso sherry, radiantes, satisfeitos um com o outro. Em seguida, dos fundos da casa, veio o toque de um gongo. Grenville colocou de lado o cálice e, com certa dificuldade, pôs-se de pé. Corri a fim de abrir a porta para ele. Juntos, seguimos pelo corredor em direção à sala de jantar para o almoço em família.

7 O cansaço me abateu ao final daquele dia longo e agitado e, infelizmente, em meio ao jantar. No almoço, tivéramos uma refeição caseira e substanciosa, servida numa mesa redonda ao lado da janela que dá para o mar, na grande sala de jantar. A mesa fora coberta com uma toalha simples de tecido axadrezado, porcelanas e copos de uso diário; porém, o jantar foi totalmente diferente. A mesa comprida e lustrada, no meio da sala, foi disposta com cinco lugares, toalhinhas individuais de linho, prataria e copos que reluziam à luz das velas. Todo mundo, ao que parecia, deveria se trocar em homenagem ao aparente ritual noturno. Mollie apareceu vestindo um chambre brocado em tom de safira, o que realçava o colorido de seus olhos. Grenville usava um smoking de veludo desbotado, e Eliot, um terno claro de flanela, com o qual parecia elegante como um galgo. Até mesmo Andréa, provavelmente sob protestos, trajava um novo par de calças e uma blusa de bordado inglês, que parecia ter sido lavada e passada. Seu cabelo escorrido fora amarrado para trás com um pedaço de fita de veludo, mas a expressão em seu rosto continuava a ser de tédio. Não estando habituada a participar de jantares formais, eu trouxera, mesmo assim, um traje que, obviamente, seria repetido durante todo o tempo em que ficasse hospedada na casa, por não haver outro. Era um cafetã marrom de jérsei sedoso com bordados prateados na gola e nos punhos das mangas delicadas. Com ele, usei minhas pulseiras de prata e um par de brincos de argola, presentes de minha mãe em meu 21° aniversário. O peso das jóias, naquela ocasião, trouxera-me um estranho consolo e segurança, duas coisas que me eram fundamentais. Não queria jantar com minha nova família. Não queria ter que conversar, ouvir, ser inteligente e charmosa. Queria ir para a cama e comer algo simples como um ovo cozido. Preferia ficar sozinha. Mas vieram a sopa, o pato e o vinho tinto, que Eliot dispensou. O pato estava saboroso, e a sala, bastante aquecida. A medida que o jantar prosseguia, sentia-me cada vez mais estranha, dispersa, tonta. Tentei me concentrar nas

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chamas das velas à minha frente, mas, enquanto as olhava fixamente, elas se dividiam em várias, repetindo-se a si mesmas, e as vozes ao meu redor tornavam-se indistintas e ininteligíveis, como quando se ouve uma conversa ao longe. Instintivamente, afastei meu prato para trás, esbarrei no cálice de vinho e observei, horrorizada, o líquido vermelho espalhar-se por entre os estilhaços do vidro. Por um lado, o acidente foi uma bênção, uma vez que todos pararam de falar e olharam para mim. Devo ter ficado completamente pálida, pois Eliot levantou-se depressa e se pôs ao meu lado... - Você está bem? - Não, não muito bem. Desculpem... - respondi. - Oh, querida - Mollie jogou o guardanapo sobre a mesa e empurrou a cadeira para trás. Do outro lado, Andréa olhava para mim friamente interessada. - O copo... sinto muito... Da cabeceira da mesa, Grenville falou: - Não se incomode com o copo. Deixe o copo. A moça está exausta. Mollie, leve-a para cima e ponha-a na cama. Tentei protestar, mas não muito. Eliot puxou minha cadeira e me ajudou a levantar, segurando meus cotovelos com firmeza. Mollie abriu a porta e o ar frio do corredor irrompeu na sala - eu já me sentia melhor e não tinha mais, apesar de tudo, a sensação de que iria desmaiar. Ao passar por Grenville, eu disse pela terceira vez: - Sinto muito. Perdoe-me. Boa noite. - Inclinei-me para beijá-lo e deixei a sala. Mollie fechou a porta atrás de nós e subiu comigo. Ajudou a me despir e a me deitar, e eu adormeci antes mesmo de ela apagar a luz. DORMI 14 HORAS, acordando às 10 horas. Não acordava tarde assim havia anos, e, da minha janela, notei que o céu estava azul e que a luz fria do norte refletia nas paredes brancas e inclinadas do meu quarto. Levantei-me, tirei a camisola e entrei no banho. Vestida, eu me senti ótima, exceto pelo fato de estar morrendo de vergonha pela maneira como me portara na noite anterior. Torci para que nem todos pensassem que eu estava bêbada. Lá embaixo, finalmente encontrei Mollie numa pequena despensa, enchendo um vaso de flores com uma grande quantidade de primaveras-do-jardim cor-de-rosa e púrpura. - Dormiu bem? - ela perguntou imediatamente. - Como uma pedra. Sinto muito sobre ontem à noite... - Minha querida, você estava exausta. Desculpe por não ter notado antes. Quer tomar café? - Só café. Ela me levou até a cozinha e esquentou o café enquanto eu preparava algumas torradas. - Onde estão todos? - perguntei. - Eliot está na oficina, é claro, e Pettifer foi de carro até Fourbourne fazer umas compras para Grenville. - O que posso fazer? Deve haver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar. - Bem...-ela considerou Olhei para ela. Nessa manhã, ela estava usando um suéter de cashmere caramelo e uma saia justa de tweed. Imaculadamente arrumada, com cada fio de cabelo no lugar, ela quase não parecia humana. - Você poderia ir a Porthkerris buscar o peixe para mim. O peixeiro ligou para dizer que conseguiu alguns linguados, e pensei em prepará-los para o jantar. Posso lhe emprestar meu carro. Você dirige? - Dirijo. Mas será que não poderia ir andando? Gosto de caminhar e a manhã está tão linda... - Claro, se é o que deseja. Pode tomar o atalho pelos campos e pelo penhasco. Olhe... - ela pareceu subitamente inspirada. -... leve Andréa com você, ela poderá lhe mostrar o caminho e onde fica a peixaria. Além disso, por conta própria, ela nunca faz exercício algum, e uma caminhada lhe faria bem. - Ela insinuou que Andréa era uma grande preguiçosa. Particularmente, não apreciei a idéia de ter a companhia de Andréa por toda a manhã, contudo eu estava solidária a Molhe, encarregada daquela criatura desagradável, então falei que seguiria sua sugestão e, assim que terminei o café, saí à procura de Andréa, a quem Molhe vira pela última vez na varanda. Encontrei-a enrolada numa manta, deitada numa longa cadeira de palhinha, sob uma nesga de sol, olhando fixa e impacientemente a vista como um passageiro mareado num navio. - Quer descer a montanha até Porthkerris comigo? -perguntei a ela. Ela olhou para mim com espanto: - Para quê? - Mollie me pediu para ir buscar um peixe e eu não sei onde fica a peixaria. Além disso, está uma linda manhã, e ela achou que deveríamos descer pelo penhasco. Considerando minha sugestão, ela respondeu: - Está bem.

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Desvencilhou-se da manta e levantou-se. Usava o mesmo jeans sujo do dia anterior e um suéter preto-e-branco bem maior do que seu número, ultrapassando seus quadris estreitos. Voltamos à cozinha a fim de apanhar uma cesta, saímos pelo terraço e descemos o jardim íngreme na direção do mar. Nos fundos do jardim, os degraus de pedra seguiam sobre o muro, e Andréa, caminhando à minha frente, precisou parar para que eu examinasse o ateliê daquele novo ângulo. Estava, como Joss dissera, fechado e trancado, e, de alguma forma, abandonado; a enorme janela do lado norte tinha as cortinas cerradas de modo a não deixar nenhuma fresta aberta para algum transeunte curioso. Andréa ficou parada no topo do muro, seguindo-me com os olhos. - Ele não pinta mais - ela me disse. - Eu sei. - Não sei por quê. Não há nada de errado com ele. Ela pulou, o cabelo voando, de cima do muro e desapareceu completamente. Dei uma última olhada no ateliê e a segui por um caminho irregular e estreito que finalmente terminou, após passarmos por alguns arbustos na altura do peito e por um torniquete, para então continuarmos a descer o penhasco. Aquela era obviamente a caminhada favorita para os visitantes de Porthkerris. Havia bancos em mirantes cobertos, caixas de lixo e placas que sinalizavam os perigos de desmoronamento do penhasco. Andréa, mais do que depressa, foi até a beiradinha para olhar para baixo. As gaivotas rodopiavam e grasnavam, o vento sacudia violentamente seus cabelos e seu enorme suéter, e lá de baixo vinha o longínquo estrondo da arrebentação sobre as pedras. Ela abriu os braços e balançou o corpo ligeiramente para a frente, como se fosse se jogar do penhasco, mas assim que percebeu que eu não me importava nem um pouco se cometeria suicídio ou não, ela recuou, e continuamos nosso percurso, com ela à frente. Chegamos a uma curva de onde se podia avistar a cidade e as casas cinzentas e baixas que se aninhavam em torno da baía e subiam pela montanha íngreme até a charneca mais atrás. Passamos por um portão e entramos numa estrada de verdade, onde pudemos caminhar lado a lado. Andréa mostrou-se comunicativa. - Sua mãe morreu há pouco tempo, não foi? - Foi. - Tia Mollie me contou. Ela disse que sua mãe era leviana. Magoada, permaneci em silêncio. Teria sido uma vitória imediata para Andréa se eu tivesse dito outra coisa. - Ela não a conhecia de verdade. Fazia anos que não se viam. - Ela era leviana? - Não. - Tia Mollie disse que ela vivia com homens. Percebi então que Andréa não estava apenas tentando me alfinetar, ela era genuinamente curiosa e invejosa. - Ela era muito alegre, adorável e muito bonita também - comentei. Aceitou o que eu disse. - Onde você mora? - Em Londres. Num pequeno apartamento. - Mora sozinha ou com outra pessoa? - Não, moro sozinha. - Você costuma ir a festas ou coisas assim? - Sim, quando me convidam e quando aceito. - Você trabalha? Tem um emprego? - Trabalho numa livraria. - Nossa, que horror. - Eu gosto. - Onde conheceu Joss? Agora, pensei, estávamos voltando aos negócios, mas seu rosto não trazia expressão alguma. - Eu o conheci em Londres... Ele consertou uma cadeira para mim. - Gosta dele? - Não o conheço o suficiente para não gostar dele. - Eliot o odeia. E a tia Mollie também. - Por quê? - Porque eles não gostam de tê-lo por perto o tempo inteiro. E o tratam como se ele devesse chamá-los de senhor madame, e é claro que ele não faz isso. E ele conversa com Grenville e o faz rir. Eu já os vi conversando.

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Imaginei-a ouvindo atrás da porta e espiando pelo buraco da fechadura. - Que bom que ele faz o velho rir. - Ele e Eliot tiveram uma terrível desavença. Foi sobre um carro que Eliot vendeu para um amigo de Joss, e Joss disse que o carro não estava bom para viajar, e Eliot o chamou de insolente e de bastardo intrometido. - Você ouviu isso também? - Não pude evitar. Eu estava no banheiro e a janela estava aberta, e eles estavam do lado de fora da casa, à porta da frente. - Há quanto tempo está em Boscarva? - perguntei, curiosa em saber quanto tempo teria levado para descobrir os podres da família. - Duas semanas. Mas parece que estou aqui há seis meses. - Pensei que gostasse daqui. . - Pelo amor de Deus, não sou criança. O que se tem para fazer aqui? Brincar de baldinho e pazinha na areia da praia? - O que faz em Londres? Ela chutou uma pedra violentamente, demonstrando seu ódio pela Cornualha. - Estava estudando na Escola de Artes, mas meus pais não aprovaram - ela baixou o tom de voz - meus amigos. Por isso me mandaram para cá. - Mas não vai poder ficar aqui para sempre. O que vai fazer quando voltar? - Eles é que devem decidir, não acha? Senti uma pontada de pena de seus pais, que criaram, de alguma forma, uma menina tão detestável. - Mas será que não há nada que você queira fazer? - Sim, queria fugir, viver por minha conta, fazer o que bem entendesse. Danus, um grande amigo meu, tinha um amigo que dirigia uma olaria na Ilha de Skey e queria que eu o ajudasse... Pareceu-me uma idéia fantástica, viver numa espécie de comunidade, longe de todos... mas a chata da minha mãe se meteu no meio e estragou tudo. - Onde Danus está agora? - Ah, ele foi para Skey. - Ele escreveu para lhe contar como é lá? Ela jogou a cabeça para trás, remexeu o cabelo com as mãos, evitando meu olhar. - Um montão de vezes. Ainda quer que eu vá para lá, e eu vou. Assim que completar 18 anos, meus pais não vão mais poder me impedir. - Por que não volta para a Escola de Artes primeiro e tira o diploma? Isso lhe daria tempo... Ela se virou para mim. - O que é que você sabe? Você fala como os outros. Quantos anos você tem, afinal? Fala como se estivesse com um pé na cova. - É loucura destruir sua vida antes mesmo de começar a viver. - A vida é minha. Não sua. - Não, não é minha. DEPOIS DESSA DISCUSSÃO, continuamos em silêncio nossa caminhada rumo à cidade, e quando Andréa voltou a falar, foi para dizer: - A peixaria é ali - apontando a direção. - Obrigada. - Entrei, a fim de buscar o linguado, mas ela ficou do lado de fora. Quando saí da peixaria, não estava mais lá, e no momento seguinte, saiu de uma loja ao lado, onde comprara uma revista estranha chamada True Sex. - Vamos voltar agora? - perguntei a ela. - Ou vai querer comprar mais alguma coisa? - Não posso comprar mais nada, não tenho dinheiro. Só alguns centavos. Súbita e irracionalmente, senti pena dela. - Posso lhe pagar uma xícara de café, se quiser. Ela olhou para mim encantada, e achei que ela fosse aceitar alegremente minha modesta oferta, mas, em vez disso, ela disse: - Vamos visitar o Joss. Fui pega de surpresa. - Por que quer ir visitá-lo? - Porque quero. Sempre vou visitá-lo quando venho à cidade. Ele sempre fica contente em me ver. E me fez prometer que sempre o visitaria quando viesse à cidade. - Como sabe que ele vai estar lá?

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- Ora, ele não foi a Boscarva hoje, então deve estar na loja. Já esteve lá? É incrível, tem uma espécie de apartamento no último andar, igualzinho aos das revistas, com um sofá-cama, um monte de almofadas e outras coisas, e também uma lareira. E à noite - seu tom era de devaneio - é tudo tão íntimo e secreto; só há a luz do fogo. Tentei não parecer embasbacada. - Quer dizer que... você e Joss... Ela deu de ombros, jogando a cabeça para trás. - De vez em quando, mas ninguém sabe. Nem sei por que lhe contei. Não vai contar aos outros, vai? - Mas eles não... Mollie não... lhe faz perguntas? - Ah, eu lhe digo que vou ao cinema. Ela não se importa que eu vá ao cinema. Venha, vamos até a loja de Joss... Mas, depois de tal revelação, nada me faria aproximar-me da loja de Joss. - Ele deve estar trabalhando, não vai querer ser interrompido. De qualquer modo, não há tempo. E eu não quero ir. - Você disse que havia tempo para um café; por que não há tempo para Joss? - Andréa, eu já lhe disse, não quero ir. Ela sorriu. - Pensei que gostasse dele. - Não se trata disso. Ele não nos quer atrás dele o tempo todo. - Está falando de mim? - Estou falando de nós. Eu estava começando a ficar desesperada. - Ele sempre quer me ver. Sei disso. - Tenho certeza que sim - eu disse gentilmente -, mas vamos voltar para Boscarva. Lembrei-me de que, desde o princípio, eu havia antipatizado com Joss. Apesar de sua aparente preocupação e afabilidade, ele sempre me deixava com aquela estranha sensação inquietante, como se alguém estivesse se acercando de mim. Ontem, eu havia começado a esquecer minha antipatia inicial e começado a simpatizar com ele, mas, após as confidências de Andréa, não foi difícil trazer à tona a desconfiança que depositava nele. Ele era bonito demais, charmoso demais. Andréa podia ser mentirosa, mas não era tola; ela havia classificado o restante da família com desconcertante precisão e, mesmo se houvesse apenas um grão de verdade em tudo o que dissera sobre Joss, eu não queria tomar parte nisso. Se o tivesse conhecido melhor e gostado dele, eu o manteria a distância e o censuraria pelo que ela disse. De qualquer forma, ele não tinha a menor importância para mim. Além disso, eu tinha outras coisas com que me preocupar. GRENVILLE NÀO DESCEU para almoçar naquele dia. - Ele está cansado - Molhe nos avisou. - Vai passar o dia na cama. Talvez jante conosco. Pettifer vai levar seu almoço no quarto. Assim, nós três almoçamos juntas. Mollie colocara um elegante vestido de lã e um colar de pérolas de duas voltas. Ela estava indo, como nos contou, jogar bridge com alguns amigos em Fourbourne. Disse que esperava que eu arranjasse alguma coisa para matar o tempo. Respondi que ficaria bem. A mesa, sorrimos uma para a outra, e pus-me a imaginar se ela realmente dissera a Andréa que minha mãe era leviana ou se teria sido simplesmente a interpretação de Andréa diante de uma vaga explicação eufemística de Mollie. Desejei acreditar na segunda opção, porém, ainda assim, achei desnecessário que Mollie tivesse falado com Andréa a respeito de Lisa. Ela estava morta agora, mas havia sido divertida, encantadora e cheia de vida. Por que não podiam se lembrar dela dessa maneira? Enquanto estávamos à mesa, o tempo lá fora mudou. O vento oeste começou a soprar e uma massa de nuvem cinzenta espalhou-se rapidamente pelo céu azul, encobrindo os raios solares, e subitamente começou a chover. Foi sob essa chuva que Mollie partiu em seu carrinho rumo ao seu jogo de bridge, avisando que estaria de volta às 18 horas. Andréa, provavelmente exaurida pelos exercícios matinais, porém mais entediada ainda diante de minha companhia, subiu para o quarto com sua revista nova. Sozinha, fiquei parada ao pé da escada, imaginando uma maneira de matar o tempo. O silêncio da tarde sombria era quebrado apenas pelo tique-taque do relógio de meu avô e por leves ruídos provenientes da cozinha, que vinham de Pettifer, sentado à mesa de madeira da copa, limpando a prataria. Ele olhou para mim assim que apareci na porta. - Olá. Não ouvi você. - Como está meu avô? - Oh, está bem. Apenas um pouco cansado pela excitação de ontem. Pensamos que seria melhor ele passar o dia descansando. A Sra. Roger saiu?

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- Saiu. Puxei uma cadeira e sentei à sua frente. - Ouvi o barulho do carro. - Quer que eu o ajude? - É muita gentileza... aquelas colheres ali precisam de uma boa esfregada com a flanela. Não sei como ficam tão marcadas e manchadas. Aliás, sei, sim. É essa maresia úmida. Os objetos de prata odeiam umidade. - Comecei a esfregar a parte côncava e fina da colher. Pettifer olhou para mim por sobre os óculos. - É engraçado tê-la aqui após todos esses anos. Sua mãe costumava ficar metade do dia na cozinha... Quando Roger foi para o internato, não havia mais ninguém com quem ela pudesse conversar. Então ela vinha passar o tempo conosco, a Sra. Pettifer e eu. A Sra. Pettifer ensinou-lhe a fazer biscoitos encantados e a jogar cartas. Nós nos divertíamos a valer. E, em dias chuvosos como hoje, ela costumava preparar torradas no velho fogão... que já se foi; temos um novo, agora, muito bom também... mas o antigo era bonito, com o fogo queimando atrás das grades e os botões de bronze bem polidos. - Há quanto tempo está em Boscarva, Pettifer? - Desde quando o comandante a comprou, em 1922. Foi o ano em que ele deixou a Marinha, decidido a ser pintor. A velha Sra. Bayliss não gostou de sua decisão. Ficou sem falar com ele durante três meses ou mais. - Por que ela ficou tão chateada? - Ela conviveu com a Marinha a vida inteira. Seu pai era capitão do Imperioso quando o comandante era primeiro-tenente. Foi assim que se conheceram. Casaram-se em Malta. Tiveram um bonito casamento, com cruzamento de espadas e tudo o mais. Pertencer à Marinha significava muito para ela. Quando o comandante lhe comunicou que iria sair, eles discutiram muito, mas ela não conseguiu dissuadi-lo. Então deixamos Malta de uma vez por todas, e o comandante encontrou esta casa, e viemos todos morar aqui. - E você está aqui desde então? - Mais ou menos. O comandante foi recrutado para Slade, e isso significava ter que trabalhar em Londres, então ele teve esse pequeno pied-à-terre fora de St James, e, quando foi para Londres, fui também, para vigiá-lo, e a Sra. Pettifer ficou aqui com a Sra. Baylisse Roger. Sua mãe ainda não havia nascido. - Mas e quando acabou o serviço em Slade...? - Bem, então ele veio de vez. E construiu o ateliê. Foi sua melhor época como pintor. Fez coisas maravilhosas, lindas paisagens marítimas, tão frias e reluzentes que se podia sentir o vento e o sal nos lábios. - Essas telas estão todas aqui? - Nem todas. Apenas o barco pesqueiro sobre a lareira da sala de jantar e uns dois pequenos desenhos em preto-e-branco ao longo da escadaria. Tem mais uns três ou quatro no ateliê e dois no quarto onde a Sra. Roger está. - E um na sala de estar... - Ah, é, aquele. "A Dama Segurando a Rosa". - Quem era ela? Ele não respondeu; talvez estivesse preocupado com a prataria, esfregando um garfo como se estivesse determinado a achatá-lo. - Quem era ela? A moça no quadro? - Ah - disse Pettifer. - Era Sophia. Sophia. Desde que minha mãe a mencionara de passagem eu queria saber quem ela era, e agora Pettifer falara nela como se fosse a coisa mais natural do mundo. - Era uma moça que posava de modelo para o comandante. Acho que ela começou a trabalhar para ele em Londres quando ele ainda era estudante, e então ela passou a vir aqui algumas vezes durante os meses de verão, ficava hospedada em Porthkerris e posava para qualquer artista que pudesse pagá-la. - Ela era bonita? - Não era o meu tipo. Mas era alegre, e como falava! Era irlandesa, de County Cork. - O que minha avó achava de Sophia? - Elas nunca se deram bem; sua avó tinha contato social apenas com o açougueiro e a cabeleireira. - Então Sophia nunca esteve em Boscarva? - Esteve, sim. Ia ao ateliê com o comandante até que ele ficava cansado ou perdia a paciência com ela, dando o dia por encerrado, e ela subia pelo jardim e entrava pela porta dos fundos, gritando: "Há alguma chance de se conseguir uma xícara de chá?" E, por causa de Sophia, a Sra. Pettifer sempre mantinha a chaleira sobre o fogão. - Ela costumava ler a sorte nas xícaras de chá, certo? - Quem lhe contou? - Minha mãe.

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- Isso mesmo. E ela nos dizia as coisas maravilhosas que iriam acontecer a nós todos. Obviamente nada aconteceu, mas era divertido ouvi-la assim mesmo. Ela era uma grande amiga de sua mãe. Sophia a levava até a praia e a Sra. Pettifer preparava o piquenique. E, se o tempo não estivesse bom, elas faziam longas caminhadas pela charneca. - E o que minha avó fazia? - Jogava bridge quase todas as tardes. Mantinha um círculo de amizades bastante seleto. Era uma senhora educada, mas não gostava muito de crianças. Talvez, se tivesse se interessado mais por Lisa na infância, tivessem tido mais afinidade quando ela cresceu, e talvez sua mãe não tivesse fugido, deixando-nos tão tristes. - O que aconteceu com Sophia? - Voltou para Londres, casou-se e teve um bebê, eu acho. Então, em 1942, ela foi morta durante a guerra. O bebê estava no sul do país e o marido viajando, mas Sophia ficara em Londres por estar trabalhando num hospital. Só soubemos da notícia muito tempo depois. A Sra. Pettifer e eu sentimos como se uma luz tivesse se apagado em nossas vidas. - E meu avô? - Ficou triste, é claro. Mas eles não se viam havia muitos anos. Ela foi apenas uma moça que trabalhou para ele. - Vocês têm algum retrato dela? - Há retratos de Sophia em galerias de arte provincianas por todo o país. Há um na galeria de Porthkerris, se quiser ver. E há dois lá em cima, no quarto da Sra. Roger. - Será que poderíamos subir para vê-los? - Eu estava ansiosa e Pettifer pareceu surpreso, como se eu tivesse sugerido algo indecente. - A Sra. Bayliss não iria se importar, iria? - Ah, não. Não vejo por que não poderíamos... venha. Ele levantou-se penosamente da cadeira e eu o segui escada acima e pelo corredor do segundo andar até o quadro na sala de estar de um quarto amplo e decorado com antiga mobília vitoriana e tapete rosa-claro e bege. Mollie o deixara meticulosamente arrumado. As duas velhas telas estavam penduradas lado a lado entre as janelas; uma trazia um castanheiro com uma moça deitada sob sua sombra e a outra, a mesma moça pendurando roupas lavadas numa corda num dia ventoso. Eram apenas desenhos, e fiquei desapontada. - Continuo sem saber como ela era. Pettifer ia responder quando, do andar de baixo, ouvimos um sino tocar. Ele levantou a cabeça, como um cão escutando. - É o comandante, ele nos ouviu conversando. Com licença um instante. Deixamos o quarto de Mollie, e ele fechou a porta atrás de mim. Andou até o fim do corredor e abriu uma das portas, e eu ouvi a voz de Grenville. - O que vocês dois estão murmurando aí? - Eu estava mostrando a Rebecca os dois quadros no quarto da Sra. Roger... - Rebecca está aí? Diga a ela para entrar... Entrei, passando por Pettifer. Grenville não estava na cama, mas sentado numa poltrona funda com os pés apoiados sobre um banquinho, vestido e coberto até os joelhos com uma manta; o fogo aceso na lareira dava ao quarto um ar aconchegante. Tudo estava em seu lugar e cheirava ao rum aromático que ele usava nos cabelos. - Pensei que estivesse na cama - eu disse. - Pettifer me ajudou a levantar depois do almoço. Fico entediado de ficar deitado o dia inteiro. Do que estavam falando? - Pettifer estava me mostrando alguns de seus quadros. - Suponho que você os julgue ultrapassados. Eles retornaram ao realismo, os jovens artistas. Sabia que retornariam. Você tem que ficar com um de meus quadros. Há vários deles no ateliê que nunca foram escolhidos. Fechei aquele lugar há dez anos e desde então não voltei mais lá. Pettifer, onde está a chave? - Guardei-a num lugar seguro, senhor. - Pegue a chave com Pettifer, vá até lá e dê uma olhada; veja se há alguma coisa de que gosta. Tem onde pendurá-los? - Tenho um apartamento em Londres que precisa de quadros. - Pensei em mais uma coisa que está aqui. Aquela peça de jade na estante lá de baixo. Eu a trouxe da China anos atrás e presenteei Lisa com ela. Agora pertence a você. E um espelho que sua avó deixou para ela... onde está, Pettifer? - Está no sótão, senhor. - Bem, então teremos que descê-lo e limpá-lo. Você gostaria de tê-lo, não gostaria?

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- Gostaria, sim. - Senti um alívio enorme. Estava imaginando uma maneira de tocar no assunto dos pertences de minha mãe e agora, sem precisar de nenhuma indireta, Grenville havia feito isso para mim. Hesitei e então, aproveitando a oportunidade, mencionei o terceiro objeto: - ... e havia uma pequena papeleira. - Hã? - Ele lançou-me um olhar feroz. - Como sabe disso? - Minha mãe me falou do jade e do espelho e disse que havia uma escrivaninha também. - Continuou me olhando. Desejei na mesma hora não ter dito nada. - Quero dizer, não tem importância, é que, se ninguém fosse querê-la... se ninguém a estiver usando... - Pettifer, lembra-se dessa papeleira? - Lembro, sim, senhor, agora que a mencionou. Estava no outro quarto do sótão, mas não me lembro de tê-la visto ultimamente. - Bom, procure-a qualquer hora dessas, meu bom amigo. E ponha mais lenha na lareira... - Pettifer obedeceu. Grenville, observando-o, disse de repente: - Onde estão todos? A casa está tão quieta. Ouço apenas o barulho da chuva. - A Sra. Roger saiu para jogar bridge. Acho que a Srta. Andréa está em seu quarto... - Que tal uma xícara de chá? - Grenville levantou uma sobrancelha, olhando para mim. - Gostaria de uma xícara de chá, não? Não tivemos muita chance de nos conhecermos. Ora você desmaia no meio do jantar, ora eu estou velho demais para sair da cama. Formamos uma dupla e tanto, não é mesmo? - Gostaria de tomar chá com o senhor. - Pettifer nos trará uma xícara. - Não - eu disse. - Eu trarei. Pettifer está subindo e descendo essas escadas o dia inteiro. Vamos dar-lhe um descanso. Grenville pareceu gostar da idéia. - Está certo. Você busca o chá e prepara algumas torradas com manteiga também, certo? Desejei, muitas vezes depois, nunca ter tocado no assunto da papeleira, pois poderiam não encontrá-la. Enquanto Grenville e eu tomávamos nosso chá, Pettifer começou a procurá-la. Quando veio buscar a bandeja, ele havia vasculhado a casa inteira sem sucesso. Grenville não queria acreditar. - Você deve ter-se enganado. Sua vista anda tão cansada quanto a minha. - Eu não poderia deixar de ver uma papeleira - disse Pettifer, magoado. - É provável - falei, tentando ajudar - que esteja em outro lugar ou que tenha sido levada para o conserto ou qualquer coisa assim... - Os dois olharam para mim como se eu fosse uma tola e tratei de ficar quieta. - Será que não está no ateliê? - Pettifer aventurou-se. - O que eu faria com uma papeleira no ateliê? Eu o utilizava para pintar, não para escrever cartas. Não ia querer uma papeleira me estorvando... - Grenville estava ficando bastante agitado. Levantei-me. -Ah, ela vai aparecer- disse com a voz mais suave possível, e peguei a bandeja de chá a fim de levá-la para a cozinha. Lá, Pettifer me encontrou, parecendo chateado com o que havia acontecido. - Não é bom para o comandante ficar preocupado com alguma coisa... e ele vai procurar por ela como um gato que persegue um rato. Sei que vai. - Foi tudo culpa minha. Não sei por que fui mencionar isso. - Mas eu me lembro dela. Só não me lembro de tê-la visto ultimamente. - Comecei a lavar as xícaras e os pires, e Pettifer pegou um pano para secar a louça. - E tem mais uma coisa, havia uma cadeira Chippendale que combinava com... ora, elas não combinavam, mas a cadeira estava sempre em frente à papeleira. O assento era de tapeçaria, um tanto gasto, com pássaros, flores e coisas assim. Bem, ela também se foi... mas não vou contar isso ao comandante, nem você. Prometi que não contaria. - De qualquer modo - eu disse -, isso não tem importância. - Mas para o comandante tem. Ele pode ter sido um artista, mas tem uma memória de elefante, e isso é a única coisa que ele não perdeu. - E acrescentou, triste: - Às vezes, eu preferia que ele não tivesse tão boa memória. Naquela noite, quando desci para o jantar, tendo vestido mais uma vez o cafetã marrom e prateado, encontrei Eliot na sala de estar, na companhia de seu cão. Estava sentado diante da lareira com um drinque numa das mãos e o jornal na outra, e Rufus estava esparramado, como uma gloriosa pele, sobre o tapete da sala. Eles pareciam amistosos à luz do abajur, mas minha aparição perturbou a cena plácida, e Eliot levantou-se, largando o jornal no assento da poltrona. - Rebecca. Como vai? - Bem. - Fiquei receoso ontem à noite de que fosse ficar doente.

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- Não. Eu só estava cansada. Dormi até as 10 horas. - Minha mãe me contou. Quer beber alguma coisa? Aceitei, e ele me serviu um cálice de sherry; agachei-me em frente ao fogo, acariciando as orelhas sedosas do cão. Quando Eliot me entregou o cálice, perguntei-lhe: - Ele o acompanha a todos os lugares que vai? - Sim, todos. À oficina, ao escritório, ao restaurante, aos pubs, a todo canto que vou. É um cão bastante conhecido por aqui. Sentei-me no tapete, e Eliot deixou-se cair novamente na poltrona, pegando o copo de sherry e dizendo: - Amanhã irei a Falmoufh, tratar da compra de um carro. Imaginei se gostaria de me acompanhar, conhecer um pouco mais esse lugar. O que acha? Fiquei surpresa com o convite. - Eu adoraria. - Não será muito excitante. Mas talvez você possa se distrair por uma ou duas horas enquanto trato de negócios, e então poderíamos parar num pequeno pub que conheço no caminho de casa. Eles servem deliciosos frutos do mar. Gosta de ostras? - Gosto. - Que bom. Eu também. E poderíamos voltar por High Cross, e você poderia ver onde eu e minha mãe moramos. - Sua mãe me contou. Deve ser um lugar encantador. - Melhor do que este mausoléu... - Ora, Eliot, isto não é um mausoléu... - Nunca gostei muito de relíquias vitorianas... Antes que eu pudesse protestar, Grenville entrou na sala. Nós o ouvimos aproximar-se, descendo as escadas passo a passo, e o escutamos falar com Pettifer, uma voz aguda e a outra grave e rascante; ouvimos os dois avançarem pelo corredor e o barulho surdo da bengala de Grenville contra a madeira polida do piso. Eliot fez uma ligeira careta para mim e adiantou-se para abrir a porta, e Grenville entrou, feito a proa de um imenso e indestrutível navio... - Tudo bem, Pettifer, posso ir sozinho daqui. Eu me levantara do tapete, querendo ajudar a empurrar a cadeira que ele usara na noite anterior, mas meu gesto pareceu irritá-lo. Decerto, ele não estava bem-humorado. - Pelo amor de Deus, moça, pare com essa cerimônia toda. Está achando que quero me sentar dentro da lareira? Vou queimar até a morte se me sentar aí... Puxei a cadeira para o lugar em que estava antes, e finalmente Grenville a alcançou e sentou-se nela. - Quer beber alguma coisa? - Eliot perguntou a ele. - Quero um uísque... Eliot o fitou, surpreso. - Uísque? - Sim, um uísque. Sei o que aquele médico idiota disse, mas hoje eu vou tomar um uísque. Eliot não discutiu, apenas consentiu, balançando a cabeça com paciente aquiescência, e foi servir-lhe o drinque. Enquanto o fazia, Grenville inclinou-se para trás na cadeira e perguntou: - Eliot, você viu aquela papeleira por aí? - Encolhi-me na cadeira. - Oh, Grenville, não vamos começar de novo... - O que quer dizer com começar de novo? Temos de achar a maldita papeleira. Acabei de dizer a Pettifer para continuar procurando até encontrá-la. Eliot voltou com o copo de uísque. Puxou uma mesinha, depositando o copo sobre ela, ao alcance de Grenville. - Que papeleira? - perguntou ele, pacientemente. - A pequena papeleira que costumava ficar num dos quartos. Pertencia a Lisa e agora pertence a Rebecca. Ela a quer. Tem um apartamento em Londres e quer colocá-la nele. E Pettifer não consegue achá-la, disse que já vasculhou a casa inteira e não a encontrou. Você a viu por aí? - Eu nunca cheguei a vê-la. Não sei nem o que é uma papeleira. - É uma pequena escrivaninha com gavetas laterais, forrada de couro por cima. São consideradas raridades agora, eu acho. Valem um bom dinheiro. - Pettifer provavelmente a colocou em algum lugar e esqueceu. - Pettifer não esquece nada. - Ora, talvez a Sra. Pettifer tenha feito alguma coisa com ela e esqueceu de lhe contar. - Eu já disse; ele não esquece nada.

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Nesse momento, Mollie entrou na sala parecendo determinadamente sorridente, como se tivesse ouvido a voz exasperada através da porta e quisesse amenizar a situação. - Olá para todos, creio que me atrasei um pouco. Tive que sair e tomar algumas providências para preparar o delicioso linguado que Rebecca comprou hoje de manhã. Eliot, querido... - Ela o beijou, aparentemente vendo o filho pela primeira vez naquele dia. - E Grenville... - ela parou para beijá-lo também. -... está com uma aparência mais descansada. - Então, antes que ele pudesse contradizê-la, ela sorriu por sobre sua cabeça em minha direção. - Passou uma tarde agradável? - Sim, obrigada. Como foi o jogo de bridge? - Não tão mal. Ganhei uns trocados. Eliot, querido, eu adoraria tomar um drinque. Andréa já vai descer. Ela não vai se atrasar... Quando finalmente Mollie não tinha mais o que inventar para dizer, Grenville imediatamente abriu fogo contra ela: - Perdemos uma coisa - ele lhe disse. - O que foi que perdeu? Suas abotoaduras novamente? - Perdemos uma papeleira. Isso estava se tomando ridículo. - Vocês perderam uma papeleira? Grenville explicou-lhe a confusão. Ao ficar sabendo que fora eu quem havia precipitado a crise, Mollie lançou-me um olhar de reprovação, como se achasse que aquela era uma maneira mesquinha de retribuir a hospitalidade e a gentileza que me foram endereçadas. Eu estava inclinada a concordar com ela. - Mas deve estar em algum lugar. - Ela pegou o cálice da mão de Eliot, puxou uma cadeira e sentou-se, pronta a desvendar aquele mistério. - Deve estar guardada em algum lugar seguro. - Pettifer já procurou em todo canto. - Talvez ele não a tenha visto. Estou certa de que ele precisa de um novo par de óculos. Talvez ele a tenha colocado em algum lugar e não se recorde. Grenville socou o braço da cadeira com o punho cerrado. - Pettifer não esquece nada. - Na verdade - disse Eliot com frieza -, ele esquece as coisas com freqüência. Grenville o encarou. - O que quer dizer? - Nada pessoal. Apenas que ele está ficando velho. - Creio que está acusando Pettifer... - Não estou acusando ninguém. - Você acabou de dizer que ele está velho demais para saber o que está fazendo. Se ele está velho demais, que diabo você pensa de mim? - Eu não disse que... - Você o acusou. Eliot perdeu a paciência. - Se for para culpar alguém - disse, elevando a voz quase ao mesmo tom de Grenville -, eu faria algumas perguntas ao seu Joss Gardner. - Fez-se uma pausa. E então, num tom de voz mais moderado, ele prosseguiu: - Tudo bem, ninguém aqui está querendo acusar ninguém de roubo. Mas Joss entra e sai desta casa o tempo todo, entra e sai de todos os cômodos. Conhece tudo o que há aqui melhor do que ninguém. Além disso, é um especialista, sabe o que tem valor. - Mas por que Joss levaria uma papeleira? - perguntou Mollie. - Uma papeleira valiosa. Não se esqueça disso. Trata-se de uma valiosa raridade, como disse Grenville. Talvez estivesse precisando do dinheiro. Ele bem que gostaria de algum dinheiro extra. E é um especialista. Está sempre indo a Londres. Saberia onde vendê-la. Ele parou abruptamente, como se houvesse percebido que falara demais. Terminou seu uísque e foi, sem dizer uma palavra, servir-se de mais uma dose. O silêncio tornou-se incômodo. A fim de quebrá-lo, Mollie disse, sucintamente: - Não acho que Joss... - Conversa fiada - Grenville a interrompeu bruscamente. Eliot pôs a garrafa de uísque na mesa com uma pancada. - Como pode saber? Como pode saber alguma coisa sobre Joss Gardner? Ele aparece do nada, como um hippie, diz que vai abrir uma loja, e o senhor abre a casa para ele e o emprega como restaurador de móveis. O que sabe a respeito de Joss? O que qualquer um de nós sabe a seu respeito? - Sei que posso confiar nele. Fui treinado para julgar o caráter de um homem. - Pode estar enganado... Grenville gritou mais alto que Eliot. - ... e não seria má idéia se você recebesse algumas lições para escolher melhor suas companhias.

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Eliot apertou os olhos. - O que quer dizer? - Quero dizer que, se você quer passar por idiota, faça negócios com aquele escroque do Ernest Padlow. Se eu pudesse ter escapado naquele momento, eu o teria feito. Mas estava encurralada no canto da sala, atrás da cadeira de Grenville. - O que sabe a respeito de Ernest Padlow? - Sei que você tem sido visto com ele... bebendo nos bares... Eliot olhou para mim e então falou entre os dentes: - Aquele bastardo do Joss Gardner. - Não foi Joss Gardner quem me contou, foi Hargreaves, do banco. Ele passou aqui outro dia para tomar um cálice de sherry comigo. E a Sra. Thomas apareceu aqui hoje de manhã e confirmou essa história, ela o viu com Padlow naquele pesadelo que ele chama de projeto de urbanização. - Fofoca de empregados. - A gente ouve as verdades das pessoas confiáveis, não importa onde moram essas pessoas. E se pensa que vou vender minhas terras para aquele trapaceiro, aquele vagabundo de praia, está muito enganado... - Essas terras não serão suas para sempre. - Se tem tanta certeza de que serão suas, tudo o que posso lhe dizer é que não conte com o ovo na galinha. Pois você, rapazinho, não é meu único neto. Nesse momento dramático, que mais parecia uma cena teatral, a porta se abriu e Andréa apareceu dizendo que Pettifer avisara que o jantar estava servido.

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Foi difícil pegar no sono naquela noite. Eu me revirei na cama, levantei para pegar uma garrafa de água, andei de um lado para outro, espiei pela janela, voltei para a cama e tentei mais uma vez me acalmar, mas, sempre que fechava os olhos, tornava a ver a discussão em minha mente, como um filme se repetindo, e as vozes ecoavam em meus ouvidos sem cessar. "Tudo bem, ninguém aqui está querendo acusar ninguém de roubo. O que sabemos a respeito de Joss? Se quer passar por idiota, faça negócios com aquele escroque do Ernest Padlow. E se pensa que vou vender minhas terras para aquele trapaceiro, aquele vagabundo de praia, está muito enganado... Essas terras não serão suas para sempre... ... você, rapazinho, não é meu único neto." O jantar tinha sido horrível. Eliot e Grenville não disseram uma palavra do começo ao fim. Mollie, para compensar o silêncio dos dois, inventara uma tagarelice sem sentido, da qual tentei participar. E Andréa ficara observando todos nós, com um brilho triunfante nos olhos esbugalhados, enquanto Pettifer andava pesadamente para lá e para cá, retirando pratos, servindo um suflê de limão com creme chantilly pelo qual ninguém pareceu interessar-se. Quando finalmente terminou, todos se dispersaram. Grenville foi para o seu quarto, Andréa para o sótão, de onde podíamos ouvir o barulho da televisão. Eliot, sem dar satisfação, vestiu um casaco, assoviou para seu cão e saiu batendo a porta da frente. Imaginei que teria ido se embebedar e não o culpei de todo. Mollie e eu terminamos na sala de estar, uma em cada lado da lareira. Ela segurava uma tapeçaria e parecia totalmente preparada para bordar em silêncio, mas aquilo seria insuportável. Eu disse, lançando-me diretamente às desculpas que achei que lhe devia: - Sinto muito por esta tarde. Eu não devia ter falado na papeleira. Ela não olhou para mim. - Não se pode fazer mais nada. - Eu só toquei no assunto porque minha mãe a mencionara, e quando Grenville falou sobre a peça de jade e o espelho, bem, não me ocorreu que isso daria início a uma tempestade num copo d'água. - Grenville é um velho estranho. Sempre foi turrão; nunca vai perceber que toda situação tem dois lados. - Você se refere a Joss... - Não sei por que ele morre de amores por Joss. É assustador. É como se Joss exercesse algum poder sobre ele. Eliot e eu nunca o quisemos entrando e saindo daqui dessa maneira. Se a mobília de Grenville precisa de conserto, ele certamente poderia levá-la em sua caminhonete até a oficina, como faria qualquer restaurador. Tentamos falar sobre isso com Grenville, mas ele ficou irredutível e, afinal de contas, a casa é dele. Não é nossa. - Mas será de Eliot um dia. Ela me lançou um olhar gélido. - Depois desta noite, eu duvido. - Oh, Mollie, eu não quero Boscarva. Grenville nunca deixaria um lugar como este para mim. Ele só falou aquilo porque estava nervoso; provavelmente foi a primeira coisa que passou pela sua cabeça. Ele não quis dizer isso. - Ele magoou Eliot. - Eliot vai entender. Temos que fazer concessões aos mais velhos. - Estou farta de fazer concessões a Grenville - disse Mollie, cortando com violência um fio de lã com a tesoura prateada. - Minha vida foi dilacerada por Grenville. Ele e Pettifer poderiam ter ido morar em High Cross; era o que queríamos. A casa é menor e mais confortável e teria sido melhor para todo mundo. E Boscarva deveria ter sido cedida a Eliot há anos. Nessas circunstâncias, os impostos de transmissão serão exorbitantes. Eliot nunca poderá pagar as despesas. A situação toda é tão absurda. - Creio que seja difícil ser sensato quando se tem 80 anos e se morou no mesmo lugar quase a vida inteira. Ela ignorou minha intervenção. - E toda aquela terra e a fazenda. Eliot está simplesmente tentando fazer o melhor que pode, mas Grenville não vê isso. Ele nunca demonstrou nenhum interesse, nunca encorajou Eliot em nada. Até na agência de automóveis em High Cross, Eliot toca o negócio totalmente sozinho. No começo, ele pediu ajuda ao avô, mas Grenville disse que não se meteria com carros usados e lhe passou uma descompostura, e finalmente Eliot arrumou o dinheiro emprestado com outra pessoa e nunca pediu ao avô um níquel desde então. Ele merece algum crédito por isso. Ela estava pálida de ódio por conta do filho - uma tigresa, pensei, lutando por sua cria, e lembrei-me da opinião desfavorável de minha mãe acerca da maneira como ela superprotegia e mimava o menino Eliot. Pelo visto, nenhum dos dois perdera o costume. A fim de mudar de assunto, contei-lhe sobre o convite de Eliot para o dia seguinte. - Ele disse que me levaria até High Cross na volta. E Mollie foi momentaneamente distraída.

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- Vá conhecer a casa, Eliot tem a chave. Vou lá quase toda semana para me certificar de que está tudo em ordem, mas fico tão deprimida por ter que deixar minha casinha querida e voltar para este lugar lúgubre... - Em seguida ela riu de si mesma. - Isso está acabando comigo, não está? Preciso tentar me controlar. Mas vou ficar muito feliz quando tudo isso terminar. Quando tudo isso terminar. Isso significava quando Grenville morresse. Não queria pensar nele morrendo, da mesma forma que não queria pensar em Joss ligado à detestável Andréa nem tampouco queria pensar em Joss ganhando dinheiro com a papeleira e a cadeira Chippendale, enfiando-as dentro da caminhonete e vendendo-as ao primeiro negociante que lhe fizesse uma boa oferta "O que sabe a respeito de Joss? O que nós sabemos sobre ele?" De minha parte, eu não gostaria de saber nada. Virei-me na cama, soquei os travesseiros e aguardei, sem muita esperança, o sono chegar. Choveu à noite, mas o dia amanheceu sereno e claro; o céu estava azul pálido e tudo parecia úmido e reluzente, em meio à luminosidade translúcida e fria da primavera. Inclinei-me no peitoril da janela e senti o cheiro doce da umidade de musgo. O mar estava liso e azulado como um lençol de cetim, as gaivotas adejavam sobre a margem do penhasco e um barco se afastava da enseada, rumo a remotas águas piscosas. A brisa estava tão serena que era possível ouvir a distante descarga do motor. Recobrei o ânimo. O dia anterior se fora, e hoje seria melhor. Senti-me aliviada por estar deixando a casa, longe da reprovação de Mollie e da presença inquieta de Andréa. Tomei banho, vesti-me e desci, encontrando Eliot na sala de jantar, comendo ovos e bacon, e com uma aparência - fiquei grata em observar - jovial. Ele moveu os olhos por sobre o jornal. - Pensei - disse ele - que teria que subir para acordá-la. Achei que tivesse esquecido. - Não, não esqueci. - Somos os primeiros a descer. Se tivermos sorte, poderemos sair antes que alguém apareça - ele sorriu, pesarosamente, como um garoto arrependido. - A última coisa que quero numa linda manhã como esta é recriminação. - Foi culpa minha mencionar aquela papeleira estúpida. Desculpei-me com sua mãe ontem à noite. - Isso tudo vai passar- disse Eliot. - Essas pequenas divergências de opinião sempre passam. - Servi-me de uma xícara de café. - Sinto muito por você ter sido envolvido. Saímos logo em seguida, e senti uma maravilhosa sensação de alívio por estar em seu carro, com Rufus encarapitado no banco traseiro, e por estar fugindo. O carro roncou morro acima, afastando-se de Boscarva; a estrada úmida refletia o azul celeste, e o ar cheirava a prímulas. Ao subirmos e passarmos pela charneca, a vista abriu-se e desapareceu momentaneamente diante de nós: havia montanhas coroadas com antigos marcos de pedras, minúsculos e esquecidos vilarejos incrustados nas dobras de inesperados vales onde correm riachos, e velhos arvoredos de carvalhos e olmeiros agrupados ao lado de pontes estreitas e arcadas. Mas eu sabia que não poderíamos aproveitar nosso dia juntos e ficar completamente tranqüilos, a menos que eu fizesse as pazes com ele. Então falei: - Sei que isso tudo vai passar e que talvez não seja importante, mas precisamos conversar sobre ontem à noite. Ele sorriu para mim, olhando-me de esguelha. - Sobre o que precisamos conversar? - Sobre Grenville ter lembrado que tem outro neto. Ele não falou sério. Sei que não falou sério. - Não, talvez não tenha falado. Talvez estivesse apenas querendo jogar-nos um contra o outro, como um par de cães. - Ele nunca deixaria Boscarva para mim. Nem em mil anos. Ele nem me conhece, acabei de entrar em sua vida. - Rebecca, não pense mais nisso. Eu não vou pensar. - E, afinal de contas, se aquelas terras serão suas um dia, não vejo motivo para não começar a pensar no que fará com elas. - Está se referindo a Ernest Padlow? Que bando de fofoqueiros aqueles velhos são, inventando histórias e fomentando discórdia. Quando não é o gerente do banco, é a Sra. Thomas, e quando não é ela, é Pettifer. Tentei soar casual. - Você venderia as terras? - Se vendesse, provavelmente conseguiria pagar as despesas para morar em Boscarva. Já é hora de me manter sozinho. - Mas - escolhi as palavras cuidadosamente - não seria ruim... pior... quero dizer, morar lá, cercado pelas casinhas do Sr. Padlow?

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Eliot deu uma gargalhada. - Você está redondamente enganada. Não seria um projeto de urbanização como aquele no topo da montanha. Seria um projeto de alto nível, com lotes de dois acres, altas especificações quanto ao estilo e ao preço das casas construídas. Seriam casas caras para pessoas ricas e não haveria muitas delas. O que acha disso? - Já conversou a respeito com Grenville? - Ele não me deixaria falar. Não me ouviria. Não está interessado e ponto final. - Mas se você lhe explicasse... - Tenho tentado lhe explicar as coisas durante minha vida inteira e nunca cheguei a lugar algum. E então, há algo mais que queira discutir? Considerei sua pergunta. Certamente eu não queria discutir sobre Joss. Respondi que não. - Neste caso, não é melhor esquecermos a noite passada e nos divertirmos? Pareceu-me uma ótima idéia. Sorrimos um para o outro. - Certo - respondi finalmente. Atravessamos uma ponte e uma subida íngreme, onde Eliot reduziu a marcha, movendo habilmente a alavanca de mudança de estilo antigo. O automóvel avançou morro acima, vencendo a forte subida, e seu longo e elegante capô parecia apontar diretamente para o céu. Chegamos a Falmouth por volta das 10 horas. Enquanto Eliot tratava de negócios, fiquei livre para explorar a cidadezinha. Voltada para o sul e abrigada do vento norte, com jardins repletos de camélias e loureiros perfumados, ela me fez pensar em algum porto do Mediterrâneo e tal ilusão foi reforçada pelo azul do mar naquele primeiro dia quente de primavera e pelos mastros altos dos iates ancorados na enseada. Senti-me, por algum motivo, impelida a fazer compras. Comprei frésias para Mollie, em botões fechados, com os talos amarrados em limo úmido para que não murchassem antes de chegarmos em casa, uma caixa de charutos para Grenville, uma garrafa de sherry para Pettifer e um disco para Andréa - a capa mostrava um grupo de travestis de sobrancelhas cintilantes. Pareceu-me ser exatamente a seu gosto. E para Eliot... percebi que a pulseira de seu relógio estava bastante gasta. Encontrei uma pulseira estreita de couro escuro, caríssima, perfeita para ele. Finalmente, comprei um tubo de pasta de dentes para mim, porque estava precisando. E para Joss...? Nada para Joss. Eliot me apanhou, como combinamos, no saguão do grande hotel no centro da cidade. Guiamos velozmente em direção a Truro e descemos no labirinto de pistas e córregos arborizados mais ao longe, até chegarmos a um vilarejo chamado St. Endon, repleto de chalés brancos, palmeiras e jardins floridos. A estrada seguia sinuosa em direção ao córrego e, ao fundo, havia um pub, bem à beira-mar, em que a maré alta projetava-se contra o muro sob o terraço. Pequenas gaivotas empoleiravam-se ao longo da mureta e seu olhos eram brilhantes e amistosos, diferentes das gaivotas vorazes e selvagens de Boscarva. Sentamo-nos do lado de fora, sob o sol, tomando sherry, e dei a Eliot seu presente ali mesmo; ele pareceu excessivamente excitado, retirando a velha, colocando a nova e lustrosa pulseira de couro e ajustando os furinhos com a lâmina de seu canivete. - O que a fez pensar em me dar isso? - Notei que sua pulseira estava gasta. Achei que poderia perder o relógio. Ele se recostou na cadeira, observando-me do outro lado da mesa. Estava tão quente que eu havia tirado o suéter e enrolado as mangas da camiseta de algodão. - Comprou presentes para todos? - ele perguntou. Fiquei embaraçada. - Comprei. - Notei que estava com outros embrulhos. Você costuma presentear as pessoas? - É bom ter a quem presentear. - Não há ninguém em Londres? - Realmente não. - Ninguém especial? - Nunca houve alguém especial. - Não acredito. - É verdade. Não sei por que eu lhe estava confidenciando tal coisa. Talvez tivesse alguma relação com a quentura do dia, surpreendendo-me com sua benevolência, pegando-me desprevenida. Talvez fosse culpa do sherry. Talvez fosse simplesmente a intimidade de duas pessoas que haviam causado tamanha discórdia na noite anterior. Qualquer que fosse a razão, estava sendo fácil conversar com Eliot naquele dia. - Porquê?

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- Não sei. Deve ter alguma coisa a ver com a minha criação... minha mãe viveu com vários homens e, sendo assim, vivi com eles também. E não há nada como viver entre quatro paredes com as pessoas para se perder a maravilhosa ilusão que se tem a respeito de romances. Rimos. - Tem toda a razão - observou Eliot. - Mas isso pode ter um lado negativo. Não deve se fechar completamente, senão ninguém nunca vai conseguir chegar perto de você. - Estou bem. - Vai voltar para Londres? - Vou. - Logo? - Provavelmente. - Porque não fica um pouco mais? - Não quero abusar. - Mas não será abuso. E eu mal tive tempo de conhecê-la. De qualquer modo, como pode voltar para Londres e deixar tudo isso para trás...? - Seu gesto incluiu o céu, o sol, a quietude, o marulho das ondas, a chegada da primavera. - Preciso voltar. Tenho um emprego me esperando, um apartamento que precisa de pintura e uma vida para recomeçar. - Isso não pode esperar? - Não indefinidamente. - Não há razão alguma para partir. Não argumentei. - A menos - continuou ele - que esteja embaraçada pelo que aconteceu ontem. Sorri e balancei a cabeça, pois havíamos prometido não tocar mais nesse assunto. Ele inclinou-se sobre a mesa, o queixo apoiado na mão. - Se quer um emprego, pode arranjar um aqui. Se quer um apartamento, pode alugar um aqui também. - Por que eu ficaria? Senti-me lisonjeada por estar sendo persuadida com tanta insistência. - Porque seria bom para Grenville, para Mollie e para mim. Porque acho que todos queremos que você fique. Principalmente eu. - Oh, Eliot... - É verdade. Você é tão serena, sabia? Notei isso naquela primeira noite em que a vi, antes mesmo de saber quem você era. E gosto do formato de seu nariz, e do som da sua risada, e do modo como você fica maravilhosa usando jeans e cabelos soltos num minuto, no outro parece a princesa de um conto de fadas, com a trança caindo sobre o ombro e aquele vestido imponente que usa à noite. A cada dia descubro coisas novas a seu respeito. E é por isso que não quero que se vá. Ainda não. Não pude pensar em nada para dizer diante do longo discurso. Fiquei tocada com o que ele disse, e embaraçada também. Mas, ainda assim, era gratificante ser admirada e mais gratificante ainda ouvir tudo aquilo. Do outro lado da mesa, ele começou a rir de mim. - Seu rosto é uma pintura. Você não sabe para onde olhar e está corada. Vamos lá, termine seu drinque e vamos comer ostras. Prometo que não lhe farei mais nenhum elogio! Estendemos nosso almoço no restaurante pequeno, de teto baixo, diante de uma mesa que oscilava tanto sobre o piso irregular, que Eliot foi forçado a escorar um dos pés com um pedaço de papel dobrado. Comemos ostras, filé de peixe, uma salada verde e bebemos uma garrafa de vinho inteira. Levamos nosso café para ser tomado à luz do sol e nos sentamos na beirada da mureta do terraço, observando dois rapazes bronzeados armarem a vela desbotada do barco e navegarem pelas águas azuis da enseada. Observamos a vela listrada encher-se com a brisa misteriosa e imperceptível, enquanto o esquife adernava e afastava-se de nós, girando em torno da extremidade de um promontório arborizado. E Eliot disse que, se eu ficasse na Cornualha, ele alugaria um barco e me ensinaria a velejar; poderíamos pescar cavalinha em Porthkerris, no verão, e ele poderia me mostrar todas as pequeninas praias e os esconderijos jamais descobertos pelos turistas. Por fim, era hora de voltar, e a tarde terminou num longo e brilhante arco-íris. Sonolento e saciado, ele guiou vagarosamente até High Cross, tomando a longa estrada que passava por vilarejos esquecidos, no coração do campo. Ao chegarmos a High Cross, descobri que o lugar situava-se bem na extremidade da península, de modo que o vilarejo tinha duas faces, uma para o norte do Atlântico e a outra para o sul do Canal; era como estar numa ilha onde os ventos correm livremente e o mar nos cerca por todos os lados. A agência de Eliot ficava no meio da rua

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principal do vilarejo, um pouco recuada, com um átrio de pedras decorado com floreiras e, por trás da parede envidraçada, dispunham-se os automóveis reluzentes. Tudo ali tinha uma aparência bastante nova, dispendiosa e bem cuidada. Fiquei imaginando, à medida que atravessávamos o átrio em direção aos carros, o quanto Eliot se aventurara e por que decidira que seria uma proposta viável abrir uma agência de automóveis tão sofisticada num lugar tão remoto. Ele abriu uma das portas de vidro corrediço e eu entrei; meus pés não faziam ruído algum no piso emborrachado e lustroso. - Por que decidiu abrir uma agência de automóveis aqui, Eliot? Não seria melhor em Fourbourne, Falmouth ou Penzance? - Venda psicológica, minha querida. Faça um bom nome no mercado e as pessoas virão do fim do mundo para comprar o que você tem para lhes oferecer. - E acrescentou, parecendo bastante sincero: - Além disso, o terreno já era meu, ou melhor, era de minha mãe, o que serviu de grande incentivo para que a construíssemos aqui. - Todos esses carros estão à venda? - Estão. Como pode ver, nós nos concentramos em vendas de carros de estilo continental e esporte. Tivemos uma Ferrari aqui na semana passada, mas a vendemos uns dias atrás. Ela havia sofrido uma batida, mas eu tenho um lanterneiro que trabalha para mim e, quando ele terminou o serviço, o carro estava como novo... Coloquei a mão sobre a capota amarela e polida. - Que carro é este? - Um Lancia Zagato. E este é um Alfa Romeo Spyder com apenas dois anos de uso. Lindo carro. - E um Jenser Interceptor... - reconheci um deles. - Venha ver a oficina. Eu o segui através de outra porta corrediça nos fundos da loja e achei que aquilo era o que eu imaginava ser uma oficina. Ali estava a habitual bagunça de motores, latas de óleo, fios elétricos pendendo do teto, lâmpadas, bancada de ferramentas, pneus velhos e troles. Em meio a tudo aquilo, havia um homem curvado sobre o motor desguarnecido da carcaça de um carro. Ele usava uma máscara de soldador que o fazia parecer monstruoso e trabalhava com a chama azul estrondosa do maçarico. O barulho da ferramenta era abafado pela música ininterrupta de um surpreendente rádio colocado sobre uma viga acima de sua cabeça. Se ele percebeu ou não nossa aproximação, ninguém pode dizer, porém apenas quando Eliot abaixou o volume foi que ele desligou o maçarico e se levantou, tirando a máscara do rosto. Era um jovem magro, negro, manchado de óleo e precisando se barbear; seu cabelo era comprido e o olhar, penetrante e brilhante. - Olá, Morris - cumprimentou Eliot. - Olá. - Esta é Rebecca Bayliss. Ela está passando uns dias em Boscarva. Procurando um cigarro, Morris olhou para mim e cumprimentou-me inclinando a cabeça. Eu disse "olá", tentando ser simpática, mas não obtive resposta. Ele acendeu o cigarro e guardou o isqueiro de novo no bolso do macacão encardido de óleo. - Pensei que viesse de manhã - ele disse a Eliot. - Eu lhe disse que iria a Falmouth. - Teve sorte? - Um Bentley, 1933. - Em que condições? - Parece estar ok. Um pouco enferrujado. - Deve estar precisando de uma nova pintura. Havia um cara, outro dia, procurando um desses. - Eu sei, foi por isso que o comprei. Acho que teremos que mandar trazê-lo para cá amanhã ou depois. Os dois ficaram em silêncio. Morris foi até o rádio e o ligou novamente, porém mais alto do que antes. Olhei a confusão de peças em que ele trabalhava e finalmente perguntei a Eliot que tipo de carro teria sido originalmente aquele. - Um Jaguar XJ6,1971,4.2 litros, se quer saber exatamente. E voltará a sê-lo quando Morris o tiver terminado. Também sofreu uma colisão. Morris tornou a vir até nós. - O que exatamente está fazendo com ele? - eu perguntei. - Endireitando o chassi e alinhando a direção. - E as pastilhas do freio? - inquiriu Eliot.

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- Eu poderia ter trocado as pastilhas, mas resolvi aproveitar as velhas para nos cobrir pela garantia... e o Sr. Kemback telefonou de Birmingham... Eles começaram a falar sobre negócios. Eu me afastei, ensurdecida pelo barulho do rock, cruzei o salão de automóveis e o átrio, onde Rufus aguardava com dignidade e paciência atrás do volante do carro de Eliot. Ficamos ali os dois até que Eliot veio juntar-se a nós. - Desculpe, Rebecca; estava verificando um outro serviço. Morris é um bom mecânico, mas fica nervoso quando tem que atender o telefone. - Quem é o Sr. Kemback? Outro cliente? - Não, não exatamente. Ele estava aqui nas férias do último verão. Gerencia um motel e uma oficina. Possui uma coleção de carros antigos. Quer montar um museu, sabe, uma segunda ocupação para sair da rotina. Parece que quer que eu tome a frente de seus negócios. - Quer dizer que vai mudar-se para Birmingham? - Não parece muito tentador, parece? De qualquer forma, é isso. Agora, vamos conhecer a casa de minha mãe. Caminhamos rua abaixo, tomamos uma estradinha, atravessamos uma entrada com portões brancos e subimos por um caminho que levava a uma casa branca, grande e baixa, construída onde, anteriormente havia duas antigas cabanas de pedra de paredes espessas. Eliot tirou uma chave do bolso e abriu a porta. Dentro estava frio, mas não havia cheiro de mofo ou umidade. A mobília lembrava um apartamento luxuoso de Londres, com tapetes claros e grossos, paredes claras e sofás estofados com brocados bege. Havia muitos espelhos e pequenos lustres de cristal pendendo do teto rebaixado. Era extremamente charmoso, e exatamente como eu havia imaginado, e, por outro lado, totalmente diferente. A cozinha parecia saída de uma revista e a sala de jantar fora mobiliada em mogno envernizado. No andar superior havia quatro quartos e três banheiros, um quarto de costura e um guarda-louça branco de proporções gigantescas cheirando a sabão. Nos fundos da casa havia um pequeno pátio e um jardim comprido em aclive, que terminava numa longínqua sebe. Eu podia ver Mollie no pátio, entretendo os amigos sentados em cadeiras de vime dispostas sobre a laje, todos bebendo martínis servidos num caro carrinho de vidro. Eu disse: - É uma casa perfeita. Fui sincera, mas não gostava dela tanto quanto de Boscarva. Talvez porque fosse perfeita demais. Ficamos ali, na elegante e extraordinária sala de visitas, olhando um para o outro. Nosso dia juntos parecia estar chegando ao fim. Talvez Eliot estivesse sentindo o mesmo e quisesse adiá-lo, pois disse: - Eu posso colocar a chaleira no fogo e lhe fazer um chá, mas sei que não tem leite na geladeira. - Acho que deveríamos voltar para casa. Fui surpreendida por um enorme bocejo, e Eliot riu de mim. Pôs as mãos em meus ombros e disse: - Você está com sono. - Ar fresco demais - respondi. - E vinho demais. Joguei a cabeça para trás a fim de olhá-lo nos olhos e ficamos muito próximos. Senti seus dedos apertarem meus ombros. Ele parará de rir, mas possuía uma suavidade no olhar que eu jamais vira antes. - Foi um dia maravilhoso... - foi tudo o que consegui dizer, pois ele me beijou e, por algum tempo, não pude dizer nada. Quando Eliot finalmente me soltou, eu estava tão trêmula que caí debilmente em seus braços, querendo chorar, sentindo-me uma tola, percebendo que a situação havia fugido totalmente do meu controle. Meu rosto escondia-se em seu casaco, e seus braços, ao redor do meu corpo, seguravam-me tão apertado, que pude sentir, como a vibração de um tambor, os sólidos batimentos de seu coração. Sobre minha cabeça, eu o ouvi dizer: - Você não deve voltar para Londres. Não deve ir embora de novo.

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9 As compras que fiz em Falmouth provaram ser uma inesperada bênção. Eu devia estar inspirada, pois, sem pensar, proporcionei a descontração de que precisávamos para atenuar o embaraço da incômoda noite anterior. Molhe ficou encantada com as frésias; não podia cultivá-las em Boscarva, como explicou, pois os ventos eram muito frios e o jardim exposto demais. Ela me agraciou fazendo um belíssimo arranjo, demonstrando um talento que ninguém jamais pensara ser possível, e finalmente deu às frésias o lugar de honra no meio do console da lareira, na sala de estar. Elas encheram o ar com seu perfume rico e romântico, e os tons de bege, violeta e rosa-escuro chamavam atenção, naturalmente, para o retrato de Sophia. As flores pareciam complementar o tom brilhante de sua pele e o ligeiro tremeluzir do vestido branco. - Lindo - disse Mollie, olhando de longe, mas não sei dizer se ela se referia às flores ou ao quadro. - Foi muita gentileza sua trazê-las. Eliot a levou para conhecer minha casa? Então agora você entende como me sinto tendo que morar num lugar tão incrível como este. - Olhou-me fixamente, apertando os olhos. - Sabe, acho que o dia de hoje lhe fez bem. Posso imaginar que esteve ao sol. Está corada. O ar fresco combina com você. Pettifer aceitou o sherry com solenidade, mas notei que ele ficou contente. E Grenville ficou feliz como uma criança com os charutos, pois o médico o havia proibido de fumar e Pettifer escondera seu suprimento habitual. Deduzi que ele os estava racionando com parcimônia. Grenville imediatamente tomou um nas mãos e o acendeu, baforando com imensa satisfação e reclinando-se em sua grande poltrona como alguém que não tem nada com o que se preocupar no mundo. Mesmo com Andréa eu havia, pela primeira vez, acertado. - The Creepers! Como adivinhou que era meu grupo favorito? Oh, eu queria que tivesse um toca-discos aqui, mas não tem, e deixei o meu em Londres. Nossa, eles não são demais, o máximo...?- E então ela voltou à Terra, procurando o preço na etiqueta. - Deve ter custado uma nota. Foi como se, com oferendas de paz, tivéssemos feito um acordo tácito. A noite anterior não foi discutida. Não houve menção à papeleira, nem a Ernest Padlow ou à possível venda da Fazenda Boscarva. Ninguém falou em Joss. Após o jantar, Eliot preparou uma mesa e Mollie trouxe a caixa de jacarandá que continha o mah-jong, que jogamos até a hora de dormir. Andréa sentou-se ao lado de Mollie, a fim de aprender as regras do jogo. Eu me peguei pensando que, se algum estranho chegasse de repente, iria se deparar com o agradável quadro familiar que formávamos sob o feixe de luz do abajur de pé, tal qual moscas no âmbar, entretidos com a interminável ocupação. O ilustre pintor, maduro no crepúsculo de seus anos, cercado pela família: a bonita nora e o lindo neto - e até mesmo Andréa, pela primeira vez atenta e interessada, viu-se absorvida pela complexidade do jogo. Eu havia jogado aquele jogo quando criança com minha mãe, às vezes formando um quarteto com duas de suas amigas, e senti-me confortada pela lembrança do toque do marfim e das telhas de bambu, pela sua beleza e pelo som agradável que produziam, como as pedras do mar perturbadas pela maré, à medida que as misturávamos no centro da mesa. A cada nova rodada, construíamos as quatro paredes, duas telhas altas e as fechávamos num quadrado apertado "para afastar os espíritos malignos", como nos aconselhou Grenville, que aprendera o jogo milenar quando era um jovem subtenente em Hong Kong e conhecia todas as suas tradicionais superstições. Imaginei como seria fácil e seguro se os fantasmas, as dúvidas e os segredos vergonhosos de família também pudessem ser excluídos e deixados de fora.

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FOLHETOS DE VIAGENS e pôsteres de férias de Porthkerris inevitavelmente retratavam um lugar onde o mar e o céu tinham sempre um tom azul brilhante e imaculado, as casas eram iluminadas pelo sol e uma exótica palmeira, em primeiro plano, sugeria o glamour do mediterrâneo. A imaginação era naturalmente conduzida a visões de lagostas frescas degustadas ao ar livre; artistas barbados usando aventais manchados de tinta; e pescadores castigados pelo tempo, pitorescos como piratas, sentados sobre postes de amarração, fumando cachimbo e discutindo a pescaria da semana anterior. Mas Porthkerris, em fevereiro, com os ventos nordestes soprando, não tinha nenhuma ligação com esse vago paraíso. O mar, o céu e a própria cidade eram acinzentados, as ruas formavam um labirinto estreito e confuso e eram sempre sujeitas às investidas furiosas de ventos cortantes. A maré era alta, as ondas quebravam contra a encosta e a água espirrava na estrada, embaçando com sal as janelas das casas da frente e enchendo as canaletas de espuma amarelada, como espuma suja de sabão. Era como se o lugar estivesse sitiado. Os compradores se cobriam com todo tipo de proteção e cobriam a cabeça com capuzes, os corpos se enrolavam em roupas indistintas, de modo que não se podia distinguir os homens das mulheres, todos com botas de borracha deselegantes. O céu tinha a cor do vento e o ar ficava repleto de destroços voadores de naufrágios, folhas, galhos, pedaços de papel e até telhas arrancadas dos telhados. Nas lojas, as pessoas esqueciam o que vinham comprar e distraíam-se conversando sobre o tempo, o vento, o estrago que a tempestade faria. Eu fora outra vez às compras para Mollie, lutando para achar a descida da montanha, usando uma capa de chuva emprestada e botas de borracha, pois sentia-me mais segura andando a pé do que utilizando o carro de Mollie. Agora que estava mais familiarizada com a cidade, não precisava mais que Andréa indicasse o caminho... mesmo porque, Andréa ainda encontrava-se na cama quando saí de Boscarva e, pela primeira vez, eu não a culpava. O dia não estava nada convidativo, e era difícil acreditar que ontem mesmo eu estivera sentada ao ar livre, com roupas leves, expondo-me a um sol quente como o de maio.. Terminadas as compras, saí da padaria no instante em que o relógio na torre da igreja Norman marcou 11 horas. Normalmente, em tais condições, eu teria ido direto para Boscarva, mas tinha outros planos em mente. Cabisbaixa, a cesta pesada sobre o braço, dirigi-me à enseada. A galeria de arte, eu sabia, localizava-se na antiga capela batista, em algum lugar no labirinto de ruas, ao norte da cidade. Imaginei que poderia sair andando à sua procura, mas à medida que me embrenhava pela avenida da enseada, lutando contra as investidas do vento e os borrifos de água do mar, avistei o antigo abrigo de pescadores, que fora transformado num ponto de informações para turistas, e decidi que pouparia tempo e esforço se obtivesse ali algumas dicas. Lá dentro encontrei uma moça desanimada, debruçada sobre um fogareiro a querosene; usando botas e tremendo, ela parecia a única sobrevivente de alguma expedição ártica. Quando entrei, ela não se moveu da cadeira e disse: - Sim? - olhando-me através de um par de óculos destoantes. Tentei sentir pena dela. - Estou procurando a galeria de arte. - Qual delas? - Não sabia que havia mais de uma. Atrás de mim, a porta se abriu e se fechou, e uma terceira pessoa juntou-se a nós. A moça olhou por sobre meu ombro, demonstrando um vago interesse por detrás das lentes. - Há a Town Gallery e a New Painters - disse ela, bem mais animada. - Não sei qual das duas é a melhor. - Talvez - disse uma voz atrás de mim - eu possa ajudá-la. Virei-me e deparei-me com Joss, que usava botas de borracha, um oleado preto respingado de chuva e um boné de marinheiro enfiado na cabeça. Seu rosto estava molhado, as mãos enfiadas dentro dos bolsos fundos da capa, os olhos castanhos faiscando de alegria. Uma parte de mim entendia exatamente por que a indolente moça atrás do balcão se animara. A outra metade estava enlouquecida pela extraordinária capacidade que ele tinha de aparecer justamente quando eu menos esperava. Lembrei-me de Andréa. Lembrei-me da escrivaninha e da cadeira. E disse friamente: - Olá, Joss. - Eu a vi entrando aqui. O que pretende fazer? A moça intrometeu-se: - Ela quer ir à galeria de arte. Joss esperou minha confirmação; encurralada, eu assenti. - Pensei que talvez pudesse haver alguns quadros de Grenville na galeria...

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- Você está certa; há três. Vou levá-la... - Não preciso que me leve, só quero saber onde fica. - Eu gostaria de levá-la... dê-me isso. Tirou a pesada cesta de minhas mãos, sorriu para a moça e abriu a porta. O uivo do vento e uma rajada de ar carregado de espuma adentrou o lugar, e uma pilha de folhetos voou de cima do balcão e espalhou-se no chão. Antes que causássemos mais estragos, corri para fora, e a porta de mola fechou-se atrás de nós. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Joss me pegou pelo braço e me guiou para o meio da rua de pedras. Ele mantinha uma conversa animada, ainda que o vento varresse as palavras de sua boca e me obrigasse, mesmo estando segura pelo braço, a fazer todo o esforço do mundo para caminhar. - O que a traz à cidade num dia como este? - Você está carregando o motivo: as compras de Mollie. - Não podia ter vindo de carro? - Imaginei que o carro pudesse ser jogado para fora da estrada pelo vento. - Eu adoro isso - disse ele. - Adoro dias assim. - Parecia adorar também a fúria e a vitalidade do vento soprando. -Divertiu-se muito ontem? - O que sabe sobre ontem? - Estive em Boscarva e Andréa me disse que você havia ido para Falmouth com Eliot. Não pense que pode guardar segredos neste lugar. Se Andréa não tivesse me contado, Pettifer o teria feito, ou o Sr. Thomas, ou a Sra. Kernow, ou a Srta. Olhos Brilhantes no guichê de informações. Faz parte da vida em Porfhkerris todos saberem exatamente o que o outro faz. - Estou começando a perceber. Dobramos a rua da enseada e começamos a subir uma rua de pedras. As casas se enfileiravam em ambos os lados da colina; um gato atravessou a rua apressado e desapareceu através de uma fenda numa janela. Uma mulher com um chapéu que parecia um penico e um avental azul esfregava os degraus de sua casa. Ela olhou para nós e disse: - Olá, meu amor - para Joss; seus dedos pareciam salsichas cor-de-rosa por causa da água quente e do vento frio. No fim da rua, nos vimos numa pequena praça que eu não conhecia. Um dos seus lados era tomado por uma enorme construção que lembrava um galpão, com janelas em arco dispostas no alto e ao longo da parede. Ao lado da porta havia uma placa - GALERIA DE ARTE DE PORTHKERRIS - e Joss largou o meu braço, empurrou a porta com o ombro e pôs-se de lado para que eu entrasse na frente. Lá dentro, o frio era implacável e o lugar estava vazio e ventoso. As paredes brancas eram ornadas com quadros de todos os tipos e tamanhos, e duas grandes esculturas abstratas jaziam abandonadas no meio do salão, como rochas expostas pela maré vazante. Ao lado da porta havia uma mesa com uma pilha arrumada de catálogos, panfletos e cópias de publicação The Studio, mas, a despeito da aparência, a galeria apresentava uma densa atmosfera de tristes domingos. - Então - Joss pousou a cesta no chão e retirou o boné, sacudindo os pingos de chuva como um cão sacudindo o pêlo -, o que gostaria de ver? - Quero ver Sophia. Ele lançou-me um olhar direto, virando a cabeça subitamente, mas, ao mesmo tempo, sorriu e tornou a pôr o boné na cabeça, puxando a pala sobre os olhos como um sentinela. - Quem lhe contou sobre Sophia? Sorri docemente para ele. - Talvez tenha sido a Sra. Thomas. Ou talvez a Sra. Kernow. Ou talvez a Srta. Olhos Brilhantes do guichê de informações. - Menina insolente. - Há um retrato de Sophia aqui. Pettifer me contou. - É verdade. Venha comigo. Eu o segui salão adentro; nossas botas de borracha produziam um ruído alto no vazio do lugar. - Aí está - ele disse. Parei ao seu lado e olhei para cima, e lá estava ela, sentada sob um feixe de luz com um trabalho de costura nas mãos. Fiquei olhando para o quadro por muito tempo e finalmente soltei um longo suspiro de decepção. Joss olhou-me sob a ridícula aba do boné. - Por que esse suspiro? - Não se pode ver seu rosto. Continuo sem saber como ela era. Por que ele nunca pintou seu rosto? - Ele pintou. Várias vezes. - Bom, eu ainda não vi. Ele sempre pinta sua nuca ou suas mãos ou qualquer outra parte do corpo e ela sempre fica sem rosto, apenas com uma bolha no lugar.

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- Importa para você como ela era? - Não, não importa. Eu apenas queria saber. - Quando foi a primeira vez que ouviu falar dela? - Minha mãe me contou. E depois Pettifer, e o quadro na sala de estar em Boscarva, tão charmosa e feminina que faz pensar que ela era bonita. Mas Pettifer disse que ela não era bonita, em absoluto. Apenas charmosa e atraente. -Olhamos novamente para o quadro. Observei as mãos e o brilho da luz sobre seus cabelos negros. - Pettifer diz que há retratos de Sophia espalhados pelas galerias de todo o país. Terei que ir de Manchester a Birmingham, a Nottingham, a Glasgow, até encontrar um em que ela não esteja de costas. - O que fará então? - Nada. Apenas saberei como ela era. Virei-me, desapontada, e comecei a caminhar de volta para a porta, onde minha cesta carregada de coisas esperava por mim, mas Joss apressou-se em levantá-la antes que eu a alcançasse. - Tenho que voltar - eu disse. - São apenas - ele consultou o relógio -1 lh30. E você ainda não conhece minha loja. Venha conhecê-la comigo e farei uma xícara de café, depois a levarei para casa. Não pode subir a montanha com todo este peso. - Claro que posso. - Não deixarei - ele abriu a porta. -Venha. Eu NÀO PODERIA voltar sem a cesta, e ele, obviamente, não desistiria; então, resignada e relutante, fui com ele, enfiando as mãos nos bolsos para que não me segurasse pelo braço. Ele não parecia de modo algum embaraçado diante da minha indelicadeza que, por si só, era desconcertante; porém, quando voltamos para a enseada e nos deparamos mais uma vez com o vento inesperado, eu quase perdi o equilíbrio, e ele riu e tirou minha mão do bolso e tomou-a na sua. Era difícil não sentir-se desarmada diante de gestos tão protetores e magnânimos. Tão logo a loja pôde ser avistada, uma construção alta e estreita entre duas casas baixas e largas, notei as mudanças realizadas. As janelas tinham sido pintadas, o vidro laminado fora limpo e uma placa fora colocada sobre a porta. JOSS GARDNER. - O que acha? - ele perguntou, cheio de orgulho. - Esplêndida - tive que admitir. Ele tirou uma chave do bolso, destrancou a porta e entramos na loja. Havia caixotes de embalagem sobre o piso lajeado e, pelas paredes, estantes de diversos tamanhos estavam sendo montadas até o teto. No centro da sala havia uma outra estrutura, bastante semelhante às que existem nos parques para as crianças subirem, prontamente decorada com modernos vidros dinamarqueses e porcelanas chinesas, recipientes de culinária em cores vibrantes e tapetes indianos listrados com cores alegres. As paredes eram brancas e a madeira do mobiliário fora deixada em seu estado natural, o que, somado ao piso cinza, produzia um contraste simples e interessante com as mercadorias coloridas à venda. Nos fundos da loja, uma escada descoberta levava aos andares superiores e, sob ela, havia outra porta, entreaberta, que dava para o que parecia ser um porão escuro. - Vamos subir... - Ele foi na frente. Eu o acompanhei. - O que é aquela porta? - É a minha oficina. Está terrivelmente bagunçada, eu lhe mostrarei da próxima vez. Agora veja. - Saímos no segundo andar e mal podíamos andar com tantos cestos e outros trabalhos de vime espalhados pelo chão. - Ainda não arrumei direito, mas, como vê, aqui se pode comprar cestos para se colocar lenha, grampos de roupa, compras, bebês, roupas sujas ou qualquer coisa que se queira. Nenhum dos cômodos era muito espaçoso. A casa estreita não passava de uma atraente escadaria com um piso em cada andar. - Vamos subir de novo. Como estão suas pernas? Agora chegamos ao pièce de résistance, os aposentos palacianos do proprietário. Passei por um banheiro minúsculo imprensado no patamar da escada. E, demorando-me atrás das longas pernas de Joss, eu me peguei lembrando da ardente descrição que Andréa fizera do apartamento e desejando que fosse inteiramente diferente; só assim eu me certificaria de que ela se deixara levar pela imaginação e inventara tudo aquilo. "Parece que saiu de uma revista. Com um sofá-cama, montes de almofadas e outras coisas e também uma lareira." Mas era tudo exatamente como ela descrevera. Quando subi os últimos degraus, minha fugaz esperança desvaneceu-se rapidamente. E havia algo de secreto naquele lugar, com o teto descendo inclinado, até o chão, uma janela de água-furtada e um sofá sob ela. Observei a pequena cozinha atrás de uma bancada, como um bar, o antigo

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tapete turco no chão e o diva, coberto com uma manta vermelha, recuado na parede. Como ela dissera, havia várias almofadas espalhadas. Joss deixara minha cesta no chão e estava tirando a roupa molhada e pendurando-as num antiquado cabideiro de bambu. - Tire suas roupas antes que morra de frio - ele disse. -Vou acender a lareira... - Não posso ficar, Joss... - Não há razão para não acender a lareira. E, por favor, tire o casaco. Desabotoei-o com os dedos congelados, tirei o gorro de lã umedecido e sacudi minha trança sobre o ombro. Enquanto pendurava o casaco e o gorro ao lado das roupas de Joss, ele se ocupava da lareira, partindo gravetos, amassando papéis, juntando as cinzas de algum provável fogo anterior e acendendo tudo com um círio alongado. Quando o fogo começou a crepitar, pegou alguns pedaços de madeira embebidos em alcatrão, retirados de um cesto junto à lareira, empilhando-os em torno da chama. Eles crepitaram, estalaram e incendiaram-se prontamente. E do quarto, com a luz do fogo, emanou vida. Joss levantou-se e virou-se para mim. - Agora, o que quer beber? Café? Chá? Chocolate? Conhaque com soda? - Café. - Saindo dois cafés. - Pôs-se atrás da bancada, encheu uma chaleira e acendeu o gás. Enquanto apanhava bandeja e xícaras, aproximei-me da janela, ajoelhei sobre o assento e olhei, através da fúria da tempestade, para a rua embaixo, lavada pelas ondas que quebravam acima da muralha do cais. Os barcos na enseada balançavam feito rolhas dementes, e imensas gaivotas adejavam sobre seus mastros oscilantes, grasnando contra o vento. Absorvido na tarefa de preparar o café, Joss moveu-se, com moderação, de um lado ao outro da cozinha de modo meticuloso e auto-suficiente, como um simples iatista. Assim ocupado, ele parecia totalmente inofensivo; contudo, as desconcertantes revelações de Andréa pareciam conter uma parcela de verdade. Eu conhecia Joss havia apenas poucos dias, mas já tinha visto suas várias facetas. Sabia que ele podia ser charmoso, obstinado, nervoso e extremamente rude. Não era difícil imaginá-lo como um amante impiedoso e apaixonado; contudo, era detestável imaginá-lo com Andréa. Ele levantou os olhos, de repente, e seu olhar encontrou o meu. Fiquei embaraçada, pega em meus pensamentos. Falei, prontamente, a fim de desviar a atenção: - Com bom tempo, você deve ter uma vista adorável. - Dá para ver até o farol. - No verão, isso aqui deve parecer outro país. - No verão, isso aqui parece o metrô de Piccadilly na hora do rush. Mas dura apenas dois meses. - Saiu de trás da bancada, carregando uma bandeja com as xícaras fumegantes, o açucareiro e a jarra de leite. O cheiro do café era delicioso. Puxou um banco comprido com o pé, depositou a bandeja numa beirada e sentou-se na outra. Por conseguinte, ficamos frente a frente. - Fale-me mais sobre ontem - disse Joss. Contei-lhe sobre St. Endon e o pequeno pub à beira-mar. - É, já ouvi falar, mas nunca estive lá. O almoço estava bom? - Estava. E o tempo estava tão quente que nos sentamos ao sol. - É a costa leste, para você. E o que aconteceu depois? - Não aconteceu nada. Voltamos para casa. Ele me entregou a xícara num pires. - Eliot levou-a a High Cross? - Sim. - Você conheceu a agência de automóveis? - Conheci. E a casa de Molhe também. - O que achou de todos aqueles carros elegantes e excitantes? - Achei exatamente isso. Que eram elegantes e excitantes. - Conheceu algum dos seus funcionários? Sua voz soou tão casual que fiquei desconfiada. - Quem, por exemplo? - Morris Tatcombe? - Joss, você não me convidou para tomar café, não foi? Está me sondando. - Não estou. Juro que não. Eu apenas queria saber se Morris está trabalhando para Eliot. - O que sabe sobre Morris? - Apenas que é um vigarista. - Ele é um bom mecânico. - É verdade. Todo mundo sabe disso e essa é a única coisa boa a seu respeito. Mas é também uma pessoa totalmente desonesta e degenerada.

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- Se ele é totalmente desonesto, por que não está na prisão? - Ele estava. Acabou de sair de lá. Tirou o chão de debaixo dos meus pés, mas continuei de cabeça erguida, parecendo mais segura de mim do que realmente estava. - E como sabe que ele é um degenerado...? - Porque puxou uma briga comigo, uma noite, num pub. Fomos para fora e eu esmurrei seu nariz, e foi sorte eu tê-lo acertado primeiro, pois ele estava carregando uma faca. - Por que está me contando isso? - Porque você pediu. Se não quer saber das coisas, não deveria fazer perguntas. - E o que devo fazer a esse respeito? - Nada. Absolutamente nada. Sinto ter tocado nesse assunto. Ouvi dizer que Eliot havia lhe dado emprego e eu esperava que não fosse verdade. - Você não gosta de Eliot, gosta? - Não gosto nem desgosto. Ele não tem nada a ver comigo. Mas vou lhe dizer uma coisa. Ele escolhe mal os amigos. - Está se referindo a Ernest Padlow? Joss lançou um olhar cheio de relutante admiração. - Você não perde tempo. Parece que sabe de tudo. - Falei isso porque vi Ernest Padlow com Eliot naquela noite em que fomos jantar no Anchor. - Tem razão. Esse é outro patife. Se Ernest tivesse chance, Porthkerris inteira se transformaria em um estacionamento. Não haveria uma casa de pé. E todos teríamos que subir a montanha e morar em suas minúsculas moradias que, em dez anos, estarão cheias de goteiras e caindo aos pedaços. Não retruquei diante de sua explosão. Tomei o café e pensei em como seria agradável conversar sem ser envolvida em antigas rusgas que nada tinham a ver comigo. Estava cansada de ouvir as pessoas de quem eu queria gostar arruinarem a reputação das outras. Terminei o café, pus a xícara de lado e disse: - Tenho que voltar. Joss, com notório esforço, desculpou-se: - Perdoe-me. - Porquê? - Por perder a calma. - Eliot é meu primo, Joss. - Eu sei. - Ele abaixou a cabeça, girando a xícara nas mãos. - Mas, sem querer, acabei me envolvendo com Boscarva também. - Apenas não deixe que seus preconceitos recaiam sobre mim. Nossos olhares se encontraram. - Não estou chateado com você. - Eu sei. - Levantei-me. - Preciso ir - disse novamente. - Eu a levarei para casa. - Não precisa...- Mas ele não deu atenção ao meu protesto, apenas tirou meu casaco do cabideiro e ajudou-me a vesti-lo. Enfiei o gorro de lã molhado sobre as orelhas e apanhei a pesada cesta. O telefone tocou. Joss, com o seu oleado, foi atender, e eu comecei a descer as escadas. Ouvi-o chamar, pouco antes de tirar o fone do gancho: - Rebecca, espere por mim. Não vou demorar... - e em seguida, falou ao telefone: - Pronto? Sim, é Joss Gardner quem está falando... Desci ao primeiro andar e fui até a loja. Continuava chovendo. Lá de cima, o tom grave da voz de Joss chegava aos meus ouvidos. Entediada por ter que esperá-lo, talvez um tanto curiosa, empurrei a porta da oficina, acendi a luz e desci quatro degraus de pedras. Havia a bagunça costumeira, bancadas, aparas, pedaços de madeira, ferramentas, tornos; no ar, pairava um cheiro de cola, de madeira nova, de verniz. Havia ainda um amontoado de móveis velhos tão empoeirados e corroídos que era impossível imaginar se tinham ou não algum valor. Uma cômoda sem os puxadores, uma mesa-de-cabe-ceira sem o pé. E então, bem no fundo do quarto, à sombra, eu as vi. Uma papeleira, aparentemente em perfeito estado, e, ao seu lado, uma cadeira no estilo Chippendale chinês, com assento de bordado florido.

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Senti-me mal, como se tivesse recebido um soco na boca do estômago. Virei-me e subi os degraus, apaguei a luz e fechei a porta, atravessei a loja e saí da casa em direção à fúria do vento naquele inoportuno dia de fevereiro. "Minha oficina está terrivelmente bagunçada, eu lhe mostrarei da próxima vez." Caminhei e então descobri que havia tomado a direção da igreja, passando por um bairro repleto de ruelas, onde ele nunca poderia me encontrar. Estava correndo, sempre morro acima, sobrecarregada pela cesta de compras pesada feito chumbo, e meu coração pulava em meu peito e havia um gosto de sangue em minha boca. Eliot estava certo. Havia sido fácil demais para Joss, que simplesmente aproveitara a chance. Fora a minha papeleira; fora a minha papeleira que ele levara, mas ele a havia tirado da casa de Grenville, traindo a confiança e a bondade do velho. Eu poderia matá-lo e isso seria fácil. Prometi a mim mesma que jamais tornaria a lhe dirigir a palavra, que não suportaria chegar perto dele outra vez. Eu nunca havia me sentido tão irritada em toda a minha vida. Com ele e, pior ainda, comigo mesma, por ter sido levada por seus encantos vazios, por me deixar enganar. Eu nunca havia sentido tanta raiva. Tropecei enquanto subia a montanha. Mas, se eu estava com tanta raiva, então por que estava chorando?

10 Foi uma longa e exaustiva subida até Boscarva, e nunca imaginei que fosse possível suportar tanta emoção por mais de dez minutos. Gradativamente, lutando penosamente contra a escalada e o mau tempo, fui me acalmando, enxuguei as lágrimas com a luva e me recompus. Em situações intoleráveis como essa, quase sempre existe uma saída, e, bem antes de alcançar Boscarva, eu havia decidido o que faria. Voltaria para Londres. Deixei a cesta de compras na mesa da cozinha e subi para o meu quarto, tirei as roupas encharcadas, troquei os sapatos, lavei as mãos e refiz minha trança cuidadosamente; mais calma, saí à procura de Grenville e encontrei-o no escritório, sentado diante do fogo da lareira, lendo o jornal matutino. Ele baixou o papel e ergueu os olhos quando entrei. - Rebecca. - Olá. Como está passando nesta manhã tempestuosa? - soei resolutamente animada, como uma enfermeira ensandecida. - Cheio de dores. Esse vento mata, ainda que não se saia de casa. Por onde tem andado? - Em Porthkerris. Precisei fazer algumas compras para Mollie. - Que horas são? - Meio-dia e meia. - Então vamos tomar um cálice de sherry. - É permitido? - Não me importo se é permitido ou não. Você sabe onde fica a garrafa. Enchi dois copos e pus o dele cuidadosamente sobre a mesinha ao lado de sua poltrona. Puxei uma cadeira e sentei-me frente a frente com ele. - Grenville - eu disse -, tenho que voltar para Londres. - O quê? - Tenho que voltar para Londres. - Os olhos azuis se apertaram, o queixo pronunciado estendeu-se à frente; num ímpeto, usei Stephen Forbes como desculpa. - Não posso ficar aqui para sempre. Estou afastada do meu trabalho há quase duas semanas, e Stephen Forbes, o homem para quem trabalho, foi tão bom para mim que não posso continuar abusando de sua bondade e generosidade. Acabei de me dar conta de que hoje é sexta-feira. Preciso voltar para Londres neste fim de semana. Devo voltar ao trabalho na segunda-feira. - Mas você acabou de chegar. - Ele estava completa e nitidamente chateado comigo. - Estou aqui há três dias. Depois de três dias os peixes e as visitas começam a cheirar. - Você não é visita. É a filha de Lisa.

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- Mas, ainda assim, tenho compromissos. Gosto do meu trabalho e não pretendo abandoná-lo. - Sorri, tentando distraí-lo. - E agora que conheço o caminho para Boscarva, talvez eu possa voltar, quando tiver mais tempo livre para passá-lo com o senhor. Ele não respondeu, ficou apenas parecendo velho e ra-bugento, olhando fixamente para o fogo. - Posso não estar mais aqui - afirmou ele, sombriamente. - Ah, é claro que vai estar. Ele suspirou, tomou um demorado e trêmulo trago do sherry, colocou o cálice de lado e virou-se para mim, aparentemente resignado. - Quando pretende partir? Fiquei surpresa, porém aliviada, por ele ter sucumbido tão facilmente. - Provavelmente amanhã à noite. Pegarei uma cabine-dormitório. E assim terei o domingo para ajeitar as coisas em meu apartamento. - Você não devia morar sozinha num apartamento em Londres. Você não foi feita para morar sozinha. Foi feita para se casar, ter uma casa e filhos. Se eu fosse vinte anos mais jovem e ainda pudesse pintar, lhe mostraria como viver neste mundo, num campo ou jardim, ocupada com plantas e filhos. - Talvez isso venha a acontecer algum dia. E então mandarei buscá-lo. Seu rosto encheu-se de tristeza. Ele afastou-se de mim e disse: - Gostaria que ficasse. Desejei poder lhe dizer que ficaria, contudo, havia mil razões que me impediam de fazê-lo. - Vou voltar - prometi. Ele fez um enorme e tocante esforço para se recompor, limpando a garganta, ajeitando-se na poltrona. - O seu jade. Teremos que pedir a Pettifer que o coloque numa caixa para poder levá-lo. E o espelho... será que poderá levá-lo no trem ou é grande demais? Você deveria ter um carro, assim não teria esse tipo de problema. Você tem um carro? - Não, mas não tem importância... - E creio que a papeleira não... - Não me importo com a papeleira! - eu o interrompi num tom de voz tão alto e de maneira tão súbita que Grenville olhou para mim um tanto surpreso, como se não esperasse de mim modos tão rudes. - Desculpe - apressei-me em dizer -, mas isso realmente não importa. Não poderia suportar todos brigando por causa disso. Por favor, por mim, não fale mais nisso, não pense nunca mais nisso. Ele me observou com atenção, pensativo, um olhar fixo que me fez baixar os olhos. - Acha que sou injusto com Eliot? - perguntou. - Acho apenas que vocês nunca conversam, nunca contam nada um ao outro. - Ele seria diferente se Roger não tivesse morrido. Ele foi um garoto que precisava de um pai. - O senhor não poderia ter sido seu pai? - Mollie nunca deixou que eu me aproximasse dele. Ele nunca se ligou em nada. Sempre saltando de emprego em emprego e agora montou essa agência de automóveis, há três anos. - Parece ser um sucesso. - Carros usados! - sua voz estava cheia de injustificado desdém. - Ele poderia ter ingressado na Marinha. - Suponha que ele não quis ingressar na Marinha? - Ele quereria, se sua mãe não o tivesse feito desistir da idéia. Ela desejava tê-lo em casa, agarrado à sua saia. - Oh, Grenville, acho que está sendo totalmente antiquado e bastante injusto. - Eu lhe pedi sua opinião? Mas, no mesmo instante, ele estava sorrindo. Um bom argumento, para Grenville, era como um tiro no braço. - Não me importa se pediu ou não, mas agora já sabe. Ele riu e inclinou-se para beliscar minha bochecha. - Como eu queria poder pintar - ele disse. - Você ainda quer um de meus quadros para levá-lo para Londres com você? Tive medo que ele tivesse esquecido. - Mais do que tudo. - Pode pegar a chave do ateliê com Pettifer. Diga-lhe que tem minha autorização. Vá e vasculhe o lugar, veja o que encontra por lá. - O senhor não vem comigo? Mais uma vez seu rosto encheu-se de dor. - Não - ele respondeu rispidamente e virou-se a fim de alcançar o copo de sherry. Permaneceu ali, olhando para o líquido âmbar, girando o copo na mão. - Não irei com você.

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NO ALMOÇO, ELE DEU a notícia aos outros. Andréa, lívida por eu estar voltando para Londres enquanto ela teria que ficar na terrível e entediante Cornualha, assumiu uma expressão emburrada. Mas os outros ficaram consternados, o que, para mim, foi bastante gratificante. - Mas tem mesmo que ir? - disse Mollie. - Sim, realmente tenho. Tenho um emprego esperando por mim e não posso ficar para sempre. - Adoramos tê-la aqui conosco. Ela sabia ser charmosa quando não estava sendo agressiva e possessiva com Eliot, ou ressentida com Grenville e Boscarva. Eu ainda a via como uma linda gatinha, mas agora conhecia suas longas garras escondidas sob as patas macias e aveludadas e sabia que ela não hesitaria em usá-las, caso achasse necessário. - Também adorei... Pettifer foi o mais sincero. Após o almoço, fui até a cozinha ajudá-lo com os pratos, e ele não fez rodeios. - Por que quer ir embora agora, justamente quando está se acostumando e o comandante começando a conhecê-la? Ora, não pensei que você fosse esse tipo de pessoa... - Vou voltar. Eu disse a ele que voltarei. - Ele está com 80 anos. Não vai durar para sempre. Como vai se sentir quando voltar e ele não estiver mais aqui, e assim enterrado a dois metros debaixo da terra? - Oh, Pettifer, pare. - É muito fácil dizer "Oh, Pettifer, pare". Não há nada que eu possa fazer. - Eu tenho um emprego. Preciso voltar. - Para mim, parece egoísmo. - Isso não é justo. - Por todos esses anos ele ficou sem ver a filha e então você aparece e fica por três dias. Que tipo de neta é você? Não respondi porque não tinha nada a dizer. E eu odiava me sentir culpada e não ter razão. Terminamos de lavar a louça em silêncio, mas, quando ele estava secando a pia com um pano úmido, tentei fazer as pazes com ele. - Sinto muito, muito mesmo. Já é bastante ruim ter que partir sem que você me faça sentir cruel. E eu vou voltar. Já disse que vou. Talvez no verão... ele ainda vai estar aqui no verão, e o tempo vai estar quente e poderemos fazer muitas coisas juntos. Talvez você possa nos levar de carro... Minha voz foi sumindo. Pettifer estendeu o pano na beirada da pia. - O comandante mandou lhe entregar a chave do ateliê - disse ele rispidamente. - Não sei o que vai encontraria. Provavelmente muito pó e aranhas, devo informá-la. - Ele disse que eu poderia escolher um quadro. Pettifer lavou as mãos calejadas, lentamente. - Vou pegar a chave. Está escondida num lugar seguro. Não queria vê-la rolando por aí, onde qualquer um pudesse achá-la. Tem muita coisa boa lá dentro. - Quando puder. - Não suportei sua censura. - Ah, Pettifer, não fique zangado comigo. Ele se derreteu. - Ora, não estou zangado. Talvez eu esteja sendo egoísta. Talvez seja eu que não queria vê-la partir. Subitamente eu o vi não como o onipresente Pettifer, envolvido com os afazeres domésticos, mas como um homem de idade, quase tão velho quanto meu avô, e certamente tão sozinho quanto ele. Senti uma estúpida sensação de aperto na garganta e por um terrível momento pensei que fosse explodir em lágrimas, o que seria a segunda vez no dia; porém, Pettifer falou: - E não vá escolher um de seus nus, não seria apropriado. E o temível momento se foi, e nós estávamos sorrindo, amigos outra vez. Naquela tarde, Mollie me emprestou seu carro, e eu guiei os 8 quilômetros até a estação e lá comprei minha passagem e reservei uma cabine para o trem noturno de sábado. A fúria do vento diminuíra um pouco, mas o mau tempo continuava violento e tempestuoso, com árvores caídas e devastação por toda parte, estufas destruídas, galhos quebrados e campos de bulbos, do início da primavera, achatados pela ventania. Cheguei em casa e me deparei com Mollie no jardim de Boscarva, encasacada para esconder-se do frio (mesmo Mollie não parecia elegante num dia como aquele), tentando amarrar e salvar alguns dos arbustos mais frágeis que cresciam em volta da casa. Ao ver o carro, ela decidiu dar por encerrado o que estava fazendo, pois quando estacionei e caminhei em direção à casa, eu a vi andando em minha direção, retirando as luvas e escondendo uma mecha de cabelo no lenço da cabeça. - Não suporto mais nem um minuto disso - ela disse. - Odeio vento, me deixa exausta. Mas o pobrezinho daquele loureiro iria se partir em pedaços. Todas as camélias foram queimadas pela ventania; ela as deixou marrons. Vamos entrar e tomar uma xícara de chá.

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Enquanto ela se trocava, pus a chaleira no fogo e as xícaras na bandeja. - Onde está todo mundo? - perguntei a Mollie quando ela voltou, milagrosamente arrumada, usando colar e brincos de pérolas. - Grenville está tirando uma soneca e Andréa está em seu quarto... - Ela suspirou. - Devo dizer que ela não é uma menina fácil. Se ao menos fizesse alguma coisa para se divertir em vez de se esconder por aí de maneira tão aborrecida. Receio que não esteja lhe fazendo nenhum bem ficar aqui, não achei que faria, para ser honesta, mas minha pobre irmã estava completamente desesperada. - Ela olhou a cozinha confortável. - Está aconchegante aqui. Vamos tomar nosso chá aqui mesmo. A sala de estar tem muita corrente de ar quando o vento sopra do mar e mal dá para cerrar as cortinas depois das 16h30... Mollie tinha razão, a cozinha era aconchegante. Pôs na mesa uma toalha e o bule de chá, bolos e biscoitos, açucareiro e uma jarrinha de prata cheia de leite. Mesmo para um chá na cozinha, seus padrões me pareceram, meticulosos. Puxou duas cadeiras de rodinhas e estava a ponto de alcançar o bule de chá quando Andréa apareceu. - Ah, Andréa, querida, chegou bem na hora. Vamos tomar o chá na cozinha hoje. Quer uma xícara? - Sinto muito, mas não tenho tempo. Tal resposta inesperadamente polida fez Mollie virar-se para olhá-la. - Vai sair? - Vou - respondeu Andréa. - Vou ao cinema. Nós duas olhamos para ela com cara de bobas, pois o impossível havia acontecido: Andréa subitamente decidira cuidar da aparência. Havia lavado o cabelo e o amarrara para trás, vestira um suéter limpo e até mesmo, fiquei encantada em ver, usava sutiã. Sua cruz céltica pendia do cordão de couro, os jeans escuros tinham sido cuidadosamente passados e os sapatos pesados, engraxados. Sobre o braço ela trazia uma capa de chuva e uma bolsa de couro com franjas. Eu nunca a tinha visto tão apresentável. E, o melhor de tudo, a expressão em seu rosto não era de mau humor nem de malevolência, e sim... de recato! Alguém poderia imaginar Andréa recatada? - Isto é - prosseguiu ela -, se a senhora permitir, tia Mollie. - Ora, é claro. A que vai assistir? - Mary of Scotland. Está passando no Plaza. - Vai sozinha? - Não, vou com Joss. Ele me ligou enquanto a senhora estava no jardim. Vamos jantar depois. - Oh - disse Mollie, vagamente. E então, sentindo que esperavam dela algum comentário: - Como vai descer a montanha? - Vou andando e Joss deverá me trazer em casa... - Tem dinheiro? - Tenho algum. Ficarei bem. - Então... - Mas Mollie se deu por vencida. - Divirta-se. - Obrigada. - Ela nos lançou um rápido sorriso. -Tchau! A porta se fechou atrás dela. - Tchau! - disse Mollie. E olhou para mim. - Extraordinário - comentou. Eu estava concentrada em minha xícara de chá. - O que é extraordinário? - perguntei casualmente. - Andréa e... Joss. Quero dizer, ele sempre foi muito educado com ela, mas... convidá-la para sair...? - Não deveria estar tão surpresa. Ela fica atraente quando toma banho e se lembra de sorrir. É provável que ela sorria para Joss o tempo todo. - Acha que não há problema em deixá-la sair? Sabe, eu sou responsável por ela... - Honestamente, não vejo como você poderia impedi-la de sair. Ela tem 17 anos, não é mais criança. Deve saber se cuidar... - Esse é o problema - disse Mollie. - Esse sempre foi o problema de Andréa. - Ela vai ficar bem. Ela não ficaria bem, e eu sabia disso, mas não podia desiludir Mollie. Além do mais, que importância tinha? Não era da minha conta se Joss escolhera passar suas noites fazendo amor à beira da lareira com uma adolescente ninfomaníaca. Eles eram muito parecidos. Eles se mereciam. Quando terminamos o chá, Mollie amarrou um avental em torno da cintura e começou a preparar o jantar. Lavei as xícaras e os pires. Quando enxugava o último prato e o guardava, Pettifer surgiu, trazendo na mão uma chave grande que mais parecia a de um calabouço. - Eu sabia que a tinha guardado num lugar seguro; encontrei-a no fundo de uma gaveta no escritório do comandante...

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- O que é isso, Pettifer? - inquiriu Mollie. - A chave do ateliê, madame... - Céus, quem quer isso? - Eu quero - falei. - Grenville disse que eu podia ir até lá escolher um quadro para levar para Londres. - Minha criança, que trabalho vai ter. Aquele lugar deve estar na maior desordem, há dez anos sem ver a luz do dia. - Não tem importância. - Peguei a chave, que pesava como chumbo nas mãos. - Vai lá agora? Está escurecendo. - Não tem luz elétrica? - Tem, sim, mas é muito sombrio. Espere até amanhã de manhã. Mas eu queria ir. - Ficarei bem. Vou botar um casaco. - Há um archote na mesa do hall, é melhor levá-lo, o caminho pelo jardim é íngreme e escorregadio. E assim, vestida com meu casaco de couro e munida do archote e da chave, saí pela porta que dava para o jardim. O vento do mar continuava violento e acompanhado da chuva fina e fria, e tive que lutar para fechar a porta atrás de mim. A tarde prematuramente melancólica transformava-se em noite, contudo ainda havia luz suficiente para descer com cuidado o jardim inclinado, e não acendi o archote até precisar do feixe de luz para encontrar o buraco da fechadura. Enfiei a chave e ela virou com certa relutância, necessitando de óleo; a porta se abriu, rangendo. Havia um cheiro de umidade e mofo, indícios de teias de aranhas e bolor, e rapidamente pus a mão para dentro à procura do interruptor. Na mesma hora, uma única lâmpada, presa ao teto alto, acendeu-se debilmente, e fui cercada por sombras dançantes, pois a corrente de ar fez o fio da lâmpada balançar de um lado para o outro como o pêndulo de um relógio. Entrei e fechei a porta atrás de mim, e as sombras lentamente serenaram. À minha volta, formas cobertas de pó se avultaram à meia-luz, mas do outro lado da sala havia outra lâmpada num abajur torto e quebrado. Aproximei-me dele, encontrei o interruptor e o acendi e, no mesmo instante, tudo pareceu um pouco menos abandonado. Notei que o ateliê fora projetado em dois níveis, com um mezanino para se dormir no lado sul, indo ao encontro de uma escadaria que fazia lembrar um navio. Subi até o meio da escada e vi o diva e o cobertor listrado. Sobre a cama havia uma janela hermeticamente fechada e um travesseiro com penas soltas, talvez fosse obra de algum rato gatuno. A carcaça de um pássaro jazia, semelhante a um galho ressecado, no canto do quarto. Estremeci diante de tamanha desolação e tornei a descer para o ateliê. O vento fazia trepidar a enorme janela do lado norte. Um intrincado dispositivo de cordões e roldanas movia a cortina, e lutei com ele por algum tempo, mas fui finalmente derrotada pelo mecanismo e acabei por deixar a cortina fechada. No meio da sala havia uma poltrona para modelo, coberta com um lençol. Os ratos também estiveram ali - fragmentos de veludo vermelho e tecido de crina estavam espalhados sobre ele, junto com sujeira de rato e uma grande quantidade de poeira. Sob outro lençol encontrei a bancada de trabalho de Grenville; seus pincéis, a bandeja de tubos de tintas, paletas, espátulas, frascos de óleo de linhaça, pilhas de telas virgens, encardidas pelo tempo. Havia ainda uma coleção de objets trouvés, coisinhas que talvez tivessem cativado sua afeição. Uma pedra polida do mar, meia dúzia de conchas, um monte de penas de gaivotas, provavelmente adquiridas com o objetivo prático de limpar seu cachimbo. Havia fotografias retorcidas e desbotadas de pessoas que eu não conhecia, um jarro chinês azul e branco cheio de lápis, alguns frascos de tinta indiana petrificada e fragmentos de lacre. Aquilo era o mesmo que bisbilhotar, como se eu estivesse lendo o diário de outra pessoa. Pus de lado o lençol e me detive no verdadeiro propósito de minha visita, o amontoado de telas sem molduras encostadas na parede, todas viradas para dentro. Estavam, como o restante das coisas, cobertas de poeira, mas os lençóis haviam escorregado para o chão, e, quando desalojei a primeira pilha, meus dedos tocaram em algumas teias e uma enorme aranha repugnante fugiu apressada pelo chão, desaparecendo nas sombras. Foi uma operação vagarosa. Cinco ou seis por vez, eu erguia as telas, espanava a poeira, recostava-as em série contra a poltrona para modelo, mudando o abajur de posição para que a luz as iluminasse. Algumas estavam datadas, porém fora de ordem cronológica, e a maioria delas não deixava indício algum de quando ou onde haviam sido pintadas. Eu sabia apenas que elas registravam a totalidade da vida profissional de Grenville e as suas influências.

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Havia paisagens terrenas, marinhas - o oceano em todos os seus humores -, interiores graciosos, alguns desenhos de Paris e outros que lembravam a Itália. Havia barcos e pescadores, cenas das ruas de Porthkerris, diversos desenhos a carvão, incompletos, de duas crianças que eu sabia serem Roger e Lisa. Não havia retratos. Dei início à minha seleção, separando as telas que achava particularmente atraentes. Quando cheguei à última pilha, havia meia dúzia delas apoiadas contra o assento de uma poltrona de espaldar arqueado, e eu estava suja e com frio, com as mãos imundas e teias de aranha agarradas à roupa. Com a agradável sensação da tarefa quase cumprida, pus-me a separar a última pilha de telas. Havia três desenhos em caneta e tinta e uma vista de uma enseada com iates ancorados. E então... Era a última tela e a maior de todas. Precisei usar as duas mãos e toda a minha força para erguê-la do canto escuro e virá-la na direção da luz. Segurei-a no alto utilizando uma das mãos e inclinei-me para trás. O rosto da moça encontrou o meu, o olhar caído, sorrindo com uma vitalidade que a poeira de anos não foi capaz de ofuscar. Observei o cabelo negro, as salientes maçãs do rosto e a boca sensual que não sorria, mas parecia estremecer, à beira de uma gargalhada. E ela usava o mesmo vestido branco de tecido delicado, o vestido que usara ao posar para o retrato pendurado sobre a lareira da sala de estar em Boscarva. Sophia. Desde que minha mãe mencionara seu nome, eu ficara fascinada por ela. A frustração de não saber como ela era apenas aumentara minha obsessão. Mas agora que a encontrara e estávamos finalmente cara a cara, senti-me como Pandora. Eu abrira a caixa e os segredos fugiram, e não havia modo de recolocá-los ali e fechar a tampa novamente. Eu conhecia aquele rosto. Havia falado com ele, discutido com ele; vira-o amuar-se e sorrir; tinha visto aqueles olhos negros se apertarem de raiva e brilharem de contentamento. Era o rosto de Joss Gardner.

11 De repente o frio tornou-se insuportável. Estava escuro e o ateliê, gelado. Porém eu podia sentir o sangue esvair-se do meu rosto como água caindo da bacia; podia ouvir as batidas ritmadas do meu coração e comecei a tremer violentamente. Meu primeiro impulso foi o de pôr o retrato de volta em seu lugar, empilhar algumas outras telas sobre ele e escondê-lo, como um criminoso que tenta ocultar um corpo ou algo pior. Mas, por fim, peguei uma cadeira e ajeitei a tela com cuidado sobre ela, para que apoiasse o retrato de Sophia como um cavalete, e, em seguida, afastei-me, com as pernas trêmulas, e abaixei-me lentamente sobre o assento alto do velho sofá. Sophia e Joss. Sophia, encantadora, e Joss, decepcionante, quem eu finalmente descobrira não ser digno de confiança. "Ela foi para Londres, casou-se, teve um bebê, eu acho," Pettifer me havia dito. Então, em 1942, foi morta na guerra. Mas ele não mencionara Joss. Apesar de Joss e Sophia estarem tão inextricavelmente ligados. Então pensei em minha papeleira, a papeleira de minha mãe, que ela tanto queria que ficasse comigo, escondida nos fundos da oficina de Joss. E ouvi a voz de Mollie: "Não sei por que Grenville morre de amores por Joss. É assustador. É como se Joss exercesse algum poder sobre ele." Sophia e Joss. Escurecera. Eu não tinha relógio e havia perdido a noção do tempo. O vento encobria qualquer outrc ruído, por isso não ouvi Eliot aproximando-se pelo jardim, aventurando-se pela escuridão, uma vez que eu estava com o archote. Não escutei coisa alguma até que a porta se abriu de repente, como se fosse uma rajada de vento, fazendo a

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lâmpada reiniciar sua demente oscilação e quase me enlouquecendo de pavor. No instante seguinte, Rufus entrou e jogou-se ao meu lado no sofá, e então percebi que eu tinha companhia. Meu primo Eliot estava parado à porta, emoldurado pela escuridão. Usava jaqueta de camurça, suéter azul-claro por baixo com uma capa de chuva jogada sobre os ombros, como um manto. A luz cruel drenou todo o colorido de seu rosto fino e transformou seus olhos encovados em buracos negros. - Minha mãe disse que você estava aqui. Eu vim... Ele parou, e notei que ele havia visto o retrato. Não consegui me mover, estava petrificada de frio e, mesmo assim, era tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito. Ele entrou no ateliê e fechou a porta. As sombras dançantes, mais uma vez, serenaram lentamente. Nenhum dos dois disse nada. Segurei a cabeça de Rufus, instintivamente buscando conforto em seu pêlo macio e cálido, e fiquei observando Eliot sacudir a capa de chuva, jogá-la sobre uma cadeira, aproximar-se vagarosamente e sentar-se ao meu lado. Seus olhos não desgrudaram do retrato. Por fim, ele falou: - Deus do céu. Permaneci em silêncio. - Onde foi que encontrou isto? - Num canto... - minha voz soou como um grasnido. Limpei a garganta e tentei novamente. - Num canto, atrás de uma série de telas. - É Sophia. - É. - £ Joss Gardner. Não houve negativa. - É. - O neto de Sophia, você acha? - Provavelmente. - Ora, macacos me mordam. Ele recostou-se no sofá e cruzou as longas pernas elegantes, subitamente relaxado, como um ilustre crítico de arte numa visita pré-inaugural a uma exposição. Sua evidente satisfação deixou-me intrigada e não quis que ele notasse que eu a compartilhava. - Não estava procurando por isto - expliquei. - Queria saber como Sophia era, mas não fazia idéia de que havia um retrato dela aqui. Apenas vim escolher uma tela, porque Grenville disse que eu poderia levar uma delas comigo para Londres. - Eu sei. Minha mãe me disse. - Eliot, não devemos dizer nada. Ele ignorou minha observação. - Sabe, sempre achei que havia algo engraçado a respeito de Joss, algo inexplicado. O modo como apareceu em Porthkerris, do nada. E o modo como Grenville sabia de sua presença; o emprego que lhe ofereceu e seu livre acesso em Boscarva. Nunca confiei em Joss além do que meus olhos podiam enxergar. E o desaparecimento da escrivaninha, a pape-leíra que deveria ser entregue a você. Tudo muito suspeito. Entendi que poderia contar a Eliot que eu havia encontrado a papeleira. Abri a boca com a intenção de fazê-lo e tornei a fechá-la, pois de alguma forma as palavras não saíram. Ademais, Eliot continuava falando e não notara minha incipiente interrupção. - Minha mãe jurava que ele tinha alguma ligação com Grenville. - Você fala como se se tratasse de extorsão. - Pode ser, de uma forma ou de outra. Sabe,"Aqui estou, o neto de Sophia, o que vai fazer por mim?", e Pettifer também deve saber. Ele e Grenville não têm segredos um para o outro. - Eliot, não devemos contar a ninguém que achamos o retrato. Ele virou a cabeça para olhar para mim. - Parece ansiosa, Rebecca. Por causa de Joss Gardner? - Não. Por causa de Grenville. - Mas você gosta de Joss. - Não. Ele simulou espanto. - Mas todo mundo gosta de Joss! Todo mundo, ao que parece, deixou-se enfeitiçar por seu charme pueril. Grenville e Pettifer; Andréa está embriagada por ele, não o deixa em paz, mas acho que deve haver algo físico naquela atração. Pensei que você estivesse prestes a entrar para o clube. - Ele franziu a testa - Você gosta de Joss. - Não gosto mais, Eliot.

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Ele começou a ficar intrigado. Lentamente, mudou de posição, de modo que ficamos quase cara a cara no sofá, seu braço ao longo do encosto, por detrás do meu ombro. - O que aconteceu? - ele perguntou. O que acontecera? Nada. Mas eu nunca me senti à vontade com Joss e todas as coincidências que pareciam entrelaçar nossas vidas. E ele roubara a papeleira de minha mãe. E estava agora, nesse exato momento, mantendo um caso clandestino com a detestável Andréa. Eu não podia nem imaginar tal coisa. Eliot estava aguardando minha resposta. Mas eu apenas dei de ombros e balancei a cabeça desesperançosa, dizendo: - Mudei de idéia. - O dia de ontem teve alguma coisa a ver com isso? - Ontem? - Lembrei-me de quando sentei-me com Eliot no terraço ensolarado do pequeno pub; dos dois rapazes velejando pelas águas azuis da enseada; e, por fim, os braços de Eliot me envolvendo e me abraçando, do gosto do seu beijo e da sensação de ter perdido o controle, de estar escorregando de um penhasco. Tremi novamente. Minhas mãos, frias e imundas, jaziam em meu colo. Eliot as cobriu com sua e disse, um tanto surpreso: - Você está congelando. - Eu sei, estou aqui há horas. - Minha mãe disse que você está querendo voltar para Londres. Mudamos de assunto, e fiquei aliviada por isso. - É, eu preciso voltar. - Quando? - Amanhã à noite. - Você não me contou nada. - Decidi esta manhã. - Mudou de idéia e tomou uma série de decisões num único dia. - Não tinha me dado conta de como o tempo voou. Estou afastada do trabalho há quase duas semanas. - Ontem eu lhe pedi que ficasse. - Tenho que ir. - O que a faria ficar? - Nada. Quero dizer... não posso ficar... - eu estava gaguejando como uma idiota, mas estava gelada, suja e cansada demais para discutir esse assunto. Talvez, mais tarde, eu pudesse... - Você ficaria se eu a pedisse em casamento? Levei um susto. Meu rosto deve ter assumido uma expressão de horror, pois ele jogou a cabeça para trás e riu. - Não fique tão chocada. Não há nada de chocante em se casar. - Mas nós somos primos. - Isso não tem importância. - Mas nós não... quero dizer... você não me ama. Isso era algo constrangedor para ser dito, mas Eliot não se perturbou. - Rebecca, você está tremendo e gaguejando como uma colegial acanhada. Talvez eu a ame. Talvez eu a ame desde muito antes de pedi-la em casamento, mas você precipitou a situação anunciando repentinamente que vai voltar para Londres. Então, se vou ter que lhe dizer isso, que seja agora. Quero que se case comigo. Acho que nos daríamos muito bem. Involuntariamente, fiquei tocada. Ninguém jamais me pedira em casamento antes, e achei lisonjeiro. Mas, ainda que estivesse escutando Eliot com uma parte de minha mente, outra parte corria em círculos como um esquilo na gaiola. Porque havia ainda Boscarva e a terra que Eliot precisava vender para Ernest Padlow. "Você não é meu único neto." - ... parece ridículo dizermos adeus e sairmos da vida um do outro quando acabamos de nos conhecer, e há tantas coisas boas por vir para nós. - Como Boscarva - disse eu, calmamente. Seu sorriso foi se congelando lentamente em seu rosto. Ele ergueu uma das sobrancelhas. - Boscarva? - Sejamos honestos, Eliot. Por algum motivo você precisa de Boscarva. E acha que Grenville pode deixá-la para mim.

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Ele inspirou profundamente como se fosse negar, hesitou e então expirou o ar num longo suspiro. Seu sorriso era pesaroso. Passou a mão no alto da cabeça. - Como você é fria. De repente, tornou-se a Princesa do Gelo. - Você quer vender Boscarva para que Ernest Padlow construa suas casas. - É - disse ele, cautelosamente. Eu esperei. - Precisei do dinheiro para construir a agência de automóveis. Grenville não se mostrou interessado, então recorri a Padlow. Ele concordou e acertamos que o seguro seria a fazenda Boscarva. Um acordo de cavalheiros. - Mas ela não era sua. - Estava certo de que seria. Não havia razão para não ser. E Grenville estava velho e doente. O fim viria em breve. -Ele esticou as mãos. - Quem iria imaginar que três anos depois ele ainda estaria conosco? - Você fala como se o quisesse morto. - A velhice é uma coisa terrível. Solidão e tristeza. Ele aproveitou a vida. O que há aqui para ele querer ficar? Eu sabia que não poderia concordar com Eliot. Velhice, no caso de Grenville, significava dignidade e determinação. Eu havia acabado de conhecê-lo e já o amava; ele era parte de mim. Não podia suportar a idéia de sua morte. Tentando ser prática, perguntei: - Não existiria outra maneira de pagar ao Sr. Padlow? - Eu poderia vender a agência. Do jeito que andam as coisas, serei obrigado a fazer isso de qualquer maneira. - Pensei que a agência estivesse indo bem. - É o que todos pensam. - Mas, se vendesse a agência, o que iria fazer? - O que sugere que eu fizesse? - seu tom era divertido, como se eu fosse uma criança cheia de caprichos a serem satisfeitos. - O que me diz do Sr. Kemback e o museu de automóveis em Birmingham? - inquiri. - Que memória irritante você tem. - Trabalhar para ele seria tão mal assim? - E deixar a Cornualha? - Acho que deveria. Começar de novo. Livrar-se de Boscarva e... - fiz uma pausa e então pensei, já fui até aqui, vou até o fim - e de sua mãe - concluí rapidamente. - Minha mãe? - o tom divertido persistia, como se eu fosse uma tola. - Você sabe o que quero dizer, Eliot. Fez-se um longo silêncio. E então: - Eu acho - disse ele - que você andou conversando com Grenville. - Sinto muito. - Uma coisa é certa: ou Joss ou eu teremos que partir. Como dizem nos filmes de faroeste: "Esta cidade não é grande o bastante para nós dois." Mas eu preferia que Joss se fosse. - Joss não é importante. Ele não merece nossa consideração. - Se eu vendesse a agência e fosse trabalhar em Birmingham, você viria comigo? - Oh,Eliot... Virei o rosto e me vi, outra vez, cara a cara com o retrato de Sophia. Seus olhos encontraram os meus e foi como se Joss estivesse ali, escutando cada palavra do que dizíamos, rindo de nós. Então Eliot segurou meu queixo e virou meu rosto a fim de me forçar a olhá-lo nos olhos. - Ouça o que estou lhe dizendo! - Estou ouvindo. - Não precisamos estar apaixonados um pelo outro. Você sabe disso, não sabe? - Sempre achei que isso fosse importante. - Não acontece com todo mundo. Talvez nunca venha a acontecer com você. Era uma probabilidade desalentadora. - Talvez não. - Nesse caso - seu tom era gentil e moderado -, um compromisso não seria má idéia. Um compromisso não seria melhor do que um emprego das 9 às 17 horas pelo resto da vida e um apartamento vazio em Londres? Ele tocou em minha ferida. Eu estava sozinha havia tempos e a probabilidade de continuar sozinha pelo resto da vida era assustadora. Grenville dissera: "Você foi feita para se casar, ter uma casa e filhos." E agora estava tudo ali, esperando por mim. Tudo o que tinha a fazer era esticar minha mão e aceitar a oferta de Eliot.

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Pronunciei seu nome, e ele envolveu-me em seus braços e apertou seu corpo contra o meu, beijando meus olhos, meu rosto, minha boca. Sophia nos observava, mas eu não me importei. Disse a mim mesma que ela estava morta, e tirei Joss da minha vida de uma vez por todas. Por que me importaria com o que os dois pensariam de mim? Eliot disse finalmente: - Temos que voltar. - Separou seu corpo do meu. -Você precisa tomar um banho, e eu tenho que tirar o gelo do congelador, ajeitar tudo, ser obediente e servir os drinques para Grenville e minha mãe. - Certo - desvencilhei-me de seus braços e afastei uma mecha de cabelo da frente dos olhos. Sentia-me mortalmente cansada. - Que horas são? Ele consultou o relógio de pulso, a correia com que eu o presenteara continuava nova e reluzente. - Quase 19h30. Podíamos ficar aqui a noite inteira, mas, infelizmente, a vida continua. Levantei-me, extenuada. Sem olhar para o retrato, tomei-o nas mãos e coloquei-o de volta em seu canto escondido e empoeirado, junto das teias e das aranhas, virado para a parede. Então peguei as outras telas, aleatoriamente, e as coloquei à frente do retrato. Tudo, disse a mim mesma, estava como antes. Ajeitamos tudo rapidamente e cobrimos as telas com o lençol empoeirado que caíra no chão. Eliot desligou o abajur e eu peguei o archote. Saímos do ateliê, apagamos a luz e trancamos a porta. Eliot tomou o archote de minhas mãos e, juntos, seguindo o feixe dançante de luz, atravessamos o jardim, tropeçando sobre os canteiros e os tufos de grama, galgando os degraus molhados e brilhantes da varanda. Acima de nós, a casa avultava-se, os cômodos acesos fulgiam por detrás das cortinas cerradas e tudo o que havia à nossa volta eram o vento e as silhuetas das árvores atormentadas e desfolhadas. - Nunca vi uma tempestade durar tanto tempo - comentou Eliot enquanto abria a porta lateral para entrarmos. O hall estava aquecido e parecia seguro, e havia um cheiro gostoso de galinha assada que seria degustada no jantar. Separamo-nos, Eliot foi para a cozinha e eu subi para trocar minhas roupas imundas, preparar um banho e relaxar em seu vapor quente e perfumado. Descontraída, finalmente consegui não pensar em nada. Encontrava-me demasiadamente cansada para raciocinar. Pegaria no sono, decidi, e provavelmente me afogaria. Por alguma razão, tal idéia não me abalou. Mas não adormeci, pois, enquanto jazia na banheira, ouvi, mais alto do que o silvo do vento, o som de um carro se aproximando. O banheiro era voltado para a entrada de automóveis e a porta principal. Eu não me lembrara de puxar a cortina e os faróis do carro iluminaram, por um segundo, o vidro escuro. Uma porta bateu e eu ouvi vozes. Agitada, saí do banho, enxuguei-me e comecei a cruzar o corredor até o meu quarto, mas parei subitamente ao ouvir as vozes exaltadas que vinham do hall. - ... eu a encontrei a meio caminho do topo da montanha... - dizia uma voz masculina, desconhecida. Em seguida, Mollie: -... Mas minha criança querida...- e foi interrompida por uma série desenfreada de soluços. Ouvi Eliot dizendo: - Pelo amor de Deus, menina... E Mollie, novamente: - Venha para perto do fogo... está tudo bem. Está segura agora... Entrei em meu quarto, vesti as roupas, abotoei o colarinho do cafetã marrom, escovei e trancei o cabelo, tudo num curto espaço de tempo. Passei uma camada de batom - não havia tempo para mais nada -, calcei um par de sandálias e desci as escadas enfiando os brincos. Ao chegar lá embaixo, Pettifer surgiu pela porta da cozinha com uma expressão tempestuosa no rosto, trazendo nas mãos um cálice de conhaque. O indicativo da gravidade da situação era o fato de que ele não cuidara de servir a bebida numa salva de prata. - Pettifer, o que aconteceu? - Não sei exatamente o que aconteceu, mas parece que a menina está histérica. - Ouvi o motor de um carro. Quem a trouxe para casa? - Morris Tatcombe. Disse que ia de Porthkerris para casa quando a encontrou na estrada. Fiquei horrorizada. - Quer dizer caída na estrada? Ela foi atropelada ou coisa assim? - Não sei. Provavelmente levou um tombo. Nos fundos do hall, a porta da sala de estar estava escancarada e Mollie veio em nossa direção, quase correndo. - Oh, Pettifer, não fique aí conversando, apresse-se com o conhaque. - Ela me viu parada, perplexa. - Oh, minha querida Rebecca, que coisa terrível, absolutamente terrível. Vou ligar para o médico. - Ela estava ao telefone, tateando o caderninho, incapaz de enxergar por ter esquecido os óculos em algum lugar. - Procure aqui para mim, minha querida. Doutor Trevaskis... deve estar escrito aí em algum lugar, mas não consigo achar... Pettifer havia saído. Peguei o caderninho e comecei a procurar o número. - O que houve com Andréa? - perguntei.

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- É uma história horripilante. Mal posso acreditar. Por misericórdia Morris a encontrou. Ela poderia ter passado a noite inteira lá. Poderia ter morrido... - Aqui está. Lionel Trevaskis. Porthkerris 873. Ela pôs a mão no rosto. - Oh, é claro, eu deveria ter decorado o número. - Pegou o fone e discou. Enquanto esperava, falou comigo rapidamente: - Vá sentar ao lado dela, os homens são tão inúteis, nunca sabem o que fazer. Apesar de aturdida e estranhamente relutante em saber os detalhes da infeliz experiência de Andréa, fiz o que ela me pediu. Dirigi-me, tropegamente, à sala de estar. Grenvüle, aparentemente estupefato, estava diante da lareira com as mãos atrás das costas, calado. Os outros estavam agrupados em torno do sofá; Eliot servira um drinque a Morris e os dois observavam Pettifer, com louvável paciência, tentar derramar um bocado do conhaque na garganta de Andréa. E Andréa... apesar de tudo, fiquei chocada e amedrontada ante sua aparência. A suéter limpa e os jeans bem passados, com os quais ela saíra tão feliz, estavam ensopados e sujos de lama. Pelo rasgo das calças, pude ver seu joelho ralado e sangrento, vulnerável como o de uma criança. Ela havia perdido, ao que parecia, um dos sapatos. Seu cabelo estava grudado à cabeça, como alga marinha, seu rosto estava borrado pelo choro e, quando a chamei pelo nome, ela virou o rosto para me encarar com olhos patéticos e molhados; notei, horrorizada, a enorme equimose na têmpora, como se tivesse sido selvagemente espancada. A cruz céltica no cordão de couro se perdera; talvez tenha se partido em alguma luta inconcebível. - Andréa! Ela soltou um gemido estridente e girou o corpo para comprimir o rosto contra o encosto do sofá, cuspindo o conhaque e jogando o copo nas mãos de Pettifer para longe. - Não quero falar sobre isso. Não quero falar sobre isso...! - Mas precisa! Pettifer, exasperado, catou o copo e saiu da sala. Pensei comigo mesma que ele nunca gostara da moça. Tomei assento ao lado dela, na beirada do sofá, e tentei virar seus ombros na minha direção. - Alguém fez isso com você? Andréa lançou o corpo, em convulsão, contra o meu. - Fez! - ela gritou na minha cara como se eu fosse surda. - Joss! - e, com isso, ela debulhou-se outra vez num mar de lágrimas. Ergui os olhos para Grenville e fui submetida a um olhar penetrante e impassível. Sua expressão poderia ter sido esculpida em madeira. Percebi que dele não sairia nenhuma ajuda. Virei para Morris Tatcombe. - Onde a encontrou? Ele trocou a perna de apoio. Notei que ele estava vestido para alguma ocasião noturna. Blusão de couro, com emblemas bordados, respingado de chuva, jeans colados à pele e botas de saltos. Mesmo calçado, o topo de sua cabeça mal atingia o ombro de Eliot, e seus cabelos compridos pendiam úmidos e escorridos. Ele jogou os cabelos para trás, um gesto tanto agressivo quanto constrangido. - A meio caminho do topo da montanha. Sabe, onde a estrada se estreita e não há calçada. Ela estava entre a ribanceira e a vala. Foi sorte eu tê-la visto, de verdade. Pensei que tivesse sido atropelada, mas não foi isso. Parece que ela teve uma briga com Joss Gardner. Ele a convidou para ir ao cinema - eu disse. - Não sei como tudo começou - disse Morris. - Mas foi assim - interrompeu Grenville, num tom circunspecto - que tudo terminou. - Mas... - Tinha que haver outra explicação. Eu estava prestes a dizer isso quando Andréa soltou outro gemido, como uma bruxa velha num lamento fúnebre, e perdi a compostura. - Ah, pelo amor de Deus, menina, cale a boca! - segurei-a pelos ombros e lhe dei uma ligeira sacudidela de modo que sua cabeça bateu contra o estofado de seda como uma boneca de trapo com pouco enchimento. - Pare de fazer esse barulho demente e conte-nos o que aconteceu. As palavras começaram a sair de sua boca, enfeada pela choradeira. (Pensei prontamente: "Pelo menos não está faltando nenhum dente." E me odiei pela frieza do meu coração.) - Eu... nós... fomos ao cinema... e quan... quando saímos, fomos a um pub e... - Qual pub7. - Não sei... - Tem que saber qual pub... Minha voz aumentou com impaciência. Atrás de mim, Mollie, que eu não ouvira entrar na sala, falou: - Oh, não grite com ela. Não seja indelicada. Fiz um esforço e tentei de novo, mais gentil. - Pode se lembrar onde foram?

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- Não. Estava es... escuro... e eu... não pude ver. E depois... e depois... Segurei-a com firmeza, na tentativa de acalmá-la. - E depois? - E Joss bebeu um bocado de uísque. E disse que não me levaria em casa. Ele queria que eu fo... fosse para o seu apartamento com ele... e... Sua boca ficou quadrada, e ela cedeu a um pranto incontrolável. Eu a soltei, me levantei e me afastei. Na mesma hora Mollie tomou o meu lugar. - Pronto - ela disse. - Pronto, pronto. - Ela era mais gentil do que eu, sua voz era doce e maternal. - Não há mais nada com o que se preocupar. O médico está a caminho, e Pettifer está preparando um saco de água quente para pôr em sua cama. Não precisa nos contar mais nada. Não precisa mais tocar no assunto. Contudo, talvez mais calma com o tratamento que Mollie lhe dispensara, Andréa pareceu ansiosa para revelar tudo e, em meio a intermináveis soluços e arfadas, ouvimos o restante da história. - Eu não queria ir. Eu... eu queria voltar para casa. E eu... o deixei. E ele veio atrás de mim. E... eu tentei correr e tropecei na cal... calçada, e meu sapato... s... saiu. E então ele me... me pegou e com... começou a gritar comigo... e eu gritei e ele me bateu... Olhei para os outros à minha volta e o mesmo ar de horror e consternação, em diversos graus, estava estampado em seus rostos. Apenas Grenville parecia frio, profundamente enraivecido, mas continuava impassível, calado. - Tudo bem - disse Mollie mais uma vez, com a voz um tanto trêmula. - Agora está tudo bem. Vamos lá para cima. De alguma forma, Andréa, murcha e enlameada, foi erguida cuidadosamente do sofá, mas suas pernas não agüentaram seu peso e ela começou a desfalecer. Foi Morris quem, parado ao seu lado, deu um passo adiante e a segurou antes que ela caísse, sustentando-a, com uma força surpreendente, em seus braços franzinos. - Pronto - disse Mollie. - Morris vai levá-la para cima. Você vai ficar bem... - Ela andou até a porta. - Por aqui, Morris. - Certo - disse Morris, que parecia não ter outra escolha. Olhei para Andréa. A medida que Morris se movia, ela abriu os olhos e olhou diretamente para mim, e nossos olhares se fixaram. E eu sabia que ela estava mentindo. E ela sabia que eu sabia que ela estava mentindo. Recostando o rosto contra o peito de Morris, ela se pôs a chorar novamente. Rapidamente, foi carregada da sala. Ouvimos os passos sobrecarregados de Morris atravessarem o hall e começarem a subir os degraus da escada. Em seguida, Eliot teceu um comentário primoroso, porém incompleto: - Que história desagradável. - Ele deu uma olhadela para Grenville e completou: - Devo ligar para a polícia agora ou mais tarde? Finalmente, Grenville se pronunciou: - Quem falou em ligar para a polícia? - O senhor tem intenção de deixá-lo impune? - Ela está mentindo - desabafei. Os dois olharam para mim um tanto surpresos. Grenville apertou os olhos, o que o fazia parecer temível. Eliot franziu a testa. - O que disse? - Alguma coisa do que ela disse deve ser verdade. Provavelmente a maior parte. Mas, ainda assim, ela está mentindo. - Como sabe que ela está mentindo? - Porque, como você mesmo disse, ela estava embriagada por Joss. Não o deixava em paz. Ela me contou que ia com freqüência ao seu apartamento, e deve ter ido mesmo, pois me descreveu exatamente como era a casa e cada detalhe estava certo. Não sei o que aconteceu esta noite. Mas sei que, se Joss quisesse que ela fosse até lá com ele, ela teria aceitado prontamente. Sem hesitar. - Então - perguntou Eliot calmamente - como explica a equimose em seu rosto? - Não sei. Não estou certa do restante da história. Mas aquela parte ela certamente inventou. Grenville se moveu. Ele esteve parado durante muito tempo. Caminhou para sua poltrona, lentamente, e inclinou o corpo cuidadosamente para se sentar. - Podemos descobrir o que realmente aconteceu - ele disse então. - Como? - Eliot disparou a pergunta como um tiro de revólver. Grenville virou a cabeça e fixou o olhar em Eliot. - Podemos perguntar a Joss. Eliot emitiu um som que, nos antigos romances, seria descrito como "Arre!" - Devemos perguntar a ele. E ele vai nos contar a verdade.

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- Ele não sabe o significado dessa palavra. - Você não tem o direito de dizer isso. Eliot perdeu a compostura. - Ah, pelo amor de Deus, será que a verdade tem que ser jogada em sua cara para que o senhor a enxergue? - Não levante a voz para mim. Eliot se calou, encarando o velho com descrença e revolta. Quando finalmente voltou a falar, ele o fez num tom um pouco mais alto do que um sussurro. - Já vi o bastante de Joss Gardner. Nunca confiei nele nem gostei dele. Eu o considero um impostor, um ladrão e um mentiroso, e sei que tenho razão. E um dia o senhor vai me dar razão. Esta casa é sua. Eu aceito isso. Mas o que não aceito é o fato de ele tomar conta dela e de nós também, só porque ele é... Tive que impedi-lo. - Eliot! - Ele virou-se para mim. Parecia ter esquecido que eu estava ali. - Eliot, por favor, não diga mais nada. Ele baixou os olhos para o copo e terminou seu drinque de um gole só. - Está certo - concordou. - Por hora não direi mais nada. E foi servir-se de outra dose. Enquanto o fazia, e Grenville e eu o observávamos em silêncio, Morris Tatcombe tornou a aparecer na sala. - Vou embora agora - ele disse a Eliot, que estava de costas e então virou-se para olhá-lo. - Ela está bem? - Bom, está lá em cima. Sua mãe está com ela. - Tome mais um drinque antes de ir. - Não, é melhor eu ir. - Realmente não temos como agradecer-lhe. O que teria acontecido se você não a tivesse visto... - ele parou, a frase incompleta evocava imagens de Andréa morrendo por abandono, exaustão e perda de sangue. - Foi sorte eu tê-la visto - ele recuou, certamente ansioso por partir, mas sem saber ao certo como fazê-lo. Eliot tapou a garrafa com a rolha, largou o copo cheio sobre a mesa e veio em seu socorro. - Vou levá-lo até a porta. Morris inclinou a cabeça em nossa direção. - Boa noite a todos. Mas Grenville esforçou-se e pôs-se de pé com sólida dignidade. - O senhor deu conta de tudo muito bem, Sr. Tatcombe. Somos muito gratos ao senhor. E ficaríamos agradecidos também se o senhor guardasse a versão da moça para si. Pelo menos até que tudo se esclareça. Morris pareceu cético. - Essas coisas se espalham. - Porém, não da sua boca. Morris deu de ombros. - Isso é problema de vocês. - Exatamente. É um problema nosso. Boa noite, Sr. Tatcombe. Eliot mostrou-lhe o caminho. Grenville tornou a sentar-se, penosamente, em sua poltrona. Passou a mão nos olhos e ocorreu-me que preocupações desse tipo não seriam boas para sua saúde. - O senhor está bem? - Sim, estou. Desejei poder-lhe confidenciar o que descobrira a respeito de Sophia e Joss. Não obstante, entendia que, se tal revelação tivesse que ser feita, deveria partir dele. - Gostaria de um drinque? - Não. Então o deixei sozinho e me ocupei de ajeitar as almofadas achatadas do sofá. Levou algum tempo até que Eliot retornasse, mas, ao voltar, ele pareceu ter recuperado o bom humor; a súbita discussão que acontecera entre Grenville e ele havia sido prontamente esquecida. Apanhou seu drinque. - Saúde! - desejou, erguendo o copo para o avô. - Creio que estamos em dívida com aquele jovem -disse Grenville. - Espero que algum dia possamos recompensá-lo. - Eu não me preocuparia tanto com Morris - replicou Eliot num tom tranqüilo. - Creio que ele pode arranjar-se sozinho. E Pettifer mandou lhes dizer que o jantar está servido. Jantamos sozinhos, os três. Mollie ficou fazendo companhia a Andréa. Em meio ao jantar, o médico chegou e foi conduzido por Pettifer ao quarto da moça. Mais tarde, nós o ouvimos conversando com Mollie no hall, e ela o levou até a porta e veio à sala de jantar nos informar sobre seu parecer.

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- Está em choque, é claro. Ele lhe deu um sedativo e ela terá que ficar na cama por um ou dois dias. Eliot levantou-se para buscar uma cadeira para a mãe, que mergulhou nela parecendo exaurida e trêmula. - Imagine, acontecer uma coisa dessas. O que vou dizer à mãe dela? Nem imagino. - Não pense nisso - disse Eliot - até amanhã. - Mas é uma coisa tão terrível. Ela é apenas uma criança. Só tem 17 anos. No que Joss estaria pensando? Ele deve ter enlouquecido. - Provavelmente estava bêbado. - Sim, talvez estivesse. Bêbado e violento. Grenville e eu não dissemos nada. Era como se tivéssemos feito um acordo tácito, mas isso não significava que eu havia me esquecido de Joss, nem fechado os olhos para as coisas que ele havia feito. Mais tarde, provavelmente quando fosse interrogado por Grenville, toda a verdade viria à tona. A essa altura, eu provavelmente já estaria em Londres. E se eu ainda estivesse aqui... Lentamente, eu comia um cacho de uva. Aquele poderia ser meu último jantar em Boscarva, mas eu não estava inteiramente certa de que seria ou não. Encontrava-me numa encruzilhada e não fazia idéia do caminho que deveria tomar. Porém, em breve, teria de me decidir. Um compromisso, dissera Eliot, e aquilo soava morno. Mas, após as representações histriônicas daquela noite, aquelas palavras ganharam certa consistência, sensatez e, apesar do prosaísmo, traziam os pés plantados no chão. "Você foi feita para se casar, ter uma casa e filhos." Peguei meu cálice de vinho e, numa olhadela, notei que Eliot me observava do outro lado da mesa envernizada. Ele sorriu, como se fôssemos conspiradores. A expressão em seu rosto denotava confiança e júbilo. Era provável que, enquanto eu pensava em acabar me casando com ele, ele já soubesse que eu o faria. De volta à sala de estar, estávamos sentados diante da lareira para terminar nosso café, quando o telefone começou a tocar. Imaginei que Eliot atenderia, mas ele estava afundado na poltrona, com o jornal numa das mãos e um drinque na outra, e custou tanto a tomar a iniciativa que Pettifer foi obrigado a atender. Ouvimos a porta da cozinha abrindo e seus passos arrastarem-se pelo hall. A campainha do telefone cessou. Não sei por que, olhei para o relógio que ficava sobre o console da lareira. Eram quase 21h45. Esperamos. Dali a pouco, a porta se abriu; Pettifer enfiou a cabeça pela fresta e seus óculos refletiram a luz do abajur. - Quem é, Pettifer? - Mollie quis saber. - É para Rebecca - ele respondeu. Fiquei surpresa. - Para mim? - Quem pode estar ligando a uma hora dessas? - disse Eliot. - Não faço idéia. Levantei-me do sofá e deixei a sala. Talvez fosse Maggie, querendo me falar alguma coisa sobre o apartamento. Talvez Stephen Forbes, desejando saber quando eu voltaria ao trabalho. Senti-me culpada por não ter entrado em contato com ele para dizer o que estava fazendo e quando pretendia voltar para Londres. Sentei-me sobre o baú que havia no hall e peguei o fone. - Alô? Comecei a ouvir uma voz fraca e tímida, parecendo estar muito distante. - Oh, Srta. Bayliss, estávamos passando, ele estava lá caído... meu marido disse... então o levamos para sua casa e o ajudamos a subir a escada... não sei o que houve... coberto de sangue e mal podia falar. Queríamos chamar um médico... mas ele não quis... temos medo de deixá-lo lá sozinho... deve haver alguém aí... ele disse que ficaria bem... Devo ter sido demasiadamente lenta e estúpida, mas levei algum tempo para perceber que aquela era a Sra. Kernow, me ligando de um telefone público da Alameda Fish para me dizer que alguma coisa tinha acontecido com Joss.

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Fiquei surpresa e agradecida por me encontrar num estado de quase absoluta tranqüilidade. Era como se eu já tivesse sido preparada para essa crise, recebido ordens e soubesse o que fazer. Não havia dúvidas e, por isso, nenhuma indecisão. Era simples assim. Fui até o meu quarto e apanhei o casaco, o vesti e o abotoei; tornei a descer as escadas. A chave do carro de Mollie estava onde eu a havia deixado, sobre a bandeja de bronze no centro da mesinha do hall. Peguei-a e, nesse momento, a porta da sala de estar se abriu e Eliot atravessou o corredor em minha direção. Não passou pela minha cabeça que ele pudesse tentar me impedir de sair. Não passou pela minha cabeça que ninguém, que nada pudesse me impedir de sair. Ele me viu, vestida com minha velha jaqueta de couro. - Aonde você vai? - Vou sair. - Quem era ao telefone? - A Sra. Kernow. - O que ela queria? - Joss foi ferido. Ela e o Sr. Kernow estavam voltando para casa pela estrada da enseada, foram visitar a irmã dela, e o encontraram. - E daí? - sua voz estava fria e séria. Esperava me intimidar, mas isso não aconteceu. - Vou pegar o carro de sua mãe emprestado. Vou até lá. Seu rosto fino se enrijeceu, a pele se esticou sobre os ossos salientes. - Você ficou louca? - Não acho que tenha ficado. Ele se calou. Joguei a chave no bolso e aproximei-me da porta, mas Eliot foi mais rápido e, com duas largas passadas, colocou-se à minha frente, de costas para a porta e com a mão na maçaneta. - Você não vai - disse ele de maneira divertida. - Não acha realmente que eu a deixaria ir. - Ele foi ferido, Eliot. - E daí? Você viu o que ele fez com Andréa. Ele é um crápula, Rebecca. Você sabe disso. Sua avó era uma prostituta irlandesa, Deus sabe quem era seu pai, e ele é um bastardo efeminado. As duras palavras, que deveriam me chocar, entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Eliot notou, e minha indiferença o deixou enfurecido. - Por que quer ir atrás dele? O que vai poder fazer? Ele não ficará agradecido por você se intrometer, se é que está à procura de agradecimento. Deixe-o em paz, ele não faz parte da sua vida, não é da sua conta. Permaneci parada, olhando para ele, ouvindo o que ele dizia, sem que nada do que ele falasse fizesse sentido para mim. Mas entendi, de imediato, que tudo havia terminado, a incerteza e a indecisão, e me senti mais leve e aliviada, como se ele tivesse tirado um grande peso das minhas costas. Não obstante, eu continuava numa encruzilhada. Minha vida ainda estava confusa. Porém, uma coisa tornara-se absolutamente clara para mim. Eu nunca poderia me casar com Eliot. Um compromisso, ele afirmara. Mas, para mim, isso teria sido uma barganha insignificante. Tudo bem, ele era fraco e certamente não era o mais bem-sucedido dos profissionais. Eu havia reconhecido tais falhas em seu caráter e estava preparada para aceitá-las. Mas a acolhida que ele me dispensara, a hospitalidade e o charme que ele ligava e desligava quando melhor lhe convinha não me deixaram enxergar seu caráter vingativo e a assustadora força de seu ciúme. - Deixe-me sair, Eliot - pedi. - Suponha que eu diga que não vou deixá-la sair. Suponha que eu a prenda aqui. - Ele segurou minha cabeça com as mãos, apertando tão forte, que achei que meu crânio fosse se quebrar como uma noz. - Suponha, agora, que eu diga que a amo. Fiquei enojada. - Você não ama ninguém. Só a si mesmo. Não há lugar para mais ninguém em sua vida. - Pensei que fosse você que não soubesse amar. Ele apertou mais forte. Minha cabeça começou a latejar. Fechei os olhos na tentativa de suportar a dor. - Quando eu aprender - falei entre dentes -, não vai ser com você. - Está certo, então vá... Ele me soltou tão de repente que eu quase perdi o equilíbrio. Violentamente, ele girou a maçaneta e escancarou a porta e, na mesma hora, o vento correu para dentro como uma criatura monstruosa que aguardara a noite inteira para invadir a casa. Do lado de fora havia a escuridão e a chuva. Sem dizer mais uma palavra e sem parar para olhar para Eliot, passei por ele correndo como se fosse me abrigar em outro lugar.

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Tive ainda que chegar à garagem, lutar contra os portões e enfrentar a escuridão até achar o carro de Mollie. Estava convencida de que Eliot estava atrás de mim, tão assustador quanto um espectro esperando para pular, para me pegar, para me impedir de fugir. Bati a porta do carro, e minha mão tremia tanto que quase não consegui enfiar a chave na ignição. A primeira vez que a virei, o motor não deu a partida. Choraminguei, enquanto puxava o afogador e tentava novamente. Dessa vez o motor pegou. Engatei a marcha e pisei no acelerador, atravessando a escuridão e a chuva, subindo pela passagem de carros encharcada, salpicando os cascalhos, e finalmente deixando a propriedade e ganhando a estrada. Dirigindo, recuperei a calma interior. Eu havia escapado de Eliot e estava indo ao encontro de Joss. Precisava dirigir com cautela e bom senso, sem entrar em pânico, sem correr o risco de sofrer um acidente. Diminuí a velocidade para os prudentes 50 quilômetros por hora. Deliberadamente, afrouxei a mão agarrada com força ao volante. A estrada inclinava-se na montanha escura e molhada. Eu estava indo ao encontro de Joss. A maré estava então totalmente baixa. Ao me aproximar do mar, notei que as luzes refletiam na areia molhada e os barcos encontravam-se fora do alcance da tempestade. Acima, nuvens recortadas continuavam a despejar a chuva torrencial do céu. Havia pessoas pelas ruas, mas não muitas. A loja estava às escuras. Apenas uma única luz iluminava a janela superior. Estacionei o carro rente à calçada, saltei e caminhei até a porta; estava aberta. Senti o cheiro de madeira nova, e meus pés roçaram as aparas de madeira que permaneciam espalhadas pelo chão. Com a luz do poste de iluminação da rua, enxerguei a escada. Subi os degraus, cautelosa, até o segundo andar. E Chamei: - Joss! Não houve resposta. Continuei subindo, entrando na casa debilmente iluminada. O fogo não estava aceso e fazia muito frio. A tempestade varria o telhado acima da minha cabeça. - Joss. Ele estava deitado na cama, semicoberto com uma manta. O braço jazia sobre os olhos, como se quisesse evitar alguma luz indesejável. Quando chamei, ele o baixou e levantou ligeiramente a cabeça para ver quem era. E então deixou-a cair novamente sobre o travesseiro. - Meu Deus - eu o ouvi dizer. - Rebecca. Fui até ele. - Sim, sou eu. - Pensei ter ouvido sua voz. Achei que estava sonhando. - Eu o chamei, mas você não respondeu. Seu rosto estava terrivelmente machucado, o lado esquerdo estava ferido e inchado, e o olho, semicerrado. O sangue havia escorrido de um corte no lábio e secado, e não parecia haver pele alguma na junta da mão direita. - O que está fazendo aqui? - perguntou de maneira confusa, talvez por causa do inchaço do lábio. - A Sra. Kernow me telefonou. - Eu disse a ela que não falasse nada. - Ela ficou preocupada com você. Joss, o que aconteceu? - Fui pego por bandidos. - Está machucado em algum outro lugar? - Sim, em todos os lugares. - Deixe-me ver... - Os Kernow me enfaixaram todo. Mas eu me curvei sobre ele, gentilmente puxando a manta para cima. Ele estava nu até o peito e, abaixo, ele fora delicadamente envolvido em ataduras que pareciam ser tiras rasgadas de algum velho lençol. Mas uma ferida horrível se espalhava e subia pelo peito, e em seu lado direito, o sangue manchara o pano de algodão branco. - Joss, quem fez isso? Mas ele não respondeu. Em vez disso, com uma estranha força para alguém tão ferido, ele ergueu o braço e me puxou para baixo para que eu me sentasse na beirada da cama. Minha longa trança de cabelos louros caiu sobre meu ombro e, enquanto ele me segurava com seu braço direito, sua mão esquerda se ocupava em puxar o elástico que prendia as pontas do cabelo e, em seguida, utilizando os dedos como um pente, ele soltou os fios, desembaraçando-os de modo que meu cabelo escorregou como uma borla de seda, alisando seu peito nu. - Sempre quis fazer isso - ele disse. - Desde a primeira vez que a vi, parecendo a líder de um... como foi mesmo que eu disse? - A líder de um orfanato bem administrado. - Isso. Imagine só, você se lembra. - O que posso fazer? Deve haver alguma coisa que eu possa fazer.

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- Fique. Apenas fique, minha menina querida. A ternura em sua voz... Joss, que tinha sempre sido tão forte... me comoveu. As lágrimas encheram meus olhos e, ao perceber, ele me puxou, de modo que fiquei sobre ele e senti sua mão deslizar sob meus cabelos e se fechar em torno da minha nuca. - Joss, eu posso machucá-lo... - Não fale - ele disse, enquanto sua boca buscava a minha. E então: - Eu sempre quis fazer isso também. Era evidente que nenhuma de suas feridas, seus sangramentos, seu lábio cortado poderiam, de forma alguma, impedi-lo de fazer exatamente o que queria. E eu, que sempre imaginara que o amor tinha a ver com fogos de artifício e explosões de emoção, descobri que não era nada disso. Era quente, como um raio de sol repentino. Não tinha nada a ver com minha mãe e a interminável procissão de homens que invadiram sua vida. Eram as idéias cínicas e preconcebidas escapando pela janela aberta. Eram os restos das minhas defesas que se iam. Era Joss. Ele pronunciou meu nome e o fez soar bonito. BEM MAIS TARDE, acendi a lareira, empilhando a lenha, e o quarto encheu-se da luz bruxuleante do fogo. Não deixei que Joss se mexesse e, assim, ele deitou a cabeça sobre os braços, e senti seus olhos acompanharem todos os meus movimentos. Fiquei de pé, longe do fogo. Meu cabelo pendia solto em ambos os lados do meu rosto, e minhas bochechas estavam quentes por causa do fogo. Sentia-me leve de satisfação. - Precisamos conversar, não é? - disse Joss. - Precisamos. - Pode me trazer um drinque? - O que você quer? - Um pouco de uísque. Está na cozinha, no armário em cima da pia. Fui procurar e trouxe dois copos. - Soda ou água? - Soda. Tem um abridor de garrafa preso num gancho. - Encontrei o abridor e retirei a tampa. Agi de modo desajeitado e a tampa caiu no chão, rolando endoidecidamente para um canto escuro. Agachei-me para apanhá-la e deparei-me com um outro pequeno objeto reluzente, caído embaixo do armário da pia. Peguei-o e vi que era a cruz céltica que Andréa usava no pescoço. Fiquei com ela na mão. Servi os drinques e entreguei a bebida de Joss, ajoelhando-me no chão ao seu lado. - Isto estava sob a pia - eu disse, mostrando-lhe a cruz. Seu olho inchado dificultava a visão. Ele apertou os olhos penosamente. - O que, diabo, é isso? - Pertence a Andréa. - Ora, dane-se. - E em seguida: - Pegue mais algumas almofadas, querida. Não posso beber uísque deitado. Juntei algumas almofadas do chão e ajeitei-as de modo que ele se recostasse sobre elas. O ato de se sentar foi uma agonia para ele e o fez soltar um gemido involuntário. - Você está bem? - Sim, é claro que estou bem. Onde encontrou isso? - Eu lhe disse. Estava no chão. - Ela esteve aqui esta noite. Disse que tinha ido ao cinema. Eu estava trabalhando lá embaixo, tentando terminar a estante. Disse a ela que estava ocupado, mas ela subiu até aqui, como se eu não tivesse dito uma palavra. Eu a segui e disse-lhe que voltasse para casa. Mas ela não quis ir. Disse que queria tomar um drinque, que queria conversar... esse tipo de bobagem, você sabe. - Ela já havia estado aqui antes. - Já. Uma vez. Uma manhã. Senti pena dela e lhe ofereci uma xícara de café. Mas eu estava ocupado esta noite; não tinha tempo para lhe dar atenção e não estava com pena dela. Eu disse que não queria beber e lhe disse para ir embora. E então ela respondeu que não queria ir para casa, que todos a odiavam, que ninguém conversava com ela, que eu era a única pessoa com quem ela podia conversar, a única pessoa que a entendia. - Talvez fosse verdade. - Certo, pois eu tinha pena dela. Costumava deixá-la ficar ao meu lado enquanto eu trabalhava em Boscarva, por não ter outra opção, mas por pouco eu não a enxotava do quarto. - Fez isso com ela esta noite?

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- Não literalmente. Mas, por fim, fiquei cheio das suas baboseiras e sua crença totalmente infundada de que eu estava pronto e ávido para pular na cama com ela, e então perdi a paciência e resolvi lhe dizer a verdade. - O que aconteceu depois? - O que não aconteceu, você quer dizer. Gritos, lágrimas, acusações, a histeria de costume. Fui submetido a todo tipo de difamação. Tapa na cara e tudo o mais. Foi quando eu finalmente recorri à força e a expulsei daqui, jogando sua capa de chuva e sua bolsa imunda escada abaixo. - Você não a machucou? - Não, eu não a machuquei. Mas acho que a assustei, pois ela foi embora depressa como o diabo. Ouvi seus passos descendo a escada sobre aqueles sapatões medonhos que ela usa, e então acho que ela deve ter escorregado nos últimos degraus, porque ouvi um barulho terrível. Chamei seu nome para ter certeza de que tudo estava bem, e foi então que a ouvi sair da loja correndo e bater a porta com força atrás de si. - Ela poderia ter batido em algum lugar? Machucado o rosto na queda? - Suponho que sim. Havia uma caixa cheia de porcelanas chinesas bem ao pé da escada. Ela pode ter tropeçado nela... Por que está perguntando isso? Contei a ele. Quando terminei, ele deu um longo e incrédulo assobio. Mas também mostrou sua raiva. - Aquela putinha. Acho que ela é ninfomaníaca, sabe? - Sempre achei. - Estava o tempo todo falando em alguém chamado Danus, indo aos mais íntimos e horripilantes detalhes. E ainda teve a maldita desfaçatez de inventar para todo mundo que eu a convidara para ir ao cinema. Eu não a convidaria nem para colocar o lixo para fora... Onde ela está agora? - Eles a colocaram na cama. Mollie chamou o médico. - Se ele for experiente, deve ter diagnosticado histeria induzida. E vai prescrever uma boa surra e mandá-la de volta para Londres. E isso deverá tirá-la do caminho de todos nós. - Pobre Andréa. É muito infeliz. Como se não pudesse se conter, ele estendeu a mão para tocar meus cabelos. Virei a cabeça e beijei o dorso de sua mão, as juntas laceradas. - Você não acreditou nela, acreditou? - perguntou ele. - Na verdade, não. - Alguém acreditou? - Mollie e Eliot acreditaram. Eliot queria chamar a polícia, mas Grenville não permitiu. - Interessante. - Porquê? - Quem foi que levou Andréa para casa? - Pensei que lhe tivesse dito. Morris Tatcombe... você sabe, o rapaz que trabalha para Eliot... - Morris? Ora, eu... - ele interrompeu a frase e voltou a falar em seguida: - Morris Tatcombe. - O que tem ele? - Ora, Rebecca, vamos lá. Recobre a calma e use a cabeça. Quem você acha que me deu essa surra? - Não me diga que foi o Morris. Eu não queria acreditar. - Morris e mais outros três. Fui ao Anchor tomar uma cerveja e comer alguma coisa e, quando caminhava de volta para casa, eles me atacaram. - Você sabia que era Morris? - Quem mais poderia ser? Ele sempre teve esse ressentimento por mim desde a última vez que cruzamos as espadas e ele acabou jogado na sarjeta. Imaginei que seu ataque desta noite fosse apenas parte de nossa contínua contenda. Mas tudo leva a crer que não. Sem raciocinar, comecei a falar: - Eliot... - e então parei, mas era tarde demais. Joss disse calmamente: - O que tem Eliot? - Não quero falar de Eliot. - Ele mandou que Morris viesse atrás de mim? - Não sei. - É provável. Ele me odeia. Isso se encaixa. - Eu... acho que ele tem ciúme de você. Não gosta do fato de você e Grenville se darem tão bem. Não gosta do fato de que Grenville dê tanta atenção a você. E... - baixei o olhar até meu drinque, girando o copo na mão, sentindo-me subitamente nervosa. - Há mais uma coisa. - Pela sua expressão, eu poderia imaginar que cometeu um assassinato. O que é?

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- É sobre... a papeleira. A que está lá embaixo, em sua oficina. Eu a vi hoje de manhã, quando você estava ao telefone. - A papeleira e a cadeira estilo Chippendale. Elas pertenciam a Boscarva. - Sim, eu sei. Sua calma me deixou chocada. - Você não as pegou, não é, Joss? - Se eu as peguei? Não, eu não as peguei. Eu as comprei. - De quem? - De um homem que possui uma loja de antigüidades depois de Fourbourne. Estive num leilão há cerca de um mês e aproveitei para visitá-lo na volta, e foi quando vi a cadeira e a papeleira na loja. Mas eu conhecia todo o mobiliário de Grenville e sabia que elas haviam pertencido a Boscarva. - Mas quem as tirou de lá? - Receio ter que despedaçar sua inocência, mas foi seu primo Eliot. - Mas Eliot não sabia do paradeiro das peças. - Certamente ele sabia. Elas estavam num dos sótãos, até onde me lembro, e provavelmente ele sabia que elas não haviam desaparecido. - Mas por quê...? - Isso está parecendo o jogo da verdade. Porque Eliot, meu amor, minha menina querida, está atolado em dívidas. Em primeiro lugar, aquela agência de automóveis foi financiada por Ernest Padlow, custou uma fortuna e tem dado prejuízo há 12 meses. Deus sabe como 50 libras fazem diferença para Eliot, uma simples gota no oceano para alguns, mas talvez ele estivesse precisando de algum dinheiro vivo para pagar uma conta, apostar num cavalo ou qualquer coisa assim... sei lá. Cá entre nós, não acho que ele tenha competência para levar adiante o negócio. Seria melhor que trabalhasse para alguém, recebendo um salário fixo. Talvez, noite dessas, quando estiverem bebendo juntos em Boscarva, você possa tentar persuadi-lo. - O sarcasmo não lhe cai bem. - Eu sei, mas Eliot me deixa irritado. Sempre foi assim. Senti-me obscuramente inclinada a sair em defesa de Eliot. - De certa forma, ele acredita que Boscarva e tudo o que há lá pertencem a ele. Talvez ele não tenha encarado o que fez como... roubo...? - Quando foi que perceberam que havia coisas faltando? - Há uns dois dias. Veja bem, a papeleira pertencia à minha mãe. E agora pertence a mim. Foi por esse motivo que resolvemos procurá-la. - Para azar de Eliot. - Sim. - Suponho que ele tenha dito que eu a levara. - Isso mesmo - admiti, angustiada. - Qual foi a opinião de Grenville? - Disse que você não seria capaz de tal atitude. - E então houve outra balbúrdia monumental. - Houve. Joss suspirou profundamente. Houve um silêncio. O quarto estava se tornando frio novamente, o fogo começava a fenecer. Levantei-me a fim de guarnecer a chama com outro toco, mas Joss me deteve. - Deixe estar - ele disse. Encarei-o, surpresa. Ele terminou o drinque, pôs o copo no chão, ao lado da cama, afastou a manta que o cobria e então começou, cautelosamente, a se levantar. - Joss, você não deve... Voei para o seu lado, mas ele me empurrou e, lentamente, munido de infinita cautela, pôs-se de pé. Sorriu para mim de modo triunfante, uma visão bizarra, ele ferido, judiado, vestido com gaze e um par de jeans. - Vamos à luta - ele disse. - Joss, o que pretende fazer? - Se você encontrar uma camisa e um par de sapatos, estarei pronto. E poderemos descer, alcançar a caminhonete e ir até Boscarva. - Mas você não pode dirigir assim. - Posso fazer o que quiser - ele me disse, e acreditei nele. - Agora, pegue minhas roupas e pare de reclamar. Ele nem ao menos me deixou levar o carro de Mollie.

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- Vamos deixá-lo aqui, não há problema. Alguém poderá vir buscá-lo pela manhã. A pequena caminhonete estava estacionada na esquina, numa ruela estreita. Entramos e ele deu a partida no motor, tomando o rumo da estrada, eu ajudando a indicar o caminho, pois ele não podia se mover no banco. Guiamos, cruzando a cidade ao longo das ruas que, para mim, tornaram-se familiares, passando pelas rodovias transversais até alcançarmos a montanha e iniciarmos a subida. Permaneci parada, concentrada na estrada, com as mãos apertadas sobre o colo. Sabia que ainda restava algo a ser dito. E tinha que ser agora, antes de chegarmos a Boscarva. Por alguma razão, como se estivesse imensamente satisfeito com a vida em geral, Joss começou a cantar. "A primeira vez que vi seu rosto Achei que o sol nascesse em seu olhos E a lua e as estrelas..." - Joss. - O que é agora? - Há mais uma coisa. Ele pareceu surpreso. - Não me diga que há outro segredo? - Não brinque. - Desculpe. O que é? Senti a garganta apertada. - É sobre Sophia. - O que tem Sophia? - Grenville me deu a chave do ateliê para que eu escolhesse uma tela e a levasse para Londres. Encontrei um retrato de Sophia que mostrava seu rosto. E Eliot foi até lá me encontrar e também o viu. Fez-se um longo silêncio. Olhei para Joss, mas ele permaneceu impassível, com a atenção voltada para a estrada. - Entendo - disse ele finalmente. - Ela se parece muito com você; ou você com ela. - Naturalmente. Ela era minha avó. - É, foi o que imaginei. - Então o retrato estava no ateliê? - Foi... foi por isso que veio morar em Porthkerris? - Foi. Grenville e meu pai arranjaram as coisas a seu modo. Grenville entrou com a metade do capital da minha loja. - Seu pai...? - Você o conheceu. Tristam Nolan Gardner. Possui uma loja de antigüidades em New Kings Road. Você comprou um par de cadeiras de encosto côncavo em sua loja. Lembra-se? - E ele descobriu que eu me chamava Rebecca Bayliss pelo meu cheque. - Exato. E descobriu, por meio de sagazes perguntas, que você era neta de Grenville Bayliss. Exato. E descobriu que você estava prestes a pegar o trem para a Cornualha na segunda-feira passada. Exato. - Então ele lhe telefonou e mandou que você me esperasse na estação. - Exato. - Mas por quê? - Porque se sentiu envolvido. Porque a achou perdida e vulnerável. Porque queria que eu tomasse conta de você. - Eu ainda não compreendo. - Sabe de uma coisa? - perguntou Joss. - Eu a amo muito. - Porque estou sendo estúpida? - Não. Porque está sendo maravilhosamente inocente. Sophia não foi apenas modelo de Grenville, foi também sua amante. Meu pai nasceu no início do relacionamento dos dois, muito antes de sua mãe nascer. Sophia casou-se, eventualmente, com um velho amigo de infância, mas nunca mais teve filhos. - Então Tristam...? - Tristam é filho de Grenville. E Grenville é meu avô. E eu vou me casar com minha meia-prima. - Pettifer me disse que Sophia nunca significou nada para Grenville. Que era apenas uma moça que trabalhou para ele. - Se fosse para proteger Grenville, Pettifer juraria que o preto é branco. - É, suponho que sim. Mas Grenville, num momento de raiva, foi menos discreto. "Você não é meu único neto!" - Ele disse isso? - Disse, para Eliot. E Eliot acreditou. Alcançamos o topo da montanha. As luzes da cidade ficaram bastante distantes de nós. A frente, além dos contornos desordenados das construções de Ernest Padlow, jazia o litoral escuro, salpicado de aleatórias luzinhas das fazendas, e, mais além, a imensa escuridão do mar. - Não me lembro de tê-lo ouvido me pedir em casamento - falei.

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A pequena caminhonete sacolejou e deu uma súbita guinada na estrada que levava a Boscarva. - Não sou muito bom em fazer pedidos - disse Joss. Ele tirou uma das mãos do volante e pousou-a sobre a minha. - Normalmente, eu apenas comunico. Como da outra vez, foi Pettifer quem apareceu para nos recepcionar. Tão logo Joss desligou o motor do carro, a luz do hall foi acesa e Pettifer abriu a porta, como se soubesse instintivamente que estávamos a caminho. Observou Joss descer do carro, em visível desconforto e dor. E viu o rosto de Joss... - Pelo amor de Deus, o que aconteceu com você? - Eu e nosso velho amigo Morris Tatcombe divergimos de opinião. Provavelmente eu não estaria assim caso ele não estivesse acompanhado de três amigos. - Você está bem? - Estou bem. Nenhum osso quebrado. Vamos entrar. Entramos na casa e Pettifer fechou a porta. - Estou feliz em vê-lo, Joss, é verdade. Tivemos uma situação embaraçosa aqui, com toda a certeza. - Grenville está bem? - Sim, ele está bem. Ainda está acordado, na sala de estar, esperando por Rebecca. - E Eliot? Os olhos de Pettifer passaram por Joss e chegaram a mim. - Ele se foi. ACABAMOS NA COZINHA, sentados em torno da mesa. - Depois que Rebecca saiu, Eliot foi até o ateliê e voltou com o retrato de Sophia. O que procurávamos, Joss. O que nunca encontramos. - Não compreendo - falei. Joss me explicou. - Pettifer sabia que Sophia era minha avó, mas ninguém mais sabia. Ninguém mais lembrava-se dela. Tudo aconteceu há muito tempo. Grenville queria que tudo permanecesse do mesmo jeito. - Mas por que havia apenas um retrato do rosto de Sophia? Grenville deve ter pintado dezenas deles. O que aconteceu com todos eles? Houve uma pausa, enquanto Joss e Pettifer se entreolhavam. Então foi a vez de Pettifer explicar, o que fez com demasiado tato. - Foi a velha Sra. Bayliss. Ela sentia ciúme de Sophia... não porque soubesse da verdade... mas porque Sophia fazia parte da outra vida do comandante, a vida para a qual a Sra. Bayliss não tinha tempo para se dedicar. - Refere-se à pintura. - Ela nunca teve nada em comum com Sophia. E o comandante sabia disso e não queria chateá-la; por isso permitiu que todas as telas de Sophia se fossem... todas, exceto a que você encontrou. Sabíamos que estava em algum lugar por aqui. Joss e eu gastamos um dia inteiro procurando pelo retrato, mas não conseguimos encontrá-lo. - O que teriam feito dele se o tivessem encontrado? - Nada. Só não queríamos que ninguém mais o encontrasse. - Não vejo por que isso era tão importante. - Grenville não queria que ninguém soubesse o que acontecera entre ele e Sophia - explicou Joss. - Não que ele sentisse vergonha disso, pois ele a amava muito. E, após sua morte, isso não tem mais importância, ele não se importa que alguém venha a saber. Mas ele é orgulhoso e vive a vida de acordo com certos padrões, que consideramos ultrapassados, mas ele ainda os mantém. Isso faz sentido para você? - Suponho que sim. - Os jovens de agora - comentou Pettifer gravemente - falam a respeito de uma sociedade permissiva como se fosse algo que eles inventaram. Mas nada disso é novidade. Vem acontecendo desde os primórdios da humanidade; a única diferença é que, na época do comandante, havia um pouco mais de discrição. Concordamos resignadamente. Em seguida, Joss falou: - Parece que saímos pela tangente. Pettifer estava nos falando de Eliot. Pettifer assentiu: - Sim, claro. Então Eliot dirigiu-se à sala de estar, ensandecido, e eu o segui; foi direto ao console da lareira e depositou o quadro ao lado do outro que há na sala. O comandante não disse uma palavra, ficou apenas observando seus movimentos. E Eliot disse: "O que isso tem a ver com Joss Gardner?" E então o comandante lhe explicou tudo. Calma e dignamente. E a Sra. Roger também estava presente e ficou escandalizada. Disse que, durante todos esses anos, o comandante os enganara, deixando que Eliot pensasse ser seu único neto e que herdaria Boscarva quando ele morresse. O comandante, por sua vez, lhe respondeu que nunca havia afirmado tal coisa, que tudo aquilo era conjetura e que eles simplesmente haviam contado com o ovo na galinha. Então foi a vez de Eliot se

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pronunciar, muito friamente: "Talvez agora o senhor nos queira deixar a par de seus planos." Mas o comandante lhe respondeu que seus planos não eram de sua conta, e ele estava coberto de razão. Essa pequena demonstração de defesa foi acompanhada por um sonoro murro sobre a mesa da cozinha. - E qual foi a reação de Eliot? - Eliot disse que, nesse caso, ele lavaria as mãos... referindo-se à família, é claro... que tinha seus próprios planos e que estava aliviado por livrar-se de nós. E, com isso, juntou alguns papéis numa pasta, vestiu o casaco e assoviou para o cachorro, deixando a casa. Ouvi o motor do carro subindo a estrada e desaparecendo. - Para onde ele foi? - Para High Cross, suponho. - E Mollie? - Debulhou-se em lágrimas... tentou dissuadi-lo. Implorou que ele ficasse. Virou-se para o comandante, dizendo que a culpa era toda dele. Mas, obviamente, não havia nada que ela pudesse fazer para deter o filho. Não há nada que possa deter um homem adulto que está saindo de casa, ainda que seja sua própria mãe. Fiquei tocada de pesar e compaixão por Molhe. - Onde ela está agora? - Em seu quarto - ele acrescentou rispidamente. - Levei-lhe uma bandeja de chá. Encontrei-a sentada à penteadeira feito uma estátua. Senti-me feliz por não ter participado de tudo isso. Aquilo soava bastante dramático. Levantei-me. Pobre Mollie. - Vou subir e falar com ela. - E eu - disse Joss - vou ver Grenville. - Diga-lhe que eu estarei com ele num instante. Joss abriu um sorriso. - Estaremos à sua espera - prometeu. Encontrei Mollie, pálida e chorosa, ainda sentada diante da penteadeira enfeitada com babados. (Aquilo era característico. Nem mesmo a mais profunda dor levaria Mollie a se atirar numa cama. Amarrotaria a colcha.) Quando entrei no quarto, ela me olhou e seu rosto refletiu-se três vezes em seu espelho triplo; pela primeira vez achei que ela aparentava a idade que tinha. - A senhora está bem? - inquiri. Ela baixou os olhos, apertando um lenço encharcado entre os dedos. Sentei-me ao seu lado. - Pettifer me contou o que houve. Sinto muitíssimo. - Tudo é tão desesperadoramente injusto. Grenville nunca nutriu afeto por Eliot, sempre o agrediu terrivelmente. E, é óbvio, agora sabemos a razão. Estava o tempo todo tentando governar a vida de Eliot, ficar entre mim e ele. O que quer que eu fizesse por Eliot, estava sempre errada. Ajoelhei-me ao seu lado e pus o braço em torno dela. - Acredito realmente que ele fez isso para o seu bem. Pode tentar acreditar nisso também? - Não tenho nem idéia de para onde ele possa ter ido. Ele não me disse. Nem se despediu de mim. Percebi que ela estava muito mais preocupada com a partida de Eliot do que com as abruptas revelações a respeito de Joss naquela noite. Não tinha importância. Eu poderia confortá-la a respeito de Eliot. Não havia coisa alguma que eu pudesse fazer sobre Joss. - Acho - eu disse - que Eliot deve ter ido para Birmingham. Ela me olhou horrorizada. - Birmingham? - Há um homem em Birmingham que lhe ofereceu um emprego. Eliot me contou. Algo a ver com carros usados. Ele me pareceu interessado. - Mas eu não posso ir morar em Birmingham. - Oh, Molhe, você não precisa ir. Eliot pode se virar sozinho. Deixe-o ir. Dê a ele a chance de realizar alguma coisa sozinho. - Mas nós sempre estivemos juntos. - Então talvez já seja hora de viverem separados. Você tem sua casa em High Cross, seu jardim, seus amigos... - Não posso sair de Boscarva. Não posso deixar Andréa. Nem Grenville. - Pode, sim. E acho que Andréa deveria voltar para Londres, para seus pais. Você já fez tudo o que pôde por ela, e ela está infeliz aqui. Foi por isso que tudo aconteceu. Por ela estar se sentindo infeliz e solitária. E, quanto a Grenville, ficarei com ele. POR FIM, DESCI as escadas carregando a bandeja de chá. Levei-a até a cozinha e coloquei-a sobre a mesa. Pettifer, lá sentado, ergueu os olhos para mim sobre a ponta do jornal.

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- Como ela está? - perguntou. - Está bem, agora. Concordou que Andréa deveria voltar para Londres. E ela vai voltar para High Cross. - É tudo o que ela sempre quis. E quanto a você? - Vou ficar. Se estiver tudo bem para você. Uma centelha de satisfação cruzou o rosto de Pettifer, o mais perto que ele conseguia chegar da alegria. Não havia necessidade de dizermos mais nada um ao outro. Nós nos compreendíamos. Pettifer virou a página do jornal. - Eles estão na sala de estar - disse -, esperando por você. - E pôs-se a ler sobre as corridas. Encontrei os dois, Joss parado em pé ao lado da lareira e Grenville mergulhado em sua poltrona. Na parede, atrás deles, os dois retratos de Sophia com o vestido branco. Os dois homens olharam para mim quando entrei, o jovem de pernas compridas e seus perversos olhos negros e o velho, exausto demais para se levantar. Então caminhei na direção das duas pessoas que eu mais amava no mundo.

Fim