O Deus de Israel - Artigos

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O Nome divino, a «hipótese documentária» e a datação de alguns textos do Pentateuco A consideração do uso do Nome divino nos livros que constituem o Pentateuco (Génesis-Deuteronómio) está na origem da chamada «hipótese documentária», que atribui a formação do Pentateuco à colação de tipo redactorial de quatro documentos: um documento Javista (J), um outro, Eloísta (E), um terceiro, Sacerdotal (P de Priest, em alemão) e, finalmente, o documento Deuteronomista (D) 1 . Efectivamente, os dois primeiros documentos aludem ao uso do Nome divino pelo autor sagrado: Javista, porque utiliza sobretudo o tetragrama YHWH (na origem do nome Javé); Eloísta, por utilizar o nome Elohim (Deus). No entanto, recentemente, essa atribuição coloca cada vez mais problemas, tendo mesmo sido abandonada na última edição do Pentateuco da Traduction Œcuménique de la Bible (TOB). O Nome divino e a «hipótese documentária» O primeiro a postular a existência de «fontes» distintas no Pentateuco foi o teólogo e pastor alemão Henning B. Witter (1653-1715): ao estudar os dois textos da criação, observou que o autor do primeiro texto (Gn 1,1-2,4a) utiliza o nome Elohim («Deus») e o do segundo (Gn 2,4b-3,22), Yahweh-Elohim (trad. port.: «Senhor Deus»). Porém, foi Jean Astruc (1684-1766), médico de Luís XV, quem primeiro elaborou uma «hipótese documentária», no seu livro Conjectures sur les mémoires originaux dont il paraoit que Moyse s’est servi pour composer le livre de la Genèse (1753), fundada no uso do nome divino: a «Memória A» que usava o nome Elohim e a «Memória B», o nome Yahweh. Johann G. Eichhorn (1752- 1827), professor na Universidade de Göttingen, aderiu à hipótese de Astruc e, no seu livro Einleitung in das Alte Testament (Introdução ao Antigo Testamento; 1780-1783), deu um nome a essas fontes: a «Memória A» foi chamada de Eloísta e a «Memória B», Javista. Em 1798, Karl D. Ilgen (1763-1834) observou que os textos «eloístas» não eram de todo homogéneos, e que haveria de considerar dois documentos distintos: um Eloísta antigo (= E 1 )

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O Nome divino, a «hipótese documentária» e a datação de alguns textos do Pentateuco

A consideração do uso do Nome divino nos livros que constituem o Pentateuco (Génesis-Deuteronómio) está na origem da chamada «hipótese documentária», que atribui a formação do Pentateuco à colação de tipo redactorial de quatro documentos: um documento Javista (J), um outro, Eloísta (E), um terceiro, Sacerdotal (P de Priest, em alemão) e, finalmente, o documento Deuteronomista (D)1. Efectivamente, os dois primeiros documentos aludem ao uso do Nome divino pelo autor sagrado: Javista, porque utiliza sobretudo o tetragrama YHWH (na origem do nome Javé); Eloísta, por utilizar o nome Elohim (Deus). No entanto, recentemente, essa atribuição coloca cada vez mais problemas, tendo mesmo sido abandonada na última edição do Pentateuco da Traduction Œcuménique de la Bible (TOB).

O Nome divino e a «hipótese documentária»

O primeiro a postular a existência de «fontes» distintas no Pentateuco foi o teólogo e pastor alemão Henning B. Witter (1653-1715): ao estudar os dois textos da criação, observou que o autor do primeiro texto (Gn 1,1-2,4a) utiliza o nome Elohim («Deus») e o do segundo (Gn 2,4b-3,22), Yahweh-Elohim (trad. port.: «Senhor Deus»). Porém, foi Jean Astruc (1684-1766), médico de Luís XV, quem primeiro elaborou uma «hipótese documentária», no seu livro Conjectures sur les mémoires originaux dont il paraoit que Moyse s’est servi pour composer le livre de la Genèse (1753), fundada no uso do nome divino: a «Memória A» que usava o nome Elohim e a «Memória B», o nome Yahweh. Johann G. Eichhorn (1752-1827), professor na Universidade de Göttingen, aderiu à hipótese de Astruc e, no seu livro Einleitung in das Alte Testament (Introdução ao Antigo Testamento; 1780-1783), deu um nome a essas fontes: a «Memória A» foi chamada de Eloísta e a «Memória B», Javista.

Em 1798, Karl D. Ilgen (1763-1834) observou que os textos «eloístas» não eram de todo homogéneos, e que haveria de considerar dois documentos distintos: um Eloísta antigo (= E1) e um Eloísta recente (= E2). Porém, o abandono da «hipótese documentária», durante meio século, não permitiu aprofundar essa ideia de Ilgen. Esse estudo seria levado a cabo por Hermann Hupfeld (1786-1866) que, em 1853, demonstrou que o simples uso do nome divino Elohim não bastava para caracterizar os textos eloístas, pois entre E1 e E2 existiam importantes diferenças de vocabulário, estilo e conteúdo. A «nova hipótese documentária», que agora se desenhava, passava a ser composta de quatro documentos: o Eloísta antigo (posteriormente chamado «Sacerdotal» e situado no pós-exílio); o Eloísta recente, em estado fragmentário (porque, dada a proximidade temática com o documento javista, foi preterido em relação a este último); o Javista, um documento paralelo ao Eloísta recente; e o Deuteronomista, «descoberto» em 1805 por De Wette2.

A partir dos anos 1970, a «hipótese documentaria» foi de novo posta em causa, e precisamente em relação aos «documentos» relacionados com o Nome divino: o Eloísta e o Javista. A existência de um documento eloísta (fragmentário) deixa, simplesmente, de fazer sentido (C. Westermann). Efectivamente, o uso dos nomes divinos Elohim e Yahweh não seria assim tão decisivo para caracterizar os textos bíblicos como pertencendo a um documento ou outro (E. Blum). E, finalmente, os textos ditos «javistas» são tão díspares que, a manter esta caracterização, haveria que conceber também vários documentos javistas (K. Schmid). Deste modo, a distinção que permanece – para além do documento deuteronomista – seria a de

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«textos sacerdotais» (P) e «textos não sacerdotais» (n-P; D. M. Carr). Mas, se o uso do Nome divino deixa de fazer sentido para caracterizar a existência de «fontes» no Pentateuco, terá alguma outra função na Tora?

O Nome divino como indício de datação dos textos

Nos últimos anos, o exegeta belga Albert de Pury tem sugerido que o primeiro documento do Pentateuco terá sido, provavelmente, o chamado «documento sacerdotal» (= Pg, de «Priest Grundschrift»), acrescido posteriormente com textos «não sacerdotais» antigos (= pré-P), novos textos sacerdotais (= Ps) e de outras correntes do Judaísmo (= pós-P)3.

Nesse documento sacerdotal primitivo, que J. Wellhausen designava por Quartor (isto é, o «livro das Quatro Alianças»), curiosamente, o(s) autor(es) apresenta(m) uma revelação progressiva de Deus à humanidade: nos textos relativos às origens do mundo, o nome divino utilizado é Elohim (ou seja, «Deus»); posteriormente, nas narrativas patriarcais, Deus apresenta-se como El Shadday (o «Deus Poderoso»; cf. Gn 17,1); enfim, Deus dá-se a conhecer a Moisés e aos filhos de Israel como Yahweh (cf. Ex 6,3), o Deus de Israel e de Judá. Contudo, não se pense que esta perspectiva seja politeísta: não, para o(s) autor(es) sacerdotal(ais) trata-se de uma única divindade – o Deus «criador do céu e da terra» – e estas diversas etapas fazem parte de uma única história, que culmina na revelação de Deus a uma nação particular (os Israelitas).

Assim, com o escrito sacerdotal, encontramo-nos no limiar do uso do Nome divino nos textos que compõem o Pentateuco. Os textos não sacerdotais antigos (pré-P) utilizavam apenas o nome Yahweh, o deus nacional de Israel e de Judá. Porém, isso não quer dizer que provenham todos de uma única fonte ou tenham sido escritos por um mesmo autor (o «Javista» de J. van Seters, de M. Rose ou de C. Levin). Pelo contrário, estes textos provêm de origens diferentes (A. Alt) e constituem o que poderíamos chamar de «tradições» independentes, pré-sacerdotais (na linha de R. Rendtorff e E. Blum).

Depois, durante a época persa, num ambiente cada vez mais universalista (e no confronto com Ahoura-Mazda, a divindade persa), tornou-se problemático defender posturas particularistas ou nacionalistas. Neste ambiente, o uso do nome divino Yahweh, apresentado como um Deus único, transcendente e universal, é cada vez mais qualificado: Yahweh-Elohim, isto é, «Javé, (o) Deus… de Israel/de toda a terra», como encontramos nos livros de Esdras-Nehemias, mas também em Génesis 2-3 (um texto que os exegetas começam a ver como midrash de Gn 1).

E, no final da época persa e início da época helenista, o nome divino Yahweh deixa completamente de ser utilizado, passando a usar-se o nome ha-Elohim («o Deus»), como encontramos em Qohelet ou Jonas, mas também em Gn 20-22; 39-43; e Ex 1,8-22, ou Elyon («o Altíssimo»), como em Ben Sira ou Gn 14.

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Havia uma estátua de Javé no templo de Jerusalém?

Uma das maiores pressuposições da exegese bíblica contemporânea consiste no chamado «aniconismo» javista, expresso no mandamento: «Não farás para ti nenhuma imagem esculpida…» (Dt 5,8), que se julgava antiquíssimo, remontando aos tempos de Moisés. Assim, acreditava-se que o aniconismo existira desde o início, de modo que o culto de Javé não contemplaria imagem ou representação alguma. E a arqueologia parecia confirmar esta suposição: efectivamente, nunca se encontrou nenhuma imagem ou representação iconográfica do Deus de Judá e de Israel4.Ultimamente, porém, alguns estudiosos têm posto em causa esta suposta «evidência», baseados sobretudo numa nova releitura de alguns textos bíblicos, particularmente dos textos deuteronomistas. Mas vamos por partes.

O aniconismo em Israel

Tryggve N. D. Mettinger foi quem mais aprofundou a questão do aniconismo em Israel e no contexto mais vasto do Médio Oriente antigo5. Nos seus escritos, este autor estabelece duas distinções. Em primeiro lugar, postula uma diferença entre um aniconismo de facto, pré-exílico e que Israel partilha com o mundo semita ocidental, e um aniconismo programático, a partir do exílio (expresso no segundo mandamento) e mais específico a Israel. O primeiro seria tolerante e, em muitos casos, teria coexistido com outras expressões icónicas (por exemplo, a representação de deusas); o segundo, absolutamente combativo, iconofóbico e iconoclasta. Em segundo lugar, Mettinger distingue ainda entre um aniconismo materializado (expresso, por exemplo, nas «estelas» cúlticas) e um aniconismo vazio (representado pelos «querubins» e, eventualmente, pelos «bezerros» de Betel). O primeiro constitui uma representação da divindade, mas sem tomar forma antropomórfica ou teriomórfica. O segundo pressuporia uma presença invisível da divindade: no caso de Jerusalém, os querubins constituíam o suporte da presença invisível de Javé-Sabaoth; e o mesmo aconteceria, segundo alguns exegetas, em Betel, onde os bezerros serviam de suporte à presença invisível de Javé

1 Na hipótese clássica (de J. Wellhausen), a primeira acção redactorial ter-se-ia dado por altura do reinado de Manassés, unindo os dois primeiros documentos: o Javista (que começou a ser elaborado no séc. IX) e o Eloísta (séc. VIII). Esta redacção era chamada Jeovista (= R JE). No reinado de Josias foi elaborado o Deuteronómio (o livro «descoberto» no Templo de Jerusalém) e, durante o exílio, uma redacção de tipo deuteronomista (= RD) associa D e JE (acrescentos deuteronomistas em JE e jeovistas em D). Finalmente, no início da época persa é escrito o documento sacerdotal, na origem da última actividade redactorial (= RP) – entre 450 e 400 a.C. –, que combina P com JED para formar o Pentateuco actual.

2 A ordem cronológica dos quatro documentos (E1E2JD) foi, entretanto, alterada, devido aos estudos de Karl H. Graf (1815-1869), Abraham Kuenen (1828-1891) e Theodor Nöldeke (1836-1930) acerca do escrito sacerdotal, situando-o no período pós-exílico, e considerando também E2 como posterior a J, que passou a ser o documento mais antigo. É essa ordem (JEDP) que aparece na síntese de J. Wellhausen.

3 A. de PURY, «Pg as Absolute Beginning», in T. RÖMER-K. SCHMID (eds.), Les Dernières Rédactions du Pentateuque, de L’Hexateuque et de L’Ennéateuque, Lovaina, Peeters, 2007, pp. 99-128.4 Recentemente foi exposta uma imagem representando, supostamente, Javé e Achera, e que pode ser apreciada no livro de O. KEEL, L’Eternel féminin. Une face cachée du Dieu biblique, Labor et Fides, 2007, p. 48 (trata-se do catálogo de uma exposição realizada no Musée de l’Orient, em Friburg, Suíça).5 T. N. D. METTINGER, No graven image? Israelite aniconism in its ancient Near Eastern context, Almqvist & Wiksell Int., 1995; ID., «Israelite aniconism: developments and origins», in K. VAN DER TOORN (ed.), The Image and the Book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise of Book Religion in Israel and the Ancient Near East, Peeters, 1997, pp. 173-204; ID., «A Conversation with my Critics: Cult Image or Aniconism in the First Temple?», in Y. AMIT et al., Essays on Ancient Israel in its Near Eastern Context, Eisenbrauns, 2006, pp. 273-296.

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(concebido como um deus da tempestade, à maneira de Baal em Ugarite, que também é representado sobre um bezerro).Em relação ao aniconismo materializado no culto de «estelas», Mettinger não tem dificuldade em enumerar variadíssimos exemplos, de Mari à Arábia pré-islâmica, passando por Biblos, Tirzah, Dan, Láquis, Arad ou Petra. No que toca ao aniconismo vazio, o próprio reconhece maior dificuldade de argumentação (fundada sobretudo na iconografia fenícia), e a sua interpretação fundamenta-se numa construção teológica desenvolvida desde 1982, mas que foi criticada ainda recentemente6. Segundo Mettinger, o Primeiro Templo tinha desenvolvido uma teologia específica a Javé-Sabaoth (isto é, o Senhor dos «Exércitos [celestes]), segundo a qual Javé habitava o seu templo-palácio de Jerusalém, «entronizado» sobre os querubins e reinando sobre Sião, garantindo a sua segurança e inviolabilidade. A catástrofe do exílio foi um rude golpe para esta teologia, dando origem a duas outras, pós-exílicas: nos meios sacerdotais (Ezequiel e P), a teologia de Sabaoth foi substituída pela teologia da Kabod (a «Glória» divina); e, nos meios deuteronomistas, pela teologia do Shem (o «Nome» divino, pois, Deus, esse habita agora nos céus). O aniconismo programático destas duas teologias (em Dt 5 e Ex 20) seria, deste modo, a continuação do aniconismo de facto da teologia do Sabaoth, do Deus invisível entronizado sobre querubins.

A imagem (cultual) de Javé

Como dissemos, recentemente alguns autores puseram em causa esta «tradição» anicónica. Segundo eles, durante a monarquia, houve imagens da divindade nos principais templos/santuários javistas (Samaria, Betel e Jerusalém) e o segundo mandamento, no contexto do exílio, é uma reacção ao desaparecimento dessas imagens. Se é verdade que não existem «evidências» do que acabamos de dizer, há porém alguns indícios que convém ter em conta7.H. Niehr refere alguns textos bíblicos antigos e os salmos para justificar a existência de uma imagem cultual de Javé no templo de Jerusalém. Esses textos falam do templo como a «casa» de Javé (cf. Ex 15,17; Sl 26,8), significando que Javé habita realmente no tempo, de modo visível (icónico) ou não. Ora, a Bíblia fala frequentemente em ver «a face de Deus» (cf. Sl 24,6; 42,3) ou em apresentar-se «diante do Senhor» (cf. Dt 16,16), de oferecer-lhe oblações e libações (cf. Nm 6,17), ou ainda mencionando as suas «vestes» (cf. Is 6,1; Sl 60,10), o que pode indiciar que se está cerca de uma imagem/representação de Javé. Além disso, parecem existir alusões a procissões com a imagem divina (cf. Sl 24,7.9) ou um festival anual em honra do Deus nacional, que saía do seu templo em peregrinação (cf. Sl 68). Quanto à linguagem da «entronização» (de Javé), frequente nos salmos «reais», pode simplesmente aludir ao facto de o «rei» representar/ser imagem de Javé, aquele que se senta sobre os querubins (cf. 1 Cr 29,20.23). Neste sentido, as teologias do Shem ou da Kabod viriam sobretudo responder a um vazio: a «imagem» cultual da divindade ou se perdeu durante a destruição de Jerusalém (cf. Jr 8,19; 12,7-8; Ez 8,12), ou deixou de ser tolerada.Por seu turno, M. Köckert encontra um argumento mais decisivo no estudo de Dt 4, um texto considerado pelos exegetas como tardio (da época persa). O segundo mandamento, originalmente, não compreendia a proibição das imagens, mas apenas a proibição do culto aos deuses estrangeiros (cf. Dt 5,9-10, que seguiria normalmente 5,7). A introdução das tradições 6 Cf. A. WOOD, Of Wings and Whells: A Synthetic Study of the Biblical Cherubim, Walter de Gruyter, 2008. Para o nosso autor, cf. T. N. D. METTINGER, The Dethronement of Sabaoth: Studies in the Shem and Kabod Theologies, C. W. K. Gleerup, 1982. 7 Estes indícios são retirados dos artigos de H. NIEHR, «In Search of the YHWH’s Cult Statue in the First Temple», in K. VAN DER TOORN (ed.), The Image and the Book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise of Book Religion in Israel and the Ancient Near East, Peeters, 1997, pp. 73-96; e de M. KÖCKERT, «Suffering from Formlessness: The Ban on Images in Exilic Times», in B. BECKING-D. HUMAN (ed.), Exile and Suffering, Brill, 2008, pp. 33-52.

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(e da teofania) do Sinai na Tora tornou caducas as representações/imagens de Javé. O exílio, precisamente, é explicado à luz da «idolatria» dos antepassados. Por isso, as imagens devem ser banidas (Dt 4,9-24) e, portanto, são proibidas (Dt 5,8)8. Para esta corrente teológica, Deus «mora» agora na Tora. Alguns anos antes, quando ainda não existia o Segundo Templo, o autor de P afirmava que o conjunto do Universo constituía o templo de Javé-Eloim, e que a sua imagem/representação se encontrava, não em estátuas, mas no próprio ser humano – «criado homem e mulher» (Gn 1,26), constituindo esta perspectiva uma evolução da teologia exílica da Kabod (que vemos ainda expressa em Ezequiel).Em suma: se é verdade que existe uma tradição anicónica entre os Semitas ocidentais, expressa no culto das estelas, este aniconismo pode ter coexistido com expressões icónicas, sobretudo nos grandes santuários (Samaria, Betel e Jerusalém), mais expostos a influências estrangeiras (o culto de imagens). Por outro lado, o aniconismo «vazio», defendido por Mettinger, é cada vez mais difícil de sustentar: os chamados «tronos de Astarté» na Fenícia, o suporte/altar de Tanach, etc., estavam realmente vazios ou neles era colocada uma imagem cúltica da divindade?

8 A arqueologia comprova, efectivamente, que apenas na época persa desaparecem em Yehud todo o tipo de imagens (cf. E. STERN, «Religion in Palestine in the Assyrian and Persian Periods», in B. BECKING-M. KORPEL [eds.], The Crisis of Israelite Religion, Leiden, 1999, pp. 245-255.

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O Judaísmo: «religião do livro»? - I

É costume usar a expressão «religião do livro» referida às três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islão –, a quem teriam sido reveladas as mensagens divinas contidas num livro sagrado: a Tora – a Bíblia – o Alcorão. Esta designação parece provir da fórmula corânica «Ahl al-kitâb [as gentes do Livro]», mas é também bastante corrente no Judaísmo, que se considera a si mesmo como «am ha-sefer [o povo do Livro]». E donde viria esta qualificação?

Hoje em dia, os estudiosos estão de acordo em considerar que o Judaísmo, enquanto religião, surge apenas no início da época persa (ou seja, após o exílio da Babilónia), sendo o resultado de um debate/partilha teológico/a entre vários grupos ou movimentos: por um lado, os «deuteronomistas», que querem um Judaísmo (essencialmente) «religião do Livro»; os «sacerdotes», que consideram que ele deve ser (sobretudo) uma «religião do Culto [sacrificial]»; e os «profetas», para quem o Povo eleito tem uma especial «missão» na terra, a de testemunhar a grandeza de Javé. Neste nosso «teologizar», vamos apenas abordar a perspectiva deuteronomista, começando precisamente por estudar o «mito fundador» da «religião do Livro»: a descoberta do «livro da lei/aliança» no templo de Jerusalém, durante o reinado de Josias ben-Amon (cf. 2Rs 22-23; 2Cr 34-35).

Da «piedosa fraude» ao «topos literário»

Desde o início do século XIX, altura em que W. De Wette «descobriu» a «fonte» deuteronomista, que este texto adquiriu uma importância extraordinária. Alguns Padres da Igreja haviam já insinuado que o livro descoberto pelo sumo sacerdote Hilkias, no templo de Jerusalém, podia muito bem ser o livro do Deuteronómio, mas foi De Wette quem o demonstrou, pois as reformas religiosas levadas a cabo pelo rei Josias correspondiam perfeitamente às normas do Código Deuteronomista (cf. Dt 12-25). Sem pôr em causa a historicidade deste «achado», os exegetas de Novecentos desenvolveram a teoria da «fraude piedosa»: os sacerdotes e levitas de Jerusalém teriam redigido o Código Deuteronomista para promover a reforma religiosa de Josias – quando este chegasse à maioridade –, tendo-o disfarçado de «Testamento de Moisés» e escondido no templo, de modo a ser facilmente descoberto.

Hoje em dia, porém, duvida-se da própria historicidade da descoberta. Efectivamente, na sua forma final, o relato já tem em conta a destruição do templo e o exílio da Babilónia (veja-se a profecia de Hulda), e parece sugerir que, em definitiva, a purificação do Templo não foi decisiva, tendo a «descoberta» do livro possibilitado adorar Javé sem necessidade de templo algum. A própria análise literária do texto aponta para aí, dado que parece haver duas narrativas que se sobrepõem e que poderiam ser independentes (veja-se a versão paralela em 2Cr 34): a) a narrativa das obras no templo (22,3-7.9) e a reforma religiosa em Judá (23,4-14); b) a narrativa da descoberta do «livro da aliança» (22,8.10-20; 23,1-3) e as reformas «deuteronomistas» (23,15-27). Duvidando da historicidade desta última, os exegetas actuais inclinam-se a considerá-la um «construção [topos] literária» posterior9.

À procura de uma identidade

A análise deste texto fundamental permitiria distinguir três etapas. A primeira situar-se-ia ao nível dos Anais dos Reis de Judá, nos quais era referida uma reforma religiosa levada a cabo por Josias, em Judá (e, particularmente, no templo de Jerusalém). A segunda, no final do

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período neo-babilónico, momento em que o(s) autor(es) deuteronomista(s) terão introduzido na antiga narrativa o motivo da «descoberta» do livro (bem conhecido na Mesopotâmia), como um sinal divino legitimador de dita reforma. A terceira ocorreria já no período persa, em que a referência ao «livro da aliança» se transforma em fundamento de uma religião sem templo. Mas vamos por partes.

A reforma religiosa de Josias seria o culminar de uma evolução do pensamento religioso em Judá. Embora seja verdade que não existe documento algum do reinado de Josias que prove a veracidade da sua reforma religiosa, há porém importantes indícios iconográficos (glípticos) que testemunham uma mudança importante em finais do séc. VII: os motivos astrais que, desde os finais do séc. VIII, eram característicos dos selos da aristocracia e dos funcionários reais, desaparecem totalmente com Josias – ora, esta situação parece corresponder ao núcleo da reforma religiosa apresentada em 2Rs 23,4-14. Além disso, ao longo do séc. VII, Jerusalém (e o seu templo) foi ganhando cada vez maior importância: se é verdade que as campanhas assírias de Senaquerib haviam destruído, num primeiro momento, a maior parte dos santuários e «lugares altos» de Judá, contribuindo para uma certa «centralização» do culto em Jerusalém, o facto decisivo, porém, é a não conquista da capital, após um prolongado cerco à cidade. Na memória judaica, foi Javé quem salvou Sião (vide Isaías e Salmos) e a escolheu como sua morada (vide lei da «centralização do culto», em Dt 12). Portanto, com toda a probabilidade, no momento em que a Assíria se retira do Levante, Josias promove uma importante reforma religiosa.

Os acontecimentos de 597 e 587 vieram, no entanto, modificar completamente a situação: Jerusalém cai agora nas mãos dos Babilónios e o templo de Javé é destruído. No contexto da mentalidade do Médio Oriente antigo, Javé é um deus vencido e sem futuro; mas não para os escribas de Israel: a chamada «história deuteronomista» (HD) explica o desastre, não como uma derrota de Javé, mas como um castigo pelo «pecado» do povo e dos seus dirigentes (ideia fundamental que se encontra em Juízes, 1/2Samuel e 1/2Reis); por isso, eles convidam o «verdadeiro Israel» (a golah babilónica) à fidelidade à «aliança» que Javé estabeleceu com o seu povo (Deuteronómio), para que possam regressar à Terra da Promessa (Josué).

É possível que a narrativa da «descoberta» do livro – ou da «pedra de fundação» – tenha sido introduzida nesse momento, como motivo tomado de empréstimo à cultura mesopotâmica (veja-se o que acontece nas reformas religiosas de Nabónido). Neste caso, a «descoberta», tal como acontece com o rei da Babilónia, serve a legitimar as importantes reformas religiosas de Josias que, apesar de tudo, não puderam evitar o «desastre», devido sobretudo à acção dos «maus reis» de Judá (Manassés e Amon). No entanto, nos anos posteriores ao exílio, entre 539 e 400 a.C., tem lugar a elaboração da Tora, com a colaboração activa dos «deuteronomistas». Neste contexto, o «livro» descoberto no templo de Jerusalém é, cada vez mais, identificado com o «livro da aliança» ou o «livro da lei [ torah]», que não se resume apenas ao Código Deuteronomista (o livro do Deuteronómio), mas é constituído agora por um conjunto narrativo de que fazem também parte outras colecções legais de Israel: o Código da Aliança (Êxodo) e os códigos sacerdotais (Levítico). Curiosamente, o contexto da leitura do «livro da Aliança» por Josias (cf. 2Rs 23,1-3) assemelha-se muito ao da leitura do «livro da Lei [de Moisés]» por Esdras (cf. Ne 8,2-6).

9 Nota bibliográfica: sobre os Deuteronomistas e a evolução redactorial do texto de 2Rs 22-23, veja-se Thomas RÖMER, La première histoire d’Israel. L’École deutéronomiste à l’œuvre, Genebra, Labor et Fides, 2007, pp. 55-62; sobre o alcance da descoberta do «livro da lei», ver Jonathan BEN-DOV, «Writing as Oracle and as Law: New Contexts for the Book-Find of King Josiah», in JBL 127, 2 (2008), pp. 223-239; enfim, sobre a exegese recente de 2Rs 22-23, ver ainda David HENIGE, «Found But Not Lost: A Skeptical Note on the Document Discovered in the Temple under Josiah», in Journal of Hebrew Scriptures, 7 (2007) – http://ejournals.library.ualberta.ca/index.php/jhs/article/view/5657.

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