O DETERMISMO BIOLGICO E O PODER DAS FINANAS

Leandro Mdolo Paschoalotte

O texto de Pankaj Mehta (2014), cientista e professor da Universidade de Boston,O ressurgimento do determinismo biolgico na era neoliberal, publicado no Portal Carta Maior (re)suscita um debate urgente e imprescindvel para campo da esquerda. De Gobineau e sua teoria eugnica Spencer e as corridas coloniais, de Charles Davenport e Harry Laughlin e as polticas de esterilizao estadunidense Eugen Fischer e Alfred Ploetz e a Lei de Proteo Sade Hereditria do Povo Alemo, ao menos a histria ocidental moderna est recheada de cientistas que advogaram causas naturais para diferenas e problemas sociais. Hoje talvez estejamos assistindo, como diz Mehta a ltima onda de determinismo biolgico, que por sinal, uma continuao dessa longa tradio, mas com diferenas significativas em relao aos enfoques do passado.

Neste trabalho tentaremos uma breve aproximao ao que acreditamos ser a grande diferena social significativa dessa longa tradio determinista: o processo de constituio a que assistimos no diz respeito apenas a um campo cientfico e seus atores correspondentes, mas a um complexo (bio)industrial financeirizado capaz de sustentar e reproduzir teorias, tcnicas e tecnologias deterministas com elevadas repercusses sociais e polticas para a humanidade do sc. XXI. Sendo assim, num primeiro momento discutiremos rapidamente algumas das caractersticas do cenrio atual da produo cientfica, especialmente da biocientfica e sua relao com os novos arranjos do capitalismo contemporneo. Para, num segundo momento, trazermos ao debate o epicentro de nossa contribuio: as razes financeiras do determinismo biolgico. A 'cincia ps-acadmica' e as biotecnologias

Em dezembro de 2000, o cientista John Craig Venter apareceu na capa da revista estadunidense Time vestindo metade um elegante terno preto e na outra um tradicional jaleco branco. Considerado por muitos o cientista do ano, Venter liderou uma equipe de pesquisadores que conseguiu desafiar o consrcio multilateral Projeto Genoma Humano, composto por centenas de cientistas dos mais diversos pases dentre os principais destacaram-se a Inglaterra, Frana, Alemanha, Canad, Japo e, mais do que todos, os EUA. Em pouco menos de trs anos, a equipe de Venter conseguiu os objetivos que o consrcio PGH acreditava alcanar apenas em uma dcada: o mapeamento genmico completo do Homo sapiens. Feito que sem dvida dispensa comentrios quanto aos ganhos para o desenvolvimento cientfico da humanidade. Esse evento, porm, visto tambm por muitos como o marco de uma nova era para a Cincia. Ele sinaliza uma ruptura tecnocientfica que, para John Ziman, fsico e epistemlogo, por exemplo, podemos chamar de um novo terreno de produo cientfica: a denominada cincia ps-acadmica.

Embora no tenha sido Venter, e nem o PGH, a dar o ponta p inicial emergncia da cincia ps-acadmica, sem dvida alguma podemos crer que este evento demarcou/sintetizou mundialmente uma paradigmtica transformao na maneira com que a cincia passou a ser organizada, gerida e executada. Sem nos alongarmos nesse ponto, podemos resumir dizendo.

Durante grande parte do sculo XX, as instituies de pesquisas pblicas e os laboratrios industriais operavam de forma relativamente independente, desenvolvendo suas prprias prticas e modos de comportamento. Mas, a chamada tecnocincia contempornea ultrapassou o patamar de integrao/intercmbio com os governos e com o mercado da poca das Revolues Industriais e mesmo da Guerra Fria. A cincia ps-acadmica nasceu, segundo Ziman, da fuso, intensiva e extensiva, justamente das normas e prticas dos campos pblico e privado, acadmico e empresarial.

A partir dos anos 1980 as ligaes entre as instituies cientficas e o mundo empresarial, com suas opes econmicas e polticas, tornaram-se praticamente fluxos constantes. Consequentemente, ao longo das ltimas dcadas, assistimos a reestruturaes nas mais diversas dimenses institucionais. No apenas a produo de conhecimento passou a envolver diretamente um nmero crescente de atores no-acadmicos e no-cientistas; mas, tambm, para no ficarmos apenas com Ziman, podemos dizer que nunca antes a produo, divulgao e o ethos cientfico estiveram to subsumidos quilo que I. Mszros chamou de os imperativos do valor de troca auto-expansivo. O resultado ento tem sido uma tendncia sistemtica de financiar e agenciar as investigaes cientficas segundo o critrio da antecipao dos resultados econmicos.

Estamos assentados sobre a consolidao de um novo modo de produo do conhecimento cientfico. Os conhecimentos e saberes produzidos tornaram-se efetivamente mercadorias, propriedade privadas e secretas. As trocas de informaes e de material entre os pesquisadores, antes baseadas na confiana e reciprocidade dos mesmos, passaram a ser objetos de acordos institucionais mediados especialmente por businessmans, interessados em otimizar a performance de uma empresa ou instituio com, por exemplo, a explorao ulterior dos direitos de propriedade. Os objetos de pesquisas tornaram-se mais focalizados em questes tcnicos locais do que na compreenso geral/totalizante de determinados problemas. Os ethos cientfico passou aos desgnios de autoridades empresariais e sob os imperativos que ela acompanha, como produtividade, exequibilidade, sigilo, competitividade etc. Alm disso, os cientistas so contratados/requisitados como especialistas, consultores, problem-solvers, etc. e suas pesquisas passaram a ser commissioned para alcanar objetivos prticos, em funo das exigncias dos financiadores. Hoje, definitivamente, a cincia feita de fatores de impacto, de patentes e copyrights, de contratos de pesquisas temporrios, de redes internacionais que compreendem empreendimentos interdisciplinares com empresas transnacionais, governos locais, organismos multilaterais etc.

A respeito dessas alteraes na produo cientfica, disse acertadamente o geneticista de Havard, Richard Lewontin, quando se referiu ao campo das Life Sciences: Como consequncia destas possibilidades, os biologistas moleculares esto se tornando empreendedores. Muitos fundaram empresas financiadas por capital de risco. Alguns ficaram ricos quando suas aes foram oferecidas na bolsa de valores e subitamente passaram a ser portadores de um monte de papis valiosos. Outros so portadores de grandes quantidades de aes de indstrias farmacuticas internacionais que compraram as firmas de fundo de quintal dos biologistas e adquiriram seus conhecimentos por uma bagatela.(2002, p.64)

Voltando a Venter, na histria do PGH o cientista de preto e branco um dos personagens que abandonaram o consrcio antes do fim. Sua intenes: liderar um empreendimento com os mesmos objetivos, porm com a sua empresa Celera Genomics. Se o lado branco do jaleco de Venter representava o cientista lder do mapeamento genmico, seu aprumado terno preto representava um grande homem de negcios. Um manager que no visa apenas captar recursos dos setores empresariais para o desenvolvimento de suas pesquisas em Universidades pblicas, mas antes que ele mesmo um businessman proprietrio, acionista e investidor de uma grande empresa na rea de sua atuao cientfica. No fim, em junho de 2000, o grande feito do mapeamento do genoma humano foi atribudo a ambos, ao consrcio e a Celera que por sinal teve seu capital multiplicado em algumas cifras de bilhes de dlares.

Concordando com caso de Venter e do PGH como marco sinalizador de um novo modo de organizao e execuo da cincia, razes tambm no faltam para crermos que o campo das cincias da vida como um todo biologia, medicina, engenharia gentica, biotecnologia, neurocincias etc. seja um lcus privilegiado da chamada cincia ps-acadmica. Apenas para citarmos mais um exemplo onde os setores empresariais de pesquisas definitivamente se fundiram aos setores pblicos e os cientistas passaram dividir seu tempo entre os laboratrios e as bolsas de valores, lembremos o caso de James Watson.

Prmio Nobel, ao lado do bilogo ingls Francis H. C. Crick pela descoberta da estrutura de espiral dupla do DNA, em 1953, e tambm um dos pesquisadores chave do PGH, James Watson, em 1991, foi um dos protagonistas de uma trama envolvendo o NIH (National Institutes of Health) e o PGH que at hoje guarda controvrsias. Um modo possvel de entender toda a histria a ocorrncia de um conflito de interesses. De um lado, o geneticista/biofsico norte-americano e tambm acionista de empresas privadas de biotecnologia, Watson, um defensor da iniciativa privada no desenvolvimento de pesquisas de engenharia gentica e, tambm, do patenteamento privado dos produtos concebidos em tais pesquisas. Por outro lado, o NIH, cujo diretor na poca era Bernardine Healy, um defensor do patenteamento pblico dos produtos do PGH como forma de proteo dos fundos pblicos utilizados frente aos investidores privados, sobretudo frente aos capitais estrangeiros. Resultado: em 1992, Watson demite-se do PGH alegando que estava muito sobrecarregado e que as medidas tomadas por Healy, pura demncia, iriam atrasar as livres iniciativas de aquisies de informaes das sequencias genticas. Novamente certeiro, em 2000, Lewontin destacou: Estes projetos [o Projeto Genoma Humano nos Estados Unidos e seu anlogo internacional, da Human Genome Organization] so, na verdade, organizaes voltadas mais para atividades financeiras e administrativas do que para projetos de pesquisas. Foram criados nos ltimos cinco anos em resposta a um enrgico esforo lobista de cientistas com Walter Gilbert, James Watson, Charles Cantor e Leroy Hood, objetivando captar altssimas somas de fundos pblicos e dirigindo o fluxo desses fundos para um imenso programa de pesquisa cooperativa. (LEWONTIN, p.55)

Mas o que tudo isso tem a ver efetivamente com o que Pankaj Mehta de forma precisa chamou de ressurgimento do determinismo biolgico e de seu detestvel primo, o darwinismo social? Tais cientistas seriam os Spencers, Gobineaus, Mengueles do sculo XXI ? E o PGH, exemplo privilegiado de um novo modo de produo cientfica, seria um consrcio semelhante antiga Sociedade Americana de Eugenia ou aos Institutos Kaiser Wilhelm da Alemanha nazista?

Como bem demonstrou Mehta, h certamente na atual biologia molecular especialmente a gentica elementos de determinismos biolgicos capazes de sustentarem o renascimento do darwinismo social, agora em tempos neoliberais. Ainda mais se dermos ateno para a controversa declarao de James Watson feita ao The Sunday Times: Toda a nossa poltica social est baseada no facto da inteligncia deles [dos africanos] ser a mesma que a nossa. Mas todas as experincias dizem que no bem assim (...). Quem tem que lidar com empregados negros sabe que isto no verdade. Ou ainda, se tomarmos conta que Watson presidiu durante dcadas o laboratrio Cold Spring Harbor Laboratory que, como bem lembrou Pankaj Mehta, uma antiga organizao fundada para fins eugnicos.

Todavia, esses elementos no nos faz crer num repeteco histrico que reavivaria prticas sistemticas de extermnios tnicos capitaneados por ideologias e estados totalitrios, como a Alemanha do Fhrer. Ainda assim, em nosso entendimento, preciso a mxima ateno para uma plataforma nova na qual pode estar se sustentando o ressurgimento do determinismo biolgico e, possivelmente, o seu detestvel primo, o darwinismo social. E justamente dessa nova plataforma que trataremos na segunda parte. O determinismo biolgico e poder das finanas

Para nos aproximarmos do que considero uma nova plataforma de sustentao ao ressurgimento do determinismo biolgico precisamos recapitular brevemente dois grandes fenmenos que marcaram as ltimas dcadas. O primeiro deles diz respeito emergncia e consolidao de conglomerados e atores de extraordinrio poder global de coordenao poltico-econmico, a hegemonia do capital financeiro. E o segundo, conectado a esse, o novo carter atribudo s informaes mormente aos conhecimentos circundantes nas mais diversas instituies e mecanismos de produo, controle e divulgao das mesmas: a chamada economia do conhecimento, marcada especialmente pela comoditizao das informaes via o mercado de patentes e copyrights.

Segundo Marx, a lei de sobreacumulao capitalista no pode ser superada no interior do prprio capitalismo. E como David Harvey nos demonstrou no seu j clssico Condio ps-moderna, um dos mtodos de contramedida sobreacumulao a sua absoro por meio do deslocamento espacial e/ou temporal dos capitais, logo, da criao de mecanismos, tcnicas e objetos que possibilitem esse deslocamento de forma cada vez mais veloz e gil. Assim, com o objetivo de dar ao capital tal liberdade de movimento que lhe permitisse superar a queda da taxa de lucro e desenvolver-se em um espao mundializado de valorizao, pode-se dizer que os processos de liberalizaes e desregulamentaes financeiras foram respostas crise de sobreacumulao da dcada de 70.

Tais respostas, possibilitadas especialmente pelas revolues da informtica e pela avalanche neoliberal como demarcou Mehta , permitiram que a liquidez do capital financeiro construsse um cenrio propcio migrao da antiga estrutura rgida do capitalismo, herdeira do fordismo, para uma estrutura flexvel instituda pelo poder das finanas. Resultado: setores inteiros da economia industrial subsumiram-se aos imperativos da lgica de acumulao do capital financeiro, um processo, que ao lado do crescimento do setor de servios, ficou conhecido por desindustrializao.

Podemos ainda inferir, junto s anlises do economista francs F. Chesnais, que os processos de implementao do capital financeiro colocaram em cena novos players e reposicionaram outros j existentes. O que resulta dizer, que embora os grupos industriais transnacionais ainda sejam a faceta mais visvel e mais identificvel do capitalismo contemporneo por expressarem diretamente a influncia poltico-econmica dos capitais , os atores financeiros tornaram-se cruciais e com poderes muitas vezes imbatveis no cenrio poltico-econmico mundial.

Nesse conjunto de novos players um setor importante deles o que mais nos interessa aqui. Antigos e novos arranjos de grupos empresariais multinacionais e transnacionais passaram a operar especialmente na forma jurdica de holdings. Compostas por sociedades de acionistas, as holdings atuam em mltiplas atividades, porm, sempre comprometidas e coordenadas pela acumulao mais flexvel e mais veloz do capital financeiro. Grande parte dos setores empresariais tornaram-se, mais ou menos, refns da governance financeira das grandes holdings. E nesse sentido, elas se tornaram as matrizes de decises empresariais nos cenrios polticos, econmicos, tecnolgicos, miditicos, ambientais, cientficos orquestrando-os segundo a insaciabilidade das finanas e a volatilidade dos ventures capital.

Alguma coisa j deve estar fazendo mais sentido agora, no mesmo? Estamos nos referindo a um dos grandes pilares daquilo que chamamos de nova plataforma de sustentao do ressurgimento do determinismo biolgico, a saber: a tecnocincia contempornea financeirizada e, especialmente, os cientistas ps-acadmicos so importantes capitalistas do mercado financeiro.

O desenvolvimento das cincias da vida, em tempos ps-acadmico, marcado tambm pela hegemonia do capital financeiro em torno de grandes e poucas holdings, consequentemente, pela insero/interferncia destas nas atividades de pesquisa e desenvolvimento. Indstrias de sementes so incorporadas s empresas farmacuticas, qumicas, alimentcias, mdicas etc., tornando-se uma complexa rede de corporaes em que parte de seus acionistas so tambm os cientistas que coordenam as pesquisas em laboratrios pblicos e privados. Os interesses dessas empresas passam a gerenciar parte da agenda das pesquisas, numa convergncia de interesses entre setores de pesquisa, desenvolvimento, transformao e distribuio que inexistia anteriormente e que passam a deter um poder de comando antes inimaginvel.

Embora com informaes relativamente antigas, o trabalho de Krimsky, Ennis e Weissman traz dados reveladores: na dcada de 80, pelo menos cerca de 35% dos pesquisadores ligados cincia da vida, membros da renomada National Academy of Sciences, mantinham laos com a indstria biotecnolgica, trabalhando nela como consultores, conselheiros, gestores, ou sendo eles mesmos acionistas das empresas. Pode-se dizer que se essa tendncia comeou com a primeira corporao de biotecnologia Genentech Inc. fundada pelo geneticista molecular Paul Berg, mas certamente ela no terminou a. Captulos como os da Celera Genomic de Venter e das ligaes de James Watson e sua famlia com empresas farmacuticas, no param de serem escritos. De fato, como assevera Lewontin vrios geneticistas moleculares de renome, (...) so fundadores, diretores, funcionrios ou acionistas de empresas de biotecnologia, incluindo fabricantes de suprimentos e equipamentos utilizados nas pesquisas de sequenciamento. (p.64).

Venter, o nosso grande exemplo, portanto, no simplesmente um cientista que decidiu tornar-se empresrio. Como cientista ele continua a participar ativamente na produo de conhecimento, a publicar papers e livros, a contribuir nos debates epistemolgicos etc. E como empresrio ele corre o mundo dando conferncias e palestras mentoring ensinando como a atividade de pesquisa pode ser empreendedora e exige novas caractersticas de performance. Cincia ou investimento, Universidade ou NASDAQ, difcil saber o que vem primeiro na vida ps-acadmica, mais difcil ainda no reconhecermos uma comunho de interesses entre determinismo/reducionismo gentico e o mercado da biotecnologia. Mas para isso, vale brevemente relatar o que entendemos como o segundo pilar de fixao da nova plataforma de sustentao do determinismo biolgico.

Como sabemos, a consolidao do poder das finanas, do mercado de biotecnologia e da chamada cincia ps-acadmica no teriam sido possveis sem os mecanismos do sistema poltico neoliberais criadores de condies normativas e legais para institurem legitimadamente os imperativos do valor de troca auto-expansivo a todos os interstcios da vida social. E certamente um dos captulos mais importantes desse processo foi a expanso das condies para a concesso de propriedade intelectual.

Para as empresas de biotecnologia, o potencial inovador de suas tecnologias/tcnicas/produtos no poderia ser valorizado sem que os seus investimentos fossem protegidos por um forte sistema de patentes. Em outras palavras, nenhum investimento na cincia ps-acadmica capaz de assegurar a transferncia dos conhecimentos ao mundo econmico, e to pouco ao bilionrio mercado da biotecnologia, seria possvel sem a segurana legal/normativa das patentes.

Os Direitos de Propriedade Intelectual (patentes, trade-mark, copyright etc.) resultados de criaes de novas legislaes e de desregulamentaes (TRIPs Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights , Bayh-Dole Act etc.) da era neoliberal criaram novas e desenvolveram antigas formas de apropriaes privadas, tornando a propriedade intelectual um dos instrumentos centrais de acumulao do capitalismo contemporneo, exemplo expressivo a economia do conhecimento do mercado de patentes. A esse respeito, a economista brasileira Leda Paulani nos esclarece sobre a importncia e a diferena que o conhecimento detm e opera na atual etapa de acumulao capitalista: ... qual a novidade que o capitalismo contemporneo traz? A novidade a existncia de mercadorias feitas s de conhecimento. O setor paradigmtico desse tipo de mercadoria o setor de informtica. Cabe ento perguntar: o que um software, ou produtos correlatos a esse, que empresas como a Microsoft e a Google vendem aos milhares todos os dias? algo que tem a forma mercadoria, pois tem um preo e o acesso a ela depende do pagamento desse preo (a menos, claro, da pirataria), mas que no tem valor, pois o tempo de trabalho necessrio sua reproduo zero. Qual o fundamento desse preo ento? Seu fundamento uma renda do saber, uma renda absoluta, que, tal como a renda absoluta da terra que Marx diagnosticou, fundamenta-se pura e simplesmente na existncia da propriedade. (p.16, grifo nosso)

Assim, a propriedade intelectual, ao converter o conhecimento em mercadoria e transform-la num insumo indispensvel produo de outras mercadorias, torna-se um privilegiado objeto de renda na mo da governana corporativa. Num momento em que o capitalismo financeirizado tornou-se hegemnico ele carrega em si um trao essencialmente rentista. E os principais ativos financeiros das empresas so imagens, marcas e patentes, so capitais investidos no mercado do conhecimento/informao associados numa rede complexa de holdings atuantes em diversas reas e, como vimos, com poderes de comando e coordenao antes inimaginveis.

Dessa forma, as patentes podem ser vista como ponto de confluncia didtico entre as finanas, a biotecnologia, a cincia ps-acadmica e, especialmente, o ressurgimento do determinismo biolgico e de seu detestvel primo, o darwinismo social. Quem nos ensina isso o socilogo portugus Jos Lus Garcia :Vemos ento que o desenvolvimento da biotecnologia (na sua estreita articulao com a engenharia gentica e a bioengenharia em geral) vem aprofundar algo que, no quadro da aplicabilidade de patentes, era j uma tendncia: encarar como inveno tudo o que tivesse sido manipulado, incluindo seres vivos. (...) Esta orientao favorecida pelas concepes reducionistas e mecanicistas, partilhadas, sobretudo pelos membros da comunidade da biotecnologia cujo terreno de investigao no exige um nvel de abstrao terica muito elevada e que justificam o processo de alargamento das patentes ao explicarem o funcionamento biolgico em termos de informao gentica, tornando assim plausvel que um gene seja objeto de propriedade intelectual. Com efeito, constata-se uma afinidade eletiva entre a argumentao favorvel patenteao de genes e a imagem de um gene isolvel que particulariza uma funo dispensando o contexto celular e ambiental do organismo.(p.986)

Agora, definitivamente, podemos deixar claro o que chamamos de nova plataforma de sustentao do ressurgimento do determinismo biolgico e de seu detestvel primo, o darwinismo social. Se hipoteticamente eu possuo a patente de uma variante genmica, o XY2Z, por exemplo, que de forma isolada acarreta uma caracterstica ou doena; disseminar, propagar, manter e consolidar o determinismo/reducionismo gentico em publicaes especializadas, em meios/canais de divulgao cientfica, em fractais e peridicos leigos etc. tambm assegurar bilhes de investimentos em biotecnologia. Ou seja, possvel dizer que o novo determinismo biolgico a sustentao de bilionrios investimentos em ventures capital de poderosos acionistas e players globais em biotecnologias espalhados por todo mundo.

Como diz acertadamente Pankaj Mehta, em seu texto Carta Maior,

o plano do determinista gentico na era genmica claro: obtenha quantidades massivas de dados de sequncias genticas. Encontre uma caracterstica mal definida (como a preferncia poltica). Encontre um gene que est estatisticamente sobrerrepresentado na subpopulao que possui a caracterstica. Declare a vitria. Ignore o fato de que os genes, na realidade, no explicam a variao fenotpica da caracterstica. () A partir da, generalize esses resultados ao plano de anlise das sociedades e argumente que eles explicam as bases genticas fundamentais do comportamento humano. Rediga uma nota imprensa e espere que os meios de comunicao publiquem notcias chamativas. Repita o processo com outro conjunto de dados e com outra caracterstica.

Assim, numa economia marcada por mercados futuros, a consolidao e a sustentao de determinados consensos e paradigmas acerca de uma tcnica/tecnologia e seus possveis resultados patenteados so imprescindveis para manuteno da confiana de investidores em seus ativos financeiros. Nesse sentido, determinadas teorias e crenas, como a ideia de que grandes problemas do mundo podem ser resolvidos simplesmente pela identificao, isolamento e manipulao dos genes tornaram-se, nas mos de setores importantes das finanas, um trunfo para valorizaes diretas de seus capitais. E no h limites para mant-los rentveis, pois, Equipados com imensas bases de dados genticos e um imenso arsenal de tcnicas estatsticas, as redes de poderes e interesses das cincias da vida financeirizada esto imbrincadas em agncias publicitrias, em laboratrios de pesquisas, em peridicos especializados ou no, em congressos e conferncias mdicas, em poderosos lobbies nos marcos institucionais etc.

Se estamos na alvorada da era genmica como ressurgimento do determinismo biolgico, para alm de esse fator estar combinado ao fato de que vivemos em uma nova Era Dourada (Gilged Age), na qual uma reduzida elite global tem acesso a, e necessidade de justificar a posse de quantidades desmedidas de riqueza e poder, faz com que as condies sejam muito propcias para um perigoso ressurgimento do determinismo biolgico., como disse Mehta. Estamos vivenciando um novo modo de propagar e sustentar tal determinismo, que envolve novos atores globais, novas tecnologias de divulgao, novos mecanismos de controle/coordenao, novos poderes de alcance, novos interesses de manuteno etc. Donde podemos pensar, que as crticas desferidas contra o determinismo biolgico hoje so tambm ataques diretos confiana do rentismo de poderosos atores do capital financeiro, de holdings que coordenam empresas farmacuticas, mdicas, agroalimentares, biotecnolgicas etc.

Para concluir, antes de qualquer mal compreendido, importante que se diga que a nossa tese no caminha nos marcos de um vulgar economicismo que cr mecanicamente que as relaes econmicas concorrncias do capitalismo neoliberal e financeirizado determinaram o surgimento das novas teorias biolgicas e genticas. Nossas palavras esto aqum ou alm de inferir as razes que fizeram emergir epistmica e ontologicamente tais teorias, e da validade cientfica delas ou no, o que nos interessa nesse momento avisar que a plataforma de propagao, consolidao e conservao dessas ideias so significativamente novas. O que certamente j nos exige uma diferenciada preocupao sociolgica, cultural e poltica.

Apenas acreditamos, portanto, que a comoditizao do conhecimento/informao mediante, sobretudo, o mercado de patentes em tempos de hegemonia do capital financeiro e cincia ps-acadmica, do ao determinismo gentico e ao possvel ressurgimento do darwinismo social uma nova plataforma de sustentao, logo, um novo significado histrico-social. Assim, em que pesem as diferenas com os seus parentes dos sculos passados, importante sim ficarmos atentos para que a histria no cometa um repeteco, mas mais do que isso, para que ela no d vida a uma nova e trgica barbrie ...

O texto aqui presente uma verso revisada de dois ensaios, O determinismo biolgico e os interesses do capital (Mdolo, 2014a) e A cincia entre o capital e as patentes(Mdolo, 2014b), publicados no Portal Carta Maior como uma contribuio ao debate suscitado por Pankaj Mehta em seu O ressurgimento do determinismo biolgico na era neoliberal.

LEWONTIN, R. O sonho do Genoma Humano. In: Rev. Adusp, n25. Abril de 2002.

LEWONTIN, R. O sonho do Genoma Humano. In: Rev. Adusp, n25. Abril de 2002.

Idem.

Essa declarao resultou em longo debate envolvendo a o jornal e o cientista, para saber um pouco mais a respeito: HYPERLINK "http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/genetica/declaracoes-racistas-de-watson-chocam-cientistas"http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/genetica/declaracoes-racistas-de-watson-chocam-cientistas e HYPERLINK "http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=24151&op=all"http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=24151&op=all

Academic-corporate ties in biotechnology: a quantitative study. In: Science, Technology and Human Values, 16, 3, p. 275-87, 1991.

PAULANI, L. Acumulao e Rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporneo. Disponvel em HYPERLINK "http://www.sep.org.br/artigos/download?id=2014&title=Acumulao+e+Rentismo%3A+resgatando+a+teoria+da+renda+de+Marx+para+pensar+o+capitalismo+contemporneo"http://www.sep.org.br/artigos/download?id=2014&title=Acumula%C3%A7%C3%A3o+e+Rentismo%3A+resgatando+a+teoria+da+renda+de+Marx+para+pensar+o+capitalismo+contempor%C3%A2neo. Acesso em 29 de abril de 2014.

GARCIA, J. L. Biotecnologia e biocapitalismo global. In: Anlise Social, vol. XLI (181), 2006, p. 981-1009.

De dlares?