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OdesenvolvimentocapitalistanoBrasilnãoseguiuomodeloconsagradona literatura especializada. Teve sua própria circunstância e nelapercorreuocaminhopossível.Asdeterminaçõesdeorigemdocapitalismoentre nós não podem ser ignoradas se queremos compreender suascontradições históricas, os bloqueios que até hoje nos desa iam a criarmais do que imitar. Para compreender o substancial dessa singularidadebastalevaremcontaumadiferençafundamentaleradicaldeorigem,quepermanece e nos regula. Diante do esgotamento do escravismo e dainevitabilidadedo trabalho livre, oBrasil decidiu, em1850,pela cessaçãodo trá ico negreiro, desse modo abreviando e condenando a escravidão.Optoupelaimigraçãoestrangeira,detrabalhadoreslivres.Paíscontinental,com abundância de terras incultas e um regime fundiário de livreocupação do solo, condenou-se, nesse ato, ao im do latifúndio, e,consequentemente, da economia escravista que sobre ele lorescera, dasociedadearistocráticaquedelesenutrira.Duassemanasdepois,porém,oBrasil aprovou uma Lei de Terras que instituía um novo regime depropriedade emque a condição de proprietário não dependia apenas dacondiçãodehomemlivre,mastambémdepecúlioparaacompradaterra,aindaqueaopróprioEstado.Opaísselecionariaadedo,pormeiodeseusagentesnaEuropa,oimigrantepobre,desprovidodemeios,quechegasseaoBrasil semoutra alternativa senão a de trabalhar em latifúndio alheioparaumdia,eventualmente,tornar-sesenhordesuaprópriaterra.

Opaísinventouafórmulasimplesdacoerçãolaboraldohomemlivre:sea terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosselivre, a terra tinha que ser escrava. O cativeiro da terra é a matrizestruturalehistóricadasociedadequesomoshoje.Elecondenouanossamodernidadeeanossaentradanomundocapitalistaaumamodalidadedecoerção do trabalho que nos assegurou um modelo de economiaconcentracionista.Nelaseapoiaanossalentidãohistóricaeapostergaçãodaascensãosocialdoscondenadosàservidãodaespera,geratrizdeumasociedadeconformistaedespolitizada.Umpermanenteaquémemrelaçãoàs imensas possibilidades que cria, tanto materiais quanto sociais eculturais.

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Dozeanosdepoisdaopçãobrasileira,ocapitalismomaisdesenvolvido,odos Estados Unidos, obteve pela mão do presidente Abraham Lincoln oHomesteadAct,optandopelalivreocupaçãodesuasterraslivrespara,poressemeio, esvaziar o escravismo americano emudar os fundamentos deuma sociedade também mutilada pela escravidão. A lei americana decolonização permitia que mesmo os ex-escravos pudessem se tornarproprietários de terra, sem ônus. O oposto do modelo de ocupaçãoterritorial e de capitalismo pelo qual o Brasil optara. Lá, amudança forapresididapelocapital;aqui, forapresididapelaeconomiadeexportaçãoeo latifúndio,noqualelasebaseava.Lá,ocapital searvoroupoliticamentecontra a propriedade da terra, seguindo a ordem lógica que impusera oim do antigo regime na Europa. Aqui, a propriedade da terra seinstitucionalizou como propriedade territorial capitalista, presidiu oprocessode instauração, difusão e consolidaçãodo capitalismo entre nós,acasalouterraecapital,concentrouarepartiçãodamais-valiaeavolumoua reprodução ampliada do capital. Foi o modo de acelerar a entrada dopaís no mundo moderno, o recurso compensatório da pilhagem colonialque nos condenara ao atraso, o modo de acumular mais depressa paramaisdepressasemodernizar.

Aqui, a transição para o capitalismo teve seu próprio percurso e seupróprio ritmo. Tem sido transição vagarosa, extraviada nos atalhos deinovações sociais e econômicas tópicas, que nos permitem ser o que nãosomosechegaraondenãopodemos.Saltossobreobloqueiodoatraso.

O fato singular de que a economia do café, no Brasil, tenha lorescidocombase no trabalho escravo e tenha tido um segundo desenvolvimentoespetacular combaseno trabalho livre constitui referência sociológicadefundamentalrelevânciaparaoestudocríticodeumdoscomplicadostemasdasciênciassociaisnessecenáriopeculiar:odatransiçãodeummododeproduçãoaoutro.Nonossocasofoiatransiçãodeummodelodesociedadefundada no trabalho escravo para um modelo de sociedade fundada notrabalholivre.Nãoquenessecaso,demodoimpropriamenteevolucionista,seja possível invocar uma suposta "teoria" dos modos de produção paracompreenderessamudança.Emoutroslugaresdetransiçõeshistóricasdeclássicareferência,comoodaindustrializaçãoeuropeia,astransformaçõesnas relações sociaisestiveramassociadasa transformaçõeseconômicas, à

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mudançadeobjetodaeconomia,seentendermosqueoprodutodagrandeindústria era substancialmente outro em relação ao produto damanufatura e, sobretudo, do artesanato. A grande indústria inventouprodutosnovosnoseunovomododeproduzir, seusprópriosprodutos,eextrapolouomodestoelencodosbensquepodiamserproduzidoscomosrecursos anteriormentedisponíveis.Mesmona continuidadedaproduçãode artigos já conhecidos, as simpli icações e alterações foram tantas que,em todas as partes, surgiu uma cultura que imputou aos novos bens daindústriaoestigmadearti icial,dosalimentosaovestuário,àsferramentase àsmáquinas.O homem comum reconheceumuito depressa a perda daqualidadedosprodutosemfavordaquantidade,tomandocomoreferênciaa valorização pré-moderna das formas artesanais de produzir. Certarecusa cultural da coisa produzida como contrafação do "verdadeiro" elegítimo produto, o do trabalho qualitativo das mãos obreiras emcontraposiçãoàoperaçãoquantitativadasmáquinas.

A compreensão dessa mudança depende da consideração de que apermanênciadafunçãodoprodutonãoimpediuqueelesetornasseoutracoisa,atépeloconjuntodesuascaracterísticas.Comocaféfoiocontrário:afunção e o produto permaneceram os mesmos e o processo de trabalhonãomudou.Ocolonocontinuouafazerexatamenteomesmoqueoescravofazia, mudando apenas a forma social da organização do trabalho, dotrabalho coletivo do eito para o trabalho familiar.Mudou relativamente aforma social de valorização do capital, seja pela eliminação do trá iconegreiro e da igura intermediária do tra icante de escravos, seja pelaimigraçãosubsidiadapeloEstado,quesocializouoscustosdeformaçãodanovaforçadetrabalho.Mudançaqueestimulouadisseminaçãodocálculocapitalistacomofundamentodaproduçãocafeeira,especialmenteocálculodecustodamãodeobra,coisaqueotrabalholivreviabilizounumaescalade tempo compatível com a de uma safra. O custo do trabalho nãomaisreguladopeladuraçãodavidadocativoe,comosedizia,numareferênciaà animalidade do trabalhador, à da vida do plantel de escravos de umafazenda.

Aqui,asmudançassederamnasmediaçõesdoprocesso,noquesituouovelhomododeproduzir o café nonovomodode reproduzir a riqueza. Amudança se deu com a interiorização dos mecanismos de reprodução

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capitalista do capital e a transposição do fazendeiro produtor de café doespaçodaproduçãonãocapitalistadocapitalparaointeriordoespaçodasuareproduçãocapitalista.Ouseja,oBrasilinteriorizouosmecanismosdareprodução capitalista num processo que foi o da ampliação do espaçoeconômicodessareprodução.Asmedidaspolíticastomadasparaprotegere apoiar a economiado café expandiramas condiçõesdeumaorientaçãopropriamente capitalista na produção agrícola e criaram as condições dapolivalência do empresário que, rapidamente, tomou o capital e não aterra, tampoucoomandosobreseus trabalhadores, comoa referênciadesua constituição como sujeito social e econômico. O fazendeiro deixou deserumamansadordegenteparase tornarumadministradorda riquezaproduzidapelotrabalho.

Jánaúltimadécadadoséculoxix,osmaisabastadosfazendeirosdecafédiversi icaram suas aplicações de capital e investiram na construção deferrovias,nafundaçãodebancos,deindústriasedeempresascomerciais.Embora,compreensivelmente,tome-secomoreferênciadessafundamentalmudança a biogra ia de Antônio da Silva Prado, grande empresáriopaulista, tanto os almanaques anuais do século xix e início do século xxquanto os documentos de acionistas das empresas que nasciam,registradas na Junta Comercial do Estado de São Paulo, têm extensaslistagens de nomes de fazendeiros que aplicaram seus lucros eminvestimentos alternativos e complementares aos do café e da cana-de-açúcar.Semcontarquefazendeirosprovenientesdeoutrosestados,comoosdoNordeste,trouxeramseuscabedaisparaaplicaçãoemSãoPaulo,emparticular na economia do café e nos seus efeitos multiplicadores emoutros setores da economia. A migração de cafeicultores luminenses (emineiros)paraSãoPaulo,vitimadospelodeclíniodaprodutividadedesuasterras esgotadas, que abriram as novas e férteis fazendas na recém-descobertaterra-roxadaregiãodeRibeirãoPretoedaqueacabousendoconhecida comoAltaMogiana, constitui boa indicação de umamobilidaderegidapeladinâmicadocapital,deum fazendeiro libertodasamarrasdaterraedaescravidão.Enão foi apenasomilagreda renda-diferencialdaterramaisfértilnanovazonadeplantioqueincrementouaacumulaçãodocapitalnaeconomiadocafé,mastambémaintroduçãodenovavariedadedaplanta,resultantedasdescobertasdocafeicultorefazendeiro,médicoecientista luminense Luís Pereira Barreto, um dos líderes desse

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deslocamento.

A possibilidade de estudar uma radical mudança pura no modo deproduzir,comosedeunocafé,comparandoaproduçãodomesmocafénoescravismo e no colonato, tem excepcional riqueza sociológica porquelibertaopesquisadordeconsideraçõeshipotéticasepermite-lheexaminare compreender a transição apartir de fatorespropriamentehistóricos.Oalcance teórico dessa circunstância é enorme porque permite retornar àessência última das formulações propriamente marxianas da teoria datransição,aquiloqueMarxapontounadispersãodeseusescritosemesmonumaobrafundamentaleinacabadaqueéOcapital.

A vulgarização da obra de Marx, particularmente no que se refere àtransição do feudalismo ao capitalismo, empobreceu os estudos einterpretações sobre as diferentes realidades sociais e históricas quepassaramaserobjetodeinteressedepesquisadoresmarxistas,namaioriados casos apenas limitadamente familiarizados com as complexidades daobra do autor alemão, que, por isso mesmo, reduziram-na a umainterpretação evolucionista e linear. Na verdade, Marx está bem longedisso, e sobre essa distância escreveumais de uma vez, sobretudo parasituar historicamente a diversidade das realidades sociais de suaspesquisas, análises e interpretações.O que se aplica em casos comoodasociedade brasileira, caso tópico de transição secundária e residualsubjacenteàgrande,disseminadae,numcertosentido, lentatransiçãodofeudalismo ao capitalismo, que aos trópicos chegou fora de época. Ademonstrarumasubstânciaintransitivanatransição,queforamosnossosescravismos,odoíndioeodonegro,associadosàproduçãodecapital,masnão à reprodução capitalista do capital, atenuada nos interstícios daeconomia.Umcuidadoquenãosevênoformalismodoredutivomarxismocontemporâneo, completamente des igurado na busca de constantesestruturais, que desdenha o que é próprio da compreensão dialética dahistória da vida social na perspectiva logicamente histórica, que é amultiplicidadedospossíveiseasingularidadedascircunstâncias.

A sociedade gestada pelo advento e disseminação da agriculturacafeeira,justamenteporquemudanãomudando,ofereceaopesquisadoraoportunidadedesseretornocríticoàspremissasmaissólidasdométodode

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Marx, em circunstâncias históricas bem diversas daquelas que foramobjeto de referência de sua obra. Diversamente do que fez em relação àÁsia, Marx interessou-se pouco pela América Latina e, nesse poucointeresse, usou fontes pobres, como observou José Aricó, o competentepesquisador argentino, erudito conhecedor e editor das obras do autoralemãoemespanhol.'Setivessetidomelhorfamiliaridadecomarealidadelatino-americana,emparticularcomaprofunda transiçãoqueasrelaçõesde trabalho estavam sofrendo no Brasil, seguramente teria alargado suacompreensãodocapitalismoeinovadonasinterpretaçõesquefez.

Marx tinha consciência das imensas limitações da referência social ehistóricadesuaobra,comodecertomodoconfessounosesboçosdecartaspara responder à indagação de uma militante populista russa, VeraZasulich,que lheescreveuperguntandose sua teoriadapossibilidadedosocialismo se aplicava também a países como a Rússia, ainda um paísagrário.MarxesclareceuquesuateoriadatransiçãoseaplicavaàEuropaOcidental.' No entanto, aparentemente não enviou à destinatária nenhumdos três esboços da carta de resposta, o que teria aberto uma imensabrechaparaacríticamarxianadomarxismoeteriacriadoaoportunidadedeuma sociologia críticadas transições,mesmonospaísesperiféricosdaprópria Europa. Na história do pensamento marxista, a omissão, oocultamento e a mutilação da interpretação cientí ica em nome damilitância política e em nome do poder estão expostas, documentadas eestudadas em toda a sua escandalosa extensão na célebre obra dohistoriador marxista italiano Franco Venturi, Il populismo russo, escritacom base na rica documentação que examinou na Biblioteca Lenin, emMoscou,logoapósaSegundaGuerraMundial.'

Portanto, o estudo das singularidades do colonato, forma de trabalholivrequeaquinasceusocialmentedasruínasdaescravidão,corroídapelascarênciasdasprópriasformasavançadasdemultiplicaçãodocapital,nãoésimplesmente,nemprincipalmente,umestudodehistóriasocialregional.Éantes o retorno à dialética e o exame cientí ico de um tema históricobanalizado, num caso denso de conteúdos reveladores. Suasdeterminações singulares, no entanto, o tornam objeto privilegiado deconhecimento e a rica referência dessa contribuição a uma teoria dastransformaçõessociais.

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Na revisão deste livro para a 9a e de initiva edição, levei em conta otempopassadodesdeoacesoe,numcertosentido,confusodebate latino-americano sobre a transiçãoparao capitalismo.Asnovas gerações estão,felizmente, distantes das certezas gratuitas do debate de então e maispreocupadascomaconsistênciacientí icadasinterpretaçõesarespeitodenossa singularidade histórica e das nossas possibilidades históricas emcomparaçãocomasqueseabriram(esefecharam!)emoutrassociedades,aquelas que pesaram decisivamente na formulação das basesinterpretativasdasociedadecontemporânea.

Nesta edição, iz alguns extensos acréscimos de informação histórica,resultantes da continuidade deminhas pesquisas sobre a sociedade quenascia no seio mesmo do escravismo. Tanto nos resultados de umapesquisa sobre a acumulação de capital e a diversi icação dosinvestimentos em São Paulo, no século xix, quanto nos de outra pesquisasobre a sociabilidadeprópria da escravidão indígena e sua superaçãonoséculo xviii. As duas escravidões, a indígena e a negra, continham sutis econtrastantesarranjossociaisqueajudamamelhorcompreendê-lascomorealidades sociológicas, em seus respectivos momentos e em suasrespectivas e problemáticas heranças sociais. No entanto, têm sidodesprezados por uma historiogra ia predominantemente interessada nasgrandes características estruturais da escravidão negra na sociedadeescravistaenosseusdéficitssociaisemorais.

Éimpossívelcompreenderosaltohistóricorepresentadoentrenóspelaindustrialização e por este nosso capitalismo nos trópicos sedesconhecermosenãocompreendermosessastransformações.Elasforamoresultadodeumacomplicadaengenhariaeconômicaesocial,quepassoutanto pela sucessão de cativeiros quanto pela invenção de relações detrabalho que nos permitiram adotar o trabalho livre e, aomesmo tempo,ralentar os seus efeitos emancipadores. A lentidão e a deformidade dasnossas relações de classe, marca da nossa modernidade, bem como aforma politicamente de icitária como se constituiu entre nós a classeoperária, longe do padrão clássico e da classe operária teórica, não seexplicam senão por meio dessa nossa singularidade histórica. É o queobrigaopesquisadoraatentarparasupostasirrelevânciaseminudênciasdoreal,determinaçõesdecisivasdoqueviemosasereaindasomos.

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Justamente por isso, nesta edição de O cativeiro da terra julgueiconveniente fazer acréscimos, esmiuçando e desenvolvendo formulaçõesteóricasdecisivasemminha interpretaçãoda transição,queageraçãodaépocadaprimeiraediçãodolivro,naquelaeradesilêncioscompreensíveise de subentendidos interpretativos, podia compreender com maiorfacilidade.Naprimeiraversãodolivro,opotencial interpretativoeteóricodeváriasquestõesnelelevantadas icouapenasenunciado,tendoemvistaasprioridadesecaracterísticasdodebatesobreoadventodocapitalismono Brasil. Debate que escondia uma sub-reptícia e equivocada celeuma,porquesemsustentaçãonapesquisaempíricaenoconhecimentohistórico,sobre tensões que propunham, na história imediata, uma presumíveltransiçãoparaosocialismo.Otemadolivroestavanocentrodeumintensodebate latino-americano sobre modos de produção. O interesse quecontinua despertando entre os estudiosos, demonstrado em suassucessivas edições, dele izeram um dos poucos sobreviventes do debateinconcluso.

Hoje,porém,ainterpretaçãomarxianajánãoestáemcausa,banidaporummarxismo de bolso, esquemático e pobre, puramente ideológico, quepretendeexplicar tudo, como receitade remédio, eque, na verdade, estácadavezmaisdistantedascomplexidadesantropológicasesociológicasdasociedadecontemporânea,emparticularde sociedadescomoabrasileira.Aqui, a pluralidadedos temposdoprocessohistórico émaiordoquenospaísescujahistóriaecujarealidadedominamainterpretaçãosociológicaea interpretação histórica, que adotamos sem maior crítica e às quaissucumbimossemaveri icaçãocríticadapesquisadocumentaledecampoe sem reconhecer que o conhecimento propriamente cientí ico, nasciênciashumanas,dependedepesquisaempíricaedaimplícitaconsciênciacientíficadasingularidade.

Perdemos o sentido das heranças inevitáveis e da história nocontemporâneo porque a dialética foi formalizada num estruturalismomístico e forma lista que propõe o homem como mero joguete dosconceitos. No entanto, muito mais do que antes, quando estávamos nonotório limiar de possibilidades históricas e políticas, estamos hojeafundados em certezas que baniram de nosso horizonte a história.Disseminamaconvicçãoconservadoraeaté reacionáriadequeahistória

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jásefez,dequeahistóriaacabou.Aconvicção,en im,dequechegamosaumaespéciedeeternidadepolíticaconstituídadefuncionáriosdachamadamilitância política remunerada, bem longe de quando militantesenfrentavam as incertezas do cárcere e, não raro, a morte. NaUniversidade se re letia sobre as determinações históricas do nossopresenteedonossopossível,aslimitaçõesqueopassadonosimpunha,aspossibilidades que se nos abriam nomarco de ummodo de ser em queexpressamos nossas singularidades inevitáveis, no modo como aqui sepropõeohomemgenéricodacontemporaneidade.

Na preparação desta 9a edição de O cativeiro da terra, mudei aestrutura do livro devido ao acrescentamento de três estudos deledecorrentes, escritos posteriormente à sua publicação. Fiz acréscimos aotextodocapítulo1,paradesenvolvertemasnelepropostos,quenaediçãooriginal icaramlimitadosaformulaçõesconcisas,porquecomplementaresemrelaçãoaoseueixoprincipal.Nestaversãoampliadadotexto,procureisuprimir os subentendidos, substituindo-os por explanações mais largas,de modo a estender os bene ícios do que penso ser um dos méritos dolivro,asuaclareza.

Ocapítulo2,agoraintroduzido,sobreo imigranteespanholnocolonato,alarga a perspectiva do capítulo 1 como contraponto à imigração italiana,que se tornou referencial nos estudos sobre esse regime de trabalho. Adiferençade características, de épocaedeespaçodessa imigração tardia(enviadaparaasterrasnovas,menosférteis,ocupadasapósopovoamentoda região de Ribeirão Preto e da Alta Mogiana) na localização dosespanhóisquea imigração subvencionada trouxeparaos cafezaisdeSãoPaulo, emrelaçãoaos italianos, éumrecursocomparativoemetodológicoparacompreenderadinâmicadocolonatoeasalteraçõesadaptativasneleocorridas.Namesma linha,a inclusãodotextoqueveioaserocapítulo3analisa outro aspecto essencial da dinâmica do colonato nas contradiçõesque progressivamente libertaram a forma salarial de remuneração dotrabalho da trama que fez do colonato um regime laboral peculiar ehíbrido. Nesse movimento, a libertação do salário como categoria demediaçãonasrelaçõesdeprodução,queseanunciaaospoucosereclama

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um sujeito social, o trabalhador assalariado, no complexo processo deproduçãodocafé.

O capítulo sobre a produção ideológica da noção de trabalho foiantecipado em relação ao capítulo sobre a gênese da industrialização.Suprimi nele uma das partes, que se tornou redundante por ser tema játratadoemcapítulosanteriores.Nanovaestruturaenonovoordenamentodolivro,ele icamelhorcomocapítulo4doque icariacomocapítulo5,queseria a sequência original. A ideologia da ascensão social pelo trabalho,embora geneticamente referida ao colonato, tomou conta também daideologia operária eurbana e é amelhor evidênciadequantoo cativeiroda terra se estendeu ideologicamente aomundo fabril que nascia com apoderosaacumulaçãodecapitalpossibilitadapelocafé.

Nessanovaestrutura,ocapítulo5,sobreocaféeaindustrialização,queé um balanço sobre o controvertido conhecimento que entre nós seproduziusobreomodocomoariquezacriadapelocafégeroua iguradoempresáriocapitalista,éopreâmbulodasequênciadolivro.Oempresáriode transição, aí referido, é aquele que encontrou, também na economiaurbana-nocapitalcomercial,nocapitalindustrialenocapital inanceiro-,o inevitável desdobramento do afã demultiplicação de sua riqueza. Essecapítulo trata das circunstâncias e condições de gestação de umaconsciência social e de classe correspondente à peculiar e tendencialunicidade de capital e propriedade da terra, de lucro e renda fundiária,que inaugurou e difundiu rapidamente entre nós a modernidade dessecapitalismosingular.

Fizalteraçõeseacréscimosnessecapítulo5,emparticularpararemovero didatismo que, hoje, me parece exagerado. Originalmente, escrito pararoteiro de seminários no exterior, icou marcado pela peculiaridade dopúblico a que se destinava. Removi, substituí e desenvolvi boa parte dostrechos com essa característica, de modo a dar ao texto a luência queacompanhaorestantedolivro.Paracon irmar,ainda,oqueeraaintençãooriginal de sua inclusão no volume, a de expor os desencontros dasinterpretações em relação à industrialização, particularmente em SãoPaulo,esuasconexõescomariquezageradapelocafé.

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O capítulo 6, um dos acrescentados nesta edição, trata dodesenvolvimento industrial, tomando como referência o imigrante italianonas duas categorias sociais que protagonizaram a nossa industrializaçãonassuasdécadasiniciais.Certamiti icaçãoevolucionistadarelaçãoentreocafé e a industrialização, de um lado, e o imigrante como personagemdestacado do advento do trabalho livre e do advento dos industriais, deoutro, pede uma revisão crítica e documentada do tema. É o que aquipretendi fazer. Embora o limitado consumo dos trabalhadores do cafétenha, sem dúvida, criado o mercado interno de que a indústrianecessitavaparasedesenvolver,apequenaemédia indústriafoidurantedécadasoabrigodaclasseoperáriaquenasciaforadosmarcosdagrandeindústria e, desse modo, parte ponderável desse mercado. A própriaindústria criou parcela não pequena de seumercado, o que se acentuoucomaurbanizaçãoeaproliferaçãoecrescimentodecidades, semdúvidafundadasnaprosperidadedocafé.

Mantive, com cortes, o capítulo sobre o burguês mítico, que é, naverdade, umestudo sobre aprojeçãodaproletária ideologiada ascensãosocial na igura do imigrante que deu certo e se tornou um grandecapitalista.

Narevisãodolivro,cuideiparaquehouvesseneleumauniformidadedeestilo, que não havia na edição original, dado que os diferentes capítulostinhamdiferentes datas de redação, escritos em diferentesmomentos deminhare lexãosobreseutemacentral.Nempor isso,ossetecapítulosdeagora deixam de ter sua temática própria. Há neles, de certo modo, umretorno insistente ao tema do cativeiro da terra, suas origens e suasdecorrências. No conjunto, acrescentei notas e referências necessáriasparadarcontadasalteraçõesresultantesdarevisão.

NOTAS

1 C£ José Maria Aricó, Marxy América Latina, México, Alianza EditorialMexicana,1982.

2 C£ Karl Marx e Frederick Engels, Selected Correspondence, Moscow,ProgressPublishers,1965,p.339-40.

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3 C£ Franco Venturi, Ilpopulismo russo, 2. ed., Torino, Giulio EinaudiEditore,1977,3v.

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Venhoorientandoaminhapesquisateóricaeempíricapeloproblemadaproduçãocapitalistaderelaçõesnãocapitalistasdeproduçãonomarcodareprodução capitalista do capital de origem não capitalista. Diante dosimpassesesimpli icaçõescontidosnojácansativodebatesobrefeudalismoecapitalismo,como"tiposmacroestruturais"pelosquaissepoderiade inirasociedadebrasileira,notodoouemparte,conformeomomento,ouasua"transição", procurei, como tantos outros pesquisadores, trabalharcriticamentesobreotema.

O que parece nos preocupar a todos é a efetiva natureza dascontradiçõesquedeterminamomovimentodestasociedade,quedefinemanaturezadassuastransformações,ocorridasouemcurso.Amerare lexãoteórica,oabusivoensaísmodegabinete,nãovainoslevarmuitolonge.Domesmo modo, o empirismo sem sustentação teórica, de indagaçõessuperficiais,sóserviráparaconfundiraindamais.

Creemalgunsqueoapegoàclassi icaçãoconceitual,àsimplesrotulação,é a forma correta de produzir uma explicação dialética. Fruti ica daí amultiplicaçãodemodosdeproduçãoedeformaçõeseconômico-sociais,nãoraromerasconstruçõesmentaisquedesprezamastensõesecontradiçõesconstitutivasdoprocessosocial ehistórico.Quantoàprimeiranoção,vemsendoutilizadacomoumaespéciedesalva-vidasdosaber.Algunsautores,ao que parece baseados numa leitura evolucionista d' O capital, têmpescadoemváriaspassagensdesselivro,particularmentenoseuprimeirotomo, o mais lido, não raro o único, referências a múltiplos modos deprodução.Oexameatentodostrêsvolumesdessaobramostra,entretanto,que Marx não dá a essa noção o peso formal que lhe dão algunsintelectuaiscontemporâneos,particularmentenaAméricaLatina.Nãoquea concepção não seja essencial. O que para Marx, nesse caso, não temgrande importância imediata é a rotulaçãodas relações sociais, suameranominação.Paraele,ofundamentaléareconstruçãocientí icadoprocessosocial, do movimento da sociedade. Um modo de produção é um modocomo se dá esse movimento, é o modo historicamente singular como asociedadeseproduzenãomeramenteomodocomoasociedadeproduz.O

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conceito vem no inal do processo de pensamento e não no começo. Sereduzirmosomododeproduçãoaummomento, aumaetapaeconômica,como faz emSweezyeos adeptosdoqueLukácsde ine como "marxismovulgar", des iguramos o processo histórico e introduzimos na sua análiseumentendimentoeconomicista,positivistaea-histórico,odeumahistóriasocial movida por conceitos e não, propriamente, movida por suascontradições.Porissomesmo,dependendodomovimentodaanálise,Marxutilizadiferentesdenominaçõesparaomesmomododeprodução -mododeprodução capitalista,mododeprodução especi icamente capitalista oumododeproduçãodagrande indústria.Algumasvezes, empregaanoçãode modo de produção para se referir ao processo de trabalho; outrasvezes, emprega-a para tratar do processo de valorização do capital, deextraçãodamais-valiaedereproduçãoampliadadocapital.Issonãoofazperder de vista a concepção nuclear de modo de produção, que é a demodohistoricamentedeterminadode exploraçãoda força de trabalhonoprocessodeprodução,noqualsãoproduzidastambémasrelaçõessociaisfundamentaisdeuma sociedadee asdestorcidas representações e ideiasque as legitimam e as explicam ideologicamente. Quando ele se refere amodo de produção camponês, está se referindo a processo camponês detrabalho, que não exclui a sujeição do trabalho camponês ao capital, fatoque não deveria ser perdido de vista em face de um estudo sobre aproduçãodocapitalesobreasuareproduçãocapitalista.Issonãoimpediuuma alvoroçada gestação de estudos em relação a um suposto modo(histórico)deproduçãocamponês,tambémaquinoBrasil.

Do mesmo modo, a noção de formação econômico-social foicompletamente des igurada. Petri icada e rei icada pelo raciocíniopositivista vulgar, substitui hoje em dia a noção funcionalista de sistemasocial, sem qualquer consideração crítica quanto ao métodosubstancialmente diverso que leva às de inições em cada caso. Isso podeserfacilmentecomprovado.Nosautoresemcujostrabalhosselia"sistemasocial",nasegundametadedosanos1950,podia-seler,vinteanosdepois,nasegundametadedosanos1970,"formaçãoeconômico-social",semqueo processo de pensamento subjacente aos conceitos tivesse sofridotransformaçãocorrespondenteàmudançaconceitual.

No período subsequente, um progressivo e disseminado relaxamento

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nos cuidados metodológicos com a explicação cientí ica na sociologiaagregou conceitos ideológicos e vagos, como o de "capitalismo", ao elencode rotulações propostas como se, por si mesmas, já contivessem aapropriadaexplanaçãosociológica-asnoçõessimpli icadasnosconceitoseos conceitos reduzidos a palavras e sinônimos. Uma evidência de queestamosdiantedoqueHenriLefebvrede inecomototalidadefechada,nãodialética, é a vinculação do conceito de formação econômico-social aespaços, comoaAméricaLatina, comosevêemobrasdevulgarizaçãodopensamento de Marx, como a de Marta Harnecker, iliada ao marxismoestruturalista de Louis Althusser. Ou, então, a simpli icação de falar emformação econômico-social brasileira, que se lê em diferentes autoresdessamesma iliação.Nessaperspectiva,aconcepçãodetempohistóricoedeprocessosocialésobrepostapelaconcepçãodeespaço.

Em decorrência, a historicidade das relações sociais é recuperadaarti icialmente pela justaposição de realidades sociais de datascronologicamentedistintasedemodosdeproduçãoabstratoseuniformes.Aformaçãoeconômico-socialéproposta,então,comoarticulaçãodemodosde produção em que o movimento da história é mera abstração,aproximadamente como no cinema a sucessão de imagens estáticaspermiteailusãovisualdomovimento.EssavisãomecanicistaelimitadadaobradeMarxdifundiu-senoBrasilenaAméricaLatinanosanos1970,apartir da França, em decorrência de certa pressa na compreensão dastiraniaspolíticasdaregiãoedaépoca,compreensãoinviávelnaslimitaçõesda tradição da sociologia funcionalista. Cenários de escassa tradição dopensamento marxiano e do pensamento propriamente crítico, forampropícios à assimilação do mecanicismo althusseriano, formalista e deassimilação fácile rápidanaperspectivadas linearidadesde tradiçõesdepensamentolineareseclassificatórias.

A partir da Universidade de Louvain, uma universidade católicaresponsávelpelaformaçãoteóricademuitossacerdoteslatino-americanos,identi icados com as possibilidades abertas pelo Concílio Vaticano 11 eengajados nas questões sociais, veio-nos uma outra tendência teórica doalthusserianismo, marcada pela articulação dos níveis da realidade, a daestrutura e da superestrutura. Teve ela aqui grande impacto nopensamentodosautoresdeumadascorrentesdaTeologiadaLibertação.

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A religião, devidamente protegida no âmbito mecanicista dasuperestrutura, ganha assim legitimidade no corpo do marxismo, semdiluir-se no materialismo corrosivo que a circunda. Mas perde-se comoreligião, reduzida a um religiosismo sociológico que a torna meroepifenômenodasupostamaterialidadesocialehistórica,aindaquecomaindemonstrável pretensão de sobrepor-se como princípio regulador dapráxis.

Podemos ter, assim, tantas formações que quisermos, tal como ocorriacom o emprego do conceito de sistema, aplicado a qualquer totalidadearbitrariamente de inida. Isso é bem o oposto da utilização dessa noçãoporautoresclássicosquea formularamedesenvolveram,comoopróprioMarx e, também, Lenin, que a empregavam em relação à totalidade doprocessosocialdocapitaleàtotalidadedomovimentodocapital,masnãoemrelaçãoaumaregiãodeterminadaouaumpaísdeterminado.Onúcleoda formação não é o espaço geográ ico no qual se realiza, mas o seudesenvolvimentodesigual,nãoodesenvolvimentoeconômicodesigualdasanálises dualistas produzidas na perspectiva economicista, e sim odesenvolvimento desigual das diferentes expressões sociais e dosdiferentesmomentossociaisdascontradições fundamentaisdasociedade.Omarxismoalthusserianoacabouse tornandoantagônicoaopensamentopropriamentemarxiano.

Preferi, por essas razões, conduzir minha pesquisa empírica e aexposiçãoteóricadeseusresultadospelocaminhometodológicoortodoxo,marxiano e nãomarxista, que privilegia o concreto, o processo social nasuadimensãopropriamentehistórica.Decorredesseprocedimentooqueneste livro possa ser de inido como descoberta e como inovaçãointerpretativaquantoàs contradiçõese tensõesdadifusãodo capitalismono campo. Num plano mais geral, reputo como importante, a partir daretomadadaconstataçãodequeocapitaléumprocesso,desenvolvidaporMarx,aobservaçãodequeoprópriocapitalengendraereproduzrelaçõesnãocapitalistasdeprodução,numacoexistênciadetempossociaisdedatasentre si diversas. Pode-se chegar a esse ponto especialmente através dere lexão demorada sobre a análise que Marx faz da renda territorial nasociedade capitalista. Sendo a renda da terra de origem pré-capitalista,contradiçãoeobstáculoàexpansãoeaodesenvolvimentodocapital,perde,

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noentanto,essecaráteràmedidaqueéabsorvidapeloprocessodocapitale se transforma em renda territorial capitalizada. Introduz, assim, umairracionalidadenareproduçãodocapital, irracionalidadequearepartiçãoda mais-valia supera, sob a forma de lucro, juro ou renda, quando ocapitalista, como no caso brasileiro, se torna proprietário de terra e,portanto, titular de renda fundiária. A determinação histórica do capitalnãodestróia rendada terranempreservaoseucaráterpré-capitalista -transforma-a,incorporando-a,emrendacapitalizada.Fizdessaconstataçãoumahipótesequeabrangessenãoapenasrelaçõespré-capitalistas,masoque o próprio Marx e, mais tarde, Rosa Luxemburg de iniram comorelaçõesnão capitalistas. Foi o quemepermitiudesenvolver a análise doregime de colonato nas fazendas de café, constituído de relações detrabalho que foram historicamente criadas na própria substituição dotrabalhadorescravo,conformeasnecessidadesdocapital,semquenofinalviesse a se de inir um regime de trabalho assalariado nos cafezais. Damesma forma, esse processo não recuperou relações de produção pré-capitalistas.

Outra interpretação inovadora neste trabalho é a do tratamento doescravocomorendacapitalizadaenãocomocapital ixo.Estouconvencidodequeessaéuma formulação fundamentalpara repensarmosaquestãoda exploraçãodo trabalho, daColônia à atualidade, e a questãoda rendafundiária no Brasil. Recorro ao próprio Marx, que situa a escravidão nomarcoteóricodarendafundiária.Nãodeixadecausargrandeespantoquereputados autores brasileiros tenham sistematicamente omitido de suasanálisesqualquerreferênciaaoproblemadarendaterritorial,quenaobrade Marx é mais do que apenas uma teoria da questão agrária, comoredutivamente a interpretou Karl Kautsky.' Essa omissão temrepresentado não somente um atraso teórico nas análises das ciênciashumanas entre nós, mas, sobretudo, um atraso político. As primeirastentativas que iz nesse sentido foram recebidas com um desdém que éreveladordagravidadedessaomissão,poisháosquepreferemfazerdelafé de o ício, ainda que contra toda a tradição teórica emetodológica quesupostamenteseguememseustrabalhos.Atendênciadeencarararendada terra como se fosse capital e, sobretudo,modalidade pré-moderna decapital queopróprio capitalismo superará emodernizará, reduz, limita ebloqueia a compreensão do que é o capitalismo entre nós, seus limites e

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suaspossibilidades.Reduzirainterpretaçãosociológicaaosparâmetrosdeumasociedadebináriacompostadeburguesiaeproletariadoéadulterararealidade.É impossívelentenderadinâmicadeumasociedadedeclasses,emsuasdeterminaçõese singularidades, comoasociedadebrasileira, tãodiversadassociedadesdereferênciadastradiçõessociológicas,mesmodadeMarx,senãoselevaemcontaquearendaterritorialéumdosfatoresda diferenciação social e da constituição das classes e de seusantagonismoseconflitos.OpróprioMarxdedicouàcomplexidadedarendafundiária e suas implicações sociais e políticas parte considerável de suaobra, a começar d'O capital e da obra conexa e essencial, os Grundrisse,semaqualaprópriacompreensãosociológicad'Ocapitalficaimpossível.

Julgo necessário esclarecer que minha pesquisa sobre o regime decolonatonasfazendasdecaféfoi,aomesmotempo,umapesquisasobreaindustrialização em São Paulo. Pude refazer e completar as investigaçõesquerealizeiduranteanossobreosegundotema.Aopçãometodológicaqueadotei, por imposição da própria natureza dos dados colhidos, e dassituações que por eles se evidenciavam, colocaram-me numa relaçãoantagônicacomasorientaçõesdualistasqueseparamoruraleourbanoeque imputam ao rural a anomalia do atraso em face da supostamodernidade do urbano. De fato, entre nós, essa polarização é,frequentemente,postiça.

NoBrasil,particularmenteemSãoPaulo,atransiçãodoescravismoparao trabalho assalariado se deu de modo planejado, controlado erelativamente lento, um processo de quase 40 anos, por iniciativa dosprópriosfazendeirosdecafé.Atravésda iguradeAntôniodaSilvaPrado,ministrodo Império, forameles quepropuseramnoParlamentoo imdaescravidão no formato que assumiu entre nós, como transição para otrabalho livre, mas não necessariamente para o trabalho assalariado nocampo. Esses fazendeiros, que passavam temporadas anuais na Europaculta e desenvolvida e até mandavam seus ilhos estudar nasuniversidades americanas e europeias, não raro já eram tambéminvestidoresemempreendimentosdotransporte ferroviário,docomércio,das inanças e da indústria, o que revestiu aqui o processo do capital desingularidades históricas que o diferenciam substantivamente domodelodereferênciadaliteraturahistóricaesociológica.

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Situei o tema da produção capitalista de relações não capitalistas deprodução, na pesquisa que deu origem a este livro, no movimento docapital em seu conjunto. Ao mesmo tempo, identi iquei seus momentossingularesediferençadosnagestaçãodasformassociaisqueconstituíramasmediaçõesdareproduçãoampliadadocapital.Nessaperspectiva,foi-mepossível propor uma compreensão dialética do que é o capitalismo nestepaís,tendocomoreferênciaacontemporaneidadedasrelaçõesdetrabalhosocialmente atrasadas do colonato das fazendas de café, enquantomomento da intensa e ampla acumulação de capital, que fez entre nós anossa revolução industrial. Essa orientação é atualíssima. Sem ela,continuaremosapensaroBrasilcomorealidademutilada,dehistoricidadecastrada,condenadaaorepetitivodeseuinsidiosoatraso.

O primeiro capítulo, sobre "A produção capitalista de relações nãocapitalistasdeprodução",quepropõeo livro, foiescritono iníciode1978e, em abril daquele ano, apresentado em Cuernavaca, México, numseminárioorganizadopelaUniversidadNacionalAutónomadeMéxicoquereuniupraticamentetodososautoresmaisativosdoin lamadodebatequeentãosetravavasobremodosdeproduçãonaAméricaLatina.Foiumaboaoportunidade para trocar ideias sobre o assunto com diversos dospesquisadorespresentes,quedevoaRaúlBenitezZenteno,doInstitutodeInvestigaciones Sociales. Neide Patarra foi a comentadora do trabalhonaquela reunião e eu lhe agradeço muito as referências e indagações.Oriowaldo Queda e João Carlos Duarte discutiram o trabalho comigo,levantando problemas, o que me foi útil na revisão do original parapublicação. Do mesmo modo, sou agradecido a Margarida Maria Mourapela leituraecomentáriodo texto.Bene iciei-meaindacomas indagaçõesdospesquisadoresdoMuseuNacionalnaoportunidadedeumaexposiçãodesse trabalho no seu seminário das quintas-feiras. Esta monogra ia jáestava pronta para publicação quando chegou aomeu conhecimento queVerenaMartinezAliereMichaelHallhaviampreparadodoiscurtosestudossobreo colonatoe sobreas grevesnas fazendas,quaseaomesmo tempoque eu preparava omeu. Tivemos oportunidade de trocar ideias sobre otrabalho de Verena, ainda numa versão preliminar em inglês, quandopudemosconfrontarasconstataçõesfeitaspelostrês.Aimportânciadessestrabalhos está reconhecida na contribuição que representaram naelaboraçãodeoutroscapítulosdolivro.AJoséSebastiãoWitteragradeçoo

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apoio que me deu na fase da pesquisa no Departamento do Arquivo doEstado,dequeeradiretornaépoca.NoricoacervodaBibliotecaMunicipalMáriodeAndrade,deSãoPaulo,encontreiocapitalculturalqueviabilizoue,atémesmo,estimulouminhadecisãodeescreverestelivro,nasváriasedecisivasobrasrarasqueestãocitadasnosdiferentescapítulos.

Naelaboraçãodocapítulo6,pudeconsultarrelatórioseestudossobreoBrasil,particularmentesobreSãoPaulo,doDepartmentofCommerce,dosEstadosUnidos,relativosaosanos1920.Ameupedido,foramenviadosdeWashington e colocados àminha disposição, para leitura e anotações, noconsuladoamericanodeSãoPaulo.Souagradecidoaosfuncionáriosque,láe aqui, se envolveram nessa operação, o que me permitiu conhecer osinformativosdocumentosqueresultaramdomonitoramentoamericanodaindustrializaçãobrasileiranaqueleperíodo.

Os capítulos 4 e 5 foram escritos como textos básicos de referência, epreparatórios para a pesquisa que resultou no capítulo 1. O tempo e aoportunidade para produzi-los, em meio a outras atividades, forampropiciados pela Universidade de Cambridge, queme distinguiu com umconvite para tornarme "visiting scholar" do seuCentre of LatinAmericanStudiesduranteoLenteoEasterTermde1976.Alémdediscuti-losnoseuseminário semanal, tive a respeitoumaproveitosa trocade ideias comosparticipantes do seminário sobre oBrasil, daUniversidadede Londres, edos seminários sobre a América Latina, da Universidade de Oxford e daUniversidade de Glasgow. Devo minha presença nessas três últimasuniversidades,respectivamente,aLeslieBethell,AlanAngellePeterFlynn.Sou imensamente agradecido a David Brading e a David Lehmann peloconvite para a estada em Cambridge e pelo calor humano com que meacolheram.

Nota

Re iro-me ao economicismo de Karl Kautsky, em La cuestión agrária(Estudio de tas tendencias de Ia agricultura moderna y de Ia políticaagraria de Ia socialdemocracia), Paris, Ruedo Ibérico, 1970. Sobre aminimização política do campesinato em Kautsky e no leninismo, cf.Chantal de Crisenoy, Lenine face aux moujiks, Paris, Editions du Seuil,1978,p.13.

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Arecíprocadinâmicadoscontrários

É lugar-comum, hoje, em trabalhos de historiadores, sociólogos,economistas e cientistas políticos que estudam as transformações dasociedadebrasileiraem facedacrisedo trabalhoescravo,aa irmaçãodeque a servidão negra foi substituída pelo trabalho assalariado. Um dosmaisprestigiososhistoriadoresbrasileiros,CaioPradoJúnior,observaquea lavoura cafeeira baseou-se "na grande propriedade monoculturaltrabalhada por escravos negros, substituídos mais tarde [...] portrabalhadores assalariados".' Mais adiante, acrescenta que, com oabandonodosistemadeparceria,aremuneraçãodotrabalho"deixarádeser feita com a divisão do produto, passando a realizar-se com opagamentodesalários".2

Um sociólogo nãomenos prestigioso, que é Florestan Fernandes, autorde trabalhos notáveis a respeito do negro e da escravidão, assinala que,comaaboliçãodaescravatura,em1888,"astendênciasdereintegraçãodaordem social e econômica expeliram, de modomais ou menos intenso, onegro e o mulato do sistema capitalista de relações de produção nocampo".3

Essasa irmaçõesdeautoresclássicosdaliteraturabrasileiradeciênciassociais, pesquisadores conscienciosos e reputados, que realizaramdemoradasinvestigaçõessobreaescravidãoeseudesaparecimento,alémde suscitarem novos e problemáticos temas para pesquisa, tiveramdesdobramentos em tra balhos de autores recentes, com um teor maisenfático. Um deles a irma que "com a imigração massiva, o trabalhoescravo cedeu lugar ao trabalho assalariado nas plantações de café".4Outroregistraque"jáno iníciodadécadade1880,grandepartedanova

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expansãocafeeiradeSãoPaulosedava,emgrandemedida,comtrabalhoassalariado".5 E completa,mais adiante, que "o primeiro grande salto daexpansão cafeeira de São Paulo, entre 1875 a 1883 [...] já seria feito,parcialmente,dentro(sic)derelaçõescapitalistasde11.6

Outro autor, ainda, a irma que "o momento decisivo em que seconstituíram relações capitalistas de produção na área de São Pauloocorreu com a liquidação inal do sistema escravista e a entrada dasgrandeslevasdeimigrantes".70mesmoautor,emoutrotrabalho,levaessapremissa às últimas consequências, dizendo que da "empresa cafeeiraconcentrada no oeste paulista nasceria uma nova classe assentada emrelaçõescapitalistasdeprodução,comconsciênciadeseusinteresseseumprojeto de estruturação política do país", acrescentando que a produçãocafeeiraapoiava-seembasescapitalistas,sendoque,porisso,"asrelaçõestípicasentrecolonoe fazendeirotinhamessecaráter".'Essemesmoautorcompletaoseuraciocíniocomaconstataçãodequeanaturezacapitalistadas relaçõesdeproduçãona fazendade café se expressa "na compradaforça de trabalho - pagamento de trabalho necessário (salário) -apropriação do excedente, sob a forma de mais-valia, embora o salárioproviesse de fontesmonetárias e nãomonetárias".9 Nessa interpretação,mesmoas fontesnãomonetáriasdaretribuiçãopatronalpelo trabalhodocolono são reduzidas à forma salarial da incorporação do trabalho àprodução. Um pesquisador, já citado, completa suas formulações, nessamesmadireção,aoindicarqueotrabalholivreassumiu,nasubstituiçãodoescravo,diferentesformas.10

OhistoriadorCaioPrado Júnior jáhavia,aliás,emvigorosacontestação,questionadoaorientaçãodosquede iniamcomofeudaisousemifeudaisasrelações de produção no campo. Indicava como, na verdade, relações dotipo da parceria e do colonato, teriam se constituído em variantes derelaçõescapitalistasdeprodução."

Nosanos1960e1970,épocaemqueo tema teve seumaiordestaque,taisde iniçõesforam,diretaouindiretamente,marcadaseestimuladasporum confuso debate intelectual sobre a transição do feudalismo aocapitalismo comoprocessode inidordomomentohistóricobrasileiro. Porsua vez, justi icaria a tática política de lutar pela remoção dos chamados

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"restos feudais",queseevidenciariamemdiferentesrelaçõesde trabalhono meio rural, quase todas, de modo geral, originadas da extinção dotrabalho escravo.' A questão da transformação das relações de produçãofoiremetida,pois,aoterrenocediçodofalsoargumentodequenãosendoformalmente feudais, seriam formalmente capitalistas as relações deprodução posteriores ao escravismo e amplamente vigentes, ainda hoje,emmuitossetoreseconômicoseemmuitasregiõesdopaís.

Obviamente, a classi icação de tais relações como feudais violava oconhecimento que se tem sobre o feudalismo, parecendo antesprocedimento primário e simplista e, por isso, equivocado, meramentenominativo. Foi quase como decorrência natural que tais situações erelaçõespassaramaseraprioride inidascomocapitalistas,"caindo-senoformalismo oposto e, muitas vezes, no ardil de considerá-las formasdisfarçadas de relações capitalistas de trabalho. É claro que taispolarizações e equívocos têm muito pouco a ver com a reconstruçãohistóricadarealidadeemuitomaiscomosdilemaseimpassespolíticosdomomento, da atualidade dos autores. Por isso mesmo é que trabalhossériosesigni icativos,comoosqueforamcitados,entreoutros,acabam,dealgumaforma,marcadosportaisdilemas,semdeixar,porém,deexpressarasdificuldadesquetaisdefiniçõesenvolvem.

Defato,àmedidaqueosprópriospesquisadoresdescrevemasrelaçõesde trabalho que predominaram na substituição do escravo pelotrabalhador livre, baseadas na produção direta dos meios de vidanecessários à reprodução da força de trabalho, já se constata que taisrelaçõesnãopodemserde inidascomocapitalistas(nemotrabalhocomoassalariado) senãoatravésdemuitosequestionáveisarti ícios.Essaé,naverdade,umaquestãodemétodo.Oprocedimentoclassi icatóriodescartaa reconstituiçãodas relações, tensões edeterminaçõesque se expressamnasformasassumidaspelotrabalho.

Melhor, portanto, reconstituir a diversidade de mediações edeterminações das relações de produção que con iguraram o regime detrabalho queveio aser conhecido como regime de colonato, sob o qual,durantecercadeumséculo,até insdosanos1950, foi realizadaamaiorpartedastarefasnointeriordafazendadecafé.

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O primeiro ponto, o ponto de partida, é o de que na crise do trabalhoescravofoiengendradaamodalidadedetrabalhoqueosuperaria,istoé,otrabalho livre, sendo essa a sua única e inicial adjetivação, e não a detrabalho assalariado. É verdade que o trabalhador livre já era conhecidoamplamente na sociedade brasileira, sobretudo porque, por diferentesmeios e motivos, negros já haviam sido libertados por seus senhores. Etambémporqueocativeiroindígena,odoíndioadministrado,jáhaviasidoalcançado por diferentes supressões, desde o século xvii, a maisimportante das quais foi a determinada pelo Diretório que se DeveObservarnasPovoaçõesdosíndiosdoPará,eMaranhão,de3demaiode1757, cujosefeitos foramestendidosa todooBrasilpeloalvaráde17deagostode1758,aquelaporçãodoterritóriobrasileirodoPiauíparaosul.Atenuado,ocativeiroindígenaretornaráporCartaRégiade1798,paraoscasosdeindígenascapturadosem"guerrasjustas",oque,aparentemente,não afetava a situação jurídica dos antigos índios administrados,alcançadospelasdisposiçõesdoDiretório."

Dessaslibertaçõessememancipaçãoproveioumaextensapopulaçãodeíndios libertos e aculturados e de mestiços de índia e branco, de inidosdesde logocomobastardos,quevieramaserconhecidoscomocaboclosecaipiras, geralmente agregados de grandes fazendeiros.15 Até o séculoxvrrr tinham uma língua própria, o nheengatu, e, a partir da proibiçãodessa língua, nomesmo século, passaram a falar português com sotaquenheengatu, o chamado dialeto caipira. Embora a sua relação com asfazendassebaseassesobretudonopagamentoderendaemtrabalho,nelase combinava, também, o pagamento de renda em espécie e,eventualmente, o assalariamento temporário. Um conjunto delexibilizaçõesnãosónoplanolaboral,mastambémnoplanoculturalenaorganizaçãopatriarcaldafamíliaquerepresentouprofunda,préviaelentaamenização da transição da escravidão negra para o trabalhopropriamente livre. O que a escravidão do africano incorporou emmuitomenorescala, como foiocasododireitoacultivopróprionosdomingosedias santos, cujos modestos rendimentos permitiam ao escravo fazerdespesas ou formar pecúlio. O escravismo colonial combinou-se com aexacerbação,sobretudoapartirdoséculoxviii,daherançaestamentalquejá diferençava os brancos, tanto em Portugal quanto no Brasil. Umadiferenciaçãosocialditadapelonascimentoenãopelacondiçãoeconômica,

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diversa da condição de escravo ditada pela dimensão jurídica depropriedadeecoisa,objetodecompraevenda,própriadocativo.

Tal precedência, porém, não deve ser confundida com o trabalho livreproduzido diretamente na crise da escravidão negra. Sua presençaquantitativanasociedadeescravista,presençacomplementareintegrativa,não foi fator da desagregação dela. Na verdade, esse trabalhador livredesagregou-setambémquandoomundodocativeiroseesboroou,porquea sua liberdade era essencialmente fundamentada na escravidão deoutros,nosistemaescravista.

O trabalho livre gerado pela crise da escravidão negra diferiaqualitativamentedotrabalholivredoagregado,poiserade inidoporumanova relação entre o fazendeiro e o trabalhador. O trabalhador livre queveiosubstituiroescravodelenãodiferiaporestardivorciadodosmeiosdeprodução,característicacomumaambos.Masdiferianamedidaemqueotrabalho livre se baseava na separação do trabalhador de sua força detrabalho,quenoescravoseconfundiam,enelasefundavasuasujeiçãoaocapitalpersoni icadonoproprietáriodaterra.Entretanto,senessepontootrabalhador livre se distinguia do trabalhador escravo, num outro asituaçãodeambosera igual.Re iro-meaqueamodi icaçãoocorreraparapreservar a economia fundada na exportação de mercadorias tropicais,como o café, para os mercados metropolitanos, e baseada na grandepropriedadefundiária.'6

A contradiçãoquepermeiaa emergênciado trabalho livre se expressana transformaçãodas relações de produção comomeio para preservar aeconomia colonial de exportação, isto é, para preservar o padrão derealização do capitalismo no Brasil, que se de inia pela subordinação daproduçãoaocomércio.Tratava-sedemudarparamanter.

Convém,apropósito, terpresentesas insistentesreferênciasdeMarxàpersoni icação do capital na pessoa do capitalista,'? suscitando um temaque, mais tarde, seria retomado por Weber na análise do espírito docapitalismo? O problema da personi icação do capital não deve serdescartado, muito pelo contrário, sua consideração é indispensável paraentendermosas formasmediadorasdareproduçãodocapital.Entretanto,

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seessasformassãoopontodepartida,nãopodemseraomesmotempoopontodechegadadaanálise,dadoquese,deumlado, temosaexpressãodas relações sociais, de outro precisamos ter as relações explicadas,reconstituídas no seu movimento dialético. Por outro lado, a função daforma é a de revestir de coerência aquilo que é contraditório e tenso. É,porisso,negaçãomediadoradasrelaçõesqueexpressa.

A personi icação do capital pelo capitalista acoberta as relações queengendraramessemesmocapital,revestindodeumalinearidadeutópicaadescontinuidade tensa em que se dá a exploração do trabalho. Ora, ocapital comercial também se personi ica no capitalista, que assume a suaracionalidade na busca incessante do lucro. Nessa condição é que ofazendeiro de café entrava na teia de relações produzidas por suamercadoria tropical, como negociante. É signi icativo, como veremosmaisadiante,queasuacontabilidadefossetodaorganizadacombasenoslivrosdecontas-correntes.Di icilmentesepodeencontrarumacontabilidadedecustos nas fazendas dessa época. Isso basicamente indica que aracionalidadedocapitalpersoni icadapelofazendeiroesgotava-senonívelda circulação das mercadorias. Inferir, simplesmente, as relações deprodução ou quali icá-las com base no capital personi icado pelofazendeiro é um procedimento que necessariamente acoberta a realnatureza do trabalho nas fazendas, levando quase inadvertidamente àde inição das suas relações de produção como capitalistas. Tal fatoconstitui a projeção do capital personi icado sobre as relações de que talcapital resulta. O importante, porém, é descobrir que forma de capital ofazendeiropersonificava.

As relações sociaisqueengendravamo fazendeiro-capitalistanãoeramestritamenteasrelaçõesdeproduçãonointeriordafazenda,mas,tambémesigni icativamente,asrelaçõesdetrocaqueelemantinhaforadafazendacomoscomissáriosdecafée,mais tarde, jáno inaldoséculoxix, comosexportadores.'9 É por essa razão que a transformação das relações detrabalho na cafeicultura originou-se na esfera da circulação, na crise docomérciodeescravos,queproduziuseusefeitosmaisdrásticosnoBrasilapartir de 1850, quando o trá ico negreiro foi de initivamente proibido. Ahegemonia do comércio na determinação das relações de produção naeconomiade tipocolonial,nessecasoparticular,deveserressaltada.Essa

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economianãosede iniaapenaspeloprimadodacirculação,mas tambémpelofatodequeoprópriotrabalhadorescravoentravanoprocessocomomercadoria.20 Portanto, antes de ser o produtor direto, ele tem que serobjetodecomércio.Porisso,temqueproduzirlucrojáantesdecomeçaraproduzir mercadoria e não apenas depois, quando começa a trabalhar.Pode-se, pois, dizer que, na economia colonial, o processo de constituiçãoda força de trabalho é regulado, antes de mais nada, pelas regras decomércio.Por issomesmo,a transformaçãodasrelaçõesdeproduçãotemmenos a ver, num primeiro momento, com modi icações no processo detrabalhodafazendadecaféemaisavercommodi icaçõesnadinâmicadeabastecimentodaforçadetrabalhodequeocafénecessitava.

Essas modi icações, porém, alteraram a qualidade das relações dofazendeiro com o trabalhador, alteraram as relações de produção. Noregime de trabalho escravo, a jornada de trabalho e o esforço ísico dotrabalhadoreramcruaediretamente reguladospelo lucrodo fazendeiro.Acondiçãocativajáde iniaamodalidadedecoerçãoqueosenhorexerciasobreoescravonaextraçãodoseu trabalho.Omesmonãoocorriacomotrabalhadorlivreque,sendojuridicamenteigualaseupatrão,dependiadeoutrosmecanismosde coerçãopara ceder a outrema sua capacidadedetrabalho.

Através do cativeiro, o capital organizava e de inia o processo detrabalho,masnãoinstauravaummodocapitalistadecoagirotrabalhadora ceder a sua força de trabalho em termos de uma troca aparentementeigual de salário por trabalho. Já que a sujeição da produção ao comércioimpunha a extração do lucro antes que o trabalhador começasse aproduzir, representando, pois, um adiantamento de capital ao tra icante,ele não entrava no processo de trabalho como vendedor da mercadoriaforça de trabalho, e sim diretamente comomercadoria;mas não entravatambém como capital, no sentido estrito, como meio econômico paramovimentar a produção, e sim como equivalente de capital, como rendacapitalizada,comotributoao fornecedordemãodeobra.Aexploraçãodaforçade trabalhosedeterminava,pois,pela taxade jurosnomercadodedinheiro, pelo emprego alternativo do capital nele investidoantecipadamente,istoé,ocálculocapitalistadaproduçãoeramediadoporfatoreserelaçõesestranhosàprodução.

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Nesse sentido, as relações de produção entre o senhor e o escravoproduziam, de um lado, um capitalista muito especí ico, para quem asujeição do trabalho ao capital não estava principalmente baseada nomonopóliodosmeiosdeprodução,masnomonopóliodoprópriotrabalho,trans igurado em renda capitalizada. Como acontece quando o capital éimobilizado improdutivamente na compra da terra ou no pagamento dealuguelporelaparaqueela se tornedisponívelparaaprodução,mesmoquesejaproduçãoorientadapelocapital.Arendaé,nessecaso,umtributoao proprietário de terra para remunerar de modo não capitalista o seumonopólio territorial.Deoutro lado, essas relações, sendodesiguais -nãosendo fator, mas condição do capital -, produziam um trabalhadorigualmente especí ico, sua gênese não era mediada por uma relação detrocadeequivalentes(nãoeramediadapelofazendeiro-comerciante),massim pela desigualdade que derivava diretamente da sua condiçãotributária de renda capitalizada, de uma sujeição previamente produzidapelo comércio (era mediada, pois, pelo fazendeiro-rentista, extensão dalógica econômica do tra icante de escravos). A escravidão de inia-se,portanto, como uma modalidade de exploração da força de trabalhobaseada direta e previamente na sujeição do trabalho, através dotrabalhador-mercadoria,aocapitalcomercial.

Tal como acontece com a terra, o trabalho não é produto do própriotrabalho,nenhumdosdoiséprodutodotrabalho,nãotemvalor,emboraaterrapossaterpreçoeaprópriapessoadotrabalhadorpossaterpreçonoregime escravista ou, ainda, a sua força de trabalho possa ter preço noregimedetrabalhoassalariado.Nesteúltimo,opreçodaforçadetrabalhodooperárioémedidopelotempodetrabalhonecessárioàsuareproduçãocomo trabalhador, isto é, o tempo representado pelo valor criado queretorna ao trabalhador sob a forma de meios de vida. Já sob o trabalhoescravo, além do tempo de trabalho necessário à reprodução dotrabalhador, é preciso antecipar uma parte de seu trabalho excedentepara pagar ao tra icante o seu uso, a sua incorporação à produção, suaexploração como produtor de valor. Mas, domesmomodo que na rendaterritorial capitalizada, o proprietário espera extrair de seu escravo umrendimentoeconômicoqueémedidopelolucromédio,quedeveaomenosequivaler ao rendimentoque seudinheiro lhedaria se fosse aplicadoemoutronegócio.Aexploraçãodoescravonoprocessoprodutivojáestá,pois,

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precedida de parâmetros e relações comerciais que a determinam. Essaexploração não abrange apenas o lucro médio de referência de umcapitalistapuro,mastambémaconversãodecapitalemrendacapitalizada,a parcela do excedente que o escravo pode produzir e que éantecipadamente paga ao mercador de escravos, o fundamento nãocapitalista da reprodução do capital. A coerção do cativeiro encarrega-sede transferir para o próprio escravo o ônus desse trabalho, fazendo dofazendeiroumcomerciante residualdaescravidão.Dessemodo,o regimeescravista apoia-se na transferência compulsória de trabalho excedente,sobaformadecapitalcomercial,doprocessodeproduçãoparaoprocessode circulação, instituindo a sujeiçãodaprodução ao comércio. Entretanto,como o lucro do fazendeiro é regulado pelo lucro médio, seu cativo nãorepresentauma formapré-capitalistaderenda - trata-seefetivamentederenda capitalizada, de uma forma capitalista de renda, renda que sereveste da forma de lucro. Exatamente por isso é que o fazendeiro nãopode ser de inido como um rentista de tipo feudal, um arrecadador econsumidorderendas.

Para ser lançado nas relações sociais da sociedade escravista, otrabalhador era despojado de toda e qualquer propriedade, aí incluída apropriedade de sua própria força de trabalho, que era a deu própriocorpo. Diversamente do que se dá quando a produção é diretamenteorganizada pelo capital (e não pela mediação da renda), em que otrabalhador preserva a única propriedade que pode ter, que é a da suaforçadetrabalho,condiçãoparaentrarnomercadocomovendedordessamercadoria, esse despojamento é a pré-condição para que o trabalhadorapareça, na produção, como escravo. Por isso, o im da escravidão e oadvento do trabalho livre, que ganhou substância na imigração, não foiprocesso igual para o escravo e para quem não fora escravo, para oimigranteeuropeu.Comele,oprimeiroganhouapropriedadedasuaforçade trabalho; enquanto o segundo, expulso da terra ou dela desprovido,liberado da propriedade, tornou-se livre, isto é, despojado de todapropriedadequenãofosseadasuaforçadetrabalho.Paraum,aforçadetrabalho era o que ganhara com a libertação; para outro, era o que lherestara.

Para o escravo, a liberdade não era o resultado imediato do seu

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trabalho,istoé,trabalhofeitoporele,masquenãoeraseu.Aliberdadeerao contrário do trabalho, era a negação do trabalho;21 ele passava a serlivrepararecusaraoutremaforçadetrabalhoqueagoraerasua.Paraohomem livre, quando e porque despojado dos meios de produção, aocontrário, o seu trabalho era condição da liberdade. Era no trabalholivrementevendidonomercadoqueotrabalhadorrecriavaerecobravaaliberdade de vender novamente a sua força de trabalho. É claro que seestá falandoaqui, tantonumcasocomonooutro,deuma liberdademuitoespecí ica: a liberdade de vender a força de trabalho. A libertação doescravonãoolibertavadopassadodeescravo;essepassadoseráumadasdeterminaçõesdasuanovacondiçãodehomemlivre.22Domesmomodo,o homem livre que foi proprietário ou coproprietário das suas condiçõesde trabalho, ao ser despojado dessas condições não se libertava da sualiberdade anterior, a liberdade de se realizar no trabalho independente,ainda que sob o preço de um tributo em trabalho, em espécie ou emdinheiro.

As mudanças ocorridas com a abolição da escravatura nãorepresentaram, pois, mera transformação na condição jurídica dotrabalhador;elasimplicaramatransformaçãodoprópriotrabalhador.Semisso não seria possível passar da coerção predominantemente ísica dotrabalhador para a sua coerção predominantemente ideológica e moral.Enquantootrabalhoescravosebaseavanavontadedosenhor,otrabalholivre teria que se basear na vontade do trabalhador, na aceitação dalegitimidade da exploração do trabalho pelo capital, pois, se o primeiroassumiapreviamenteaformadecapitalederendacapitalizada,osegundoassumiriaa formade forçade trabalhoestranhaecontrapostaaocapital.Por essas razões, a questão abolicionista foi conduzida em termos dasubstituiçãodo trabalhadorescravopelo trabalhador livre, istoé,nocasodas fazendas paulistas, em termos da substituição ísica do negro peloimigrante. Mais do que a emancipação do negro cativo para reintegrá-locomo homem livre na economia de exportação, a abolição o descartou eminimizou, reintegrando-o residual e marginalmente na nova economiacapitalistaqueresultoudo imdaescravidão.Oresultadonãofoiapenasatransformação do trabalho,mas também a substituição do trabalhador, atrocadeumtrabalhadorporoutro.Ocapitalseemancipou,enãoohomem.

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Asnovas relaçõesdeprodução, baseadasno trabalho livre, dependiamdenovosmecanismosde coerção, demodoque a exploraçãoda força detrabalhofosseconsideradalegítima,nãomaisapenaspelofazendeiro,mastambémpelotrabalhadorqueaelasesubmetia.Nessasrelaçõesnãohavialugar para o trabalhador que considerasse a liberdade como negação dotrabalho, mas apenas para o trabalhador que considerasse o trabalhocomoumavirtudedaliberdade.

Uma sociedade cujas relações fundamentais foram sempre relaçõesentre senhore escravonão tinha condiçõesdepromovero aparecimentodessetipodetrabalhador.Serianecessáriobuscá-loemoutrolugar,ondeacondiçãodehomemlivretivesseoutrosentido.Énessascondiçõesquetemlugar a vinculação entre a transformação das relações de trabalho nacafeicultura e a imigração de trabalhadores estrangeiros que ocorreusobretudoentre1886e1914.

Nesse sentido, o que me proponho a fazer neste capítulo é analisar oprocessodeconstituiçãoda forçade trabalhoedasrelaçõesdeproduçãoquesede iniucomacrisedoescravismono inaldoséculoxix.Essacrisedeu lugaraumregimede trabalhosingular,23que icouconhecidocomoregimedecolonato,comomencionei,queabrangeuaculturadecafé,masquetambémalcançouadecana-de-açúcaremSãoPaulo.Elenãopodeserde inido como um regime de trabalho assalariado, já que o salário emdinheiro é, no processo capitalista de produção, a única forma deremuneração da força de trabalho.24 Isso porque o colonato secaracterizou, como se verá em detalhemais adiante, pela combinação detrês elementos: umpagamento ixo emdinheiropelo tratodo cafezal, umpagamento proporcional em dinheiro pela quantidade de café colhido eprodução direta de alimentos, como meios de vida e como excedentescomercializáveis pelo próprio trabalhador, portanto, um componentecamponêspré-capitalistanarelaçãolaboral.Alémdoqueocolononãoeraum trabalhador individual,masum trabalhador familiar,modo camponêsdetrabalhar,estranhoaomundodoassalariamentoeaosrequisitosdesuaefetivação.É,porém,aproduçãodiretadosmeiosdevida,combasenessetrabalho familiar, que impossibilita de inir essas relações como relaçõespropriamente capitalistasdeprodução.Apréviamercantilizaçãode todosos fatoresenvolvidosnessasrelações,medianteaqualosalárionãopode

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ser um salário aritmético, isto é, disfarçado, mas deve ser salário emdinheiro para que os meios de vida necessários à produção da força detrabalho sejam adquiridos e regulados socialmente pela mediação domercado, é condição para que as relações de produção se determinemcomo relações capitalistas de produção. Tal condição, porém, não se dáneste caso. O salário aritmético é um salário que entra nos cálculos e nacabeça do capitalista, mas que não entra no bolso do trabalhador, nãoproduzumarelaçãosocial.

Minha hipótese é a de que o capitalismo, na sua expansão, não sórede ine antigas relações, subordinando-as à reprodução do capital, mastambém engendra relações não capitalistas, igual e contraditoriamentenecessárias a essa reprodução.Marx já havia demonstrado que o capitalpreserva, rede inindo e subordinando, relações pré-capitalistas.Provavelmente,o casomais signi icativoéoda renda capitalistada terra,comojámencionei.Sendoaterraumfatornatural,semvalorporquenãoéoresultadodotrabalhohumano,teoricamentenãodeveriaterpreço.Mas,antes do advento do capitalismo, nos países europeus, o uso da terraestava sujeito a um tributo, ao pagamento de renda em trabalho, emespécie ou em dinheiro. Essas eram formas précapitalistas de rendadecorrentes unicamente do fato de que algumas pessoas tinham omonopólio da terra, cuja utilização icava, pois, sujeita a um tributo. Oadventodocapitalismonãofezcessaressairracionalidade.Aocontrário,apropriedade fundiária, ainda que sob diferentes códigos, foi incorporadapelocapitalismo,contradiçãoessaqueseexpressanarendacapitalistadaterra.Talrendanadamaistemavercomopassadopré-capitalista,nãoémais um tributo individual e pessoal do servo ao senhor; agora é umpagamentoquetodaasociedadefazpelofatodequeumaclassepreservao monopólio da terra.21 A nova forma que ela assume écaracteristicamentecapitalista,éopostaaotributohistoricamenteanterior:nemosburgueses,nemosproletáriosdeduzemetransferemdiretamenteumapartedeseuslucrosoudeseussaláriosaosproprietários.Entretanto,acomposiçãoorgânicadiferencialdocapitalentreagriculturae indústria,entreosetoratrasadoeosetormoderno,entreoquesebaseiaemmaiorproporçãodesalárioemrelaçãoaocapitaldoquedecapitalemrelaçãoasalário,encarrega-sede fazeraparecernasmãosdoproprietárioarendaabsoluta que aparentemente não é extraída de ninguém. O lucro médio

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encarrega-se de equalizar o valor criado em setores da economia queproduzem desiguais quantidades de valor, viabilizando a conversão departedessatransferênciaemrendaterritorial.26

Aproduçãocapitalistaderelaçõesnãocapitalistasdeproduçãoexpressanãoapenasumaformadereproduçãoampliadadocapital,mastambémareprodução ampliada das contradições do capitalismo - o movimentocontraditório não só de subordinação de relações pré-capitalistas aocapital, mas também de criação de relações antagônicas e subordinadasnãocapitalistas.Nessecaso,ocapitalismocriaaumsótempoascondiçõesde sua expansão, pela incorporação de áreas e populações às relaçõescomerciais e os empecilhos à sua expansão, pela não mercantilização detodos os fatores envolvidos, ausente o trabalho caracteristicamenteassalariado.Umcomplementodahipóteseéquetalproduçãocapitalistaderelaçõesnãocapitalistassedáondeeenquantoavanguardadaexpansãocapitalista está no comércio. Em suma, onde o capitalismo não se realizaplenamente, comono casodo colonato,disseminaadinâmica capitalista eaté uma híbrida mentalidade capitalista que fazem com que a economiafuncione como economia capitalista, mesmo não o sendo plenamente, asociedade ainda organizada com base em relações sociais e valores deorientaçãopré-modernos.Énosmarcosdessalógicahíbridaquenasce,namesmaépocadonascimentodo colonatono café, apeonagemeo regimedo barracão na economia da borracha, na Amazônia. Uma forma deservidão que persiste no Brasil e representa a incorporação demecanismos de acumulação primitiva na formação e disseminação dagrandeeatémodernaempresaagrícola,extrativaepecuária.Emambososcasos, o próprio empresário criou inventivamente ajustamentoseconômicos que lhe permitiam ganhar como capitalista e pagar comosenhordeescravos,emboralivredarendacapitalizadarepresentadapelaimobilização de capital no verdadeiro escravo, uma tênue mudança emrelaçãoaoregimedeescravidão.27

A primeira etapa da expansão do capitalismo é a produção demercadorias,enãonecessariamenteaproduçãoderelaçõesdeproduçãocapitalistas. O processo que institui e de ine a formação econômico-socialcapitalista é constituído de diferentes e contraditórios momentosarticulados entre si: num deles temos a produção da mercadoria e a

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produção da mais-valia organizados de um modo caracteristicamentecapitalista, dominado pela mais-valia relativa; num outro temos acirculação da mercadoria, subordinada à produção; num outro temos aproduçãosubordinadaàcirculação.Masessesmomentosestãoarticuladosentre si num único processo, embora possam estar disseminados porespaçosdiferentes.Estou,portanto, trabalhandocomapremissadequeamercadoriadáumcarátermundialaocapitalismo.Aomesmotempo,omeuintuitoéodeiralémdeprocedimentosmecanicistasquetransplantamdoplano teórico para o plano empírico da realidade histórica as etapas datransformação social.Marx assinalou, emmaisdeumaocasião, a questãodo ritmo das transformações históricas com o advento do capitalismo,indicando que as relações capitalistas de produção, uma vez instauradas,se disseminam pouco a pouco, de forma até imperceptível, como senenhuma transformaçãoestivesseocorrendo?Oproblemadoritmoedasformas de disseminação do capitalismo é a referência mais fundamentaldestetrabalho.

NoBrasil,oestabelecimentodasnovasrelaçõesdeproduçãocombinou-secomaimigraçãodetrabalhadoreseuropeus,comorecursonãosóparaconstituir a força de trabalho necessária à cultura do café, mas tambémcomo recurso para pôr no lugar do trabalhador cativo um trabalhadorlivre cuja herança não fosse a escravidão. Mais de 1 milhão e 600 milimigrantes vieram para o país num período de pouco mais de 30 anos,entre1881e1913, amaioriadosquaispara trabalhar comocolonosnasfazendas de café. Devido, justamente, à modalidade das relações deprodução aí vigentes, no chamado colonato, a imigração constituiu umrequisito de importação constante emaciça de trabalhadores em gruposfamiliares. O colonato, diversamente das relações de produçãocaracteristicamente capitalistas, que criam a superpopulação relativa naindústria,oexcessodeprocuradeempregoem facedaoferta, criouumasubpopulação relativa no campo, que tornou a imigração subvencionadapeloEstadoumdosseusingredientesbásicos.

Ametamorfose da renda capitalizada e as formasde sujeição dotrabalhonagrandelavoura

Arendacapitalizadafoiaprincipalformadocapitaldafazendacafeeira,

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tanto sob o regimedo trabalho escravo quanto sob o regimedo trabalholivre. Por issopodia, a um só tempo, fazer do fazendeiro umempresário-capitalista e da fazendaumempreendimentobaseadoprincipalmente emrelaçõesnãocapitalistasdeprodução.Parece-mequeosprincipaisautoresquesededicaramaoestudodaeconomiadocafé,natentativadede inirocaráter capitalistadaprodução cafeeira, não lograram,de fato, decifrar acontradição entre as bases capitalistas da atuação do fazendeiro e asrelações não capitalistas da produção do café por não terem incluído emsuasanálisesaproblemáticadarendacapitalizada,istoé,dametamorfosedocapitalnoseuopostoaindaquemantendoaaparênciadecapital.

Apalavra"fazenda', tomadanoseusentidocoevo,enãonosentidoquetemhoje,teriaajudadoachegaraesteponto.Defato,"fazenda'signi icavao conjunto dos bens, do que foi feito, a riqueza acumulada; signi icavasobretudoosbensproduzidospelotrabalhoeotrabalhopersoni icadonoescravo.Estava,pois,muitopróximadanoçãodecapitalemuito longedadepropriedadefundiária,queéosentidoquetemhoje.

Um fazendeiro luminense no século xix, grande cafeicultor, ao dar umbalanço nos seus bens falava no "estado da nossa fazenda", incluindo noinventário objetos que ninguém hoje em dia associaria à concepção defazenda.Umcomissáriodecafédiziaemcartade1864aumseuclientenoVale do Paraíba: "zelo sempre commuita solicitude na fazenda demeusamigos e comitentes".29 Referia-se, pois, aos bens do fazendeirodepositadosemsuasmãos-alémdedinheiro,caféeoutrasmercadorias-o que hoje se chamade capital de terceiros. Fazendeiro signi icava, aliás,desde o século xuri, pelo menos, o homem que administra a riqueza,mesmo não sendo o proprietário dela. "Padre-fazendeiro" é a designaçãoque frequentemente se encontra nos documentos setecentistas doMosteirodeSãoBento,deSãoPaulo,paraosmongesqueadministravamsuas fazendas no subúrbio, fazendo-as produzir. Era diferente do feitordosescravos,aquemincumbiaorganizarotrabalhodoscativosezelarporsua disciplina, recebendopor isso um salário,mesmoquando era ele umescravo.Somentehápoucomaisdeumséculoéqueapalavra fazendeiroperdeusuaantigaconotaçãoparasigni icarestritamenteoproprietáriodeterra, não raroo latifundiário.De certomodo, oprópriodesenvolvimentodocapitalismoentrenósdecantouaspalavrasparadar-lhessentidomais

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preciso, conforme a circunstância histórica, distinguindo o meroproprietáriodeterrasdoempresárioeinvestidorrural.

Nas diferentes análises observa-se, em geral, que as formas do capitalsão tratadas como se constituíssem uma única, uma espécie de capitalgenérico, quenaproduçãonãopodia originar senão relações capitalistas.Isso impossibilita que se estabeleça qual é o vínculo entre relações deprodução, que por suas características não podem ser classi icadas comocapitalistas, e o capital. Por outro lado, a de inição da escravatura nolatifúndio cafeeiro como simples instituição, devido à di iculdade deconceituá-lacomomododeproduçãoescravista,30podetercomoumadasimplicaçõesareduçãodoproblemadoescravoedasrelaçõesdeproduçãoà sua mera expressão jurídica, sem alcançar as bases concretas ehistóricasdotrabalhocativo.

Entendo,pois,queopontonucleardaanálisedasrelaçõesdeproduçãono café está em identi icar as transformações ocorridas com a rendacapitalizada, o capital imobilizado improdutivamente na coisa que lhe éobjeto, e o seu vínculo com as transformações do trabalho. O rentismoestava na propriedade do escravo, carecendo o fazendeiro de capitaladicionalpara fazê-loproduzir.Tenha-seemcontaquenamaiorpartedoperíododevigênciadaescravidãoousodaterranãodependiadecompra,esimdecessãodeusododomíniodoquede fatopertenciaàCoroa.Nãoexistia, propriamente, a não ser como exceção, a propriedade fundiária,que só se formalizará com a Lei de Terras de 1850. Durante a crise dotrabalho servil, o objeto da renda capitalizada passa do escravo para aterra, do predomínio num para a outra, da atividade produtiva dotrabalhador para o objeto do trabalho, a terra. Nessa mudança sutil,persiste a dimensão propriamente rentista da economia de exportação, oqueédiversodopropriamentecapitalista.Porém,libertandodorentismootrabalhoetransferindoorentismoparaapropriedadedaterra.

Navigênciadotrabalhoescravo,a terraerapraticamentedestituídadevalor. Genericamente falando, ela não tinha a equivalência de capital,alcançando às vezes um preço nominal para efeitos práticos, sobretudoquandopequenasindenizaçõeseramoferecidasaposseirosencravadosnointeriordassesmarias,parapagamentodeseusroçados,31enãodaterra,

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umavezqueaLeideTerrasreconheceuseudireitodepossedasterrasdeseu cultivo, mesmo como enclaves de terras sesmariais. Isso porque aocupaçãoda terra seguiadois caminhosdistintos: deum lado, opequenolavrador que ocupava terras presumivelmente devolutas; de outro, osenhordeescravosegrandefazendeiroque,porvialegal,obtiveracartasdesesmarias,enquantovigiaesseregimefundiário,mesmoemáreasondejáexistiamposseiros.Acartadesesmariatinhaprecedênciasobreameraposse,razãoporqueemgeralosesmeirooucompravaaroçadoocupante,ou o expulsava ou, era a regra mais geral, em tempos mais recuados, oincorporava como agregado de suas terras. Agregado ou capanga, comoouvi na região caipira de Bragança Paulista, que não queria dizerpistoleiro,esimaquelequeestásemprejuntodeoutro,poiséonomequeaindasedáemalgumasregiõesaoembornal,porquecarregadoatiracolo,bem juntoaocorpo.Quandoapresençadeposseiroseramuitogrande,adesocupaçãodaterrapodiaseronerosa,nãocompensandoacon irmaçãodasesmariaobtida.32NoperíodoanterioràLeideTerras,aaplicaçãodedinheiro na compra da terra envolvia um grande risco por falta demercadoimobiliário.Sendoasterrasdevolutasabundantes,mesmoapósaextinção do regime de sesmarias com a Independência, a sua meraocupaçãoeraexpedientesimpleseeficaz.

Em 1882, a Associação Comercial de Santos estimava que, do valor deuma fazenda de café, uns 20% poderiam corresponder à avaliação daterra.33MasohistoriadorAffonsod'E.Taunayassinalaqueasavaliaçõesinventariais imputavam ao terreno preços meramente nominais, nãorealizáveis.Quandomuito,inferioresaessaestimativa.34Maisvaliososqueaterraeramosescravos.35Issoporque"antesdoseuaparecimentoaliovalor venal da terra era nulo. Assim, a fazenda nada mais representavasenão o trabalho escravo acumulado".36 Na verdade, tinha valor o bemsujeito a comércio, coisa que com a terra ocorria apenas limitadamente.Esse fato marcará, como veremos adiante, a história do café posterior àabolição da escravatura. A fazenda consistia, pois, no conjunto dos bensessencialmenteconstituídospelosfrutosdotrabalho.

Esse trabalho era, como sabemos, trabalho compulsório. Entretanto, ocaráter compulsório do trabalho não provinha da escassez absoluta demão de obra, mas do fato de que a oferta desses trabalhadores no

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mercado era regulada pelo comércio negreiro.37 Daí decorria a um sótempoacoerção ísicaeaescassezrelativadetrabalhadores.Portanto,osmecanismos reguladores da organização econômica da fazenda nãodependiam imediatamente da oferta e procura dos bens por elaproduzidos, café ou açúcar, mas da oferta e procura de trabalhadorescativos.Aoproibiraescravidãoindígenaem1757-1758,apesardasburlasaessaproibição,aCoroa,naverdade,arrecadadoradetributosdotrá iconegreiro, con irmou e consolidou um senhorio rentista que a fez sóciamaior da escravidão negra e assegurou por longo tempo o carátermeramenteresidualdasdeterminaçõescapitalistasdosnegócioscoloniais.

Nesse sentido, o principal capital do fazendeiro estava investido napessoa do escravo, imobilizado como renda capitalizada, isto é, tributoantecipado, emrelaçãoàprodução, ao tra icantedenegros, combaseemmera probabilidade de ganho futuro sobremercadoria viva e de risco. Ofazendeiro comprava a capacidade de o escravo criar riqueza, mas paraque a criasse tinha que comprar também a pessoa perecível do cativo,coisa exatamente oposta à do trabalho assalariado, emquenão é precisocomprar o trabalhador para ter o seu trabalho. De fato, a terra semtrabalhadores nada representava e pouco valia em termos econômicos;enquanto isso, independentemente da terra, o trabalhador era um bemprecioso. Ao fazerem empréstimos aos fazendeiros, no século xix, osinancistasebancospreferiamtercomogarantiaprincipalahipotecadosescravosenãoahipotecadasfazendas.38

O escravo tinha dupla função na economia da fazenda. De um lado,sendo fonte de trabalho, era o fator privilegiado da produção. Por essemotivo era também, de outro lado, a condição para que o fazendeiroobtivesse dos capitalistas (nome reservado aos emprestadores dedinheiro), dos comissários (intermediáriosna comercializaçãodo café)oudos bancos o capital necessário, seja ao custeio seja à expansão de suasfazendas.Oescravoeraopenhordopagamentodosempréstimos.Porisso,praticamente todo o capital de custeio provinha de hipotecas lançadassobre a escravaria das fazendas.39 Tendo o fa zendeiro imobilizado naspessoas dos cativos, os seus capitais, sob forma de renda capitalizada,subordinava-se uma segunda vez ao capital comercial medianteempréstimos, para poder pôr em movimento os seus empreendimentos

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econômicos,paraqueafazendaproduzissesobacangadejuroserendas.Omesmo se dava quando abria nos sertões novas fazendas, formava oscafezais,montavaainfraestruturaeadquiriaosequipamentosdebenefíciodocafé.

Essefatotevesignificativasimplicaçõesnaeconomiacafeeira.Quandofoiproibido o trá ico negreiro, em 1850, houve uma acentuada ecompreensível elevação no preço dos escravos.40 Um levantamento depreços realizado junto à região de fazendas novas, no oeste paulista,apresentaoseguinteresultado:

Preçomédiodoescravo-1843/1887

Fonte:WarrenDean,RioClaro-ABrazilianPlantationSystem,1820-1920,Stanford,StanfordUniversityPress,1976,p.55.

Comacessaçãodotrá ico,ospreçosseelevaramaquaseodobro.Comoo preço do escravo era o fundamento das hipotecas, isso representoudesde logoumgrandeaumentonocapitaldisponívelparaos fazendeiros,renegociado pelas casas comissárias junto aos bancos. Esse capital, aliás,provinhadaprópriadesimobilizaçãoderecursosantesaplicadosnotrá iconegreiro, como observa um dosmaiores empresários da época .41 Tudoindica que essa expansão de oferta de capitais é o que explica aintensi icaçãodoavançodoscafezaisdoRiodejaneirosobreosmunicípiospaulistas limítrofesàprovíncia luminense,noValedoParaíba, jáqueumdispositivolegalcircunscreviaosempréstimoshipotecáriosàregiãodoRio

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de janeiro, de Minas Gerais, do Espírito Santo e áreas próximas. Alémdesseslimites,oscomissáriossozinhosouoscapitalistasindividuaistinhamque arcar com os riscos de adiantamentos em dinheiro aos fazendeiros.Tais recursos garantiam a importação de escravos das províncias doNordeste e do Sul, que vinham suprir a crescente demanda das áreascafeeiras.

Ao mesmo tempo, porém, os fazendeiros e os comissários sabiam docaráter conjuntural dessa situação favorável. A possibilidade decrescimentodaofertademãodeobrapormeiodo trá ico interprovincialera visivelmente limitada e a curto prazo e, por isso, desproporcional àexpansão territorial e ao crescimento da economia cafeeira. De fato, aexpansão do crédito, que aparentemente bene iciava a produção,encerravaumacontradição:aelevaçãodopreçodoescravoincrementavaa base de obtenção de empréstimos hipotecários aomesmo tempo que aexpansão dos empréstimos ao café icava na dependência de umamaiorimobilização de capital, sob a forma de renda capitalizada na pessoa docativo. Essa situação, portanto, não bene iciava o fazendeiro, mas sim otra icante agoradedicadoao trá ico entre asprovíncias, incrementandoairracionalidade econômica do tributo que a produção devia pagar-lhe epagaraocomércio.

Aduplafunçãodaescravatura,comofontedetrabalhoecomofontedecapital para o fazendeiro, suscitava, na conjuntura da expansão doscréditos e dos cafezais, o problema de como resolver a contradição quenela se encerrava. Objetivamente falando, a solução inevitável seria aaboliçãodaescravatura.Comademandacrescentedetrabalhoescravoeaconsequente elevação do preço do cativo, os fazendeiros teriam queimobilizar parcelas crescentes de seus rendimentos monetários, sob aformaderendacapitalizada,pagandoaostra icantesdenegrosumtributoque crescia desproporcionalmente mais do que a produtividade dotrabalho.

Não só os tra icantes recebiam sob forma de renda parte ponderáveldos lucrosdo café,maspelomesmomecanismodo trá ico interprovincialde escravos, os fazendeiros do Nordeste e do Sul que tinham estoquessubstituíveis da mão de obra cativa bene iciaram-se largamente do seu

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inesperado senhorio sobre os cafezais do Rio de janeiro e de São Paulo,sem dispenderem um centavo, puro rentismo. Aquelas regiões forambene iciadas por essas transferências de renda das duas províncias, aomesmotempoque,nocasodoNordeste,puderammobilizareempregarnocultivo da cana a numerosa população de moradores, os agregadosdescendentes dos índios administrados que foram libertados no séculoxviii. Não é estranho que, mais tarde, capitalistas do Nordeste e do SultenhamsetransferidocomseuscabedaisparaSãoPaulo,aplicando-osemfazendas, imóveisurbanoseaçõesdasempresasqueproliferaramapósaabolição da escravatura. Esse é um tema sobre o qual não se fala, o quedi iculta uma compreensão abrangente na dinâmica do capital, nesseperíodo,nasociedadebrasileira.

Aquele círculo vicioso atingia diretamente os elementos do cálculo delucro do fazendeiro, que se norteava menos pela avaliação direta eexplícitadecustosdoquepelacomparaçãodosseusrendimentoslíquidoscoma taxade jurosdomercadodedinheiro.42Segundoessaorientação,Delden Laèrne estimava que já em 1882, seis anos antes da abolição daescravatura,oresultadolíquidodoempreendimentocafeeirocorrespondiaauns8,5%docapital investido,quandoa taxade jurospagapelomesmofazendeirooscilavaentre10e12%aoano.43Aconsequênciadiretadessefato foia intensi icaçãoda jornadade trabalhodoescravo,aumentandoonúmerodepésdecafédequeumtrabalhadordeviacuidar.44

Entretanto, a aboliçãoda escravaturanão envolvia apenasdesonerar afazenda da renda capitalizada, o capital imobilizado nos escravos, dotributoqueelapagavaaostra icantesdenegrosparaobterasuamãodeobra. Tudo indica que tais problemas já eram previstos por ocasião deo icializaracessaçãodotrá iconegreirodaÁfricaparaoBrasil,em1850.No mesmo ano foi promulgada uma lei que estabelecia uma política deimigração de colonos estrangeiros, sobretudo europeus, que produzisseumaofertadetrabalhadoreslivresnasépocasdemaiordemandadeforçade trabalho por parte das fazendas de café, que eram as da carpa e dacolheita.Mas a ampla faixa de terrenosdevolutos nopaís, sujeitos a umaprática de prévia e simples ocupação para posterior regularização, porparte dos interessados, poderia constituir um grande entrave não só àlibertaçãodosescravoscomoàentradadetrabalhadoreslivresdeorigem

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estrangeira.45AtéàsvésperasdaIndependência, tinhavigênciaoregimede sesmarias, em que a concessão de terras devolutas, de domínio daCoroa, a particulares, baseava-se em requisitos estamentais quedificultavamalegalizaçãodaocupaçãoindiscriminadadosterrenosaquemnãofossebranco,purodeféesenhordeescravos.Comasuspensãodesseregime, em 1822, e a falta de uma legislação fundiária, os obstáculosdeixaram de existir. Somente em 1850 é que o governo legislou sobre oassunto, estipulando que a terra devoluta não poderia ser ocupada poroutrotítuloquenãofosseodecompra.

Háabundantes indicaçõesdequetaispreceitosnãoforamrespeitados.Os ocupantes de terras e os possuidores de títulos de sesmarias icaramsujeitosà legitimaçãodeseusdireitos,oque foi feitoem1854atravésdoque icou conhecido como Registro Paroquial. Tal registro validava ourevalidava a ocupação da terra até essa data. Isso não impediu osurgimento de uma verdadeira indústria de falsi icação de títulos depropriedade, sempre datados de época anterior ao registro paroquial,registrados em cartórios o iciais, geralmente mediante suborno aosescrivães e notários.46 Até as primeiras décadas do século xx, essesdocumentos estavam na raiz de grandes con litos de terra nas frentespioneiras de São Paulo. Tais procedimentos, porém, eram geralmenteinacessíveis ao antigo escravo e ao imigrante, seja por ignorância daspraxesescusas,sejaporfaltaderecursos inanceirosparacobrirdespesasjudiciais e subornar autoridades (essas despesas eram provavelmenteín imasemrelaçãoàextensãoeaovalorpotencialdasterrasgriladas,maseramtambémdesproporcionaisaosganhosdotrabalhadorsemrecursos).

A impossibilidade de ocupação legítima, sem pagamento, das terrasdevolutas, recriava as condições de sujeição do trabalho quedesapareceriamcomo imdocativeiro.Mas,não resolviaoutroproblemaquepreocupavaofazendeiroemigualextensão:umanovagarantiaparaocréditohipotecário,basedocapitaldeterceirosnecessárioàmanutençãoeexpansãodeseusnegócios.

Formalmente, a legislação territorial acentuava as garantias denegociabilidade das terras. Mas, isso não revogava a desimportância domercadoimobiliárioemfacedomercadodeescravos.Em1873,ogoverno

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estendera o crédito hipotecário a todos os municípios das províncias deSão Paulo, Paraná e Santa Catarina, tendo como suporte a fazenda,representada sobretudo pelas plantações e pelas instalações.47 Esseprocedimento é seguramente uma das causas da intensi icação daexpansão do café em direção ao oeste de São Paulo, para a região deCampinasemaisalém.Essaexpansãotemsidoatribuídaexclusivamenteàmentalidade capitalista dos fazendeiros do oeste em contraste com a deseus iguais do Vale do Paraíba, que supostamente não possuíam talatributo,sendoosdooestemaisempresárioscapitalistaseosdoValemaissenhoresdeescravos.

Ébemverdadequenoqueeraentãoaextensaregiãocampineira,desdeo século xviii, havia surgido uma elite de plantadores de cana-de-açúcar,senhores de engenho, na qual tiveram origem as primeiras grandesfortunasdeSãoPaulo.Épocaemqueaescravidãodenegrosafricanossedisseminou na nova região canavieira da capitania como mão de obracaracterística,bemdiversadadosescravosindígenas,oschamadosíndiosadministrados, libertados por essa época, e da população de agregadoscaipiras, os chamados bastardos de índia e branco, sujeitos à servidãodisfarçadadosoriundosdocativeiroindígena.Portanto,períodoemqueadifusãoda escravidãonegra representouum saltohistórico emdireção auma economia de exportação mais próxima do padrão capitalista,sobretudo porque por meio dela foi possível adotar uma disciplina dotrabalhonaproduçãoagrícolaquenãoforapossívelnaoutraescravidão.Ésigni icativo que um modelar empresário capitalista dessa época, cujaeconomia se situava em parte nessa região, Antônio da Silva Prado, ofuturoBarãodeIguape,viesseaterumnetodomesmonomequefoi,porsuavez,ummodelarempresáriocapitalistadoséculoxixeiníciodoséculoxx, um dos grandes responsáveis pelo im da escravidão negra e pelapolítica de imigração subvencionada que viabilizaria o nosso capitalismoagrário pós-escravista, justamente o do regime de colonato. O mesmoBarão de Iguape preferia investir seus capitais no comércio e não naagricultura, procurando incrementar mais rapidamente seus lucros nossetoresintermediáriosentreaproduçãoeaexportação.48

A substituição da cana pelo café demandava capital.49 Tanto osfazendeirosde cana-de-açúcardooestequantoos fazendeirosde cafédo

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Vale do Paraíba dependiam do trabalho escravo e estavam, portanto,basicamente sujeitos à mesma forma limitante de capital, a rendacapitalizadanocativo.Personi icavam,tantonumlugarquantonooutro,orentistaeocomerciante.NãosónooestemastambémnoValeerapossívelencontrarcapitalistasativos,cujamentalidadeecujaorientaçãoeconômicademodoalgumsebaseavanumavinculaçãoemocionaleafetivaàterra.50Por outro lado, tanto no oeste quanto no Vale era possível encontrar namesma época escravistas empedernidos, que não viam outro modo deorganizar a produção de cana-de-açúcar ou de café senão com base notrabalhoescravoeque,porisso,temiamotrabalholivre.

Aextensãodo créditohipotecárioa todoo territóriopaulista, combaseagoranos imóveis, abria assimapossibilidadede substituiçãodoescravonão só como trabalhadormas também fonte de capital de custeio. Aindaque a terra nua continuasse sendo considerada pouco relevante nagarantia hipotecária dos empréstimos em relação ao que era o capitalpropriamenteditodafazendadecafé,comooscafezais,asinstalaçõeseasmáquinas. Entretanto, quando as primeiras hipotecas foram executadas,surgiram também as primeiras di iculdades com essa inovação. Oscomissários, os bancos, os comerciantes não estavam interessados em setornar fazendeiros. Alguns alegavam até que nem mesmo sabiam comolidar com uma fazenda de café.51 Os próprios comissários haviamtrabalhadopela criaçãoda carteira hipotecária doBancodoBrasil,mododeselivraremdasarriscadasfunçõesbancáriasquemantinhamcomseusclientes. Mas a legislação estabelecera "a adjudicação forçada do imóvelpenhorado e executado ao credor, na última praça de liquidação e naausênciadelicitantes".52Ora,talsoluçãonãointeressavaaoscredoresdosfazendeiros insolventes, dado que o que tinha curso no comércio econstituía o objetivo de todo o aparato era o café, a mercadoria emcondiçõesdesercomercializada,quasecomodinheiro.Obtiveramcomisso,em 1885, modi icações nas leis, de modo que, no lugar da hipoteca doimóvel, lhes fosse garantida a penhora do fruto pendente e do frutocolhido.53 Essas alterações nas condições de inanciamento da produçãode café eram necessárias igualmente porque, como se vê no quadroanterior,depoisdaacentuadaaltadecorrentedo imdotrá ico,aquedanopreço dos escravos, ante o im previsível e iminente do regime servil,diminuíaacapacidadedosfazendeirosdelevantaremcapitaisjuntoaseus

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credores em proporção ao volume de seus negócios. Basicamente, asrelaçõescomerciaistendiamadesorganizaraprodução.

Tais modi icações expressavam outras, relativamente ao valor dapropriedadeeàsuarealizaçãonomercado imobiliário,de inidasapartir,até,desofisticadasformulaçõesteóricas.Naprópriadécadadaaboliçãodaescravatura, já estava claro que o trabalho criava valor e que esse valornãoseconfundiacomapessoadoescravo,maseraoquesematerializavanas coisas produzidas pelo trabalho, fosse ele escravo ou livre.54Surgiram,por isso,nodebatepolíticodaépoca,duas tendênciasquantoàformadesubstituiro trabalhoescravopelo trabalho livre.Todosestavamdeacordoqueeraprecisocriarum luxosubstitutivodeforçadetrabalhoe que, portanto, o Brasil precisava aumentar a sua população.Mas, paraalguns, a questão importante era a de criar condições para que apropriedade fundiária substituísse o escravo como garantia do créditohipotecárioparacapitaldecusteio.Issopoderiaocorrerse,alémdacriaçãodevalorpela incorporaçãode trabalhoà terra, surgissemcondiçõesparapermitir a realização desse valor. Tal concepção implicava advogar afragmentaçãodapropriedadeeacriaçãodeumaagriculturadepequenosproprietários, com colonos imigrados da Europa. O incremento dademanda de terra por parte desses colonos provocaria arti iciosamenteumaelevaçãonopreçodas terras, demodo a aproximar valor e preço, aevitarqueo frágilmercado fundiário reduzisseopreçoda terraamenosdoque valia e deprimisse, portanto, a capacidadedo fazendeirode obteros créditos necessários à produção do café. Desse modo, os bancos ecomissários teriamnovamenteumacontrapartidavalorizadaparaosseuscapitais,talcomoocorreracomoescravoantesqueseupreçocomeçasseadeteriorar rapidamente em virtude da perspectiva de um im iminenteparaocativeiro.55

Reagiram os grandes fazendeiros, sem descartar a possibilidade de osimigrantessetornaremproprietáriosdepequenasglebas.Entendiamqueoacessodiretoàpropriedadenãodeveriaconsumar-secomapretendidafacilidade, pois houve no Parlamento quem advogasse até pela entregagratuita,puraesimples,dasterrasaospossíveiscolonos.s6Afórmulaquepropunhamequeacabaramimplantandoeraadequeoimigrantedeveriaconquistar a propriedade da terra pelo trabalho, presumivelmente

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trabalho na grande lavoura.Nesse caso, o trabalho prévio na fazenda decafé entrava como condição para que o trabalhador obtivesse os meiosparasetornarproprietáriodeterra.

Combinavam-sedenovo,soboutrascondiçõeshistóricase,portanto,deoutra forma, aparentemente invertidos, os elementos de sustentação daeconomia de tipo colonial. A renda, até então capitalizada no escravo,tornava-serendaterritorialcapitalizada.Senoregimesesmarial,odaterralivre,otrabalhotiveraquesercativo;numregimedetrabalholivreaterratinha que ser cativa. No Brasil, a renda territorial capitalizada não éessencialmente uma trans igurada herança feudal. Ela é engendrada nobojoda crise do trabalho escravo, comomeiopara garantir a sujeiçãodotrabalho ao capital, como substituto da expropriação territorial docamponês, que, no advento do capitalismo, criou amassa de deserdadosapta a entrar no mercado de trabalho da nova sociedade. Aqui, apropriedadeteveafunçãodeforçaracriaçãodaofertadetrabalholivreebarato para a grande lavoura. Foi aqui omeio substituto da acumulaçãoprimitiva na produção da força de trabalho, com a mesma função: aexpansãodocapitalismosóseriapossívelcomosurgimentodeumamassade trabalhadores livres porque livres dos meios de produção paratrabalharporcontaprópria,sujeitos,portanto,ànecessidadedetrabalharparaocapitalparasobreviver.

A renda territorial surge da metamorfose da renda capitalizada napessoa do escravo; surge, portanto, como forma de capital tributário docomércio e não do tra icante, como aquisição do direito de exploração daforça de trabalho, em oposição ao direito de propriedade sobre a pessoado trabalhador.Apropriedadedoescravose trans iguraempropriedadeda terra como meio para extorquir trabalho do trabalhador e não paradele extorquir renda em trabalho e produto. A renda territorialcapitalizadanãoseconstituicomoinstrumentodeócio,masinstrumentodenegócio. Engendra, portanto, um capitalista que personi ica o capitalprodutivo subjugado pelo comércio, a produção cativa da circulação. Amelhor evidência estáno fatodequeoproprietáriode terraquevivedoarrendamento de suas propriedades a arrendatários capitalistas éfenômeno relativamente raro ainda hoje na sociedade brasileira, que sedifunde nos setores mais caracteristicamente empresariais da economia

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agrícola. No mais, na pessoa do fazendeiro convive a condição deproprietáriocomadecapitalista.

Claro está que esse processo não representou uma simples inversão,merasubstituiçãodarendacapitalizadanoescravopelarendacapitalizadana terra. Ao contrário, ocorre aí uma transformação historicamentedecisiva. O trabalho libertado do trabalhador cativo e, portanto, dacondição de renda capitalizada, deixa de ser componente do capital paracontrapor-se objetivamente ao capital. Nesse processo, ao libertar otrabalhador,ocapitalselibertouasimesmo.

A primeira e fundamental consequência dessa transformação foi a deque se alterou o polo dinâmico da fazenda de café. Quando a rendacapitalizadaerarepresentadapeloescravo,aatividadenucleardafazendaestava no trato do cafezal e na colheita do café. A formação da fazenda(derrubadadamata,limpezadoterreno,plantioeformaçãodocafezal)eraatribuídaaoshomens livresquecoexistiamcomosescravos,queeramoscaboclos e caipiras, remanescentes da escravidão indígena formalmenteextinta no século xviii. Remunerados mediante pagamentos ín imos,completadoscomapossibilidadedeutilizarematerra intersticialentreoscafeeiros jovensparaproduçãodealimentoseatémesmoade fazeremaprimeira colheita de café, entregavam depois o cafezal formado aofazendeiro.Essaformarentistaepré-capitalistadeimplantaçãodasnovasfazendas deprimia o capital variável necessário à formação do cafezal,permitindoaofazendeirorecebercomosuaumaplantaçãoquevaliamuitomais do que havia pagado por ela. Recurso semelhante foi largamenteusado depois do advento do trabalho livre, o próprio colono não raroempregadonaformaçãodafazenda.Poroutrolado,obene íciodocafé,até1870maisoumenos,aindaera feitopormaquinismostoscosdemadeira,fabricadosnaprópriafazenda,oquedeprimia,também,ocapitalconstantena fazenda empregado. Essa ênfase econômica no trato e na colheitaresponde em grande parte pela lenta expansão dos cafezais ao longo doVale do Paraíba, porque justamente o setor no período alcançado pelacrisedotrabalhoescravo.

Jáquandoocapitalanteriormenteempregadonoescravosetrans iguraemrenda territorialcapitalizada,aênfasedoempreendimentoeconômico

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do café passa a ser a formação da fazenda, pois o seu valor demercadoestará nos frutos que poderá produzir, no trabalho materializado nasplantações. O capital deixa de se con igurar no trabalhador paracon igurar-senoresultadodoseutrabalho.Ovalordafazendasecontará,pois, pelo número de cafeeiros e por sua produtividade, pela quantidadede arrobas de café que se pode obter de uma árvore em média. Aindaassim,estamosprincipalmente,masnãoexclusivamente,emfacedarendacapitalizada na terra e não apenas em face de capital constante. Muitosfazendeiros passaram a ter preferência pela abertura de fazendas emterras novas, recém-desmatadas, onde a produtividade do cafeeiro eraimensamentemaiordoqueemregiõesocupadashámaistempo,comonasesgotadas terras doVale doParaíba. 17 Fazendeiros deslocavam-separanovasregiõesembuscadeterrasmaisférteis.Ocapitalqueanteserapagoaostra icantesdeescravospassouaserpagoàscompanhiasimobiliáriaseaos grileiros que, com base em documentos falsos, depois de 1854,apossaram-se de extensas áreas devolutas ou ocupadas por posseiros,revendendo-asanovosepotenciaisfazendeiros.Aprincipalfontedelucrodo fazendeiroda frentepioneira, comoadeRibeirãoPretoedaMogiana,foi, nos anos da expansão, a renda diferencial da terra produzida pelamaior fertilidade natural das terras novas, algo que não dependia deinvestimentosdecapital.

O surto ferroviário a partir de 1866 tem como elemento explicativoessencial a renda diferencial decorrente do encurtamento das distânciasentreolugardaproduçãodocaféeoportodoembarqueparaexportação.Não é casual que, excetuada a construção da São Paulo Railway, entreSantos e Jundiaí, que era inglesa, boa parte da rede ferroviária paulistatenha sido construída e inanciada pelos próprios fazendeiros de café.Lucravam os produtores de café com a economicidade que essaaproximaçãodavaasuasfazendas.Os lucrosdascompanhiasferroviáriasprocediam sobretudo da renda diferencial que elas incrementavam,incluindo áreas inacessíveis dentro de um circuito de rentabilidade quetinhacomoreferencialoportodeSantos.

Mas, umaoutra consequência da transformação apontada antes foi umincremento de inversões no equipamento de bene ício de café, comomáquinas, secadores etc. Esses investimentospassarama ser valorizados

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na concessão de empréstimos hipotecários em substituição aosempréstimos garantidospelapropriedadede escravos.Aomesmo tempo,começou a adquirir importância econômica o pagamento em dinheiro dotrato e do café feitos por colonos. Em suma, a transformação apontadatornoupossível a conversãodeparteda renda capitalizadanapessoadoescravo em capital constante e capital variável, ou seja, em plantações,equipamentos e instalações, de um lado, remuneração de trabalho deoutro.Ésigni icativoqueamodernizaçãodoequipamentodebene íciodecafétivesseiníciomaisoumenosem1870,quaseaomesmotempoqueosempréstimos hipotecários eram liberados para osmunicípios vizinhos daprovíncia do Rio de janeiro. Pouco depois, o escravo foi substituído pelafazendacomogarantiadashipotecas.Quasesimultaneamenteteminícioaimigraçãoemmassasubvencionadapelogoverno,que liberao fazendeirode imobilizar recursos, sob forma de renda capitalizada, na pessoa docativo.Tudo issoocorreuno cursoprazode18 anos, entre1870 e1888.São indicaçõesdemudançasobjetivasnascondiçõesdeproduçãodocafé,que deram um signi icativo suporte à transformação da mentalidade dofazendeiro,demodoa liberá-ladapeiarepresentadapeloescravonasualógicaeconômica.

Atransformaçãodarendacapitalizadarecriouascondiçõesdesujeiçãodo trabalho ao capital, engendrando ao mesmo tempo um sucedâneoideológico para a coerção ísica do trabalhador, o do imaginário daascensãosocialpelotrabalho,nasuaconversãodecolonoemproprietáriodeterra.

A formaçãoda fazendadecafé: conversãodarendaemtrabalhoemcapital

A Lei de Terras, de 1850, e a legislação subsequente codi icaram osinteresses combinados de fazendeiros e comerciantes, instituindo asgarantias legais e judiciais de continuidade do padrão de exploração daforça de trabalho, mesmo que o cativeiro entrasse em colapso. Naiminência de transformações nas condições do regime escravista, quepoderiam comprometer a sujeição do trabalhador, criavam as peculiarescondiçõesquegarantissem,aomenos,asujeiçãodotrabalhonaproduçãodocafé.58Importavamenosagarantiadeummonopóliodeclassesobrea

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terradoqueagarantiadeumaofertacompulsóriadeforçadetrabalhoàgrande lavoura. De fato, porém, independentemente das intençõesenvolvidas,acriaçãodeuminstrumentallegalejurídicoparaefetivaressemonopólio,pondoopesodoEstadodo ladodos interesseseconômicosdogrande fazendeiro, di icultava o acesso à terra aos trabalhadores semrecursos. Criava arti icialmente a superpopulação relativa de que o cafénecessitavanarealescassezrelativademãodeobra.

A extensão e a abundância de terras devolutas, teoricamentedesocupadas, virtualmente disponíveis para serem incorporadas pelagrande lavoura, tantoantesda leide1850quanto jánasuavigência,nãoeram fatores su icientes para dar continuidade à expansãodo café. Alémdadisponibilidadedeterras,eranecessáriaaabundânciademãodeobrade trabalhadoresdispostosaaceitaromesmo trabalhoqueatéentãoerafeitopeloescravo.

Trabalhar para vir a ser proprietário de terra foi a fórmula de inidapara integrar o imigrante na produção do café. Esse imigrante estavaessencialmenteemantagonismocomocativeiro,quetemiaerepudiava,senão para o negro, ao menos para si. Repudiava, igualmente, qualqueridenti icação com o negro. O próprio fazendeiro acautelava-se para nãodispensar ao imigrante o mesmo tratamento que dispensava ao escravoquando ambos chegaram a conviver na fazenda. Inaugurando um novosecador de café, um fazendeiro de Campinas promoveu uma grandecomemoração devidamente hierarquizada, que é uma signi icativaindicação a respeito: "à tarde foi servido, no terreiro da fazenda, umgrande jantar aos escravos ... [...] Às 6 horas da tarde foi servido obanqueteaosconvidados,nasaladejantar...[...]Às7horasfoiservido,emoutrasaladoprédio,o lauto jantaraoscolonos ...".59Osdoterreiro,osdefora, não eram iguais aos de dentro da casa.Mas dentro da casa havia ojantardo fazendeiroeo jantardocolono,oquecomeanteseoquecomedepois. Embora desiguais, fazendeiro e imigrante são vinculados entre sipor uma igualdade básica, a identidade de quem come na casa-grande.Nesse plano, o imigrante está contraposto à senzala. Condenado atrabalhar, o seu trabalho, na sua interpretação, é radicalmente diferentedo trabalhodonegro cativo.Na lúcidaobservaçãodeumcontemporâneo"a escravatura [...] desonrou o trabalho, enobreceu a ociosidade ...".60 A

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condição de homem livre para ser concebida como condição compatívelcomotrabalhotinhaquepassarporrede iniçõesideológicasradicais,pois,paraonegro,"aliberdadeera[...]a liberdadedenadafazer ...".61Éclaroque, para o branco, tais avaliações tinham como parâmetro o negroescravizado,onegrosemvontadeprópria,cujoquerereraoquererdeseusenhor. Quando o negro, libertado, fazia valer a sua liberdade, eraacoimado de vagabundo, porque, para o branco, querer de negro eraquererdesujeição,emboraparaonegrofossea irmaçãoeconsciênciadaliberdade.

Domesmomodo que, para o fazendeiro, tambémpara o imigrante serlivre eraomesmoque serproprietário.A suadesignação como colono jáera parte de um ardil ideológico que o comprometia com a propriedade.Noslugaresdeemigração,naEuropa,colonoeraadenominaçãodequemia colonizar as regiões novas dos Estados Unidos ou da Austrália.12 NoBrasil, entretanto, colono passou a ser sinônimo de empregado. Poroposição ao escravo, o colono entranaproduçãodo café pela valorizaçãomoral do trabalho, não só porque o trabalho fosse uma virtude daliberdade, mas porque era condição da propriedade. Essa vinculaçãoideológica entre trabalho e propriedade, essa identi icaçãobásica entre acolônia e a casa-grande, terá repercussões na vida da fazenda e naelaboraçãodasrelaçõesdeproduçãocombasenotrabalholivre.

Ao contrário do que parece crer a maioria dos autores que tem feitoreferências à substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, essapassagem foi relativamente complicada e tensa.63 Embora uma supostamentalidade escravista do fazendeiro possa ter oferecido di iculdades norelacionamentocomoimigrante,averdadeéqueascondiçõesobjetivasdasubstituição do negro pelo branco sofreram de imediato poucasmodi icações em relação às condições do trabalho escravo. Como aescravidãonãoeramerainstituição,massimumarelaçãorealecotidianafundada em condições históricas de inidas, a sua supressão jurídica ou amera incorporação produtiva do trabalho do homem livre não erasu icienteparaalteraroteordovínculoentreofazendeiroeotrabalhador.A mentalidade do fazendeiro tinha, pois, raízes sociais de inidas eexpressavaaformadecapitalqueestavanabasedeseuempreendimento.IssovaliatantoparaosfazendeirosdoValedoParaíbaquantoparaosdo

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oeste de São Paulo, onde justamente havia claras di iculdades paraincorporaroimigranteaotrabalhodasfazendas,comodemonstrouocasodaFazendaIbicaba.64

Por esse motivo, a simples possibilidade de trazer para o Brasilimigrantes, trabalhadores livresque se integrassemnaproduçãodo café,nãoerasu icienteparaefetivarainversãodacombinaçãocontraditóriadetrabalho cativo e terra livre. O avanço da cultura cafeeira sobre novasáreas dependia fundamentalmente de mão de obra, sem o que a terratinha pouca utilidade. Mas, na crise de transição, trabalho livre tambémtinhaum sentidomuitoparticular para o fazendeiro, quedemodo algumse explicitava plena ou principalmente na sua formulação jurídica. Otrabalholivreeraconcretamenteotrabalholibertodotributoaotra icante,datransferênciadecapitaldaproduçãoaocomércio,eraotrabalholibertodacondiçãoderendacapitalizada;eraotrabalhoqueentravanoprocessoprodutivocompletamentedesonerado.Noentanto,ocapitalempregadona"importação" do branco imigrante não estava necessariamente livre dacondiçãodetributo,conquantofosseotrabalhadorjuridicamentelivre.

ÉquaseumaregraargumentarpelasuperioridadedotrabalholivredaregiãodeCampinasemrelaçãoaotrabalhoescravodoValedoParaíba.Talargumento, porém, acoberta um fato crucial: o trabalho livre que seimplantanaregiãodeCampinas,noquemuitodepressaviriaaseroantigooestecomodesbravamentodenovasregiões,nãoéradicalmentediferentedo trabalho escravo no Vale. O trabalhador entra no processo produtivocomorendacapitalizada,jáqueofazendeirotinhaquecusteartransporte,alimentaçãoe instalaçãodocolonoesua família.Essedispêndiopodiaserinferioraopreçodoescravo,masalteravaemmuitopoucoaqualidadedarelaçãoentreofazendeiroeocolono.Otrabalholivreeraaindaotrabalhode um trabalhador que continuava assumindo a forma de rendacapitalizada do fazendeiro, mediante antecipações de capital aostra icantes de imigrantes. Isso instituía umamodalidade de servidão pordívidadocolonoemrelaçãoàfazenda.Oqueofazendeironelegastavanãoerasalário,erainvestimento.Quandohouvedesinteligênciaentreocolonoe o fazendeiro, não foi incomum que este vendesse a outro fazendeiro adívidadotrabalhador,repassando-o,emconsequênciacomosefossecoisasua.

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Ocolonofoi incorporadoàeconomiacafeeiranostermosdecostumesede um processo de trabalho que não mudara em relação à escravidão,apesar damudança no processo de valorização, nomodo de extração doexcedente econômico do trabalhador e no modo de sua circulação eacumulação. Em boa parte porque na região campineira o café não sedisseminoucombasena incorporaçãodeterrasnovas,comoocorrerianooestenovo,comsigni icativaincidêncianainstitucionalizaçãodoregimedecolonato,comoveremosadiante.Ali,muitasfazendasdecaféresultaramdasubstituição de culturas em antigas fazendas de cana-de-açúcar.65 Essasterrasantigashaviamsidoobtidasporcartasdesesmariasaindanoséculoxviii, quando muito no começo do século xix, e geralmente haviampermanecido no patrimônio das famílias através da herança. Naapropriaçãodaterraeemseucultivonãohaviapropriamenteaincidênciadonovoedefatoresdeinovaçõesprofundas.

Aquestãodarelaçãoentreaterraeotrabalhovaisurgirplenamentenooestenovo,depoisde1870,apósodesaparecimentodarendacapitalizadana pessoa do trabalhador, ao inal de um processo relativamentedemoradoecomplicadoqueculminariacomaimigraçãosubvencionadanolugardaimigraçãopromovidaporparticulares,comoocorreranajácitadaFazendaIbicaba,dosenadorVergueiro,emuitasoutrasfazendasnaregiãode Campinas .660 mestre-escola e colono suíço Thomas Davatz a irmoucruamente,emsuasmemórias,que, "apenaschegadosaoportodeSantos[...] os colonos já são, de certo modo, uma propriedade da irmaVergueiro".67 E acrescentou, mais adiante: "des sa forma o colono seapercebe inalmentedequeacabadesercomprado".68Somentecomessedesaparecimento, coma libertaçãodo trabalhador da peia que o prendiapor dívida ao fazendeiro e o fazendeiro aos que de algum modo lheasseguravamamãodeobradequenecessitava,équesetornariapossíveldesvendaraimportânciadomonopóliodeclassesobreaterranoprocessodeformaçãonãocapitalistadocapitaldocafé.Nãoeraadívidaapenasqueprendia o colono ao cafezal, mas o fato de ser um trabalhador livre demeiosdeprodução,semalternativasenãoadetrabalharnas fazendasdagrandelavoura.

Jácomacessaçãodotrá iconegreiro teve inícioaadoçãodoregimedeparceria em várias fazendas, experimentado inicialmente com imigrantes

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suíços na Fazenda Ibicaba, da irma Vergueiro & Cia., em Limeira, naregião campineira.69 Na parceria, conforme o contrato assinado com oscolonossuíços, "vendidoocaféporVergueiro&Cia.,pertenceráaestesametade do seu produto líquido, e a outra metade ao [...] colono".70Entretanto, o parceiro era onerado com várias despesas, a principal dasquaiseraopagamentodotransporteegastosdeviagem,deleedetodaasua família, além da suamanutenção até os primeiros resultados de seutrabalho. Diversos procedimentos agravavam os débitos, como amanipulação das taxas cambiais, juros sobre adiantamentos, preçosexcessivos cobrados no armazém pelos bens de consumo do colono (emcomparaçãocomospreçosdascidadespróximas),alémdeváriosabusoserestrições. Esses meios de intensi icação da exploração do trabalho,atravésdoincrementodadívidacontraídajuntoaofazendeiro,protelavamaremissãodosdébitosdoscolonos,prolongandoaservidãovirtualemqueseencontravam.

Aos olhos de um dos colonos, tais fatos signi icavam que "o colonoeuropeusóvalemaisdoqueosnegrosafricanospelofatodeproporcionarlucrosmaiores e de custarmenos dinheiro".71 O colono Thomas Davatz,emsuasconhecidasmemórias,inferedaítodaaproblemáticarealizaçãodotrabalho livre nas condições da economia brasileira. O princípio dapropriedade tendia a dominar todos os fatores envolvidos no processoprodutivo:"osoloépropriedadedopatrãoeosmoradoresosãodecertomodo..".72 Isso se devia basicamente a que, tendo feito despesas naimportaçãodamãodeobra,ofazendeirosentia-seimpelidoadesenvolvermecanismosderetençãodostrabalhadoresemsuasterras,comosefosseseusdonos:"ospatrões[...]quasenãodãodinheiroaosseuscolonos,a imde prendê-los ainda mais a si ou às fazendas".73 Desse modo, otrabalhadornãoentravanomercadodetrabalhocomoproprietáriodasuaforçadetrabalho,comohomemverdadeiramentelivre.Quandonãoestavasatisfeito com um patrão, querendo mudar de fazenda, só podia fazê-loprocurando"parasipróprioumnovocompradoreproprietário",74istoé,alguémquesaldasseseusdébitoscomofazendeiro.

O caráter opressivo do sistema de parceria adotado pela irmaVergueiro & Cia. era manifesto sobretudo no fato de que, embora oscolonos fossem juridicamente livres, nãoo erameconomicamente, doque

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resultava uma situação similar à do escravo. A aguda consciência quetinham desse fato culminou com uma sublevação a 24 de dezembro de1856,acoimadadecomunistapelopróprioNicolauVergueiro,emcartaaovice-presidentedaprovínciaapenas seis semanasapósaocorrência.75Asublevaçãocomprometeuaparceriacomomeiodeintroduçãodotrabalholivrenasplantaçõesdecafé.De fato, anteapossibilidadedeenfrentaremproblema idênticoemsuas fazendas,osoutroscafeicultores introduzirammodi icações nos critérios econômicos de absorção do trabalho doscolonos,oqueabriucaminhoparaoquesepodede inirapropriadamentecomoainvençãodoregimedecolonato.

Na carta de Vergueiro, o que chama a atenção é a modernidade dovocabuláriopolíticoqueutilizaparade inir os imensos riscos contidosnoprotestode seus colonos,quevieramparaoBrasil claramentemotivadospela aspiração de se tornarem proprietários de terra. Vergueiro via portrás da manifestação dos colonos a ação de clubes comunistas,supostamentesediadosnoRiode Janeiro.Aatualidadedessa impressãoéespantosa, pois o Manifesto comunista, de Marx e Engels, fora lançadoapenas oito anos antes. E não se tratava de vaga notícia a respeito dasideias subversivas que se difundiam na Europa. Vergueiro de inia oacontecimento de Ibicaba como revolta e nela via uma afronta à nossa"dignidadenacionalofendidapelosproletáriosdaSuíça'. Invocavaperigosmaiores do que os de uma simples greve de trabalhadores rurais.Mandara espionar Davatz e seus seguidores e, com base no que coligiu,falavanumplanodetomadadaprovínciadeSãoPauloporumaaliançadecolonos suíços alemães, escravos e "também alguns brasileirosdescontentes"que,nofim,republicanizariamoBrasil.76

O documento de Vergueiro demonstra o quanto os fazendeiros tinhamconsciênciadaenormedistânciasocialehistóricaqueseparavaasrelaçõesescravistas que praticavam em suas fazendas em face da outra ponta damesma economia, a realidade industrial europeia constituída sobrerelaçõesdetrabalholivreesalarial.Aquestãodainvençãoderelaçõesdetrabalho substitutivas do escravismo nos cafezais de São Paulo ésigni icativa indicação de quanto sabiam os fazendeiros em relação àintensidadedaexploraçãodo trabalhoquequeriamadotar em funçãodaacumulaçãodecapitalquepormeiodelaqueriamalcançar.

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Nofundo,odebatesobreotrabalholivreeastécnicassociaisqueforamusadas para implantá-lo (como a de escolher colonos de sociedadesatrasadas e pré-modernas, socializados em culturas de sujeição,organizadosemfamíliaenãoimigradosindividualmente,oqueostornavadóceis e temerosos de icarem sem trabalho) sugere que buscavaminstituir uma espécie de "índice de amansamento e sujeição dotrabalhador".Eraa contrapartidadapotencialacumulaçãocapitalistaquedela resultaria. Um indicador que seria, como foi, largamente usado norecrutamento e na seleção social, cultural e nacional dos trabalhadoreslivres pelos arregimentadores e tra icantes de mão de obra para issocontratados.

Os fazendeiros paulistas do chamado oeste novo eram empresárioscapitalistas não porque fossem simplesmente capazes de adotar relaçõesmaismodernas de trabalho do que as da escravidão (como se tem dito),mas porque foram capazes de adotar as relaçõesmais atrasadas e maisbaratas que podiam na circunstância do trabalho livre inevitável. Dessemodo poderiam alcançar a maior acumulação de capital quecalculadamente seria possível e, ao mesmo tempo, realizar um saltohistórico em direção à modernidade do capitalismo industrial, quecompensasse a lentidão do desenvolvimento econômico decorrente dosséculosdeatrasorepresentadopelaescravidãoepeladominaçãocolonial.Portanto,comoestruturalmente jáocorreracomaescravidão,a junçãodomáximoatrasopossívelnasrelaçõesdetrabalhocomomáximodeadiantopossível no emprego capitalista do capital delas extraído. A invenção dotrabalho livre sobre as ruínas da escravidão, por esses capitalistashistoricamente bifrontes, era presidida por uma consciência socialsingular, equivalente entre nós à funçãohistórica que a ética protestantetivera, também singularmente, no nascimento e difusão do modernocapitalismonaEuropa.77

Nesse esquema, as relações de trabalho continham um potencial deatualização, em face do desenvolvimento capitalista, que foi e vem serealizando lentamente por cerca de um século e meio, permitindoantecipações políticas das inovações sempre que as tensões trabalhistasavançam além dos limites dessa prudência empresarial. Foi assim porexemplo, nos desdobramentos da Greve Geral de 1917, foi assim na

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Revolução de 1930, foi assim na viabilização da reforma agrária peloregimemilitar,em1965,efoiassimnasgrevesemanifestaçõesoperáriasdosanos1970.

Énessaperspectivaquesepodecompreenderavariedadedeesquemasde relacionamento entre colonos e fazendeiros que surgiu no lugar daexperimental e problemáticaparceria, quando a escravidãonegra entrouemcrisecomacessaçãodotrá iconegreiro.78Esquemasqueculminariamno que icou conhecido como regime de colonato. Uma fórmula queadquiriunotoriedadefoiadascolôniasparticulares.Eladiferiadaparcerianamodalidadedepagamentodotrabalho.Afamíliadecolonosrecebiaumpagamento ixo em dinheiro pelo trato da parte do cafezal a seu cargo,tendoquefazerde5a6carpasporanonas leirasdecafé,pararemoveras ervas daninhas. Pela colheita, recebia uma quantia determinada poralqueire de café colhido, o que representava uma importância variável acada ano, dependendo da produtividade do cafezal .7' Tal critério nãoremoveuaquestãodaliberdadedocolono,aindasujeitoaopagamentodedébitos, juros e multas.` Sua melhor aceitação em relação ao regime deparceriadeveu-seàmelhoranosganhosdocolono,acelerandoaremissãodosdébitosetornandoviávelaindependênciaeconômicadotrabalhador.

Isso não impedia, entretanto, a ocorrência de di iculdades nas relaçõesde trabalho, derivadas basicamente do fato de que o fazendeiro, tendosubvencionado a vinda do imigrante, considerava o colono propriedadesua.OViscondedeIndaiatuba,cafeicultornaregiãodeCampinas,queeraum liberal, referiase aos trabalhadores de sua fazenda como "meuscolonos"." Essa concepção de propriedade sobre o trabalhador tinhagravesimplicaçõessobrealiberdadecivildocolono,jáquecomissotodasassuasrelaçõessociaisenãoeconômicas icavamsujeitasaoscritériosdaexploração econômica. Indaiatuba assinala, indignado, por exemplo, queoutro fazendeiro,em1874, "promoveracasamentoentreumseucolonoeumacolonaminhá'.82Essaera,naverdade,umatécnicadealiciamentodetrabalhadores.Poressemeio,umfazendeiropodiaobtermãodeobrasemfazer investimentodecapitalnorecrutamentoe transportede imigrantesestrangeiros,jáqueessesgastoshaviamsidofeitosporoutrofazendeiro.

A partir de 1870 essa di iculdade seria atenuada com o início da

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imigraçãosubvencionadapelogovernoimperiale,algunsanosmaistarde,pelogovernodaprovínciadeSãoPaulo.83Osimigrantes,entretanto,eramde preferência assentados em colônias o iciais, em regime de pequenapropriedade. O governo pagava as despesas de transporte para o Brasilaté a localidade de ixação do imigrante e sua família. Além de custear einanciaraterraeasdespesasiniciaisdemanutençãodafamília,mantinhaum regime de tutela sobre o colono geralmente durante um período dedois anos. Esse critério não visava ampliar o número de plantadores decafé, já que o problema não estava no número de proprietários, mas nonúmerodetrabalhadoresnecessáriosàculturacafeeira.Oscolonosforamgeralmente colocados em terras impróprias para café ou cana, naesperança de que se dedicassem à produção de alimentos baratos, comomilho,feijão,arrozemandioca.Essesalimentos,emboramuitoconsumidos,não tinhamummercado signi icativo, já que todas as fazendas e sítios osproduziam para seu próprio consumo. Basicamente, essa produçãogarantiria a alimentação da família imigrante e o excedente seriaconsumido pelo incipiente mercado urbano. A aquisição de roupas,remédiose,eventualmente,outrasmercadorias,dependentesdedinheiro,teriaqueserfeitamedianteganhoscomapartedaremuneraçãorevestidade forma salarial. O governo, constituído, aliás, de grandes fazendeiros eseusrepresentantes,procuravaorganizarviveirosdemãodeobraqueseoferecesseàsfazendasdecaféparaotrabalhosazonaldetratoecolheita,àmedidaqueissofossenecessário.

Forammuitasasqueixascontratalsistema,poisnemsempreascolôniaseram localizadas junto às grandes fazendas mais necessitadas detrabalhadores.Aimigraçãosubvencionadaparacriaçãodecolôniaso iciaisteve, porém, uma grande importância. Fundamentalmente, instituiu aintervenção do Estado na formação do contingente de força de trabalho,comoumaespéciedesubvençãopúblicaà formaçãodocapitalnagrandefazenda. Esse era umponto de grande resistência política, pois implicavadesviar recursos públicos para um único setor da economia, o do café,alémdetudomuitolocalizadoregionalmente,nosudestedopaís.

Porisso,todoodebateparlamentarsobreaaboliçãodaescravaturafoi,ao mesmo tempo, um debate sobre a propriedade fundiária e sobre acolonização.Adiversidadedeinteresseseconômicos,porexemploentreos

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fazendeiros de cana doNordeste e os fazendeiros de café do Sudeste dopaís, complicava-se com a diversidade de interesses entre os fazendeirosdecafédaregiãofluminenseeosfazendeirosdecafédaregiãopaulista.Osprimeiros haviam constituído suas fazendas estritamente com base notrabalhoescravo,enquantoossegundoso izeramjánobojodacrisedessamodalidade de exploração da força de trabalho. As garantias de créditoseramdiversasnumcasoenooutroetodaaeconomiadafazenda,emcadauma dessas situações, girava em torno de lógicas econômicas diversas eaté opostas. A imigração subvencionada, ao menos ainda na vigência daescravidão, bene iciava as fazendas do oeste paulista com o que era, naprática, um subsídio do Estado para uma economia já bene iciada porprodutividadesuperioràdaregiãofluminense.

A solução do problema foi encontrada com a manutenção, em linhasgerais, das relações de trabalho instituídas com as colônias particularesinstaladasno interiordas fazendas.O fazendeironão teriaquearcarcomasdespesasdaimigração,quepassariaasersubvencionadapelogoverno,icando liberadoda imobilizaçãodecapitalque fazianapessoadocolono,sobaformaderendacapitalizada,comosdispêndiosjuntoaagenciadores,companhias de transporte marítimo etc.84 Em vez de encaminhar osimigrantes recrutados por agenciadores a serviço do governo paracolônias o iciais, eles passaram a ser encaminhados para as própriasfazendas de café, mediante requisição dos fazendeiros ao serviço deimigração. Um dos maiores cafeicultores e empresários da época,seguramente o maior responsável pela fórmula que viabilizou o im daescravatura, o paulista Antônio da Silva Prado, assinalava no Senado doImpério, em 1888, poucos meses depois da abolição, o que a imigraçãosubvencionadarepresentavaparaaeconomiadafazendadecafé.Diziaelenão conhecer outro meio para atender a demanda de braços para otrabalhosenãoaquelequeogovernosetemesforçadoparaempregaremlarga escala, isto é, a introdução de imigrantes, e pelo modo por quepretende dirigi-la, fornecendo trabalhadores à lavoura sem que oslavradorestenhamnecessidadede,paraestefim,dispendercapitais.85

Como muitos fazendeiros pretendiam receber indenização do Estadopeloslucroscessantesadvindosdaextinçãodaescravatura,jáquetinhamimobilizado seus capitais nas pessoas de seus escravos, a resposta o icial

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representou uma signi icativa recusa da mentalidade baseada na rendacapitalizada. Mais importante do que a propriedade sobre o trabalhadorera assegurar o trabalho que cria a riqueza, que cria valor.86 Contra aopinião de muitos fazendeiros de mentalidade escravista, o governolegislava corretamente pela cabeça dos fazendeiros-empresários.Separava, inalmente, o trabalho e a pessoa do trabalhador, libertando,en im,opróprio trabalho como fatorde criaçãode riqueza.Umaaboliçãonointeriordaabolição,semaqualaaboliçãodaescravaturaperdiatodoosentido. Os fazendeiros não deixaram de receber uma indenizaçãomuitomais signi icativa do que aquela que pretendiam. Eles não foram pagos"pela reposição de seu suprimento de trabalho; mas, foram pagos pelatotalidadedapopulação, incluindooshomenslivres".87Aocontrário,pois,receberamagarantiadeum luxocontínuodetrabalhadoressemomenordispêndio de capital. Somente com a intervenção do Estado foi possívelquebrar o circuito do trabalho cativo, procedendo-se a uma socializaçãodos custos de formação da força de trabalho e criando-se as condiçõespara que se instituíssem o trabalho livre e o mercado de trabalho.88 AintervençãodoEstadonaformaçãodocontingentedemãodeobraparaasfazendasdecaférepresentou,defato,o fornecimentodesubsídiosparaaformaçãodocapitaldoempreendimentocafeeiro.

É comum encontrar-se referências, nos estudos sobre o im daescravidão negra, à importância desse acontecimento na racionalizaçãointernadasatividadesdafazendadecafé,dadoqueapartirdeentãoteriasido possível instituir uma contabilidade de custos da força de trabalhoabsorvida na produção. Teriam surgido, assim, as condições para dar àação do fazendeiro o seu caráter capitalista ou as condições para que amentalidade do fazendeiro se transformasse em mentalidade capitalista.Essa suposição teoricamente clara é, no entanto, empiricamenteimprovável,pois,ateoria,nessecaso,tempoucoavercomacomplexidadedasituaçãoemquesedeuatransformaçãodoregimedetrabalhonocafé.Asrelaçõesdeprodução instituídasna fazendadecafé,comoadventodotrabalho livre, como já mencionei, não eram relações integral ecaracteristicamente mediadas pelo salário em dinheiro, único meio deintegrá-las numa contabilidade de custos da fazenda. Quase no inal doséculoXIX,umtécnicoconstatava,apropósito,que:

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O sistema de colonos e omodo de pagamento a ele inerentetornamdeantemãoimpossívelumadeterminaçãoexatadocustodeprodução do café nas fazendas, pois, grande parte dos fatores deque se compõe o `pagamento' neste caso escapa a um cálculo atéaproximativo. Não há meio que permita avaliar e exprimir emdinheiroasvantagensoferecidasaoscolonosemformadecasademorada,pastos,terrenosparaplantarmantimentosetc.Tambémoscontratos de empreitada di icultam bastante uma análise clara dodispêndio em mão d'obra de um lado e em dinheiro de outrolado.89

Ou seja, a contabilidade das fazendas, que não obstante havia, eramutilada pela falta de traduçãomonetária do que o colono recebia e nãopagava e das formas disfarçadas de trabalho de que a empresacafeiculturasebeneficiavaedeixavaderemuneraredecontabilizar.

Nesse caso, é de outra ordema explicaçãopara a expansão econômicado café, principalmente a partir de 1870. Sendo o escravo, como se viu,renda capitalizada, nele se imobilizavam grandes somas de capitais. Taisimobilizações continuaramaocorrer, aindaqueprovavelmenteemescalamenor,notrabalhadorlivre,trazidoparaoBrasilpelofazendeiro,comosefosse verdadeira mercadoria. Somente com a imigração subvencionadapelogovernoéqueessaparceladecapitaldafazendadecaféfoi liberadapara funcionar comoverdadeiro capital.Mas, tal liberaçãonão sedava, éclaro,emrelaçãoaostrabalhadoresjápossuídospelafazendaequeaindanão houvessem saldado seus débitos com o fazendeiro. Quem quisessereceberesse subsídio, representadopelo trabalhadoralocadona fazendasem nenhum custo para o fazendeiro, teria que encontrar meios deincorporar novos e maiores contingentes de imigrantes subvencionados(oumesmo, é claro, dos chamados imigrantes espontâneos, que arcavamcomseusprópriosdébitosdeviagem).

Comaimigraçãosubvencionada,ofazendeironãopoupavacapital,comopretendiaAntônioPrado,mas recebia capital, dadoque cada trabalhadorchegado à fazenda representava um efetivo dispêndio em dinheiro feitocom recursos públicos. O trabalhador arregimentado, transportado ecolocado na fazenda tinha um custo. De fato, uma doação do Estado que,

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livrando o fazendeiro dessa despesa, o liberava da imobilizaçãoimprodutiva de parte de seu capital na aquisição demão de obra. Ora, aformadeincorporaressamodalidadedecapitalaoprocessoprodutivoeraa abertura de novas fazendas, a ampliação dos cafezais. A imigraçãosubvencionada funcionava como um incentivo econômico à expansão doscafezais.Durantemaisdeumséculo,a"faltadebraçosparaalavoura'foiamaisreiteradareclamaçãodosfazendeiros,mesmoemmomentosdecrisede superprodução e de baixa nos preços do café, como ocorreu napassagemdoséculoxlxparaoséculoxx.Issoeramaisdoqueareposiçãocíclicadamãodeobra, jáqueocolonotinhaumaexistênciatransitórianafazenda."' A reivindicação constituía, na verdade, omeio de pressãoparauma permanente obtenção do subsídio disfarçado, na imigraçãosubsidiada,queampliavaaofertadetrabalhadoresemrelaçãoàprocura.Trabalhadoresmotivados por aspirações crescentes de ascensão social, etendencialmente inconformados com as condições de trabalho que atolhiam, eram assim rotativamente substituídos, o que deve ter pesadomuito na relativamente baixa ocorrência de greves e de protestostrabalhistas. Podiam ser substituídos com facilidade por trabalhadoresrecém-chegados, ainda nas fases incipientes dessa motivação e aindadominados pelo conformismo das condições adversas da sociedade deorigem.

Sob essas condições, a formaçãode fazendas novas, ou a ampliação deantigasqueaindadispunhamdeterrasvirgens,transformou-senumnovoegrandenegócio.Alémdeproduzir café, o fazendeiropassouaproduzir,também, fazendasdecafé.A febrilaberturadenovas fazendas,depoisdaefetiva liberaçãodamãodeobra,odeslocamentocontínuodefazendeirosdeum lugar para outro embusca de novas terras, a rápida ocupaçãoderegiões que ainda não haviam sido absorvidas pela economia deexportação, produziram,muito depressa, já no começo do século xx, umagrande elevação no preço das terras.' O que em 1880 era apenasespeculaçãoteórica, tendoemvistaumsubstitutoparaashipotecas feitassobreosescravos,vinteanosdepoiserarealidade:aterrahaviaalcançadoaltopreço,assumindoplenamenteaequivalênciadecapital,sobaformaderendaterritorialcapitalizada.

A procura de terras novas foi, porém, um complicado componente da

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história das fazendas de café. Como indiquei antes, uma verdadeiraindústria de grilagem de terra surgiu e ganhou corpo, principalmente apartir de 1870, a ponto de que algumas medidas legislativas foramtomadas em São Paulo até o inal do século, ampliando o prazo delegitimação de posses que cessara em 1854. Todo um conjunto deatividades lícitas e ilícitas tinhaumpreço e esse passou a ser o principalcomponente do preço da terra. As despesas realizadas com subornos,demarcações, tocaiasaposseiros intransigentes,pagamentosa topógrafose jagunços, constituíam o fundamento do preço que a terra adquiriaatravésdogrileironopreâmbulodonossocapitalismoagrário."'Emtroca,o fazendeiro recebia a terra livre e desembaraçada, cuja propriedadedi icilmenteseriacontestadajudicialmente.Arendacapitalizadapassouaser, em parte, contrapartida do tributo pago pelo fazendeiro ao grileiro.Formalmente,oavançodapropriedadeprivadasobreas terrasdevolutasaconteciam por meio da compra, através de títulos reconhecidos pelostribunais."' As coisas ocorriam desse modo para preservar o capitalrepresentado pelo café; para que a eventual contestação não levasse àperda do cafezal. Por isso, a transformação da terra em propriedadeprivada,quepudessesercompradapelofazendeiro,antesdeseconverterem renda territorial capitalizada, era objeto de outro empreendimentoeconômico-odogrileiro,àsvezesverdadeirasempresasdeconversãodeterraalheiaoudevolutaempapellimpoepassado,carimbadoeregistrado.No processo de transformação da terra em propriedade privada e docapital em renda capitalizada, a seu modo, o grileiro substituiu o antigotraficantedeescravos.

A imigraçãoemmassanãosedestinava,emgeral, àaberturadenovasfazendas.Ocolononãoera,viaderegra,aomenosnosprimeiros tempos,formador de cafezal, circunscrevendo-se ao trato e à colheita. Mas apossibilidadede formaçãodenovoscafezaisdependia,aindaassim,desseimigrante.Équedenadaadiantavaformarcafezaissenãohouvessequemdelescuidassedepoise,principalmente,quemcolhesseocafé.Garantidaaentradacontínuadetrabalhadoresparaacafeicultura,tornava-sepossívelexpandir as plantações. Para essa tarefa eram mobilizados caboclos ecaipirasououtrostrabalhadores"nacionais",comosedizia.94Aomenosotrabalho do desmatamento, da queimada e da limpeza do terreno erainvariavelmente feito por esses trabalhadores. Nesse sentido, quase não

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havia diferença entre a época de vigência do trabalho escravo e a davigência do trabalho livre. A preparação da terra, na escravidão, erapreferencialmente feita por homens livres, agregados das fazendas ouantigosposseirosdasáreasemqueasfazendasvieramaseestabelecer.95

A formação da fazenda compreendia a derrubada da mata virgem, alimpa e preparação do terreno, o plantio do café e a formação dosarbustos.Seoplantiofossedesemente,apenasdepoisde6anosocafezalera considerado formado. Se fosse, porém,demuda, issoocorria já aos4anos.96 No regime de trabalho escravo, os fazendeiros empregavam depreferência caboclos ou caipiras, na derrubada da mata. Essestrabalhadoreslivres,conhecidoscomo"camaradas",erampagosàrazãode2 mil a 2 mil e 500 réis por dia, com comida, entre 1883 e 1884.Entretanto, para evitar o ônus da iscalização do trabalho e documprimento das tarefas atribuídas ao trabalhador, os fazendeirospreferiam dar o serviço em regime de empreitada, mediante pagamentopor área derrubada e limpa.97 Couty considerava módico, em 1883, opreço pago por esses serviços feitos geralmente por caboclos queraramentefaziamasplantaçõesdecafé.98

Osfazendeirospreferiam,namedidadopossível,pouparseusescravosdessas tarefas. Fala-se, frequentemente, que essa orientação decorria doriscoaqueo trabalhadorestava sujeito, sobretudona fasedaderrubadadas mata, o que poderia comprometer o capital imobilizado no escravo.Tudoindica,porém,quearazãoeraoutra.Olongoperíododeformaçãodocafezal, de 4 a 6 anos, antes que começasse a produzir em escalacomercial,exigiriagrandeimobilizaçãodecapitalseotrabalhotivessequeserinteiramenteexecutadoporescravos.Porisso,otrabalhocativo icava,preferencialmente,restritoaotratodocafezaleàcolheitadocafé, tarefasinadiáveis, mas de retorno econômico rápido, quanto muito um ano. Asdi iculdades de obtenção de capitais a longo prazo eram notórias. Osbancos estrangeiros, por exemplo, só faziam empréstimos para a fase decomercialização da safra, pois dependiam do retorno dos capitaisemprestados a im de removê-los para oNordeste e inanciar a safra deaçúcar ou para o Sul e inanciar o comércio de charque. Um pequenoatraso na recuperação desses capitais provocava crises econômicas degrande repercussão.99Os comissários, tambémdependentes dos bancos,

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nãopodiamarcarcomfinanciamentosdelongoprazo.

Por essas razões, o fazendeiro optava pelo trabalho de homens livres,agregados de sua fazenda ou não, caboclos ou caipiras. O dispêndiomonetárioerarestrito,dadoqueostrabalhadoresdeslocavam-secomsuasfamílias para os locais de derrubada, onde armavam seus ranchos. Suasubsistência era fornecida pelo fazendeiro e descontada da quantia pelaqual fora feita a empreitada. Entretanto, há casos assinalados deempreiteirosqueempregavamseusescravosnessastarefas,oquesugerevariações no regime de empreitada adotado nessa fase de formação doscafezais.'°°

O advento do trabalho livre, quanto às relações de produção, afetoumenos a formação do cafezal do que o funcionamento da fazenda jáinstalada. No começo dos anos 1880, Delden Laèrne observara que "demodo algum são os colonos plantadores de café, eles apenas o colhem"."'Nessa mesma época, um fazendeiro escrevia uma carta dizendo quecolonos"sópossoterBrasileiroseestessóformam(quandoformam)café,depois é preciso estrangeiros"."' Esses trabalhadores brasileirosprocediam até mesmo de regiões distantes, como centenas de baianostrazidos em 1885, para plantar meio milhão de pés de café na FazendaGuatapará.103

Denisobservava,nocomeçodoséculoxx,que

o plantador pobre de capitais e desejoso de evitar todas asatribulações de um trabalho que não se tornaria produtivo senãoapós vários anos, tratava com um empreiteiro. 0 empreiteirorecebiaaterravirgemesepropunhaadevolvê-laquatroanosmaistardeplantadadecafeeiros.Elefaziaaderrubada,cultivavaomilhoentre asplantas ainda jovens e, ao imdequatro anos, recebiadoproprietário a somade400 réis porpéde café.Às vezes eramosalemães que trabalhavam nessas derrubadas,mais seguidamente,porém,osbrasileiros,osnaturaisdeMinas.'04

Entretanto,o imigrante tambémpodiaserempregadonaderrubadadomato e na queimada, além de fazer a plantação. Um contrato deempreitada,de1897,paraplantiode200milpésdecafénaFazendaSão

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Martinho, contém várias indicações sobre algumas das características daempreitada.Aprimeiradelaséadequeosempreiteirospodiamcontrataros serviços de terceiros, menos "de colonos e camaradas que tenhamdeixado o serviço da fazenda". Concluída a plantação do café, que nãodeverialevarmaisdoque8meseseaconstruçãodascasinhassobrecadaplanta (espécie de caieira armada sobre a cova para sombreamento docafeeiro), podiam "plantar uma carreira demilho em cada rua do café, epoderão renovar esta plantação mais uma vez". O milho, aliás, tambémservia para sombrear os cafeeiros em formação. Teriamque conservar aplantação de café durante 4 anos, mantendo-a limpa e replantando asfalhas.Aspicadasparaaderrubadadamataeassementesdecaféseriamderesponsabilidadedofazendeiro.Desuaresponsabilidadeeratambémaconstrução de "uma pequena casa de morada para os empreiteiros efornecertelhas, tábuasebatentesnecessáriosparaexecuçãodosranchossu icientesparaacomodaçãodeseupessoal".OsempreiteirosreceberiamRs.1$500porpédecafédequatroanos,pagosemparcelasatéo inaldoperíodo.105

Qualquercaféproduzidoduranteessetempo,poisaplantafrutificajánoquarto ano, pertencia aos proprietários da fazenda. Segundo todas asindicações, já na safra seguinte ao recebimento do cafezal formado peloempreiteiro puderam os fazendeiros recuperar todas as despesasmonetárias realizadas. Na pior das hipóteses, isso ocorreu na segundasafraderesponsabilidadeda fazenda.'o6Quaseàmesmaépoca, fazendascomcafezais formadoseramvendidasàrazãodeRs.4$000a5$000opéde café.117 Portanto, um proprietário podia duplicar o seu capital emquatro anos simplesmente formando novos cafezais, enquanto o mesmodinheirocolocadoajuroslevariauns10anosparaduplicar.'os

Nessa fase, porém, os fazendeiros tinham pouco interesse em venderseus cafezais, a não se por preços exorbitantes. Um observador notava,aliás, que com a crise de 1896, que produzira uma queda nos preços docafé,umterçodosfazendeirosdeSãoPauloestavacomdébitosexcessivosdevido, entre outros fatores, aos preços descriteriosos pagos por suaspropriedades.'09

O que parece ter sido a modalidade mais frequente de formação do

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cafezal(quetantopodiaserumanovafazenda,quantoaampliaçãodeumaantiga)jásoboregimedetrabalholivre,consistiaematribuiraoimigrantea formação de um determinado número de pés de café, com direito àcolheita dos frutos obtidos no período (geralmente havia uma pequenasafra no quarto ano), situação que melhorava quando os contratos deformação era de seis anos. Além do que, os trabalhadores tinhampermissãodeplantarfeijãoemilhonasruasentreospésdecafé(àsvezespodiamplantararrozeatéalgodãonesseespaço).Naentregadocafezalaofazendeiro,ocolonorecebiaumaquantiaemdinheiroquerepresentavaodispêndiomonetáriocomoestabelecimentodaplantação.

A formação do cafezal nessas condições despertava grande interessenos colonos.Emprimeiro lugar,porquepodiamusufruir amplamentedasterras mais férteis das regiões de matas recém-derrubadas, cultivandogênerosalimentíciosnecessáriosàsuasubsistência,cujosexcedenteseramcomercializados com o próprio fazendeiro ou com os comerciantes daspovoações e cidades próximas. A colheita do café, no último ano ou nosúltimos anos de formação da planta, acrescentava, na economia dotrabalhador,recursosmonetáriosaopagamento inaldoseutrabalho.Umobservadorotimistaassinalava,em1914,queosrendimentosdocafé"dãomargem para enriquecer todo e qualquer colono que se aplique à suacultura, pois na área ocupada pelo café, durante a época da formação, ocolono pode plantar toda a sorte de cereais que darão para as suasdespesas..".10

Quem realmente obtinha grandes resultados com esses critérios era,porém,oprópriofazendeiro.Umdosmais lúcidosestudiososdaeconomiadocaféobservouque,naformaçãodocafezal,

durante os 4 ou 5 anos do contrato, os colonos vivemprincipalmente do produto do milho (além do feijão, o arroz ebatataetc. emmenorescala), cultivados, conformedissemos,entreoscafeeiroseque,graçasàfertilidadedosolo,ofereceabundantescolheitas, vendidasdiretamenteouutilizadasna criaçãoe engordade suínos e aves domésticas. Eis aí como, em prazo relativamentecurto-4ou5anos-podeumproprietáriodeboasterras,nooestede S. Paulo, tornar-se possuidor de um belo e rendoso cafezal,

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mediantepequenapaga,ounenhuma."'

Se no regime escravista os recursos investidos na compra de escravosrepresentavam a parcela principal do capital da fazenda, no regime detrabalho livre a parcela principal passou a se constituir do cafezal. Essecapital tinha, pois, uma clara procedência não capitalista, obra detrabalhadores teoricamente livres, sem dúvida, mas não de relaçõescapitalistasdeprodução.Apropriedadecapitalistadaterraasseguravaaofazendeiro a sujeição do trabalho e, ao mesmo tempo, a exploração nãocapitalista do trabalhador. Com base no monopólio sobre a terra, ofazendeiro de fato não empregava o formador do cafezal como seutrabalhador.

Naprática, ele lhe arrendava, como se autônomo fosse, umaporçãodoterreno para cultivos alimentares e recebia em pagamento o cafezalformado.Umarendaemtrabalhoquesetraduziaeseconvertiaemcapitaldonovoempreendimentoagrícola.Duranteosquatroanosdo contrato, ocolonoplantavanoterrenoosseuscereais,armavaoseurancho,ealiviviacomsuafamília.Opagamentoquerecebiapelaformaçãodecadacafeeiroera inferioraopreçoqueessemesmocafeeiroobteria sea fazenda fossenegociada pelo fazendeiro. O pagamento do cafeeiro por menos do quevalia embutia, sem dúvida, uma relação trabalhista. Escamoteada, porém,pelos componentes propriamente camponeses do vínculo de empreitadacom o fazendeiro, como arrendamento de terra alheia para agriculturaprópria.Nãoeraofazendeiroquempagavaaotrabalhadorpelaformaçãodocafezal.Eraotrabalhadorquempagavacomcafezalaofazendeiropelodireitodeusarasmesmasterrasnaproduçãodealimentosduranteafasedessaformação.

Aprincipal formade capital absorvidana formaçãoda fazendade caféera o trabalho - trabalho que se convertia diretamente em capitalconstante, no cafezal, sem ter entrado no processo propriamente comocapital variável e sim como tributo. De fato, na gênese do capital dofazendeiro estava uma modalidade de renda, o trabalho nela embutido,semassumiraformasalarialprópriadarelaçãocapitalista.Masquenãoseconfunde com a exploração précapitalista da terra, pois que se convertiaimediatamenteemcapitalconstante.

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Esse era o segredo da acumulação de capital na economia do café, oprocesso do capital contendo e escondendo permanentemente aacumulação primitiva de sua origem. A fazenda produzia, a partir derelações não capitalistas de produção, grande parcela do seu própriocapital. Nesse sentido é que a grande lavoura se transformou numaindústria de produção de fazendas de café, além de produzir o própriocafé. Desse modo, é que na economia cafeeira a reprodução do capitalassumiu a forma de reprodução extensiva de capital, pela incorporaçãocontínua e progressiva de novas terras à produção. Como disse antes, osegredoestavanaconversãoimediataderendaemtrabalhoemcapital,nacontínua recriação da necessidade de mais mão de obra, pois anecessidadede trabalhadoresparaa formaçãodocafezal tinhaumefeitomultiplicador:cadaformadordecaféimplicavaumnúmeromuitomaiordetra tadores e colhedores logo que o café estivesse formado. Tendo aformação da fazenda se transformado no objetivo econômico dosfazendeiros, a expansão dos cafezais quanto mais gente absorvia, maisgentenecessitava.

Os próprios mecanismos do mercado incumbiam-se de reduzir aindamaisaimportânciarelativadequalquerdispêndiomonetárioefetuadocomaformaçãodocafezal.Basicamente,os inanciamentosporventuraobtidosjunto a comissários e bancos eram operados como capital de custeio e,raramente,comocapital ixo.Alémdorecebimentodocafezalpraticamentesem custos, como renda em trabalho, o grande empenhona formação denovasfazendastambémtraziaparaofazendeiroumarendadiferencial,nobene íciodecorrentedaexploraçãodeterrasnovasmaisférteisaindaquemaisdistantesdoportodeSantos,distânciacompensadapelocrescimentoda rede ferroviária. O deslocamento amplo de fazendeiros de velhasregiõesparaafronteiraeconômicaestevefortementemarcadopelabuscadeterrasmaisférteis,comoaterraroxa,encontradaem1870,noqueveioaseraAltaMogiana,que triplicavamaprodutividadedocafée,àsvezes,atédecuplicavamemrelaçãoaos terrenoscansadosdoValedoParaíba."'Nessecaso,afertilidadenaturaldosolo,pormeiodotrabalhodoformadordocafezal,incrementavaosganhosdofazendeiro,quaseseminvestimentode capitais próprios. Por essemeio e através do repasse de suas antigasfazendas,oscafeicultoresquesedeslocavamcomafrentepioneirapodiamformar grandes capitais em relativamente curto tempo. O único segredo

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dessa acumulação estava nas relações de produção estabelecidas naformaçãoeno tratodos cafezais: comumregimede trabalhoassalariadoessa acumulação não teria sido possível na forma e na escala em que sedeu.

Desigualdade e propriedade: os marcos do processo devalorizaçãodocapitalnoregimedecolonato

O capital que permitia movimentar os elementos do processo deprodução no interior da fazenda era basicamente capital de custeio,procedentedascasascomissárias,osintermediáriosnacomercializaçãodocafé que estavam em direto contato com os fazendeiros. Na própriaformação do cafezal, o componente principal do capital constante dofazendeiro, em geral, operava esse tipo de capital ânuo, de naturezaessencialmentecomercial.Eleeraenvolvidonoprocessoprodutivoapenaspara incorporar o produto agrícola ao processo de circulação dasmercadorias. Operava, pois, como mediador na conversão do café emmercadoria. Somente através da transferência do ônus de formação docafezalparaopróprio trabalhador, responsávelpelaproduçãodiretadosseusmeiosdevida, équeo fazendeiropodiaarrecadar, comos limitadosrecursos do capital de custeio, o seu capital constante, extorquidodiretamentedoformadordecafé.

A forma essencial de capital que subordinava a produção agrícola era,portanto, a do capital comercial, na estrita racionalidade do capital queopera fundamentalmentenamovimentaçãodasafraagrícola.Apartirdaí,o fazendeiro entrava no circuito do capital como proprietário demercadorias,comomanipuladordecapital-mercadoria.Eranessacondiçãoqueeleserelacionavacomoprincipalintermediárionacomercializaçãodecafé,ochamadocomissário.Esteera,naverdade,aomenosnoinício,umaespéciedeagentecomercialqueatuavaemnomedofazendeiro juntoaosexportadores, mediante uma remuneração geralmente de 3% sobre ovalordonegócio, um corretor.Teoricamente, aomenos, o comissário agiaem defesa dos interesses do fazendeiro, classi icando o café, formandoligas,ejogandosemprenaaltadospreços.13

Uma sutil transformação ocorreu na relação entre comissários e

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fazendeirosqueveioaalteraressepapeldealiado.Em tempos recuados,ainda em relação aos fazendeiros do Vale do Paraíba, quando menorparece ter sido a dependência inanceira destes em relação aos seusagentes,comissárioshaviaquesepronti icavamacuidardosinteressesdeseus comitentes, sem cobrança de comissão alguma, contentando-seunicamentecomosganhosqueproviessemdos fretes?14Nessaaltura,ofazendeiro estava geralmente em crédito junto ao comissário. Mas, nosanos 1880, a situação aparentemente se inverteu, provavelmente devidoaopreçodotrabalho,jáquecapitaismaiorestiveramqueserimobilizadossob a forma de renda capitalizada na pessoa do trabalhador. Em últimainstância, ganhavam os banqueiros, inanciadores dos comissários. Coutyconstatava,em1883,a

intervenção da dívida em todas as relações [...], dívidas dosfazendeirosemrelaçãoaoscomissários,doscomissáriosemrelaçãoaos bancos, dos bancos em relação a todos, dos consumidores emrelaçãoaosimportadoresedosimportadoresnaEuropa."'

Os fazendeiros deploravama dependência emque se encontravamemrelação ao comissário, não mais tido como o representante pessoal quecuidava de todos os negócios externos da fazenda e até mesmo dosnegócios de família do fazendeiro, mas de inido como explorador."6Empenhavam-se os fazendeiros, aliás, em obter a criação de bancos decusteioagrícola comomeiode livraremsedo intermediário inconveniente.De qualquer modo, além da proliferação de bancos envolvidos nosnegóciosdocaféapartirdosanos1890,oscomissárioscomeçaramaseralijadosdosnegóciospelaintervençãodosexportadoresnacompradiretade café nas fazendas. O fazendeiro caía, assim, sob controle direto docapital inanceiro dos bancos, dado que os exportadores eram simplescompradoresqueatuavamnabaixadocaféparaofazendeiro,eliminandoo intermediário que era o comissário. Na falta deste, os bancos vieram asuprirassuasfunçõesbancárias.

Tais fatos não representaram um maior envolvimento do capital noprocesso produtivo. Ao contrário, a fazenda, já no começo do século xx,icavaquasequeinteiramentesujeitaaosbancoseexportadores,estes,namaioria,estrangeiros,interessadosemretirardasmãosdoscomissários,e

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ampliá-lo, o lucro extraordinário advindo da exploração de relações nãocapitalistasdeprodução.Amaiordependênciaemrelaçãoaessas formasde capital apenas acentuava a característica da fazenda comoempreendimento voltado para a produção de mercadoria com base nascondiçõesdeexploraçãodaforçadetrabalhoquejáforamindicadas.

Essas alterações nãomodi icaram, pois, o fato de que o fazendeiro eraumcapitalistaqueoperavaessencialmenteapartirdocapital-mercadorianoqualseexprimiaotrabalhopretérito,'17obtidoatravésderelaçõesnãocapitalistas de produção. A fazenda se organizava, em suas relaçõesinternas, pela intervenção do capital de custeio, do capital paramovimentaçãodassafras.Porisso,arelaçãoentreofazendeiroeocolonoenvolvido no trato e colheita do café era uma relação semelhante à quemantinhacomocomissário-umarelaçãodecréditoedébito,umarelaçãode contas correntes, como se o próprio trabalhador fosse outrocomerciante."'

Enquantono regimede trabalhoassalariado,nas relaçõesdeproduçãocapitalistas, a relaçãoentreoempresárioeoproletárioéumarelaçãodeigualdadequeescondeadesigualdade,emqueaocultaçãodaexploraçãosedánopróprioprocessodetrabalho,noregimedecolonatoa igualdadeformalnãosedánoprocessodetrabalho,masforadele.Dizendodeoutromodo, no primeiro a igualdade é o ponto de partida do relacionamentoentre o patrão e o operário. Este entende que o que vende àquele,expresso em salário, é equivalente aos meios de vida necessários à suareproduçãoedesuafamília.Entretanto,aquelecompraousodotrabalho,cuja utilidade está em produzir mais valor do que aquele que contém,medidonosdispêndioscomosmeiosdevidadesuareprodução.Ao imdoprocessodetrabalho,oqueseteméqueeleéaomesmotempoprocessodevalorizaçãodocapital,emqueocapitalentracomovalorquesevalorizaa simesmo.Amais-valia assimextraída, soba formade lucro, apareceaícomofrutodocapitalenãocomofrutodotrabalho."9

No regime de colonato, as coisas não ocorriam dessa forma, embora, éclaro,houvesseumlucrodofazendeiro.Équeamais-valiaapareciasobaformadelucrocomercial, jáque,parafazerumadistinçãoquesefazianaépoca, havia uma grande distância entre o valor e o preço da fazenda.

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Couty, o perspicaz agrônomo, iludia-se quando a irmavaque o preço queas fazendas podiam alcançar em seu tempo era inferior ao valor quetinham, isto é, ao trabalho materializado nas plantações, construções eequipamentos e às mercadorias que produziam. Para ele, a diferençaexpressava a problemática falta dedemandade terras e deummercadoimobiliário. Ledo engano, pois tal diferença expressava, em verdade, aausência domercado comomediador na formação do capital da fazenda,comovimos,extorquidodiretamentedotrabalhadorsobaformaderendaemtrabalho.

A diferença procedia fundamentalmente da desimportância dosdispêndios monetários na formação do capital da fazenda. A mais-valiaexpressava todo o trabalho pretérito não pago desde a formação docafezal, oculto numa relação comercial,mas surgia somente na transaçãodo fazendeiro com o intermediário. Para o fazendeiro a mais-valia sematerializavanacolunado"haver"dassuascontas-correntescomoagentecomercial, comoexpressãodesegunda instânciadeum jogocontabilísticoquetiverasuaprimeira instâncianoqueelemesmotratavacomorelaçãocomercialqueerasuarelaçãocomostrabalhadoresqueformavamecomosquetratavamdesuasplantações.

Assimcomofechavaanualmentesuacontacomointermediário,tambémanualmentea fechava comseu colono.Apóso inalda safra, o fazendeirofazia o acerto com o chefe da família trabalhadora. A formalização daigualdade própria do trabalho livre ocorria nesse plano, no plano dacontabilidade que mediava a relação de ambos, no plano dos ganhosmonetários. Aí o colono aparecia como fornecedor de mercadorias e,eventualmente, como trabalhador diarista, de que provinha parcelamínima dos seus rendimentos. Aparecia, também, como comprador demercadoriasao fazendeiro,nobarracãoounoarmazémondeadquiriaosfornecimentosaolongodoano,oucomodevedordeadiantamentos.Oitemprincipal de sua receita provinha dos alqueires de café colhido e dostalhõestratados,otrabalhodeenxadanalimpadocafezal,aremoçãodaservasdaninhasdasleirasentreoscafeeiros.Acentuavaessacaracterísticao fato de que ao colono cabia uma caderneta que deveria reproduzirielmente os registros da sua conta corrente com o fazendeiro. Nessarelação,otrabalhonãoentrafundamentalmentenaqualidadedetrabalho

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social e abstrato; ele entra revestido ainda da forma de mercadoria, detrabalho materializado em valores de uso e de troca, com o caráter detrabalho pessoal e concreto. A troca igual não entra no começo daprodução, mas unicamente no seu inal. Por essa razão, não se podereduzir aomenosparteda remuneraçãodo colono à categoria de salárioporpeça.Équenocolonato,como já foi indicado,ocolonoseenvolviaemuma complexa relação com o fazendeiro, que não podia ser resumidanumadasvariantesteóricasdosalário.Complexa,também,porquenãoseresumiaaumatemporalidade,adosalário,massedistribuíapelostemposdesuadiversidade,acomeçardearcaísmosdesuarelaçãolaboralcriados,precisamente,peloprópriocapitaleemnomedocapital.

A igualdade formal entre o colono e o fazendeiro, estipulada com basenos elementos da conta corrente entre ambos, mediante a troca dedinheiropeloprodutodo trabalho (o café), eraa simples igualdadeentrecompradores e vendedoresnopróprio atode compra e venda.Mas, essaigualdade episódica, de acerto de contas, acobertava uma efetiva relaçãodesigualnoprocessodetrabalho.

Nointeriordafazenda,apenasumaparceladapopulaçãotrabalhadora,aquelaquesededicavaaobene iciodocafé,dasecagemaoensacamento,tinha suas relações com o fazendeiro estabelecidas com base nopagamentode salário.120Mesmona vigência do trabalho escravo, váriasdas tarefas de bene iciamento do café, sobretudo após a introdução deequipamentos modernos nos anos 1870, eram realizadas por operáriosespecializados livres, rea irmando uma tendência que vinha desdeantes.121Dessemodo, tantoa formaçãodo cafezalquantoobene íciodocafé já eramefetuadospor trabalhadores livres antesda formalizaçãodoimdaescravatura.Agrandealteraçãonasrelaçõesdeproduçãoocorreu,pois,notratoenacolheitadocafé,momentodemaiordemandademãodeobranoprocessodetrabalho,ondenãoseinstituiuosalariatonemmesmocom o advento do trabalho livre. Os colonos constituíam a grandemassados trabalhadores do café, o que fazia do assalariamento um vínculoproporcionalmente de menor importância na economia das fazendas.Algumasdelaschegaramapossuir5,6,8milcolonosinstaladosdentrodeuma mesma propriedade, em vários e distintos agrupamentos, aschamadascolônias.Noconjuntodasfazendasdeummesmofazendeiroou

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de umamesma família de fazendeiros, o número de trabalhadores podiaultrapassar a dezena de milhar, número que a indústria paulista sóalcançariaapartirdosanos1950.

Num estudo sobre uma dessas grandes fazendas, com base nadocumentação escrita da propriedade, a autora supõe que uns 75% dostrabalhadores estiveram sob o regime de colonato.'22 Em outro estudosobre a mesma fazenda, um pesquisador veri icou que 41,4% dosdispêndiosmonetáriosde1896a1899haviamsidofeitoscomcolonoseorestante com diversas modalidades de assalariados.123 O menordispêndio comamaiorpartedos trabalhadores, aqueles sobo regimedecolonato,nãoresultavadesaláriosmaisbaixospagosaostrabalhadoresdalavoura. Resultava de que as relações de produção do colono eramdistintasdaquelasquevinculavamosdemaistrabalhadoresaofazendeiro.Basicamente,naagriculturaintercalardealimentosounasuasucessora,aculturaemterrasdafazendanãoempregadasnocultivodocafé,afamíliade colonos obtinha sua própria subsistência e excedentes paracomercialização, o que atenuava, para o fazendeiro, signi icativamente, osgastosemdinheiro.

Era,pois,diretamentenoprocessoprodutivoque se travavamrelaçõesde trabalho distintas do salariato, que não podiam ser de inidas comorelaçõesdeproduçãocapitalistas.Noprocessodetrabalho,ovínculoentreo patrão e o colono era um vínculo que não escondia a desigualdadeeconômicadorelacionamentoentreambos,cujavisibilidadeestavanofatodequeumeraodonoda terraeooutro,oquenela trabalhava,nãoera;umeraomoradordacasa-grandeeooutroeraomoradordacolôniaqueem torno dela gravitava. A questão que se propõe é a de saber como sedavaaaceitaçãodadesigualdadepelocolono.Naescravidãoerapormeioda chibata. Em outras palavras, de quemodo o trabalhador legitimava aexploração,reveladanessadesigualdade,contidanoprocessodetrabalho?Que forma assumia o processo de valorização do capital na trama demediações tão diversas das relações propriamente capitalistas deprodução?

O colono não era um trabalhador individual, mas um trabalhadorcoletivo que combinava as forças de todos os membros da família: o

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marido, a mulher, os ilhos com mais de sete anos.124 Enquanto naescravatura o trato do cafezal era no eito, era efetuado por turmas deescravos,jáeraumatarefasocializada,noregimedecolonatopassouaserorganizado em base familiar. Esse trabalho não se dissolvia no esforçocomum da coletividade dos trabalhadores, às vezes milhares dentro deumamesma fazenda. Preservava a "individualidade" do seu trabalho.121Recebia uma parcela do cafezal com a incumbência demantê-la livre deervas daninhas, o que representava 5 a 6 carpas anuais.126Também seincumbia da colheita do café e aí mais intensivo se tornava o trabalhofamiliar.127 É que o trato era combinado à base de uma quantiadeterminadadedinheiropormilpésdecafétratados.Cadafamíliarecebiaumnúmerodeterminadodepésde café para tratar, à basede2mil péspor trabalhadormasculinoadulto.Mulheresemenoresacimade12anospodiamincumbirsedemilpésdecafé.Jánacolheitaopagamentoerafeitocom base numa quantia determinada por alqueire de 50 litros de cafécolhido e entregue no carreador, onde era recolhido e levado para oterreiro para secagem. Quanto maior o número de trabalhadores, maiorera a quantidade de café colhido pela família e maior o ganho familiar.Havia até uma divisão familiar do trabalho para realizar a colheita: ohomem, sobre uma escada de tripé, colhia nas partes altas do cafeeiro, amulhernasmédiaseascriançasnaspartesmaisbaixas,nasaiadaplanta.Emambosos casos,no tratoena colheita, o rendimentomonetário anualdocolonodependiadograudeintensi icaçãodotrabalhoquepodiaimporàsuafamília.121

O colono combinava a produçãodo café coma produçãodeumapartesubstancialdosseusmeiosdevida.Especialmentenoscafezaisnovosera-lhepermitidoplantarmilhoefeijãoe,emmenorescala,arrozdesequeiro,batatas,legumesetc.Essaproduçãolhepertenciainteiramente,emgrandeparteconsumidapelafamíliaeempartevendidaaoscomerciantesou,atémesmo, ao fazendeiro.129 Quando o cafezal era velho em geral não serecomendava a cultura intercalar. Nesse caso, o fazendeiro colocava àdisposiçãode cada família de colonoumpedaçode terra emoutro lugar,geralmente terrenos baixos, impróprios para o café, a im de que sededicasse ali ao cultivo dos gêneros de subsistência. Outras vezes, ofazendeiro cedia ao colono esse lote fora do cafezal e, ao mesmo tempo,autorizava o plantio de algum gênero entre as leiras do cafezal, em

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condiçõesdeterminadas.130Àsvezes,aáreaforadocafezalcorrespondia,em extensão, a uma outra fazenda, somadas as culturas de todos oscolonos.

Nãoeraindiferentequeaculturadesubsistênciafosserealizadadentroou fora do cafezal. Sendo plantada entre as linhas de café, poupavatrabalho ao colono. Se dentro, aomesmo tempo que o colono procedia àlimpa do cafezal, podia cultivar o milho ou o feijão, ou outra planta quetolerasseaconsorciação.Oprocessodetrabalhodocaféera,nessescasos,umprocesso combinadode cultivo, aumsó tempo,deplantasdiferentes.Namesmajornada,ocolono,dessemodo, intensi icavaoresultadodoseutrabalho. Trabalhava para o fazendeiro aomesmo tempo que trabalhavaparasi.

Quando isso não era possível, então, de fato, ocorria uma extensão dajornada de trabalho ou o aparecimento de uma segunda jornada detrabalhodocolononasuaprópriaculturadesubsistênciaounasuaroça,comosedizia."Seéprecisoplantaromilhonumcamposeparado,édobrarapenasemdobraroresultado",diziaDenis.131Daídecorriauminteressemaior dos colonos pelos cafezais das zonas novas, havendo quem osrecriminasse severamente porque os considerava responsáveis únicospelaexpansãodoscafezais,semexpansãoproporcionaldoconsumoedosmercados, levando à superprodução, cujos primeiros sinais surgiram em1896 e que levaram à tácita proibição do plantio de novos cafezais em1903,impedimentoque,aliás,durouváriosanos.132

A alimentação do colono provinha em grande parte dessas culturasacessórias. Trabalhando fora do cafezal para prover sua subsistência e adafamília,duplicavaajornadadetrabalho.Aintensi icaçãodoprocessodeexploração do trabalhador nessa variante do regime de colonato deixavanítidaapeculiareocultaexploraçãodo trabalhoquenelahavia.O tempode trabalho necessário à reprodução da força de trabalho e o tempo detrabalho excedente, de que o fazendeiro se apropriava no fruto desseverdadeiro e complexo sistema de produção, que era o café, não seefetivavam num único processo de trabalho. Nesse caso, ao trabalhar nocafezal,no tratoenacolheita,oprodutor tinhaconsciênciadequeestavatrabalhando para o outro, o fazendeiro, pois se defrontava objetivamente

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comoinstrumentodesuasujeiçãocomocoisaalheia.

Naszonasnovas,emqueoprocessodetrabalhoeraúnico,naproduçãocomercial e naproduçãode subsistência, o tempode trabalhonecessáriosematerializava,semdúvida,emobjetosdistintosdaqueleemqueassumiaforma o tempo de trabalho excedente, que era o café. Mas a culturaconsorciada de alimentos e de café, o que era do colono e o que era dodono, embaralhava o processo de trabalho nele atenuando as objetivascondiçõesdeconsciênciadoqueseparavaeantepunhaumeoutro.Éclaroqueocolonopodiavenderosexcedentesdosgênerosqueproduzisseedefatoofazia.Masessesgênerosnãotinhamcusto133eeramvendidosporqualquer preço, para completar o rendimento em dinheiro necessário àaquisição de uma ou outra mercadoria não produzida diretamente pelocolono. Não era raro que os excedentes fossem consignados a umcomerciantepróximo,paraqueo colono retirasseoutrasmercadorias, namedidadesuasnecessidades,ouentãoqueentregasseosprodutos jáempagamentode aquisições a crédito. Poroutro lado, é claro tambémqueocolono recebia pagamentos em dinheiro pelo café colhido e entregue aofazendeiro. Mas esses pagamentos estavam muito aquém dos saláriosurbanos.Oqueumoperárioganhavaemummêserageralmenteoqueocolonorecebiaemumanoparacuidardemilpésdecafé.Écerto,porém,que havia outros rendimentos monetários para o colono, pois em geralpodiaelecuidardedoismilpésdecafé,alémdosganhosproporcionaisàcolheitaquefizessecomsuafamília.

Em 1911, a produção direta dos gêneros de subsistência era avaliada,emtermosmonetários,em37%doativodeumafamíliacompostadocasale quatro ilhos em condições de trabalhar.Mas, no passivo da família, noefetivo dispêndio de recursos com os meios de vida, essa parcelacorrespondia a 46,4% das despesas. Numa família menor, a parcelaalcançava 32,8% 134 A diferença era coberta com ganhos diretamentemonetários.

Eramvariadasasfontesderendimentodeumafamíliadecolonos,masoprincipalprocediadacolheitadecafé,queseestendiageralmenteporumperíododeatécincomeses,de insdemaioatésetembro,nomáximo,edotrato do cafezal. Na caderneta de um colono, relativa ao ano de 1906,

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observa-seque54,9%dosseusganhoscorresponderamàcolheita,37,6%aotrato,3,8%a32diasdetrabalhoavulsoemjornadasde10horas,1,7%de14diasemeiodecarpadetalhõesdeoutroscolonos,1,4%de12diasde trabalho na limpeza de terrenos e 0,6% da venda de feijão aofazendeiro.135

Comosevê,o colonopodiaainda trabalharcomodiaristana fazenda,aque estava, aliás, obrigado por contrato desde que fosse solicitado,especialmenteparatrabalhosnoterreiro,nasecagemdocafé.

Além disso, estava geralmente sujeito a determinadas modalidades detrabalho gratuito. Um autor registrou, na época de sua referência, trêsdessasmodalidades:consertodaestradadafazendaàestaçãoferroviária;limpeza do pasto da fazenda e reparos periódicos na cerca do pasto.Estimava-sequeparacadaumadessastarefasseriamdestinadosdoisdiasdetrabalho,totalizandoseisdiasporano.136

Esse elenco de vínculos monetários, não monetários e gratuitos e ocaráter familiar do trabalho do colono não permitem que se de ina asrelações de produção do regime de colonato como relaçõesespeci icamente capitalistas de produção ou mesmo como relaçõescapitalistas de produção, na diferenciação dessas relações proposta porMarx.137 A presença do dinheiro nessas relações obscureceu para ospesquisadoresoseucaráter real.Aoproduzirumapartesigni icativadosseusmeiosdevida,emregimedetrabalhofamiliar,ocolonosubtraíaoseutrabalho às leis do mercado e, de certo modo, impossibilitava que essesmeios de vida fossem de inidos de conformidade com os requisitos demultiplicação do capital. É certo que o índice de exploração da força detrabalhonaeconomiacafeeira, sobo regimedo trabalho livre, foi sempreestabelecido mediante o controle do tempo do trabalhador, na suadistribuição entre a cultura do fazendeiro e a cultura do colono. Umaintensi icaçãodo trabalhona lavourada fazenda,medianteo aumentodonúmero de pés de café que o colono deveria cuidar, foi recurso usado emuito, como já ocorrera, aliás, sob a escravatura, para incrementar oproduto do fazendeiro com menor número de trabalhadores. Com isso,subtraía-se ao colono tempo para que se dedicasse à lavoura desubsistênciaquandoelafoideslocadaparaforadoscafezais.

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Quando não se retém a especi icidade das relações de produção noregime de colonato, ica impossível entender os mecanismos ideológicosquede iniamasingularidadedoprocessodevalorizaçãodocapitalnessascondições, isto é, do processo de acumulação. É que a modalidade deextração da mais-valia tinha que assumir uma forma congruente com amodalidade de exploração da força de trabalho na fazenda de café. Aproduçãodiretadosmeiosdevidapelotrabalhadorindicavaapenasqueocapital não se assenhoreara diretamente do processo de produção, masfazia-o indiretamente, convertendo o seu produto em mercadoria. Adeterminação capitalista dessas relações não capitalistas de produção sedavaessencialmentenofatodequeotrabalhadorproduziadiretamenteosseusmeiosdevidaparaproduzirumexcedente, o café, que, por estar jásubjugado pelo capital comercial, surgia das mãos do colono comopropriedade alheia, como mercadoria do fazendeiro. Enquanto,regularmente,supõe-sequeaatividadeinicialdotrabalhadorcorrespondea tempo de trabalho necessário à sua reprodução como trabalhador e orestantea tempodetrabalhoexcedente,aserapropriadopelocapitalista,nafazendaocorriaoinverso.Ofazendeiroextraíaprimeiramenteotempode trabalho excedente, de inindo a prioridade do cafezal como objeto detrabalho do colono. Somente depois da extração do trabalho excedente équecabiaaocolonodedicar-seresidualmenteaotrabalhonecessárioàsuareproduçãocomo trabalhador, sobaaparênciadeque trabalhavapara simesmo.Aindaassimestava trabalhandoparao fazendeiro, garantindoascondições de sua própria reprodução como produtor de trabalhoexcedente.

Tal ordenamento intensi icava a exploração do trabalho, ao mesmotempo que a obscurecia. A produção de gêneros pelo colono estrangeiro,para si mesmo, trazia fartura a sua casa, fartura que ele imediatamentecontrapunha à fome e à miséria que padecera no país de origem,submetidoadurasregrasdeparceria.13'Quantomaisocolonotrabalhavapara simesmo - duplicando a jornadade trabalho, subtraindoos ilhos àescola, antecipando a exploração do trabalho infantil, intensi icando otrabalho da mulher por sua absorção nas tarefas do cafezal - mais eletrabalhava para o fazendeiro. É que os rendimentos monetários dotrabalho apareciam para o colono revestidos de uma qualidade quederivavadaprópriaseparaçãosubjetivaeobjetivaentrelavouradocolono

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elavouradofazendeiro;apareciamcomoosupér luo,osecundário,oquevemdepois da reprodução da vida.139Nesse caso, as pressões por umaremuneraçãomonetáriamaiordotrabalho,emfacedeumaelevaçãogeraldospreços,parecequeexistiramapenasescassamente.140Atéporqueaelevação dos preços dos alimentos bene iciava o colono pois era eleprodutor desses gêneros e vendedor de seus excedentes, raramentecomprador.

A carestia que atormentava a classe operária urbana, como se viu nasgrandesgrevesdaprimeirametadedoséculoxx,chegavaaocolonocomosinal invertido, bene iciando-o. Enquanto entre 1895 e 1905, entre asvésperas da primeira crise de superprodução de café e as vésperas doprograma de valorização proposto no Convênio de Taubaté, houveacentuada queda nos preços do café, os pagamentos monetários doscolonos quase não tiveram variação. Isso provavelmente porque já erampagamentosmuito inferiores ao valor da riqueza criada pelo trabalho nocafezal, abaixo do qual o colonato seria inviável. Denis registra que opagamento

pelotratodemilpésdecaféera,em1895,de90milréisede600réis pela colheita de cinquenta litros de frutos. Numa pesquisaagrícola feitaem1907[...]orelatordácomocifrasmédiasde60a100milréispormilpésdecaféede500a600réisporcinquentalitroscolhidos.141

Quinzeanosdepois,ospreçostinhamsofridoreduzidaalteração.142

Na medida em que a existência do colono não era inteiramentedeterminada pelas condições domercado, pelo preço dosmeios de vida,sua remuneraçãomonetáriapodiamanter-sebaixa, quase semoscilaçõesmesmonumperíododecrisequecomeçavaaafetarsigni icativamenteascondições de existência do operariado urbano. Entre o rendimentomonetário e a cultura intercalar, preferia o colono, aliás, as vantagensdestaúltima.Denisregistrouumdiálogotidocomumgrupodecolonosquedecidira retirar-se de uma fazenda para trabalhar em outra, que éelucidativo:

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É verdade que vocês vão trabalhar na fazenda de ... no anoquevem?-Sim.-Porquemotivovocêsvãomudardefazenda?Vãoganharmaisnaoutra?Vocêsnãorecebemaqui80milréispormilpés?-Sim.-Quantolhesoferecemlá?-Somente60milréis.-Então,por que vão sair? - É que lá pode-se plantar milho entre oscafeeiros.143

Portanto, o número reduzido de greves de colonos, que seriamindicativas das características do processo de valorização do capital nafazenda de café, não deve ser imputado à dispersão dos colonos "porfazendasisoladas, impossibilitandocontatosquereforçassematomadadeconsciência de uma condição comum e o esboço de uma açãoreivindicatória".1`4Naverdade,dentreasváriasdi iculdadesparaqueostrabalhadoresruraisseexprimissemcomoosoperáriosurbanosestavamas próprias relações de produção completamente distintas. É preciso terem conta que se os colonos estavam dispersos por várias fazendas,constituíam, entretanto, grandes aglomerados dentro da mesma fazenda.Enquantoamaiorfábricadoestado,em1918,aTecelagemMariângela,dafamíliaMatarazzo,tinha1.830operários,115fazendashavianocomeçodoséculo que tinham 8 mil trabalhadores, distribuídos em colônias. Não sóvivenciavam uma mesma situação social, como conviviam no espaçocotidiano da vizinhança, num relacionamento face a facemais intenso doque o da situação fabril, sem que daí resultassem manifestações ereivindicaçõessignificativos.

Outra di iculdade era a da natureza familiar do trabalho, sem que ostrabalhadores se individualizassem na situação de trabalho e sereconhecessemdonosdesiedasuaconsciência.Ochefeda famíliaeraodepositário da consciência familiar, ao mesmo tempo que o trabalho sedeterminava pelo familismo que propendia ao patriarcal, vinculandogerações a um projeto de família, o que tornava o confronto laboralpraticamenteimpossívelou,nomínimo,otornavasecundárioemrelaçãoaoutrasprecedênciasnavidadocolono.Aomesmotempo,ochefedefamíliaeraagentediretoemediadordaexploraçãoqueafazendaexerciasobreafamília de colonos, uma espécie de capataz na ordenação e execução dotrabalho.Adisciplinadotrabalhoeraintegradanoexercíciodaautoridadedopaide família,oquedi icultavaqueosverdadeirosagentesdarelação

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laboralsepropusessemobjetivamente,comcaraprópriaenãocomacarade outras relações sociais vividas pelos colonos. Não que o colonoconsiderasse a porção da fazenda sob seu cuidado, os talhões de café deseu trato, como propriedade sua. Não se conhece nenhumamanifestaçãonessesentido,oslimitesentreopróprioeoalheiobemdefinidos.

Ocolonotinhapresenteoqueeratrabalhoparasieoqueeratrabalhoparaofazendeiro.Paraele,opagamentoemdinheironãotinhafunçãodesalário, não tinha o atributo de uma contrapartida igual por determinadotempo de trabalho. Mas, legitimava a relação desigual porque para ele otrabalho para si mesmo, o trabalho necessário, aparecia como trabalhosobrante e o trabalho sobrante, o trabalho para o fazendeiro, é que serevestia da aparência de trabalho necessário. Porque o trato do cafezalaparecia como tributo, como variante da renda em trabalho, paga aofazendeiropelodireitodecultivointercalardaagriculturadesubsistênciaoupelo direito ao lote de roça fora do cafezal. O essencial aparecia comosecundárioevice-versa.

Se a cultura de subsistência era cultura intercalar, como preferia amaioria dos colonos, em que a distinção entre trabalho necessário etrabalho excedente só se objetivava porque coexistiamnomesmo espaçode terraplantas subjetivamentede inidas comoplantadocolonoeplantado fazendeiro, a justi icativa legitimadora era acentuada aindamais pelofato de que aparentemente o colono só trabalhava para si (da mesmaformaquenamentedofazendeirosedavaoinverso).

No produto entregue ao fazendeiro, na colheita, se materializava otrabalho sobrante que o colono entendia ser o trabalho necessário.Independentemente da sua vontade, trabalhar para o fazendeiro era atoque se materializava no número de pés de café a seu cuidado e,principalmente, na quantidade de alqueires de café que entregava nocarreador durante osmeses da colheita. Nesse ato, o colono entregava oseu trabalho objetivamente ao dono do cafezal sob a forma de café, caféquenão eraprodutode trabalho coletivode todos os trabalhadores,masera produto do trabalho familiar, trabalho de sua família. Não estando aexistência do colono fundamentada no salário, não estando socializado otrabalhoeofrutodotrabalho,oresultadodaatividadefamiliarnãopodia

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deixar de se apresentar como entrega direta de valores de uso aofazendeiro. Isto é, o café produzido nessas condições sociais não setransformavaemprodutosocialnopróprioprocessodetrabalhoagrícola.Nissonãosediferençava,emprincípio,daproduçãoalimentardaroçadocolonooudaagricultura intercalar,quechegavaao inaldesuaproduçãodeterminada por sua utilidade, por seu uso. O excedente, eventualmentecomercializado, era sobra de valores de uso que só na venda adquiria aqualidade social que da troca resulta. O trabalho sobrante, a mais-valiaabsoluta, era, a rigor, na fazendade café, comoque entregue emmãodofazendeiro,materialmente.

Emboraaexploraçãodotrabalho,noregimedecolonatosecon igurassena produção de subsistência, na sobrejornada, ela não podia serapreendidae compreendidaaí,protegidaeacobertadapelaaparênciadeque o trabalhador trabalhava para si mesmo, quando de fato estavatrabalhandoparaofazendeiro,parasereproduzircomoforçadetrabalhodofazendeiro.Sendoalavouradofazendeirodistintadalavouradocolono,tendoesteempregadonaquelaoseutrabalho,eranosresultadosdelaqueaexploraçãopodiamanifestar-se.

Assim sendo, somente na colheita do café, no inal do ano agrícola,quandoocolono jásabiaemquemedidaaproduçãodesubsistência foraouseriasu icienteparacobrirsuasnecessidadesdemeiosdevida,équeaexploração se lhe propunha objetivamente. Porém, nos termos de suacompreensãoinvertidadaduplicidadedoprocessodetrabalhonocafezal,nobalançoentreoquantosuaprópriaproduçãoalimentar lhepouparaousodecréditosemdinheiroaseremdescontadosdopagamentopelotratoe pela colheita do café e pelos dias de trabalho avulso na fazenda. Eracomplexaaconsciênciaqueresultavadessaeconomiadupla,poisexprimiao balanço entre fartura e ganho, expresso no saldo. Complexo porque afarturadiziarespeitoaodiaadiaeosaldodiziarespeitoapossibilidadesde vida que podiam até mesmo estar fora do cafezal, como acabariaacontecendo para muitos, especialmente com a Crise de 1929, quandomuitos colonos de tornaram proprietários de sítios desmembrados defazendasarruinadas.146Aoentregaroprodutodoseutrabalho,ocafé,aofazendeiro,équepodiaocolono,então, julgaremquemedidaera justoopreçopre ixadoporarrobadecafécolhidoepormilheirodecafétratado.

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Mas aí já era tarde, restando-lhe apenas a alternativa de demitir-se eprocurartrabalhoemoutrafazenda,oquedeveteracontecidoemuitoaoim de cada safra de café. Nem sempre procurando o colono melhorremuneração em dinheiro por seu trabalho e sim vantagens relativas àsculturaspróprias,antecipaçãoprovisóriadaaspiraçãodaautonomiacomoproprietário de terra, busca que marcou a imigração estrangeira para oBrasil.

Por essas razões, os pouco numerosos casos conhecidos de greves nasfazendasde café,na fase aqui estudada, sãonamaioria relativos à épocadacolheitaeaospreçosa serempagosaocolonoporquantidadedecafécolhido,quandoàvistadocombinadoedasvariaçõesdospreçosdoanojápassado, podiam os colonos antecipar alguma inquietação quanto aosrendimentosmonetáriosdeseutrabalho.147Paraofazendeiro,acolheitaera o momento mais importante da vida da fazenda. Deslocavam-se osabsenteístas, ou os donos de várias fazendas, desde grandes distânciaspara acompanhar e supervisionar os trabalhos.148 A colheita era omomento em que se consumava a conversão do trabalho em produtocomercializávelepreâmbulodaconversãodocaféemmercadoria.Nãosóna realidade dos pagamentos acertados, mas também no imaginário deincertezasque era a culturado café, desde as geadas inesperadas até asvariações alternadas de ano para ano da produtividade dos cafeeiros,sobretudoemdecorrênciadapráticadaderriçados frutosnopanosobasaia da planta ou mesmo na coroa nua de terra. Era a última etapa dotrabalhoparaocolono,aquelaemqueoseu trabalhosematerializavanoobjetoaserentregueaofazendeirosobformadecafé,eraomomentoemque o fazendeiro convertia o produto em dinheiro para pagar o seutrabalhador. Ele não pagava diretamente o trabalho, mas o fruto dotrabalho. Por isso, a greve do colono, quando não versava sobre ascondiçõesdevidanafazenda,incidiageralmentesobreaépocadacolheita.Era a recusa em oferecer ao fazendeiro o trabalho sob a forma que lheinteressava: sob a forma de café no antemomento de sua conversão emmercadoriaedinheiro.Agrevetransformava-senumarecusadotrabalhoatravésdarecusadamercadoriapotencial,docafénaiminênciadetornar-se mercadoria, pois somente colhido o café tinha condições de sermercadoria.

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Éimportante,poroutrolado,teremcontaque,noprocessodetrabalho,o café aparecia como produto da propriedade, isto é, produto de umaforma especí ica de existência do capital, que é a forma de rendacapitalizada. No processo capitalista de produção, a mais-valia aparececomoprodutodocapital,comovalorquesevalorizaasimesmo,porqueosalário aparentemente remunera todo o trabalho do trabalhador. Noregimedecolonato,aausênciadosalário,comoformasocialdominantedarelação entre o fazendeiro e o colono, impedia que ambos vivessemintegralmente a icção necessária da igualdade engendrada pela trocaaparentemente igual, equivalente, de dinheiro por tempo de trabalho.Nesseprocesso,otrabalhadornãoaparece, istoé,nãosevênemsedeixaver, como explorado, embora o seja. No colonato, o café surgia comoproduto da propriedade, na medida em que a renda territorial era acondição da sujeição do trabalho, em que o capitalista se propunha, amaior parte do tempo, como rentista e o trabalhador, também a maiorparte do tempo, como rendeiro. A relação entre o colono e o fazendeirotinha muita semelhança formal com a relação entre o arrendatário e oproprietário, não obstante de modo algum o fosse. Era nesse disfarce,socialmente necessário à legitimação da relação laboral, naquelacircunstânciahistórica,queocapitalsevalorizava, istoé,semultiplicavaese acumulava, se reproduzia e se propunha como a determinaçãofundamentaldoprocessodeprodução.

Nessa relação, a propriedade fundiária surgia como fundamento dadesigualdadeeconômicaentreofazendeiroeocolono.Aomesmotempo,orendimento monetário que dela derivava era mero complemento dosmeios de vida já produzidos pelo próprio trabalhador, não cobria oessencial, mas o supér luo, relativamente à reprodução da família dotrabalhador e de sua força de trabalho. O colono sabia que era desigual,pois além de a desigualdade se antepor a ele já no próprio processo detrabalho, ela se lhe antepunha de diferentes modos e em diferentesmomentos no relacionamento com o fazendeiro. A postura senhorial dofazendeiroesuafamíliaemrelaçãoaotrabalhadoreemrelaçãoaocenáriodetrabalhonafazenda,documentadaemváriasfotogra iasantigas,ébemindicativa de uma mentalidade pré-capitalista persistente e de umimaginário pré-moderno presidindo a forma singular como se deu odesenvolvimentocapitalistadaeconomiadocafé.149

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Nos próprios contratos essa desigualdade estava consignada. Grossianotaracontratoemqueocolono,pararetirar-sedafazenda,deveriafazeravisopréviode60dias;masoseupatrão,parademiti-lo,deverialimitar-sea dar aviso prévio de apenas 30 dias."' Se não izesse a prestação detrabalho gratuito, nos casos previstos e já mencionados, o colono estariasujeito à multa de 2$000 réis por dia, o equivalente ao salário de umtrabalhador avulso. Quando o fazendeiro precisava desse tipo detrabalhador pagava até 2$500 réis. Entretanto, se o colono atrasasse oiníciodosserviçosmarcadospelafazenda, icavasujeitoàmultade2$000a 5$000 réis. 15' Em suma, sob a desigualdade de critérios, icavatransparente que tinha valor para o proprietário aquilo que não tinhapreço para o colono - o seu trabalho. Aliás, até a República, segundoobserva Warren Dean, as leis de locação de serviços agravavam essadesigualdade, pois, paradoxalmente, não garantiam "a igualdade decontrato,umavezquedosdoiscontratantes,sóotrabalhadorerasujeitoàpenadeprisãosenãoocumprisse".'52

Dessemodo,paraocolono,apropriedadeeraacondiçãodaigualdadee,aomesmotempo,da liberdade.Para livrar-sedasujeiçãodapropriedadealheiateriaquetornar-seproprietário.Esseeraumprocessopenoso.Deanestimaqueseriamnecessáriosuns12anosdetrabalhofamiliarparaqueocolonosetornasseproprietáriodeterra.'s3Mesmoassim,nadaindicaqueisso fosse fácil. No censo agrícola realizado em São Paulo, relativo a1904/1905, constatou-se que apenas 14,8% das propriedades ruraispertenciam a imigrantes estrangeiros, às quais correspondiam somente9,5% da área titulada. De mais de ummilhão e duzentos mil imigrantesentrados em São Paulo até então, 8.392 haviam se tornado proprietáriosdeterra.154Pesquisafeitanumúnicomunicípiocafeicultordiminuiaindamais a escassa importância desse número, pois os imigrantes que setornaramproprietáriosnãoeramantigoscolonos,massimcomercianteseprofissionaisdacidade."'

O cerco que os fazendeiros-capitalistas haviam imposto ao colono,através da radical formalização da renda territorial capitalizada, domonopóliodeclassesobreaterra,parasujeitareexploraroseutrabalho,produziu,mesmoassim, os resultados esperados.A obsessãodo trabalhoindependente no campo ou na cidade foi reproduzida e reinterpretada

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através das relações de produção do colonato, como fruto do trabalhoobstinado.Porissotudo,oimigrantequefoitrabalharcomocolononãoeraumconformadocomosganhosmonetáriosreduzidos.Estavadepassagempelafazenda.Elaeraapenasumaetapanomovimentopelaautonomiaqueoprópriocapital lhehavia tiradonopaísdeorigem,nocasodos italianosao tornar extorsivas das condições da mezzadria. Ao migrar, não estavaindo de um lugar a outro pura e simplesmente. Estava dando direção aessemovimentonorumodotrabalhoautônomo,umaorientaçãosocialpré-capitalistaederesistênciadecamponeseseartesãosinconformadoscomadesagregação da sociedade tradicional e dela expulsos. No Brasil, essainquietaçãotornou-seabasedonossoconformismosocialpós-escravista.Amobilidade de busca, na emigração, teve contrapartida na economia docafé: a contínua oferta de mão de obra subvencionada pelo governo,condiçãoda tambémcontínuaocupaçãode terrasnovas, quealimentouaaspiraçãodaindependênciaedapropriedade.Areposiçãocíclicadaforçade trabalho icavavinculadaà reproduçãoextensivadocapital cafeeiro,oempreendimento dependente não só do capital propriamente dito, masdependente tambémdaabundânciade terrasedaexpansãoespacialdoscultivos.

A fazenda de café transformou-se num empreendimento de conversãode trabalho em mercadorias a partir de relações não capitalistas deprodução.Relaçõesdeterminadaspelareproduçãocapitalistaampliadadocapital e por um elenco de mediações sociais, culturais e simbólicas quefaziam da herança do pré-capitalismo um capital social do capitalismoagrário nascente no Brasil. A mais-valia absoluta incorporada ao caféentregue no mercado, constituída numa imensa massa de trabalho nãopago, realizava-se predominantemente fora da economia cafeeira. Longe,portanto,das relaçõeseconômicassingularesqueocorriamno interiordafazenda,emqueotrabalhonãopagoocultavasenocaráterderecompensadas retribuições recebidas pelo trabalhador,materializadas sobretudonafarturaque,nogeral,haviaemsuacasa.

A brecha de "vazamento" desse capital para fora da agricultura era aprópriamercadoriabifronte,comumacaraparaaeconomiareguladapeloimaginário pré-moderno, a do trabalho do colono, e outra cara para alógica capitalista moderna, a do fazendeiro. A ela a mais-valia absoluta

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estavaincorporadacomotrabalhopretéritonãopagoporqueaconcepçãode pagamento se reduzia aos termos da lógica do tributo, da renda emtrabalho, que predominava sobre o salariato incipiente e meramentecomplementar.

Aproduçãodecafésebaseavanumaaparentealtacomposiçãoorgânicado capital, com acentuada proporção de investimentos nas máquinas einstalações de bene iciamento relativamente aos dispêndios monetáriossoba formadecapitalvariável.De fato,porém,acomposiçãoorgânicadocapital era baixa, já que o peso da atividade da fazenda não estava nobeneficiamentodocafé,masnotratoe,principalmente,nacolheita.Atravésdo trabalho pretérito incorporado à mercadoria, a produção agrícolaremunerava o capital imobilizadono tratamento industrial do café.Dessemodo, a reprodução do capital teria que ocorrer, na cafeicultura,predominantemente sob a forma de reprodução extensiva e territorial,baseada amplamente na exploração da mão de obra sob relações nãocapitalistas deprodução. É claro que entre 1880 e 1930 se observaumaprogressivaincorporaçãodemáquinasetecnologiamodernanotrato,massobretudonobene iciamentodocafé,oquerepresentouumaelevaçãonacomposição orgânica do capital do conjunto da fazenda pelo crescimentodo capital constante em relação ao capital variável.Mas é claro, também,que os fazendeiros rapidamente saíram dos limites territoriais de suasfazendas, na reprodução capitalista de seu capital obtido por meio derelações não capitalistas de produção, nas ferrovias, nos bancos, naexportação de café e na indústria, seja como investidores diretos, sejacomo acionistas, como se pode observar tanto nos almanaques anuais doséculo xix quanto nos documentos arquivados na junta Comercial doEstadodeSãoPaulodepoisdaproclamaçãodaRepública.

Não importa desvendar apenas os mecanismos da acumulação docapital. Essa acumulação não seria possível se o trabalhador nãolegitimasse a exploração baseada em relações não capitalistas deprodução.Aquestãonãoéestritamenteeconômica.Aextorsãoderiquezasoboregimeescravistanãoprecisavadeoutrofundamentoquenãofosseavontadedosenhordeescravosedolátegoque,emseunome,manejavao feitor. No regime capitalista de produção, sabemos, essa extorsão seapoia na aparência e na suposição do senso comum de que o salário,

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cobrindoosmeiosdevidanecessáriosàreproduçãodotrabalhadoresuafamília, cobre de fato o valor de sua força de trabalho. Nenhumdos doismecanismosoperavanoregimedecolonato,comojulgoterdemonstrado.Ocolono icou nomeio do caminho entre a transparência da exploração, jáqueotrabalhoexcedentesematerializavaemobjetosdistintosdotrabalhonecessário, e a ilusãodequeoque recebia correspondia aovalorde seutrabalho.0colonoviveuumailusãoespecí icaquenãoeraproduzidapelaresidualrelaçãocapitalistadosalárioemdinheiro.Ocolonoviveua ilusãode que o que entregava ao fazendeiro sob a forma de café tratado ecolhido era o tributo que pagava para trabalhar para si. O colono não seconsideravaproprietáriodosmeiosdeproduçãonemmesmoproprietárioda terra de seu trabalho. Ele se considerava proprietário do seu própriotrabalho, do trabalho materializado nos produtos da agricultura desubsistência,mesmoquecomisso,naverdade,estivesseentregandooseutrabalho a outrem, ao fazendeiro, na concepção de trabalho que para ofazendeiroeseucapitaldavasentidoaoengajamentoprodutivodocolononocafezal.Portanto,tambémaíhaviaumaduplaconcepçãodetrabalho,jáqueasubsistênciaresultavadotrabalhoprópriodocolonoenãodosalárioquetornariaaaquisiçãodosmeiosdevidadependentedamediaçãoedalógicadomercado.

Por outro lado, a contradição da produção capitalista de relações nãocapitalistas de produção não podia se resolver no próprio interior daeconomia cafeeira. Como a agricultura da fazenda não absorvia capitalsenão limitadamente, pois ela própria produzia a parcela básica do seucapital, pela transformação da renda em trabalho em capital constante, ocafezal.A oposição entrepráticas capitalistas e relaçõesdeproduçãonãocapitalistasseresolverianareproduçãocapitalistadocapital,foradocafé,na indústria, como se deu, quase ao mesmo tempo que o trabalho livresubstituiuotrabalhoescravo.

Aomesmo tempo que a economia do café remanejava o colono para otrabalho independente, remanejava o capital por ela engendrado para oempreendimentoemquesedesseareproduçãocapitalistadocapital, istoé,areproduçãobaseadanotrabalhoassalariado.Aoproduziressarelação,ocaféproduziatambémasuaprópriasujeição,asujeiçãodasrelaçõesnãocapitalistasdeproduçãodocolonatoàsrelaçõesdomodoespeci icamente

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capitalistadeproduçãodagrandeindústria.

Notas

1 C£ Caio Prado Júnior, História econômica do Brasil, 6.ed., São Paulo,Brasiliense,1961,p.169-70.

2Idem,p.192.

C£ Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes,SãoPaulo,Dominus/EditoradaUniversidadedeSãoPaulo,1965,v. i,p.20.

4C£ Sergio Silva, Expansão cafeeira e origensda indústria noBrasil, SãoPaulo,Alfa-Omega,1976,p.50.

C£Wilson Cano, Raízes da concentração industrial em São Paulo, Rio deJaneiro/SãoPaulo,Difel,1977,p.23-

6Idem,p.35.

C£ Boris Fausto, Trabalho urbano e con lito social (1890-1920), SãoPaulo/RiodeJaneiro,Difel,1976,p.17.

8Cf.BorisFausto, "Expansãodocaféepolíticacafeeira",emBorisFausto(org.),Históriageraldacivilizaçãobrasileira,SãoPaulo,Difel,1975,t.ti[,v.1,p.199-

9Idem,p.199.

10Cf.WilsonCano,op.cit.,p.38.

Cf. Caio Prado Júnior, "Contribuição para a análise da questão agrária noBrasil", em Revista Brasiliense, n. 28, mar.-abr. 1960, p. 212-6; CaioPradoJúnior,Arevoluçãobrasileira,SãoPaulo,Brasiliense,1966,passim.Apropósitodasanálisesdesseautor,c£BrazJosédeAraújo,"CaioPradoJúnioreaquestãoagrárianoBrasil",emTemasdeCiênciasHumanas,n.1,SãoPaulo,Grijalbo,1977,p.47-89-

12Sobreessedebateeseusaspectosmaisinclusivos,c£CiroFlamarionS.

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CardosoeHéctorPérezBrignoli, Losmétodosde IaHistoria,Barcelona,EditorialCrítica,1976,esp.p.76-8.

13Umautorque,nessesentido, tevegrande in luência foiAndréGunderFrank,esp. "LeCapitalismeet lemythedu feodalismedans l'agriculturebrésilienne", Capitalisme e sons-développement en Amérique Latine,trad. Guillaume Carle e Christos Passadéos, Paris, François Maspero,1963,p.203-52.

14Cf.DireetorioqueseDeveObservarnasPovoaçõesdosIndiosdoPará,eMaranhão, enquanto SuaMagestade nãomandar o contrário, Lisboa,Of icina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentissimo SenhorCardeal Patriarca, anno MDCCLVIII, reprodução fac-similar em JoséOscar Beozzo, Leis e regimentos das Missões - Política indigenista noBrasil,SãoPaulo,Loyola,1983,p.129ss.C£,também,CaioPradoJúnior,FormaçãodoBrasil contemporâneo,5. ed., SãoPaulo,Brasiliense,1957,p.89.

15 Cf. Padre Manoel da Fonseca, Vida do venerável Padre Belchior dePontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil, Of icina deFrancisco da Silva, Lisboa, anno MD=ti, reeditada pela CompanhiaMelhoramentos,SãoPaulo,s/d,p.233.

16"Agora,nestemomentoquenosocupa,paraseproduzircafé,comonopassadoseproduziraaçúcar,apelava-separaaimigraçãoeuropeiacomodantes se recorria ao trá ico africano. O sistema permaneciafundamentalmente o mesmo, e se perpetuava nos novos territóriosabertos para a cultura do café, pela substituição do trá ico pelaimigração, do escravo africano pelo imigrante europeu." Cf. Caio PradoJúnior,A imigraçãobrasileiranopassadoeno futuro",Evoluçãopolíticado Brasil e outros estudos, 2. ed., São Paulo, Brasiliense, 1957, p. 252."Certamente não é amenor das ironias da história brasileira o fato deque, quando a imigração em massa inalmente chegou, ela não veio acriarumnovoBrasil,comotantosensejavam,porémserviuparaescorara enfraquecida estrutura do velho." C£MichaelM. Hall, "Reformadoresdeclassemédianoimpériobrasileiro:aSociedadeCentraldeImigração",emRevistadeHistória,v.LIII,n.105,jan.-mar.1976,p.169.

"Oconteúdoobjetivodesteprocessodecirculação-avalorizaçãodovalor-

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é o seu (do capitalista) im subjetivo, e só age como capitalista, comocapitalpersoni icado,dotadodeconsciênciaedevontade,namedidaemque as suas operações não têm outromotivo propulsor que não seja aapropriaçãoprogressivaderiquezaabstrata."Cf.CarlosMarx,Elcapital-CríticadeIaeconomiapolítica, trad.WenceslaoRoces,México,FendodeCulturaEconômica,1959,t.[,p.109ss.

A questão das forças motivadoras da expansão do capitalismo modernonão é, em primeira instância, uma questão de origem das somas decapital disponíveis para uso capitalístico, mas principalmente dodesenvolvimento do espírito do capitalismo. Portanto, para dizersumariamente, surgimento de uma mentalidade e de uma vocaçãocapitalistas." Cf. Max Weber, A ética protestante e o espírito docapitalismo, trad. M. Irene de Q. E Szmrecsányi e Tamás J. M. K.Szmrecsányi,SãoPaulo,LivrariaPioneira,1967,p.44.

'9Justamentesobreessepontotemincididoaênfasedediferentesautoresquetrataramdacondiçãocapitalistado fazendeiroemcontrastecomasrelações não capitalistas de produção na fazenda. Cf. FlorestanFernandes, Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro,Zahar, 1968, p. 65: "Sob o capitalismo dependente, a persistência deformaseconômicasarcaicasnãoéumafunçãosecundáriaesuplementar.A exploração dessas formas e sua combinação com outras, mais oumenos modernas e até ultramodernas, fazem parte do `cálculocapitalista' do agente econômico privilegiado. Por im, a uni icação dotodonãosedá(nempoderiadar-se)aoníveldaprodução.Elaserealizae organiza, economicamente, ao nível da comercialização e, em seguida,do destino do excedente econômico". Adotando outro percurso, MariaSylvia de Carvalho Franco também enfatiza que era no mundo dosnegóciosquesedavamaspráticascapitalistasdofazendeiro.Cf.Homenslivresnaordemescravocrata,SãoPaulo,InstitutodeEstudosBrasileirosda Universidade de São Paulo, 1969, p. 165 ss. Entretanto, essa ênfasenão soluciona nem explica a contraditória combinação entre a posturacapitalista do fazendeiro e a produção não capitalista de sua fazenda.Essa di iculdade decorre, a meu ver, da não expllcitação da forma docapital na cultura do café como renda capitalizada (no escravismo, napessoa do escravo; no colonato, na propriedade da terra),permanecendo-senumaconcepçãogenéricadecapitalista,maispróximadasformulaçõesdeWeberdoquedasdeMarx.

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zoCarlosMarx,op. cit., t. i,p.121: "...converter-sede livreemescravo,depossuidor de uma mercadoria em mercadoria". C£, também, FernandoHenrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1962,p.311;"...aescravidãoconstituiamercantilizaçãodoprópriotrabalhador".Ver,ainda,CiroF.S.Cardoso,"Omodo de produção escravista colonial na América", em -héo Santiago(org.),Américacolonial,RiodeJaneiro,s.e.,1975,esp.p.90ss.

21 "... na sociedadeescravista sóé representado realmente comohomemlivre quem não precisa trabalhar para viver." C£ Fernando HenriqueCardoso,op.cit.,p.231."...oidealdepersonalidadedonegroresumia-seà reprodução em si da imagem onipresente do branco." Idem, p. 290.Sobre os efeitos desastrosos desse fato, para o negro, cf. FlorestanFernandes, A integração do negro na sociedade de classes, cit., t. i, esp.cap.ii.

22 ... durante um interregno que alcança algumas décadas, o negrocontinua a ser um ex-escravo..." C£ Octavio lanni, As metamorfoses doescravo, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1962, p. 256. "... otrabalhador negro, recém-egresso da escravidão e por ela deformado,nãoestava emcondiçõesde resistir à livre competição como imigranteeuropeu."CfRogerBastideeFlorestanFernandes,BrancosenegrosemSãoPaulo,2.ed.,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1959,p.49.

23LouisCouty,professornaEscolaPolitécnicadoRiodejaneiro,ummistode sociólogo e economista, autor de estudos fundamentais sobre aeconomiadocaféeatransiçãoparaotrabalholivre, tentoudescreverocolonato nascente segundo os parâmetros europeus e chegou àconclusãodequenãotinhaanalogianaEuropa.C£LouisCouty,Etudedebiologie industriellesur lecafé,Riode Janeiro, ImprimerieduMessagerduBrésil,1883,p.129.

"Noqueserefereaotrabalhador,suaforçadetrabalhosópodecomeçarafuncionarprodutivamenteapartirdomomentoemque,aoservendida,se põe em contato com os meios de produção. Portanto, antes de suavenda existe separada dosmeios de produção, das condiçõesmateriaisnecessárias para o seu emprego. Neste estado de separação não podeser empregada nem diretamente para a produção de valores de usodestinados ao seu possuidor nem para a produção de mercadorias de

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cujavendaestepossaviver."Arelaçãoentreocompradoreovendedorde força de trabalho "se desenvolve exclusivamente no plano dodinheiro." Cf. CarlosMarx, El capital, cit., t. ti, p. 32. A determinação dosalário depende da determinação dos meios de vida necessários àreprodução da força de trabalho, segundo necessidades historicamentereguladas.No regimede trabalho assalariado, o salário corresponde aotempo de trabalho socialmente necessário à reprodução da força detrabalho. O trabalho necessário, por seu lado, é estabelecido pelamediação do capital no próprio processo de valorização, de criação devalor, de modo a encobrir a distinção entre trabalho necessário etrabalho excedente, demodo a ocultar a exploraçãodo trabalhador e aextraçãodamais-valia.Por isso,o trabalhoexcedentenãopodeemergircomo matéria distinta do trabalho necessário. Em decorrência, só osalário em dinheiro pode revestir de uma aparência de igualdade arelação economicamente desigual entre o capitalista e o trabalhador,acobertando a exploração a ela subjacente. Se o trabalhador produzdiretamente ao menos uma parte dos seus meios de vida, destrói ocaráter salarial da sua remuneração porque entrega ao capitalistadiretamente,emformamaterialdiversa,oseutrabalhoexcedente.Nessecaso, o trabalhador pode ser livre, mas não formalmente igual, o queimpede a classi icação dessa relação, enquanto relação, como relaçãocapitalista real porque desprovida dos mecanismos ideológicos domascaramento igualitário da exploração nela contida. Sobre os váriospontosdestanota,cfCarlosMarx,Elcapital,cit.,t.i,p.448ss.

zsC£CarlosMarx,El capital, cit., t. trt,p.573ss.A formaespeci icamentecapitalista da renda territorial con igura-se na renda absoluta, quereveste de caráter capitalista a propriedade fundiária.Marx é claro aoestabelecer as diferenças entre essa forma de renda e as formas pré-capitalistas, incluídaarendaemdinheiro.Entretanto,essainterpretaçãovem de ser questionada por um autor francês. No seu entender, se aclasse personi ica a modalidade de participação num vínculo deexploração(enãosomentededistribuiçãodamais-valia),entãohaveriaumenganonade iniçãodarendacapitalistacomorendaabsoluta.Nessecaso, as relaçõesde classe sãoduais (p. ex., bur guesia e proletariado),não se podendo pensar o capitalismo como uma sociedade constituídaportrêsclassesfundamentais:burgueses,proletárioseproprietáriosdeterra. Estes últimos personi icariam, na verdade, uma relação dual eantagônica com os camponeses (que, segundo esse autor, teriam sido

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omitidos na análise de Marx) e expressariam, portanto, osremanescentesdomododeproduçãofeudal.Nessecaso,asobrevivênciados proprietários de terra como classe teria lugar em termos de umaaliançadeclassespré-capitalistasecapitalistas,oquerepõecomotarefapolítica principal a luta pelo capitalismo e pela eliminação dos restosfeudais na sociedade contemporânea. Essa tese parece-me em abertocon lito com a análise que Marx faz da renda fundiária, para quem apropriedade territorial, com a instauração do modo capitalista deprodução, só tem existência lógica e histórica através de relaçõescapitalistas.Detalmodoquearendaterritorialsetrans iguracomoumaforma do capital e nessa condição se defronta com o trabalhador.Somente a solução desse con lito poderá, pois, dissolver, ao mesmotempo, a irracionalidade representada no capitalismo pela propriedadedaterra,aqueMarxserefere.OautorquemencionoéPierre-PhilippeRey,LesAlliancesdeclasses,Paris,FrançoisMaspero,1976.

26AlémdasreferênciasfundamentaisàobradeMarxsobreestaquestão,feitas acima,. remeto o leitor à análise que dela faço. Cf. José de SouzaMartins, Os camponeses e a política no Brasil, 5. ed., Petrópolis, Vozes,1995,p.151-77.

27Sobreapeonagem,c£JosédeSouzaMartins,Fronteira-AdegradaçãodoOutronoscon insdohumano,2.ed.,rev.eatual.,SãoPaulo,Contexto,2009, p. 71-99; e José de Souza Martins, A Sociedade Vista do Abismo(Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais), 2. ed.,Petrópolis,Vozes,2003,esp.p.151-62.

2s "De outro lado, asmesmas circunstâncias que determinam a condiçãofundamental da produção capitalista - a existência de uma classetrabalhadoraassalariada -exigemque todaaproduçãodemercadoriasadquiraformacapitalista.Àmedidaqueestasedesenvolve,decompõeedissolve todas as formas anteriores de produção que, dirigidaspreferencialmente para o consumo direto do produtor, somentetransformam em mercadorias as sobras da produção. A produçãocapitalista de mercadorias faz da venda do produto o interesseprimordial, sem que, no princípio, isso aparentemente afete o própriomodo de produção... [...] Começa generalizando a produção demercadorias e logo vai transformando, pouco a pouco, toda a produçãodemercadoriasemproduçãocapitalista."C£CarlosMarx,Elcapital,cit.,t.

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II,p.37-

'9C£AlvesMorta Sobrinho,A civilizaçãodo café (1820-1920), SãoPaulo,Brasiliense,1967,p.135.

31C£MariaSylviadeCarvalhoFranco,op.cit.,p.11.MariaStellaMartinsBresciani inventariou tendências similares. Cf. "Suprimento de mão deobra para a agricultura: um dos aspectos do fenômeno histórico daAbolição", em Revista de História, v. Lttt, ano xxvtt, n. 106, São Paulo,abr.-jun.1976,esp.p.339ss.

31"Cujapossedeterrasestádentrodasesmariaqueaditasenhoratirou.. ...declarampossuirumsítio(dentro)dasesmariadoCapitãoLuizJoséPereira de Queiroz ...... C£ Carlota Pereira de Queiroz, Um fazendeiropaulistanoséculoxix,SãoPaulo,ConselhoEstadualdeCultura,1965,p.25. No chamado Registro Paroquial, realizado de 4 a 6 anos depois daaprovaçãodaLeideTerras,de1850,nãofoiraroquegrandessesmeirostenhamobtidoemseunomeoregistrodasterrasdemoradaedecultivode trabalhadores livres que viviam no interior de seus domínios, que,pela nova lei, eram delas legítimos proprietários. Apresentaram-nos aopároco encarregado do registro como seus agregados, como se fossemseuscamaradasouempregados.

32 Cf. Djalma Forjaz, O senador Vergueiro - Sua vida e sua época, SãoPaulo,CompanhiaMelhoramentos,1922,v.i,p.17.

33Cf.C.F.VanDeldenLaèrne,LeBrésiletfava.RapportsurIacultureducafé en Amérique, Asie et Afrique, La Haye-Paris, MartinusNijhofflChallamelAiné,1885,p.195.

sa Cf Affonso d'E. Taunay, Pequena história do café no Brasil, Rio deJaneiro,DepartamentoNacionaldoCafé,1945,p.163-4e177.

35C£MiriamLifchitzMoreiraLeite,"Umapequenapropriedadeprodutorade café, em Guaratinguetá, no século xtx', em O café -Anais do nCongressodeHistóriadeSãoPaulo,SãoPaulo,1975,p.220(Coleçãoda"RevistadeHistória",v.LIX).

36 Cf. Maria Isaura Pereira de Queiroz, A estrati icação e a mobilidadesocialnascomunidadesagráriasdoValedoParaíbaentre1850e1888",

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emRevistadeHistória,anoi,n.2,SãoPaulo,abr.-jun.1950,p.196(grifomeu). "Visto que a terra virgem fecundada pelos negros tinhaprimitivamente um valor venal quase nulo, a fazenda, no seu estadoatual, representa, pois, trabalho escravo acumulado". C£ Louis Couty,Etudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.83.

37"...umadasmaisimportantesimplicaçõesdaescravidãoéqueosistemamercantilseexpandiucondicionadoaumafonteexternadesuprimentodetrabalhoe istonãoporrazõesdeumaperenecarência interna ..."C£Maria Sylvia de Carvalho Franco, op. cit., p. 12. "Paradoxalmente, é apartir do trá ico negreiro que se pode entender a escravidão africanacolonial,enãoocontrário."C£FernandoA.Novais,Estruturaedinâmicado antigo sistema colonial (séculos XVI-XVII), 2. ed., Cebrap, São Paulo,1975,p.32-

31 "Tal arimportância do aparelhamento braçal das fazendas que, nascláusulas dos empréstimos hipotecários, se atendia, sobretudo, ao valordaescravatura."C£Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.177.

39 C£ Louis Couty, Ebauches sociologiques: Le Brésil en 1884, Rio deJaneiro,Faro&Lino-Éditeurs,1884,p.85ss,183;Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.163e177;C.F.VanDeldenLaèrne,op.cit.,p.187ss.;J.PandiáCalógeras, A políticamonetária do Brasil, trad. ThomasNewlands Neto,São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1960, p. 180; F. A. Veiga deCastro, "Um fazendeiro do século passado", em Revista do ArquivoMunicipal, ano x, v. xcvii, São Paulo, Departamento de Cultura, jul.-ago.1944,p.39.

aoCf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.238-9.

41 C£ Visconde de Mauá, Autobiogra ia (Exposição aos credores e aopúblico'), Edições de Ouro, 1964, p. 124; Stanley J. Stein, Grandeza edecadênciadocafénoValedoParaíba,trad.EdgarMagalhães,SãoPaulo,Brasiliense,1961,p.23-4.

42 "Re letindo bem sobre o negócio, e fazendo cálculo da produção quetemtidoa fazenda,edasdespesascomocusteiodamesma,viquenãosepoderiatirarumjurodocapitalquevouempatar,igualaode11/2%que posso obter hoje, dando o dinheiro a prêmio e perfeitamentegarantido [...]" Carta de José Claudiano de Abreu a AntônioMoreira de

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CastroLima.Taubaté,5deoutubrode1896,apudAlvesMortaSobrinho,op.cit.,p.175.

43C£C.EVanDeldenLaèrne,op.cit.,p.195.

Idem,p.80e254-5.

45 C£ Maurício Vinhas de Queiroz, "Notas sobre o processo demodernização no Brasil", em Revista do Instituto de Ciências Sociais,UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,v.3,n.1,jan.-dez.1966,passim.

16 Cf Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República: Momentosdecisivos,cit.,cap.tv:"PolíticadeterrasnoBrasilenosEstadosUnidos",São Paulo, Grijalbo, 1977, p. 146. Este é um dos raros trabalhos depesquisadoresbrasileirosemquesediscuteaLeideTerraseapolíticafundiárianoséculoxix.

47C£C.EVanDeldenLaèrne,op.cit.,p.563-4.

as C£ Sérgio Buarque de Hollanda, "Prefácio", em Maria Teresa SchorerPetrone, O Barão de Iguape (Um empresário da época daIndependência),SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1976,p.xx.

49C£WarrenDean,RioClaro,p.33.

5 Sobre os negócios dos fazendeiros-capitalistas do Vale do Paraíba, c£AlvesMortaSobrinho,op.cit.,passim;CarlotaPereiradeQueiroz,Vidaemortedeumcapitão-mor,SãoPaulo,ConselhoEstadualdeCultura,1969,passim.

51Cf.David Joslin,ACenturyofBankinginLatinAmérica, London,OxfordUniversity Press, 1963, p. 73 ss.; Alves Morta Sobrinho, op. cit., p. 86;Affonso d'E. Taunay, op. cit., p. 174; Carlos Jordão, "A ação doscomissários no comércio do café", emO café no segundo centenário desuaintroduçãonoBrasil,v.1,RiodeJaneiro,DepartamentoNacionaldoCafé,1934,esp.p.339-

51Cf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.174.

53CarlosJordão,loc.cit.,p.399.

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54C£LouisCouty,Ebauchessociologiques:LeBrésilen1884,p.130-5;NazarethPrado,AntonioPradonoImpérioenaRepública,RiodeJaneiro,F.Briguiet&Cia.-Editores,1929,p.71ss.

C£LouisCouty,op.cit.,p.90ss.;LouisCouty,Etudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.92ss.;MichaelM.Hall,loc.cit.,p.156-7.

56"..desdequeaumenteapopulação,asterrashãodeaumentardevalor,não havendo por consequência, razão para que prevaleça a ideiasocialistadonobre senador, dequeo corpo legislativodeve autorizar aconcessãogratuitade terrasaparticularesparaa cultura."DiscursodeAntonio Prado no Senado, sessão de 31 de maio de 1887, sobre aquestão de como deveria se constituir entre nós a propriedadecapitalistadaterra.C£NazarethPrado,op.cit.,p.170.

17Cf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.125e149.

58"...oimigrantedeveriaserpreviamentetrabalhadordagrandefazendae a possibilidade de transformar-se em proprietário dependeria dosganhosqueassimobtivesse,ganhosessescondicionadospelosinteressesdofazendeiro."Cf.JosédeSouzaMartins,AimigraçãoeacrisedoBrasilagrário, São Paulo, Livraria Pioneira, 1973, p. 52. "A ánica maneira deobter trabalho livre, nessas circunstâncias, seria criar obstáculos àpropriedaderural,demodoqueotrabalhadorlivre,incapazdeadquirirterras,fosseforçadoatrabalharnasfazendas."C£EmiliaViottidaCosta,Da Monarquia à República: Momentos decisivos, cit., p. 133. "Como sesabe, um dos fatores considerados como responsáveis pela expansãocafeeira é constituído pela abundância de terras. Em consequência doque vimos até aqui, devemos considerar a abundância de terras comoalgorelativo.Aabundânciadeterrasparaocapitalestáassociadaanãoabundânciaparaaquelesquedevemconstituiromercadode trabalho."C£SergioSilva,ExpansãocafeeiraeorigensdaindústrianoBrasil,cit.,p.73-

59C£AmelladeRezendeMartins,Umidealistarealizador:BarãoGeraldode Rezende, Rio de Janeiro, O icinas Grá icas do Almanak Laemmert,1939,p.325-6.

60 C£ Max Leclerc, Lettres du Brésil, Paris, E. Plon, Nourrit & Cie.,Imprimeurs-Éditeurs, 1890, p. 212-3; Maria Isaura Pereira de Queiroz,

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loc. cit., p. 206. Em sua viagemde setemeses peloBrasil, em1846, emplenoperíododaescravidão,odesenhistaeescritorThomasEwbankfezobservação semelhante: "A tendência inevitável da escravidão por todaparte é tornar o trabalho desonroso... [...] No Brasil predomina aescravidãonegraeosbrasileirosrecuamcomalgosemelhanteaohorrordiante dos serviçosmanuais". C£ Thomas Ewbank, Vida no Brasil, trad.JamilAlmansurHaddad,BeloHorizonte,EditoradaUniversidadedeSãoPaulo/LivrariaItatiaia,1976,p.145.

61C£MaxLeclerc,op.cit.,p.101.

62NofrontispíciodavelhaigrejamatrizdeSãoCaetano,umdosprimeirosnácleos coloniais da província de São Paulo, inaugurado em 1877 epovoado com imigrantes italianos, oriundos do vêneto, foi a ixada em1927 uma placa comemorativa que registra esse imaginário épico dodesbravador, anterior à rede inição da palavra colono, mas aindasobrevivente,comosevê,paraabrangerotrabalhadorimigrantesujeitoàdependênciadocolonato:"Aosdestemidosprecursoresquedasitálicasterras a estas regiões aportados, com indômita pujança abriram ocaminhoaohodiernoprogresso."C£JosédeSouzaMartins,Oimagináriona imigração italiana,SãoCaetanodoSul,FundaçãoPró-Memória,2003,p.56.

63UmadasexceçõeséotrabalhodeSérgioBuarquedeHolanda,"Prefáciodo tradutor", em Thomas Davatz, Memórias de um colono no Brasil(1850), tradução, prefácio e notas de Sérgio Buarque de Holanda, SãoPaulo,LivrariaMartins,1941,p.5-35-

64 "Na verdade, com tal esquema, não se faz mais do que repetir,reformulando-a,embora,ecompretensãocientí ica,aideologiadooestepaulistaqueatribuíaaosfazendeirosdoValeoepítetode`emperrados'.Ora, o papel da análise, a nosso ver, consiste justamente em procurarcompreenderascondiçõesestruturaisque impelirama lavouradaáreamaisnovaabuscarde iniçõeseconômicasdiversasestimulandonosseusfazendeiros um comportamento diferencial e, correlatamente, a`mentalidade'peculiar-agorapercebidacomoresultanteenãomais,deformasimplista,comocausa."C£PaulaBeiguelman,Aformaçãodopovono complexo cafeeiro: Aspectos políticos, São Paulo, Livraria Pioneira,1968,p.72.

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61 C£ Amelia de Rezende Martins, op. cit., p. 155; Carlota Pereira deQueiroz,Um fazendeiropaulistano séculoxrx, cit., p.22 ss.;MariaPaesde Barros, No tempo de dantes, São Paulo, Brasiliense, 1946, p. 68-9;WarrenDean,RioClaro,cit.,p.25ss.

66 Com base num relatório parcial de 1858, do Presidente da Província,Sérgio Buarque de Holanda contou 3.426 colonos em nácleos coloniaisparticulares em Amparo, Campinas, Jundiaí, Limeira, Piracicaba,Piraçununga e Rio Claro, dos quais cerca de 15% eram brasileiros. C£SérgioBuarquedeHolanda,loc.cit.,p.28-9.

67ThomasDavatz,op.cit.,p.72.

68Idem,p.74.

69C£ JoséSebastiãoWitter,UmestabelecimentoagrícolanaProvínciadeSão Paulo nos meados do século xtx, São Paulo, 1974 (Coleção da"Revista de História", v. L). C£, também, José de Souza Martins, AimigraçãoeacrisedoBrasilAgrário,cit.,p.53-

0C£ThomasDavatz,op.cit.,p.235.

71Idem,p.212.

72Idem,p.91.

73Idem.

74Idem,p.116.

75Cf."ExposiçãodosenadorVergueirodirigidaaovice-presidentedaProvínciasobreasocorrênciasdeIbicaba",ViladoRioClaro,10defevereirode1857,apudThomasDavatz,idem,p.265-6.

76Idem,ibidem.

77 Sobre a ética protestante na gênese do capitalismomoderno, cf. MaxWeber,Aéticaprotestanteeoespíritodocapitalismo,cit.,esp.p.110ss.Diferentes estudos sobre a relação entre religião e expansão docapitalismosugeremaimportânciadasuperaçãodosbloqueiosreligiosos

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àsnovasepotenciaisfunçóesdodinheiroedaacumulaçãodecapitaleàformulação de uma racionalização religiosa a elas propícias. Dentreoutros autores, cf. R. H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism,Harmondworth,PenguinBooks,1961.

78 Cf. Pierre Denis, Le Brésil ou xx` Siécle, 7` tirage, Paris, LibrairieArmandColin,1928,p.126.

79 Cf. Visconde de Indaiatuba, Memorandum, apud Odilon Nogueira deMatos,"OViscondedeIndaiatubaeotrabalholivreemSãoPaulo",Anaisdo vi Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História("TrabalhoLivreeTrabalhoEscravo'), SãoPaulo,1973,p.777 (Coleçãoda"RevistadeHistória",v.i);PierreDenis,op.cit.,p.126.

Cf.ViscondedeIndaiatuba,loc.cit.,p.769.

$' Idem,p.769. JoaquimBonifáciodoAmaral (1815-1884),oViscondedeIndaiatuba, fundouumacolôniaalemãnaFazendaSeteQuedas,umadesuaspropriedades.

82Idem,p.770.

83Cf.PierreDenis,op.cit.,p.128.

84 Cf. José César Gnaccarini, Latifúndio e proletariado (Formação daEmpresaeRelaçõesdeTrabalhonoBrasilRural),SãoPaulo,Polis,1980,p.57.

85Cf.NazarethPrado,op.cit.,p.282.

aeIdem,p.26,71ss.

87Cf.WarrenDean,op.cit.,p.158.

88Cf.JosédeSouzaMartins,op.cit.,p.55ss.

89 Cf. Relatório annual do Instituto Agronómico do Estado de S. Paulo(Brazil)emCampinas-1894e1895,v.viteviii,publicadopeloDirectorDr. Phil. F. W. Dafert, M.A., São Paulo, Typographia da CompanhiaIndustrial de S. Paulo, 1896, p. 196-197. José César Gnaccarini observa

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que ainda no contexto da escravidão o cálculo racional era impossívelpelos mesmos motivos: "E por essa razão fundamental, de que aescravidão produz para a subsistência que o cálculo racional está foradaspossibilidadesdasociedadepatrimonialista-escravista".C£Formaçãoda empresa e relações de trabalho no Brasil rural, dissertaçãoapresentadaáCadeiradeSociologiaidaFaculdadedeFiloso ia,CiênciaseLetrasdaUniversidadedeSãoPauloparaobtençãodotítulodemestre,São Paulo, 1966, p. 142 (nota 28), ms. Essa obra fundamental dasociologiadatransiçãodaescravidãoparaotrabalholivrefoi,finalmente,publicadaem1980: JoséCésarGnaccarini,Latifúndioeproletariado,cit.Na publicação do livro, a nota citada foi suprimida e o argumento foiremetidoparaocorpodotexto.

90 "... o problema do abastecimento de mão de obra como que seregenerava,repetindo-seciclicamenteumestadodecarência."Cf.MariaSylviadeCarvalhoFranco,op.cit.,p.195.

9'C£SergioMilliet,Roteirodocaféeoutrosensaios,3.ed.,SãoPaulo,1941(Coleção Departamento de Cultura); Pierre Monbeig, PionniersetplanteursdeSãoPaulo,Paris,LibrairieArmandColin,1952,p.128.

92 Cf. Amador Nogueira Cobra, Em um recanto do sertão paulista, SãoPaulo,Typ.HenniesIrmãos,1923,passim;PierreMonbeig,op.cit.,p.122ss; J. R. de Araújo Filho, "O café, riqueza paulista", Boletim Paulista deGeogra ia, n. 23, Associação dos Geógrafos Brasileiros, São Paulo, jul.1956,p.105.Aetapadeformalizaçãodaapropriaçãocapitalistadaterraera, e continua sendo, objeto de con litos entre posseiros e grileiros,constituindo-se os grileiros na ponta de lança da incorporação da terraaomercado eda conversãodo capital em renda territorial capitalizada.Cf. José de Souza Martins, Capitalismo e tradicionalismo, São Paulo,LivrariaPioneira,1975, esp.p. 43-50; JosédeSouzaMartins, Fronteira,cit.

93"...acafeiculturapropiciouaapropriaçãoprivadadas terrasdevolutasdisponíveisna região.Masessaapropriação, emgeral, foi realizadapormeio da compra das terras." Cf. Octavio Ianni, A classe operária vai aocampo,SãoPaulo,Cebrap,1976,p.7.

9¢Adifundidaideiadequeaexpansãodocaféestáestritamenteligadaao

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trabalhodo imigranteestrangeironão temapoionarealidadedos fatos.Asestatísticasdoperíodoáureodocafé,entre1880e1930,indicamumagrande participação de trabalhadores nacionais não só nas tarefasbrutas do desmatamento (o que foi mais comum no tempo daescravidão),mastambémcomocolonos.GeorgeLittleconstatouque,em1920,grandes fazendeiroscomoNhonhôMagalhães,ocondePrateseoConselheiroAntônioPrado tinhamentendimentos comchefesdepolíciade municípios nordestinos para recrutamento de trabalhadores e suasfamíliasparasuasfazendasdecaféemSãoPaulo.C£GeorgeF.G.Little,FazendaCambuhy:ACaseHistoryof Social andEconomicDevelopmentin the Interior of São Paulo, Brazil, Ann Arbor, Michigan, University ofFlorida, 1960, p. 109. Além disso, desde o começo do século xx, e pormais de meio século, houve um contínuo luxo de moradores do AltoSertãodaBahiaemdireçãoaoscafezaisdeSãoPaulo,especialmentenaregiãodeRibeirãoPreto,vindospelointeriordeMinas,paracolhercafécomo trabalhadores sazonais. C£ E1y Souza Estrela, Os sampauleiros -Cotidiano e representações, São Paulo, Humanitas, 2003, passim.Também antigos escravos foram convertidos em colonos, comotestemunhaAmeliadeRezendeMartinsapropósitodessamodalidadedeintegração do negro liberto na rotina da fazenda de sua família, emCampinas:"EmSantaGenebra,coma libertaçãogradual,muitoantesdaLei13deMaio,nãohaviaumsóescravo, tendo icadona fazendatodososantigosescravosbons.Entãohomens livres, e estandoperfeitamenteorganizada a colonização estrangeira. Tinha ali, cada família, branca oupreta,suacasa,ecadachefedefamília,seusalário,suacadernetaesuaroça". Cf. Amelia de RezendeMartins, op. cit., p. 359. A autora aplica oconceito de salário, neste caso, á parcela recebida pelo colono emdinheiropelotratoepelacolheitadocafé.

95Poucasmudançashouve,desdeentão,nomodocomosedáaexpansãoagropecuária no Brasil. No deslocamento da frente pioneira, na regiãoamazônica, nas últimas décadas, o trabalho de derrubada da mata elimpezado terrenopara formaçãodenovas fazendas temsido feitoporpeões escravizados, em regime de servidão por dívida, trabalhadoresque se deslocam temporariamente em função da sazonalidade agrícoladeoutrasregiões,especialmentedoNordeste.C£JosédeSouzaMartins,Fronteira, cit., esp. p. 71-99. Na década de 1970, o número dessestrabalhadoresfoiestimadoemmaisde400mil.C£SueBranfordeOrielGlock,lheLastFrontier,London,ZedBooks,1985,p.55.

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96Cf.LouisCouty,Étudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.7-8.

97C£C.F.VanDeldenLaèrne,op.cit.,p.244.

98Cf.LouisCouty,op.cit.,p.5e119.

99C£J.PandiáCalógeras,ApolíticamonetáriadoBrasil,cit.,p.172;DavidJoslin,op.cit.,esp.P.64-8e78-9.

100C£WarrenDean,op.cit.,p.35.MortaSobrinhotranscrevedocumentosobreaempreitadeantigosplantadoresde fumo,arruinadosem1865,para a formação de cafezais, empregando seus próprios escravos. C£AlvesMortaSobrinho,op.cit.,p.83-4.

101C£C.F.VanDeldenLaèrne,op.cit.,p.185.

102Cf.CarlotaPereiradeQueiroz,op.cit.,p.85.

103C£DarrelE.Levi,A famíliaPrado, trad. JoséEduardoMendonça, SãoPaulo,Cultura70,1977,p.167.C£,também,MyriamElhs(org.),Ocafé-Literaturaehistória,SãoPaulo,Melhoramentos-EditoradaUniversidadedeSãoPaulo,1977,p.37.

104PierreDenis,op.cit.,p.126.

aosCf.DarrelE.Levi,op.cit.,p.332-6.

106Os termos desse contrato não eramos usuais. Geralmente, as safrasde café durante a vigência da empreitada pertenciam ao empreiteiro,alémdassafrasdecereais.

107C£Pierresenis,op.cit.,p.161.

108Nosanossubsequentes,a rentabilidadedas fazendaspaulistascairiadrasticamente. Ukers, que fez extensa, enciclopédica e demoradapesquisa internacional sobre o café, da planta à xícara, entre 1912 e1922, esteve no Brasil, aparentemente nas grandes fazendas da regiãodeRibeirãoPreto,econstatouque"oslucrosdocultivodocafénoBrasil,nosanosrecentes,apresentaramumadecisivaqueda.Em1900,não foiraro uma fazenda ter um lucro anual de 100 a 250%. Dez anos mais

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tarde, a média dos retornos não excedia a 12%". Não obstante, novoscafezaiscontinuavamaserplantados.C£WilliamH.Ukers,M.A.,AllAboutCoffee,NewYork,TheTea andCoffeeTrade JournalCompany,1922,p.205-7.

109Cf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.265.

110 C£ Joaquim Silvério da Fonseca Queiroz, Informações úteis sobre acafeicultura,SãoPaulo,EstabelecimentoGraphicoUniversal,1914,p.18.

Cf. Augusto Ramos, O café no Brasil e no estrangeiro, Rio de Janeiro,PapelariaSantaHelena,1923,p.207-8. JoséCésarGnaccariniobservouprocessosimilarnaeconomiaaçucareira:"...essaquantianãohaviasaídodo bolso do capitalista, proprietário do engenho de açúcar nem denenhumaoutrafontedetrabalhoquesecaracterizassecomoumvalor,oqual, como tal, devesse ser realizado. Elas, as condições de trabalho, sehaviamproduzidoemregimedeautossubsistência,oquequeriatambémdizerquenãonecessariamenteprecisariamvoltaraobolsodoprodutordireto, se já não precisavam retornar ao bolso do capitalista. E éprecisamenteporestarazãoquesedizmanteraagricultura,aoutilizarmatéria bruta produzida em regime de autossubsistência, por maiorquantidade de trabalho que esta requeira, uma baixíssima composiçãoorgânica do capital, a qual habilita o capitalista a apropriar-se de umamassademais-valiaexageradaparaoescassodispêndiodecapitaltotalqueeleéobrigadoafazer".Cf.JoséC.Gnaccarini,"Aeconomiadoaçúcar.Processodetrabalhoeprocessodeacumulação",emBorisFausto(org.),Históriageraldacivilizaçãobrasileira,v. iii, t.1, cit.,p.328.C£, também,JoséCésarAprilantiGnaccarini, Estado, ideologia e ação empresarial naagroindústria açucareirado estadode SãoPaulo, tesededoutoramentoapresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade deFiloso ia, Letras eCiênciasHumanasdaUniversidadedeSãoPaulo, SãoPaulo, 1972, p. 246 ss. Mais de cem anos depois da febril abertura denovas fazendas de café, no oeste de São Paulo, com a introdução dotrabalho livre na economia agrícola, o mesmo método de extração doexcedenteeconômicodopeãosujeitotemporariamentepordívida,sobaforma de derrubada da mata e formação de fazendas agropecuárias,repete-senaregiãoamazônicadesdeo inaldosanos1960eseestendepor quase meio século, até os dias atuais. C£ José de Souza Martins,Fronteira,cit.

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C£J.R.deAraújoFilho,loc.cit.,p.85e103;Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.239 ss.; Rodrigo Soares Júnior, Jorge Tibiriçá e sua época, São Paulo,Companhia EditoraNacional, 1958, v. i, p. 188, e v. ii, p. 346-51; JaymeAdour da Câmara, Salvador Piza (O homem e o lavrador), São Paulo,1940,p.39-49e51.

13Cf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.,p.173;AlvesMotaSobrinho;op.cit.,p.85.

14C£AlvesMoitaSobrinho,op.cit.,p.135-6.

C£LouisCouty,Étudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.135ss.

16 "... só trabalhoparaos outros.O lavradornão ganha, o negociante emcafé enriquece! / O primeiro tem muito trabalho e luta com mildi iculdades! O segundo aproveita-se do nosso suor para se divertir efazer fortuna!" C£ Carta do Barão Geraldo de Rezende, 30 demaio de1882, apud Amelia de Rezende Martins, op. cit., p. 298; "Todos oscomissários são ladrões." C£ Carta do comissário Pedro Lima ao majorMoreiraLimaJúnior,22demaiode1873,apudAlvesMoitaSobrinho,op.cit.,p.88.

117C£CarlosMarx,op.cit.,t.i,passim,esp.p.491e513.

118 Às vésperas da Abolição, o Conselheiro Paula Souza, fazendeiro decafé, escrevia uma carta a um seu conhecido relatando as imensasvantagenseconômicasdotrabalholivredeseusantigosescravos:"Nadalhesdou:tudolhesvendo,inclusiveumvintémdecouveouleite![...]Poisbem: esse vintémde couve e de leite, o gado, quemato, a fazenda quecompro por atacado, e que lhes vendo a retalho, emais barato que nacidade,dãoquaseparaopagamentodotrabalhador".C£AprovínciadeSão Paulo, 8 de abril de 1888, apud Florestan Fernandes, A integraçãodo negro na sociedade de classes, cit., v. i, p. 16. Ou seja, o fazendeirocompreendia a nova relação de trabalho como homem livre como umarelaçãocomercial,decompraevendademercadorias.

19C£CarlosMarx,op.cit.,t.I,p.130ss.

120C£"CondiçõesdotrabalhonalavouracafeeiradoEstadodeS.Paulo",Boletim do Departamento Estadual do Trabalho, anuo i, n. 1 e 2, São

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Paulo,SecretariadaAgricultura,CommercioeObrasPublicasdoEstadodeSãoPaulo,1912,p.20ss.;MariaSílviaC.BeozzoBassanezi,"Absorçãoe mobilidade da força de trabalho numa propriedade rural paulista(1895-1930)",Ocafé-AnaisdoiiCongressodeHistóriadeSãoPaulo,cit.,p.241-2e249.

1zi Foi nas operações de bene iciamento do café, ainda durante aescravidão, que o regime de trabalho assalariado se implantouplenamente nas fazendas. A ponto de Couty sugerir que, tal como jáocorreracomacana-de-açúcar,coma instalaçãodosengenhoscentrais,o fazendeiro circunscrevesse a sua atividade econômica às operaçõesindustriais de bene ício do café, como capitalista e comerciante. Nessecaso, a terra deveria ser dividida e entregue a pequenos produtorestributários do engenho. C£ Louis Couty, L' Esclavage au Brésil, Paris,LibrairiedeGuillauminetCie.,1881,p.47e147;RodrigoSoaresJúnior,op.cit.,v.1,p.79-80.

122C£MariaSilviaC.BeozzoBassanezi,loc.cit.,p.248-9(nota11).

113C£WarrenDean,RioClaro,cit.,p.171.

124Cf. LouisCouty, Étudedebiologie industrielle sur le café, cit., p. 155;MaxLeclerc,op.cit.,p.101;MariaPaesdeBarros,op.cit.,p.98-9;AugustoRamos,op.cit.,p.206.

125C£LouisCouty,op.cit.,p.130ss.

126Cf.PierreDenis,op.cit.,p.136ss.

127 A área de colheita que cabia ao colono e sua família não eranecessariamente aquela que estivera sob seus cuidados, na limpa,masoutra,escolhidaporsorteio.Comoaprodutividadeeradiferenteentreosdiferentestalhões,osorteioafastavaasuspeitadefavoritismoaunsemdetrimento de outros. Sobre o sorteio, c£Myriam Elas (org.), op. cit., p.121ss.

8 C£ Elias Antonio Pacheco e Chaves et alai, Relatório apresentado aoExmo.Sr.PresidentedaProvínciadeS.PaulopelaCommissãoCentraldeEstatística, São Paulo, Typogra ia King-Leroy King Bookwaler, 1888, p.347;LouisCouty,op.cit.,p.129ss.;A.Lalière,LeCafédansl'EtatdeSaint

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Paul(Brésil),Paris,AugustinChallamel,1909,p.266ss.;B.Beli,Ilcaffé-Il suo paese e Ia sua importanza (S. Paolo del Brasile), Milano, UlricoHoepli, Editore-Libraio delta Real Casa, 1910, p. 112; Pierre Denis, op.cit., p. 136 ss.; Vincenzo Grossi, Storia delta colonizutzione europea alBrasileedeltaemigrazione italiananelloStatodiS.Paulo,Milano-Roma-Napoli, Societá Editrice Dante Alighieri di Albrighi, Segati & C., 1914, p.439ss.;ReginaldLloydetalii, ImpressõesdoBrasilnoSéculoVinte.Suahistória, seo povo, commercio, industrias e recursos, Londres, Lloyd'sGreater Britain Publishing Company, 1913, p. 632; Augusto Ramos, op.cit.,p.205.

'a9 Cf. Elias Antonio Pacheco e Chaves et al., op. cit., p. 247; ManuelBernardez, Le Brésil-Sa vie, son travam sonavenir, BuenosAires, s. e.,1908, p. 223-4; Louis Couty, Ebauchessociologiques: Le Brésilen 1884,cit.,p.185;B.Beli,op.cit.,p.112;VincenzoGrossi,op.cit.,p.445;AugustoRamos, op. cit., p. 205;GuidoMaistrello, "Fazendasde café-costumes (S.Paulo)",emAugustoRamos,op.cit.,p.564.

130C£LouisCouty,Etudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.p.130.

131 C£ Pierre Denis, op. cit., p. 151; Guido Maistrello, loc. cit., p. 556; B.Belli, artigo no Correio Paulistano, 2 de julho de 1911, apud PaulaBeiguelman,op.cit.,p.110,nota92.

132C£RodrigoSoaresJúnior,JorgeTibiriçdesuaépoca,cit.,v.2,p.360e429;PaulaBeiguelman,op.cit.,p.115.

133 C£ Relatorio annual do Instituto Agronômico do Estado de S. Paulo(Brazil) em Campinas - 1894 e 1895, v. vii e viii, cit., p. 195: "Onde omilho é cultivado nos cafezais como `cultura intermediária' é quaseimpossívelcalcular-seexatamenteocustodeprodução...".

134Cf.AntonioPiccarolo,L'emigrazioneitaliananelloStatodiS.Paulo,SãoPaulo,LivrariaMagalhães,1911,p.60-2.

135C£A.Laliére,op.cit.,p.270-273.

136C£VincenzoGrossi,op.cit.,p.444.

137 C£ Karl Marx, El capital- Libro i- Capitulo vi (Inédito), trad. Pedro

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Scaron,BuenosAires,EdicionesSignos,1971,p.54ss.

138 C£ Antonio Piccarolo, Um pioneiro das relações ítalo-brasileiras (B.Belli),SãoPaulo,Athena,1946,p.17ss.;MichaelM.Hall,Approaches toImmigration History", em Richard Graham e Peter H. Smith (eds.),NewApproaches to Latin American History, Austin and London,UniversityofTexasPress,1974,p.180ss.

139C£LouisCouty, op. cit., p. 158;EliasAntonioPacheco eChaves et al.,op.cit.,p.247;PierreDenis,op.cit.,p.140ss.

140 O lugar secundário da remuneraçãomonetária do colono de café sere letia na relativamente reduzida importância de suas remessas dedinheiro, no caso dos italianos, para os remanescentes da família quepermaneceramnaItália.Dostrêspaísesquemaisreceberamimigrantesitalianos, EstadosUnidos,Brasil eArgentina, as remessasdoBrasil, nosprimeiros anosdo século xx, foram comparativamentemuito reduzidas,oscilando entre 10% e 20% do que enviaram à Itália os italianosresidentesnosEstadosUnidos.Em1905,asremessasfeitasdaArgentinaforam quase o dobro das feitas do Brasil. Cf. Luigi De Rosa, Emigranti,capitali e Banche (1896-1906), Napoli, Edizione dei Banco di Napoli,1980,p.490e598.

1Cf.PierreDenis,op.cit.,149.

142 C£ PaulWalle, Au Pays de Por rouge - L'Etat de São Paulo (Brésil),Paris,AugustinChallamel,1921,p.82.

143C£PierreDenis,op.cit.,p.140.

144C£BorisFausto,Trabalhourbanoecon litosocial,cit.,p.21.

149C£"CondiçõesgeraesdotrabalhonaindustriatextildoEstadodeSãoPaulo",BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annoVIII,n.31e32,SãoPaulo,TypographiaLevi,1919,p.202(tabelan.2).

146Cf.SergioMilliet,op.cit.,p.73ss.;CaioPrado júnior,EvoluçãopolíticadoBrasileoutrosestudos,cit.,p.236.

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147C£MarioRamos,Aillusãopaulista,Riodejaneiro,1911,esp.p.37,40e49-50; Edgar Rodrigues, Socialismo e sindicalismo no Brasil, Rio deJaneiro,Laemmert,1960,p.300;EverardoDias,HistóriadaslutassociaisnoBrasil,SãoPaulo,Edaglit,1962,p.260e271;HermínioLinhares,"Asgreves operárias no Brasil durante o primeiro quartel do século xx",Estudos Sociais, n. 2, jul.-ago. 1958, p. 222-3;AugustoRamos, op. cit., p.209; Warren Dean, op. cit., p. 179; Azis Simão, Sindicato e estado, SãoPaulo,Dominus,1966,p.101-2.

148C£MariaPaesdeBarros,op.cit.,p.73ss.;ArreliadeRezendeMartins,op.cit.,p.511.

149 "A aceitaçãoprontade tais trabalhadoresnão signi icava sempre, departe dos grandes proprietários rurais, a admissão igualmente pronta,ousequeracompreensão,detodasasconsequênciasqueessamudançairiaacarretarnosistemaderelaçõesentrepatrõeseserviçais."Cf.SergioBuarquedeHolanda, "Prefáciodo tradutor",emThomasDavatz,op.cit.,p.17.

1soC£VincenzoGrossi,op.cit.,p.443-4.

SiIdem,p.442ss.

152C£WarrenDean,"Apequenapropriedadedentrodocomplexocafeeiro:sitiantesnoMunicípiodeRioClaro(1870-1920)",emRevistadeHistória,v.Lttt,n.106,SãoPaulo,1976,p.488.

153Idem,p.491.

154C£ReginaldLloydetal.,op.cit.,p.630.

155 Cf. Warren Dean, Rio Claro, cit., p. 187-188; Michael M. Hall, lheOrigins ofMasslmmigration inBrazil, 1871-1914, Ph.D. Thesis, ColumbiaUniversity, 1969, passim. Uma otimista contraposição a essasconstatações encontra-se em Thomas H. Holloway, "Condições domercado de trabalho e organização do trabalho nas plantações naeconomia cafeeira de São Paulo, 1885-1915 - Uma análise preliminar",EstudosEconômicos,v.2,n.6,SãoPaulo,IPE-USP,1972.

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Umaimigraçãotardia

Quandose falana imigraçãoestrangeiraparaoBrasil, entreasúltimasdécadasdoséculoxrxeasprimeirasdoséculoxx,écomumconceber-seoimigrante como substituto do escravo e, em consequência, tratá-lo comocategoria indiferençada. Supostamente, todos os imigrantes das váriasnacionalidades assumiram, no contato com a sociedade brasileira, asmesmas características sociais e culturais, diferençados unicamente pelalíngua de origem. Na verdade, atribui-se a todos os imigrantes um per ilque foi o do imigrante italiano, supondo-se que os imigrantes das váriasnacionalidadestiveramamesmatrajetórianoBrasil.

Nestecapítulo,pretendodesenvolveralgumasideiasrelacionadascomaconstatação inicialdequeessasuposiçãonãoéverdadeira. Imigrantesdediferentes nacionalidades tiveram no Brasil diferentes trajetórias. Éprovável que essa diferenciação esteja, em parte, relacionada com ascaracterísticassociaiseculturaisdecadagrupo,comaspeculiaridadesdosfatores de emigração. Procuro, no entanto, apanhar essas diferenças apartir de outro ângulo de interpretação. Entendo que os modosdiferençados de absorção do imigrante na sociedade brasileira estão, emgrande parte, relacionados com as mudanças ocorridas nessa mesmasociedadeaolongodotempo.Emcadamomentodomeioséculoquetomopor referência, 1880 a 1930, as circunstâncias e as condições deincorporaçãodoimigranteforamdiferentes.Nolimite,issoquerdizerqueo imigrante de uma mesma nacionalidade encontrou aqui situaçõesdistintasemdiferentesmomentos.

Essa perspectiva é fundamental, também, para entender por que hádiferenças importantes, por exemplo, entre o imigrante espanhole oimigrante italiano. A grandemaioria dos imigrantes de cada uma dessasnacionalidadeschegouaoBrasilemépocasecircunstânciasdiversas, fato

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quemarcouodestinodecadagrupoeomodocomoseintegrou,ounãoseintegrou,nasociedadebrasileira.

Justamente porque tem sido comum tratar os imigrantes de diferentesnacionalidades como se tivessem cumprido umamesma e igual trajetórianoBrasiléque,semprequepossível,fareicomparaçõesentreoimigranteespanhol e o imigrante italiano. Por meio do recurso comparativo serápossível mostrar as diferenças que há entre ambos, às vezes diferençassubstantivas. É claro que o objetivo inal do trabalho não é, exclusiva eprincipalmente,odefazerumadiscussãosobreoimigranteespanhol.Mas,através da diferença representada por ele e através da sua inserçãopeculiar na economia cafeeira de SãoPaulo, analisar alguns aspectos dasrelaçõesdetrabalhonasfazendasdecafé,suastransformaçõesesuacrise.Em outras palavras, o objetivo é considerar a diferenciação da força detrabalhoque,noperíodoindicado,apareceescamoteadapeladiferenciaçãodenacionalidadedotrabalhador.Adiferenciaçãodotrabalhadorruralpelanacionalidade de origem, como ocorreu no café, encobriu um fato degrandeimportância:comfrequência,adiferenciaçãopornacionalidadedotrabalhador esconde mudanças nas relações de trabalho, no próprioprocesso de trabalho e nas relações entre renda fundiária e acumulaçãodecapital.

O ponto de partida é este: o imigrante espanhol não se defrontou, demodo geral, com as mesmas circunstâncias históricas e com as mesmascondições que o imigrante italiano havia encontrado antes dele. Ele sedestinouareporaforçadetrabalhodoimigrante italiano,quenãoestavasendorecriadapelaprópriaimigraçãoitalianaouqueestavaabandonandooBrasildesde insdoséculoxix.Apartirde1905,a imigraçãoespanholapara São Paulo passou a ser, durante certo tempo, amais numerosa. Atéentão a imigração italiana havia sidomais importante numericamente.' Oimigrante italiano estava retornando a seu país, reemigrando para aArgentinaeoUruguaioudeixandoasfazendasdesuainserçãoinicialparase deslocar para as zonas pioneiras, onde se expandiam os cafezais. Emsegundolugar,o imigranteespanholdestinouse,também,aoscafezaisdasnovas zonas cafeeiras de São Paulo, que concorriam com os cafezais daszonasmaisantigasdaMogianaedaPaulistapelamãodeobra.O luxodeabastecimento dos cafezais com trabalhadores italianos havia sido

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interrompido, em1902, comoDecretoPrinetti, queproibira a emigraçãosubvencionadaparaoBrasil.2Essesdoisfatoressecombinaramparaque,em diferentes regiões e de diferentes modos, o imigrante espanholsubstituísseoimigranteitaliano-oquepartiaeoquenãochegava.

Se a imigração espanhola ocorreu, em grande parte, para ocupar, naexpansão do café, o lugar até então preenchido pela imigração italiana, épreciso lembrar que a parcela mais substantiva da imigração italianapossibilitaraasubstituiçãodaforçadetrabalhoescrava,emconsequênciadacrisedaeconomiaescravista,daaboliçãodaescravidãonegra,em1888,e em consequência da grande expansão da economia cafeeira: a áreacultivada do Estado de São Paulo cresceu quase seis vezes entre 1890 e1925,passandode510milhectaresparaquasetrêsmilhõesdehectares?

Quando do principal luxo da imigração italiana, a questão do trabalholivre era uma questão relativamente aberta: ainda havia quemdiscutissese o imigrante deveria ser colono do fazendeiro ou se deveria ser umpequeno proprietário.' As novas relações de trabalho, que icariamconhecidas como colonato, estavam emergindo como resultado dediferentesexperimentosemtornodoregimedeparceriaedotrabalhoporempreitada.'Nessecontexto,asreaçõesdoimigranteàsformasassumidaspela exploração do trabalho, mesmo dispersas e desarticuladas, tiveramumpapelmuitograndenade iniçãodas relaçõesde trabalho. Sobretudo,issosedeunademoliçãodasconcepçõesescravistasqueseescondiamportrásdadominaçãopessoaldo fazendeiro epor trásdo endividamentodotrabalhador, que eram formas de subjugar o seu trabalho. O imigranteitaliano esteve, portanto, diretamente inserido nos dilemas criados pelasubstituiçãodotrabalhoescravo.

Ao mesmo tempo, ele chegou num momento da história brasileira emque não se buscava apenas a forma social de substituição do escravo.Chegounummomentoemqueseabriamoportunidadeseconômicas,comaliberação de capitais decorrentes do im do trá ico negreiro, a partir de1850,e,sobretudo,como improgressivodaescravidãoapartirdeentão.É importanteconsiderarqueosanos1890, foram,principalmenteemSãoPaulo, os anos de uma grande diversi icação econômica: a criação debancos, indústrias e a grande expansão do café para o oeste. No que diz

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respeito à atração de mão de obra estrangeira, esse foi um momentomarcadopelanecessidadedeprovarque,noBrasil,o imigrantenãoseriaescravo, que teria oportunidade de enriquecer, tornar-se proprietário dasua própria terra. Os dados acabariam provando que, de fato, isso nãoocorreriaemescalaapreciávelatéaCrisede1929.Porém,seaeconomiaagrícola esteve razoavelmente fechada à transformação do imigrante emproprietáriodeterra, justamenteporqueeranecessáriotransformá-loemmão de obra à disposição dos fazendeiros, o mesmo não se deu naindústriaenocomércio.Essessetoresdaeconomiaapresentaram-secomoumaespéciedeterritóriolivre,quefoiclaramenteocupadopeloimigrantee, predominan temente, pelo imigrante italiano. O que não quer dizer,evidentemente, que os grandes fazendeiros tenham semantido fechadosna velha economia de exportação. Namesma década de 1890, enquantoimigrantes italianos e alemães começavam amontar indústrias na regiãode São Paulo, os fazendeiros passavam a organizar grandes bancos, queacabariam,dealgumaforma,tendoocontroledoconjuntodaeconomia.

A grande diferença entre a imigração espanhola e a imigração italianaestá no fato de que esta última imigração estava estrati icada em classessociais:haviacamponesessemterra,operários, comerciantes, capitalistas,artesãos, além de intelectuais. A imigração espanhola, ao contrário, foipredominantemente de camponeses.Mesmo os não camponeses, que emcerta proporção também imigraram para o Brasil, foram os que maisreemigraram.

A imigração espanhola cresceu acentuadamente quando a imigraçãoitalianasubvencionada foidi icultadaequandoumaproporçãomuitoaltade italianos começou a deixar São Paulo, entre o im do século xix e ocomeçodo século xx, namaioriados casos, para retomar à Itália ouparareemigrar a outros países. Nesse período, os números de saída deimigrantes italianos superaram os números de entrada. É justamente operíodo da primeira grande crise do .6 Como se verá, mais adiante, aimigraçãoespanholanãoeradiversi icadacomoaitaliana.NãohánotíciasdegrandescapitalistasespanhóisemSãoPaulonessaépoca.Em1904,umjornal espanhol editado em São Paulo, falando dos imigrantes espanhóis,diziaque

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opoucoque ganhamnão lhes chega paramal alimentar-se.QuemseatreveráanegarqueacolôniaespanholadoEstadodeSãoPauloéamaispobredetodasequeseachacomposta,nasuamaioria,dehumildes trabalhadores braçais? [...] Com quantos capitalistas,comerciantes,industriais,etc.,etc.,contaacolônia?.7

Na sua maioria, os imigrantes espanhóis eram camponeses quechegaram ao Brasil com a família, imigrando em de initivo, indodiretamente para o interior, para as fazendas, na maioria realmentepobres, cuja viagem fora subvencionada pelo governo brasileiro. Alémdisso,emmaiorproporçãoforamparaaszonasnovas,ondeasterraseramdemenorqualidadeoumenosférteisdoquenaszonasmaisantigas,asdochamadooestevelho.Eerammenoresasoportunidadesdeascensãosocialpelotrabalhonoscafezais.Emoutrostermos,oimigranteespanholchegouao Brasil numa época de poucas oportunidades. Quando o imigranteitaliano chegara, o futuro do imigrante era de inido por uma perspectivacamponesaeporumarelaçãodetrabalhoque,emgrandeparte,eraumavariação das condições de vida camponesas. O colonato estava no seuinício. No surto da imigração espanhola, o colonato já estava modi icadopela ação e pressão do próprio imigrante italiano e, mesmo, do governoitaliano. Uma das principaismodi icações nas relações de trabalho fora ada ampliação do pagamento em dinheiro e a do acerto mensal com otrabalhador, em vez do acerto anual. A perspectiva do imigrante, nesseoutro momento, está, pois, mais próxima do trabalho assalariado,resultantedalentadesagregaçãodocolonato.

O pagamento em dinheiro era, porém, um ardil que, em termos reais,empobreciaoimigranteaindamais.Umcasoilustrativoénoticiadoporumjornal de língua espanhola, em 1908: um colono espanhol, trabalhandocomamulheretrês ilhos,numafazendadaregiãodaferroviaPaulista,aoimdeummêsreceberaRs.24$000,insu icientesparaasobrevivênciadafamília.No típico colonato, aomenos, o trabalhador podia subsistir comoproduto da horta, da agricultura intercalar de alimentos no cafezal oumesmo da roça própria. Claramente, os imigrantes espanhóis desseperíodoestãoentreosmaispobreseosdemenormobilidadesocial.

ApoucadiversidadedapopulaçãoespanholanoBrasiléreveladanãosó

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peloescassonúmerodeespanhóisproprietáriosdeterraemSãoPaulo:naestatística de 1904/1905, apenas 415 o eram.' O que se con irma pelosnúmerosdo censode1920.Em todooBrasilhavia267estabelecimentosindustriais pertencentes individualmente a espanhóis, dos quais 128localizadosemSãoPaulo.Emmédia,essasindústriastinhammenosdeseteoperários. Na mesma ocasião, os italianos tinham 2.119 indústrias dessetipo, igualmente pequenas, das quais 68% estavam em São Paulo?Entretanto, não há registro de indústrias grandes pertencentes aespanhóis, embora, pelo menos a partir de 1890, existam muitasinformaçõessobregrandesbancose indústriaspertencentesa imigrantesitalianos. A imigração espanhola foi, portanto, caracteristicamenteimigraçãodemãodeobra,poucodiversi icadaepoucoquali icada.Nãosóo imigranteespanholchegounumaépocadepoucasoportunidades,comoele próprio era dosmenos preparados para aproveitar as oportunidadesqueexistissem.

Valeapena,aindaquedepassagem,quantoaesseaspecto,sugerirumacomparaçãoentreaimigraçãojaponesaeaimigraçãoespanhola.Ograndesurto imigratóriodeambosos grupos sedáaproximadamentenamesmaépoca, a primeira década do século xx. Ambos os grupos imigrarampredominantemente em família, com baixa porcentagem de imigrantesavulsos.Ambos forampredominantemente encaminhadosparao interior,paraasregiõescafeeirase,particularmente,paraaszonasnovas.Ambos,quando se tornaram proprietários de terra, tinham as menores áreasmédias por estabelecimento rural. 0 japonês, no entanto, enriqueceurelativamentedepressaemanteveumaidentidadeculturalqueoespanholimigrantenãoconseguiumanter.Estefoi,provavelmente,comoportuguês,o imigrante mais facilmente assimilado, coisa que não ocorreu com oitaliano na mesma intensidade. O espanhol desapareceu na sociedadebrasileira praticamente sem deixar sinal. Nem mesmo icou a memóriadessadiferença,queexistiuumdiaedurantecertotempo.

Também, no que se refere às fontes para o estudo da imigração, hádiferençasimportantesentreaimigraçãoespanholaeaimigraçãoitaliana.Há registro de que no período de que trato, existiram, aomenos, quinzeperiódicos em língua espanhola publicados em São Paulo.` Deles,praticamentenadamaisresta.Encontreitrêsjornais,docomeçodoséculo,

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dos quais, somados, não hámais do que dez exemplares nos arquivos ebibliotecas da capital. Não há estudos publicados sobre a imigraçãoespanhola nesse período. Também não há relatórios, crônicas de viagemde autoridades espanholas, escritores, jornalistas, missionários, como háem abundância, em relação a outros grupos nacionais, particularmente oitaliano, ricos em informações sobre as condições de vida dos imigrantes.Mesmo os jornais de língua espanhola trazem muito pouca informaçãosobre o imigrante espanhol no Brasil. "El Diario Espanol", por exemplo,limita-se a reproduzir e publicar notícias de acontecimentos ocorridos naEspanha.Épossívelqueosjornaisanarquistastivessemmaisinformaçõeslocaisearespeitodascondiçõesdevidado imigrante.Masumdeles,quepude consultar, é particularmente pobre na descrição das situações decon lito envolvendo trabalhadores rurais e fazendeiros. As poucasinformaçõesde jornais,arespeito, indicamqueasautoridadesconsularesespanholastinhampoucointeressepelosespanhóisnoBrasil."Oquepodeser indíciodequeaemigraçãoespanholanaquelepaísnãosesituavaemnenhumprojetopolíticooueconômico.DiversamentedoqueocorriacomaItália,quesempreteve,particularmentenoperíodofascista,pretensõesdefazerdapopulação italiananoBrasilumaverdadeiracolôniaeconômicaepolítica. Mesmo antes do fascismo, os italianos izeram muitas pressõesparatransformarasrelaçõesdetrabalhonasfazendasdecaféemrelaçõesmonetárias,paramelhorararemessadedinheiroaseupaís,porpartedosimigrantes italianos, e para criar um mercado de produtos italianos noBrasil.Nãoencontreinenhumsinaldequealgoparecido tenhaemalgummomentoocorridocomogovernoespanhol.

Característicasdaimigraçãoespanhola

O Recenseamento de 1920 indicou que havia no Brasil 1.565.961estrangeiros.Desses,558.405eramitalianos,433.577eramportuguesese219.142eramespanhóis.'Adistribuiçãodesses imigrantespelo territóriobrasileirosugerequehaviadiversidadedecondiçõessociaisnointeriordecadaumdosgruposnacionais.EstavamnoestadodeSãoPaulo78,2%dosespanhóis, 71,4% dos italianos e 53% do total de estrangeiros. Já osportugueses estavam, namaioria (39,7%), no então Distrito Federal (Riodejaneiro)epoucomenosemSãoPaulo(38,6%).NacapitaldeSãoPaulo,estavam24,7%dosestrangeirosdoestado,14,5%dosespanhóis,23%dos

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italianose38,7%dosportugueses.Noconjuntodosoutrosestados,porém,excluídoodeSãoPaulo,viviamnascapitais46%dosestrangeiros,60,2%dos espanhóis, 24,1 % dos italianos, 79,6% dos portugueses. Se, noconjunto do país, os italianos, na maior parte, foram para o interior, omesmonãoocorreucomoimigranteespanhol:emSãoPauloelefoiparaointeriore,demodogeral,nosoutrosestadosficounascapitais.13

Não são muitas as informações sobre a diversidade de origem, dedestinoedeocupaçõesdoespanholqueveioparaoBrasil.Sabe-sequeosgalegos vierampreferencialmente para as cidades e Salvador foi uma desuas preferidas. Já os andaluzes, de uma das regiões mais pobres daEspanha, foramde preferência recrutados pela imigração subvencionadapara os cafezais de São Paulo. 14 Constatei que os imigrantes espanhóisque icaramnacidadedeSãoPaulohabitavam,depreferência,osbairrosda Mooca e do Brás, dois típicos bairros operários do começo do séculoxx.15NoBrás, localizaram-se de preferência nas ruas onde já haviam selocalizado, em anos anteriores, os imigrantes italianos, nos cortiços daregião.`AsestatísticasdeacidentesdetrabalhoocorridosnacidadedeSãoPaulo, em diferentes anos das duas primeiras décadas do século xx,indicam que é proporcionalmente alta a incidência de acidentes entretrabalhadoresespanhóisnaspro issõesmenosquali icadas,comoéocasodos pedreiros, ajudantes de pedreiros, cocheiros, condutores de bonde,operários,trabalhadoresbraçais,17oque,provavelmente,indica,também,maior concentração de espanhóis nessas ocupações. É possível que emoutros estados, porém, o imigrante espanhol tenha sido, sobretudo, ocomercianteouo artesão, comoocorreu comosportuguesesnoRioe emSãoPaulo,comosepodeinferirdesuamaiorpresençanascapitais.Oqueimportadestacarnestetrabalhoéque78,1%dosespanhóisqueviviamnoestado de São Paulo, em 1920, estavam nas regiões cafeeiras. Isso querdizer que 61% de todos os espanhóis que viviam no Brasil, nesse ano,estavam na região paulista de café. Essa era a situação de 36,5% dosestrangeiros e de 53,3% dos italianos." Evidentemente, essas proporçõessealteramselevarmosemcontaquemuitosbrasileiroseram,nessaaltura,ilhos de imigrantes estrangeiros, nascidos no Brasil. Os dados quemencionoreferem-seàsituaçãodaprimeirageraçãodeimigrantes.

Desde 1880, mais da metade dos imigrantes italianos foram

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encaminhados para a província de São Paulo e mais da metade dosespanhóis foram-no desde 1890. Mas, só a partir de 1900 é que aimigração espanhola para São Paulo praticamente chegou aos 3/4 daimigraçãoparaoBrasil.'

Dentre os imigrantes entrados em São Paulo, entre 1908 e 1939, osespanhóis e os austríacos foram os que apresentaram maior índice deixação, respectivamente, 50,9% e 51,8%, em relação aos retornos e àreemigração.Quandoseconsideraobalançodeentradasesaídasnopaís,e não só em São Paulo, o índice dos espanhóis sobe para 53,6%. Nesseperíodo, no que se refere ao saldo líquido de entradas e saídas, apenas12,7% dos italianos permaneceram no estado e apenas 11,5% dosalemães.20 Tudo indica que a menor ixação do imigrante e sua maiormobilidade estavam diferentemente relacionadas com a característica deimigração do respectivo grupo nacional. Maior proporção de imigrantesavulsos, como era o caso dos italianos nesse período, tendia a aparecerassociada a maior porcentagem de saídas sobre as entradas. Maiorproporção de imigração familiar, como era o caso dos espanhóis e dosjaponeses, tendia a aparecer associada a maior ixação. Dos espanhóis,18,4% eram avulsos e dos japoneses apenas 5,1%, enquanto essaproporçãosubiapara42,3%nocasodositalianos.21

Umoutrofatorde ixaçãodoimigrantefoiaimigraçãosubvencionada.Achamada imigração espontânea, do imigrante que custeava sua própriaviagem, tendia a afastar o imigrante da agricultura e, consequentemente,dos mecanismos de coerção e da dominação pessoal que marcaram asrelaçõesde trabalhonas fazendasdecafé.Com isso,o imigranteganhavamaior liberdade de deslocamento e de escolha do trabalho. A imigraçãosubvencionada,aocontrário,submetiaoimigrante,desdeocomeço,desdeo embarque, aos critérios e interesses do governo e, em seguida, dosfazendeiros. De 1851 a 1909, o governo imperial promoveu a imigraçãosubvencionada. A partir de 1881, o governo de São Paulo, movido pelosinteresses dos fazendeiros de café, também aplicou grandes recursos naimigraçãoestrangeira,até1927,poucoantesdagrandeCrisede1929.22Éverdadequeoimigrantecomviagempagapelogovernonacionalteve,emvárias ocasiões, oportunidade de ser encaminhado aos núcleos coloniaiso iciais, na condição de pequeno proprietário. Mas a grande massa de

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imigrantes subvencionadosque sedirigiramaSãoPaulo teve suaviagempagapelogovernopaulista.Nessecaso,oimigrantepraticamentenãotinhaliberdadededecidirparaondeireoquefazer.DesembarcadonoportodeSantos,empoucashoraso imigranteeraconduzidodetremàHospedariados Imigrantes, na cidade de São Paulo. Aí permanecia, geralmente, trêsdias(nomáximooito),sendoemseguidaenviadodetremparaasregiõesdointeriorondehouvessemaiordemandadeforçadetrabalho.Ogovernopaulista mantinha, desde 1911, um serviço de avaliação do mercado detrabalho, que lhe garantia informação atualizada e permanente sobre ademanda de mão de obra, tipo de trabalho, salário ou modalidade depagamentodotrabalhoetc.nasdiferentesregiõesdoestado.NoslivrosderegistrosdaHospedariadosImigrantes,épossível,comalgumafrequência,acompanharatrajetóriadeumafamíliadecolonos,praticamentediaadia,desdeasuaaldeiadeorigem,naEspanha,atéafazendadecaféaqueforaespeci icamente destinada no interior de São Paulo. E se levarmos emconta os documentos da seguradora Lloyds, arquivados no NationalMaritimeMuseum,emLondres,pode-seatémesmosaberquaisosportosemqueonavioatracouduranteaviagem."

Na fazenda, mesmo sob a política da imigração subvencionada, oimigranteentravanumarelaçãodeendividamentocomofazendeiro,aindaque atenuada, motivada por antecipações e fornecimento de alimentos emeios de subsistência. Antes da imigração subvencionada, quando aindatinhaquepagar,também,apassagemdafamíliaparaoBrasil, icavasobojugo do débito por pelomenos dois anos. Essas eram formas de evitar amobilidadedoimigranteedebaratearaforçadetrabalho,introduzindonarelação de trabalho itens que nada tinham a ver com o trabalhopropriamente dito, caso de juros emultas. Num caso, ocorrido em 1908,um imigrante espanhol e sua família que, ganhandoRs. 24$000pormês,não conseguia sobreviver, ao comunicar ao fazendeiro que pretendiadeixar a fazenda, o patrão enfrentou-o de chicote na mão. Tendo fugidopara dar parte do ocorrido ao representante consular espanhol, suafamíliafoisequestradapelofazendeirocomogarantiadeumamultadeRs.200$000peloabandonodotrabalho.24

Em 1902, como já mencionei, o governo italiano proibiu a imigraçãosubvencionada para o Brasil, fato que estimulou a imigração espanhola.

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Masogovernoespanhol,aoquepareceem1911, tomou idênticamedida,procurando reprimir a emigração de camponeses pobres. Na época, naEspanha, os emigrantes eram classi icados em dois grupos: o dos queretornavam com dinheiro, enriquecidos, caso dos emigrantes de algumasregiões do Norte, e os camponeses pobres, como os de Andaluzia, queemigravamdefinitivamenteparafugirdamiséria.25

Alguns dados não sistemáticosmostram que o imigrante espanhol quechegouaSãoPaulo foiprincipalmenteosubvencionado.Dosentradosem1911, 71,8% eram subvencionados, enquanto o eram apenas 37% dositalianos e 24% dos portugueses, sobre um total de 39,3% desubvencionadosnoconjuntodos imigrantes.Em1912,os subvencionadoseram:espanhóis,74,2%;italianos,33,8%.26

Apesar da decisão do governo espanhol contra a emigraçãosubvencionada para o Brasil, a imigração subvencionada de espanhóiscontinuouaocorrer:procediadaArgentinaedoUruguaieeraconstituídaporespanhóisquereemigravam.27DosespanhóisqueentraramnoportodeSantosem1916,apenas30,2%procediamdaEspanha.Entretanto,dosespanhóis imigradosnesseano,77,2%eramsubvencionados.Oquequerdizer que também uma parte dos que vinham da Espanha tiveram suapassagempagapelogovernodeSãoPaulo,poishaviamentradoemSantos7.409 espanhóis, dos quais procediam da Espanha 2.236 e entraram naHospedaria5.721.21

Acirculaçãodeimigrantesespanhóis,entrandoousaindodoBrasil,peloUruguai ou pela Argentina, foi numericamente importante. No períodoentre 1908 e 1926,293 8.648 espanhóis entrados no Brasil vieram daArgentina e do Uruguai (20,1% dos imigrantes espanhóis da época). Omesmo ocorreu com 33.368 italianos (18,5% dos imigrantes italianos doperíodo).Emcompensação,saíramdeSãoPaulocomdestinoàArgentinaeaoUruguai,namesmaocasião,44.991espanhóis (52%das saídasdessesimigrantes) e 43.488 italianos (28% dosmigrantes dessa nacionalidade).Um luxoqueclaramente favoreciaaquelesdoispaíses,particularmenteaArgentina.Essequadroéindicativodasdi iculdadespararetereampliarocontingentedemãodeobraestrangeiranaregiãopaulista.Nãoporacaso,nessa época, começa-se a falar na possibilidade da migração sazonal de

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trabalhadores do Nordeste que pudessem colher café em São Paulo eretornar a seus lugares de origem.30 Uma solução que implicaria emintroduzir mudanças profundas nas relações de trabalho das fazendascafeeiras,masquesóocorreriaemgrandeescalamuitotempodepois,nosanos1960.

Narealidade,areemigração,asaídadeimigrantesespanhóiseitalianos,atingia pouco a lavoura. O per il do imigrante desse período, de 1908 a1926, é a esse respeitomuito claro. Dos 192.206 espanhóis entrados emSão Paulo, apenas 17,3% eram indivíduos avulsos, sem família,(comparados com41,6%dos180.061 italianos que imigraramnamesmaépoca). Eram agricultores 81,4% dos espanhóis e 52,2% dos italianos.Artistas (artesãos e operários) eram 2,2% dos espanhóis e 11,4% dositalianos. Na categoria de "diversos", estavam 16,3% dos espanhóis e36,5% dos italianos. Dos 86.512 espanhóis que saíram, 31,5% eramagricultores, 0,6% eram artistas e 67,9% estavam na categoria de"diversos". Dos 155.230 italianos que reemigraram, as proporções eram,respectivamente:37,7%agricultores,2,8%artistase59,6%"diversos".Noconjuntodos imigrantes entrados emSãoPaulo, 59,4%eramagricultorese, no conjunto dos que saíram, 74,3% estavam na categoria de"diversos".31

Alguns dados esparsos, relativos a diferentes anos, sugeremque essastrês categorias de imigrantes espanhóis tinham origem regional diversa.DosquechegaramaSantosem1916,58,3%embarcaramemGibraltar,noSul, e 28,4% em Vigo, no Norte. Dos chegados em 1917, 65,9%embarcaram no primeiro porto e 21,6% no segundo. Em 1924, 64,9%haviamembarcadoemGibraltare8,7%emVigo.Paraesseano,porém,háindicação dos portos de destino dos que reemigraram: apenas doispassageiros foramparaGibraltar;15,3%paraVigo,4,5%paraAlmeiriae3,9% para Málaga; 58,2% foram para Buenos Aires e Montevidéu, numtotalde3.516emigrantes.EssesdadosparecemindicarqueamaioriadosqueretornaramparaaEspanha,istoé,nãoagricultores,procediadonortedaquelepaís.32

Ocolonoeapropriedadedaterra

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Emmeadosdoséculoxix,quando foiproibidoo trá iconegreiroparaoBrasil, comovimosantes,ocafése localizavapredominantementenoValedoParaíba, comseusnúcleosmais importantesna regiãopróximaaoRiodeJaneiro.FoiemseguidasedeslocandoparaaregiãooestedaprovínciadeSãoPaulo, atravésdoValedoParaíba.Nos anos1880, o café avançouparaoqueseriachamadodepoisdeoestevelho,emdireçãoàsregiõesqueicaramconhecidascomoMogianaePaulista.Apartirdosanos1910-1920,ocafésedeslocouemdireçãoaooestenovo,àsregiõesdaAraraquarense,daAltaSorocabanae, inalmente,daNoroeste.33Odeslocamentoespacialdocafécoincidiucomprogressivasmudançasnasrelaçõesdetrabalhonasfazendas cafeeiras: nesse processo, o trabalho escravo cedeu lugar aotrabalhodocolono,predominantementeestrangeiro.Este,porsuavez, foidasrelaçõesdeparceriaagrícolaadiferentesformasdecolonato.

Nasuafórmulamaisgeral,ocolonatoconstituiuumarelaçãodetrabalhoqueprocuroupreservaraspectosdeumacondiçãocamponesamodi icada,mediante a produção direta, pelo colono, dos seus meios de vida,combinada com a exploração do trabalho pelo fazendeiro. No colonato, otrabalhadorseengajavacomsuafamíliaenãocomotrabalhadoravulso,anãoserparadeterminadastarefascomplementaresdotrabalhodocolonopropriamentedito.Recebiao cafezal formadoe seu trabalhoconsistiaemtratá-lo, fazer as carpas necessárias, mantê-lo limpo e colher o café.Recebiaumpagamentoanualpelotratodocafezal,porlotesdemilpésdecafé tratados (um adulto geralmente tratava de dois mil pés de café) eoutropagamentopara cada50 litrosde café colhidospor sua família.Em1919, esse pagamento anual em dinheiro correspondia aaproximadamentequatro vezes odinheironecessáriopara a alimentaçãodeumafamíliaoperárianacidadedeSãoPauloduranteummês.Ouseja,todo o rendimento monetário anual do colono correspondia a apenasquatro salários mensais do trabalhador urbano, devendo cobrir oequivalenteaosoutrosoito salárioscomaproduçãodiretadegênerosdesubsistência. Além disso, o colono reparava cercas e caminhos, apagavaincêndioselimpavapastosgratuitamente.Tinha,porém,direitodeplantarfeijão, milho e, em alguns raros casos, até arroz nas ruas do cafezal, àsvezesemparceriacomofazendeiro,cujacolheitaemparteconsumiaeempartevendia.Alémdomais,foradesuasobrigaçõesregularesnocafezal,ocolono podia trabalhar como assalariado da própria fazenda ou, até, de

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outrafazendavizinha.Podia,também,recorreraotrabalhoassalariadodeoutrotrabalhadorcomoauxílioemtarefasdeobrigaçãodesuafamília,quenão pudesse cumprir, pagando esse salário por ele o fazendeiro, paradescontar-lhe no acerto anual de contas. Tinha, ainda, como mencionei,direitoàmoradia,àhortaeaterumoudoisanimaisnopastodafazenda.

Essa fórmula geral variou em função, basicamente, de dois fatores.Umdeles foi o modo de plantar, relacionado com a variedade de cafeeirocultivada.Quandoasplantas erammaispróximasumasdas outras, comotendeu a ocorrer à medida que os cafezais se deslocaram para o oeste,icava di ícil a agricultura intercalar de alimentos, por causa da sombra,quedi icultavaocrescimentodasplantasmenores.Porcausa,também,daproteção às raízes do cafeeiro, que poderiam ser prejudicadas noplantiodas sementes da subsistência. Nesse caso, a tendência foi proibir eexpulsaraagriculturadealimentosparaforadocafezal,emterrasàparte,dentro da fazenda, geralmente impróprias para o cultivo do café. Outrofatorfoiopreçoeaqualidadedasterras.Noprimeirocaso,aelevaçãodospreços de terra nas regiões novas em relação às velhas, em termosrelativos,impôsousopreferencialdaterranaagriculturadeexportação,ocafé,deixandoaculturadealimentosparaterrasdequalidadeinferior.Nosegundocaso,asterrasmenosférteis,dasregiõesmaisnovas,emrelaçãoàs terras mais férteis da Mogiana, por exemplo, não recomendavam aculturaintercalar,queprejudicavaasraízesdocafeeiro.Essesdoisfatoresinterferiram diretamente na própria estrutura do colonato, cujo modeloclássico permitia conciliar num único processo de trabalho, e no mesmoterreno,aproduçãodiretadosmeiosdevidaeaproduçãodocafé.

A produção direta dos meios de vida pelo colono, em terras dofazendeiroeterrasdecafé,comamudançanousoenocustodaterra,fezcom que essa produção, aparentemente gratuita e sem custo, passasse ater um custo regulado pela renda da terra. Quando o café entrara naregião daMogiana, as terras ainda podiam ser obtidas a preços ín imos.Mais tarde,porém,naszonasnovas, as terraspassarama sernegociadaspor grandes empresas imobiliárias, algumas estrangeiras, que extraíamdosnovos fazendeiros não só a renda territorial absoluta, equivalente dopreço da terra propriamente dito, mas extraíam também a rendadiferencial, um sobrepreço, decorrente da maior fertilidade presumível

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das terras novas em relação às terras velhas (o tempo, porém,demonstrariaqueasterrasvelhasdaMogianaeramdemelhorqualidadedoque as terrasnovasdaAlta Sorocabana, por exemplo).Uma indicaçãonessesentidoéque,em1928,tendoemcontaaprodutividadedoscafezais(que,demodogeral,haviacaídomuitoemtodooestado,desdeocomeçodoséculo)eopreçodaterra,asterrasdasregiõesnovas,menosférteisdoque as da Mogiana, custassem proporcionalmente mais, embora maisdistantesdoportodeSantos.34Nessascondições,aagricultura intercalardocolonoapareciacomoumdesperdício,comousoantieconômicodeterraque devia ser destinada à produção de café, uma vez que os cultivos desubsistência exigiriam ruas mais largas no cafezal e menor número decafeeirosporáreaplantada.

A expulsão da agricultura de subsistência de dentro dos cafezais, quemarcou especialmente a ocupação das terras do oeste novo, na práticaimplicouobrigaro colonoaduas jornadasde trabalho -umano cafezal eoutra na roça, já que havia coincidência de época no trabalho que deviafazer naquele e nesta. Ao que parece, isso exigiu uma redistribuição dotrabalhonointeriordafamília,comaincorporação,aomenosmaisintensa,da mulher e de ilhos menores ao trabalho da roça, em prejuízo dotrabalhodoméstico edahorta. Envolveu, assim,um trabalhador adicionalsem modi icações nos ganhos da família do colono. O deslocamento dasculturas de subsistência para fora dos cafezais, nos casos e regiões ondeocorreu,tevemaiorintensidadenamobilizaçãodotrabalhodaesposaforada época de pico da colheita de café. Esse fato introduziu modi icaçõessigni icativas na vida doméstica da família de colonos, como sugere umacalanto antigo,35 com repercussõesmuito prováveis na socialização dosimaturos e desdobramentos na estrutura de personalidade básica dasnovasgerações.36

De modo geral, a imigração espanhola coincidiu com a expansão doscafezaisparaooestenovo,enquantoa imigração italianacoincidiracomaocupaçãodooestevelho.Em1920,dos133.749espanhóisqueviviamnasregiõescafeeiras,49,9%estavamnaszonasnovas,enquantonessaszonasestavam 31,9% dos italianos e 27,2% dos brasileiros. No oeste velho,viviam57,4%dosbrasileiros,66,6%dos italianose48,3%dosespanhóis.EstesúltimostinhamumapresençaacimadamédianaAraraquarense,na

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Alta Sorocabana e na Noroeste; os italianos estavam acima da média naMogiana, na Paulista e na Araraquarense.37 Evidentemente, tantoespanhóis como italianos podiam ser encontrados nas várias regiões doestado.Oquefaçoaquiéapontartendênciaseproporçõesdiferenciaisnaocupaçãodoespaçopelaspopulaçõesdediferentesnacionalidades.

Os imigrantes, e também os trabalhadores nacionais, podiam serencaminhados aos cafezais como colonos ou como trabalhadores avulsos.Colonosigni icavatrabalhadorresidente,comafamília,incumbidodotratoedacolheitadocafé.Cadavezmais,emdecorrênciadoencurtamentodociclodocafé,e issoatingiuparticularmenteoscafezaisdaszonasnovas,acolheita tinha que ser feita por grande número de pessoas, acima dapopulação residente na fazenda. Com isso, aumentava a necessidade detrabalhadoresavulsos, colhedoresdecafé,queganhavamporquantidadede café colhido.Oestabelecimentode salários especí icosparao trabalhodecarpadoscafezaisé indicativodeque tambémesse trabalhopassouaserfeitoportrabalhadoresavulsos.Oquequerdizerque,cadavezmais,oregime de colonato não era su iciente para dar conta do ritmo e doconjuntodeatividadesquecompunhaoprocessodetrabalhonaproduçãodo café. Além disso, as fazendas precisavam de trabalhadoresespeci icamenteassalariados,comoeraocasodoscamaradas,mensalistas,para outras tarefas, complementares ao trabalhodo café ou relacionadoscomoutrasculturasdentrodafazenda.

Osdadosassistemáticosexistentesindicam,demaneiramuitoclara,queoimigranteespanholerarecrutado,emaltaproporção,comocolono,coisaquetambémaconteciacomoimigranteitalianonãoavulso.Paraacolheitaouparaoutros serviçosdentroda fazenda, recrutava-seoavulsoenessesentidoenquadravam-semelhorostrabalhadoresbrasileirosoudeoutrasnacionalidades que não o espanhol ou o japonês. Mesmo engajados emrelaçãodetrabalhoidênticaàdoitaliano,comocolonos,osimigrantesquese destinavam às novas regiões lá encontravampagamentos emdinheiroaparentementeemmaiorproporção,quantoao totaldas retribuiçõesquerecebiam pelo trabalho, como sugerem os dados do DepartamentoEstadual do Trabalho. Eram condições de trabalho mais di íceis, emboraemcafezaisdeprodutividadeaindarelativamentealta.Terranovaqueriadizer, também, maior número de carpas do cafezal, porque as ervas

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daninhassereproduziammaisfacilmente,maioresdi iculdadesnotratodocafé e menos tempo para cuidar da cultura de subsistência, quandocultivadaforadocafezal,oqueocorreucadavezmaisnasterrasdasnovasregiõesdeocupaçãoagrícola.

Mesmo para os colonos espanhóis que foram para as regiões do oestevelho, as condições eram outras em relação aos tempos de chegada dosprimeirositalianos.Noconjunto,aprodutividadedoscafezaiscaírade15a30% entre 1910/1919 e 1918/1928. Aomesmo tempo, o preço do cafédeclinara desde o im do século xix.38 Foram esses dois fatores quelevarammuitosimigrantesadeixaroBrasilnesseperíodo.

Os poucos imigrantes espanhóis, que se tornaram proprietários,distribuíram-se aproximadamente nas mesmas proporções dos outrosimigrantes espanhóis pelas diversas regiões do interior do estado,localizando-sedepreferêncianasregiõesnovas.

Aestatísticaagrícolaezootécnica,realizadacomcritérioem1904/1905,indicouque, das 49.522propriedades rurais existentes no estadode SãoPaulo, apenas 415 pertenciam a espanhóis e 4.766 a italianos. Sãonúmerosmuitobaixos,selevarmosemcontaqueapartirde1880haviamentradonoestadodeSãoPaulomaisde600militalianosemaisde150milespanhóis.39 Já nessa altura, quando a ocupação das terras da Noroesteestavaapenascomeçando,emcomparaçãocomosproprietáriositalianos,aproporção de proprietários espanhóis era maior no oeste novo.40 Em1930/1931, no cenário da crise do café, desencadeada em 1929, commuitos fazendeiros perdendo ou vendendo suas terras, o número depropriedadesdeespanhóishavia subidopara8.930eode italianospara27.376.Dentreaspropriedadesdosespanhóis,72,2%estavamnaszonasnovas, enquanto nessas zonas estavam 53,3% das propriedades dositalianos.41 E, se considerarmos que já havia uma ampla proporção dedescendentes de italianos que aparecem no censo como brasileiros,aumenta a probabilidade de que a presença italiana era majoritária naszonas velhas, enquanto o espanhol predominava nas zonas novas, ondemuitosnãoitalianos,brasileiros,eramdasegundageraçãodeitalianos.

A entrada de empresas capitalistas na exploração da renda fundiária,

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que caracterizou a ocupação das terras do oeste novo, com a atuação deempresas imobiliárias na venda de terra, baseou-se, em parte, no apelopublicitário dirigido ao imigrante. Nos jornais das primeiras décadas doséculo xx, escritos em línguas estrangeiras, encontra-se com certafrequência apublicidadede terrasnovasoferecidas em tamanhoepreçopresumivelmente acessíveis ao imigrante. Em 1915, Lélio Piza & Irmãospõem à venda as terras da "Fazenda Goaporangá', tomadas aos índiosKaingang, aos quais oferecem 400 alqueires (968 ha), colocados àdisposição do Serviço Federal de Colocação deTrabalhadores Nacionais eProteçãoaos Índios.Dos243 lotesdessas terras, localizadasna regiãodorioFeio,128 lotes foramvendidosa imigrantesespanhóis,61%dosquaistinham menos de 75 ha e 32% menos de 50 ha.42 Na verdade, adisseminaçãodapropriedadefamiliaréumrecursoparaelevaropreçodaterra, cuja medida deixa de ser o cálculo do lucro para ser a próprianecessidadedeterradopequenoagricultor.

Os dados de 1930/1931, posteriores à Crise de 1929, que atingiuprofundamenteocafé,mostramqueosespanhóisproprietáriostinhamemmédia21,5alqueires(52ha)deterra,metadedamédiadaspropriedadesde brasileiros. Em 1933/1934, os espanhóis já tinham 14.410propriedadeseos italianos33.590.Umdosefeitosdacriseeconômica foi,justamente, a liberaçãode terrasparapequenosagricultores, geralmenteimigrantes: 85%dos espanhóis e 73%dos italianos proprietários tinhammenosde25alqueires(60.5ha)deterras,emmédia.Ocaféeracultivado,mesmonacrise,em52%daspropriedadesdeespanhóiseem59%dasdeitalianos, ocupando, respectivamente, 21% e 17% da terra de cadapropriedade,emmédia.Parcelasbemmenoreseramdestinadasaocultivodo milho, do feijão, do arroz, do algodão, da cana, da mandioca e dabatata.41

As oportunidades para os imigrantes espanhóis, e ainda assim apenasumaparcelapequenadeles,sósurgiramquandoacrisedestroçouavelhaeconomia do café e com ela começou a solapar a base das relações detrabalhodo colonato.Como imigrante tardio, o imigranteespanholque selocalizou nas fazendas de café como colono, "escolheu" a relação de

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trabalho mais crítica, mais próxima da condição camponesa, e maisafastada da realidade dos novos tempos, marcada pela monetarizaçãocrescente das relações de trabalho. Evidentemente, ele não tinhaalternativa. Vitimado pelo im das relações de propriedade que sedesagregavamnaEspanha, aoque tudo indicapelospoucosdepoimentosquepudeouvir,veiovivernoBrasilocomeçodo imdocolonato,acrisedalonga e penosa transição das relações de trabalho da escravidão para aetapamaisdesenvolvidadotrabalholivre,oassalariamento.

Notas

A imigração espanhola predominou sobre a imigração italiana de 1905 a1919,noBrasil,ede1905a1920,emSãoPaulo.Foiexceção,emambososcasos,oanode1907,emquepredominouaimigraçãoitalianasobreaespanhola.C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,anoitr,n.12 e 13, São Paulo, Typographia Brasil, Rothschild & Cia., 3° e 4°trimestresde1914/1915,p.805ss;BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho, anno iv, n. 15, SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia., 2° trimestre de 1915, p. 298; "Immigrantes entrados no Estado deSão Paulo: 1827 a 1915", Boletim do Departamento Estadual doTrabalho,annov,n.19,SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia,2° trimestre de 1916, p. 183-5; Boletim do Departamento Estadual doTrabalho,annotx,n.34e35,SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,1°e2°trimestresde1920,p.7;"EstatisticadosimigrantesentradosnoEstadodeSãoPaulo",BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annox,n.38e39,SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,1°e2° trimestres de 1921, p. 68-86; Boletim do Departamento Estadual doTrabalho, anuo xtv, n. 53, São Paulo, Typographia Brasil, Rothschild &Cia.,4°trimestrede1924,p.443-8;"ImmigrantesentradosnosportosdoBrasil,de1908a1924",BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,anuo xv, n. 56, São Paulo, Typographia Brasil, Rothschild & Cia., 3°trimestrede1925,p.372-3;"ImmigrantesentradosnoBrasilnoperíodode1884a1939",emRevistade ImigraçãoeColonização,ano i,n.4,RiodeJaneiro,out.1940.

2Cf.AngeloTrento,Ladov'éIaraccoltadelcaffé(LEmigrazioneitalianainBrasile,1875-1940),Antenore,Padova,1984,p.76.

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3 C£ Boletim do Departamento Estadual do Trabalho, anno xvi, n. 59-61,SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,2°,3°e4°trimestresde1927/1928,passim.

4 C£ Louis Couty, LEsclavage au Brésil, Paris, Librairie de Guillaumin etCie., 1881, p. 37; Louis Couty, Etude de biologie industrielle sur le café,cit.,p.47e147.

Cf.EmiliaViottidaCosta,Dasenzalaàcolônia,SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1966,passim.

6C£MichaelM.Hall, Immigrationanil theEarlySãoPauloWorkingClass,s/d, p. 7 e 21, mimeo; Salvio de Almeida Azevedo, "Imigração ecolonizaçãonoEstadodeSãoPaulo",emRevistadoArquivoMunicipal,v.rxxxv,SãoPaulo,DepartamentodeCultura,abr.1941,p.121.

7Cf.LavozdeEpana,afiov,n.188,S.Pão(Brasil),7deEnerode1904,p.4.

8C£SecretariadaAgricultura,CommercioeObrasPúblicasdoEstadodeSão Paulo, Estatistica Agricola e Zootechnica -Anuo Agrícola de 1904-1905, 4 volumes, São Paulo, Typographia Brasil, 1908. Um autor,questionando os dados desse levantamento, argumenta que "há todaprobabilidade de as cifras do censo de 1905 terem subestimado onúmerodepequenosproprietários".Omotivoseriaque"muitossitiantese donos de minifúndios não registraram suas propriedades ou posses(sic) durante esse período". C£ Maurício A. Font, "Padrões de açãocoletiva dos plantadores paulistas de café: 1932-1933", em FernandoHenrique Cardoso et a1. (orgs.), Economia e movimentos sociaisnaAmérica Latina, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 220-222. (Na ediçãodesse livro,háomissãodas fontese referênciasbibliográ icasdepraxe,inclusive daquelas apontadas abreviadamente no corpo do texto, o quedi iculta a ampliação do comentário que aqui faço.) O autor nãoconsiderou os critérios usados no levantamento estatístico de1904/1905.Tais critérios foramestabelecidos, com toda a clareza, peloDecreto n. 1.323, de 23 de outubro de 1905 ("Approva as instruçõespara o levantamento da estatística agrícola e zootechnica do Estado deSãoPaulo",DiarioOf icial, anno15,n.236,SãoPaulo,26deoutubrode1905,p.2.539-2.542).Aocontráriodoqueelesupõe,olevantamentonão

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foi feitocombaseemregistros iscais: "Parapreenchimentodosmapas,deverão os auxiliares dirigir-se pessoalmente a cada proprietário ou aquem suas vezes possa fazer, solicitando com toda a urbanidade asinformações precisas para por si mesmos preencherem os mapas. Nocaso de recusa do proprietário ou quem por ele possa responder nãodeverá o auxiliar insistir, cumprindo-lhe, porém, preencher os mapascomas informaçõesqueprocuraráobterdosvizinhosouconhecidosdorecusante" (idem, p. 2.540). Cada uma das cinco zonas em que foidivididooestadodeSãoPaulo,pararealizaçãodesselevantamento,teriaumdelegadoparadistribuirotrabalhoereverosmapas.Cadamunicípioteriaumauxiliarquefariaotrabalhodecampo.Osmunicípiospoderiamser divididos em secções, cabendo, então, a cada uma um auxiliar. Olevantamento deveria ser feito até o dia 31 de janeiro de 1906: trêsmeses de trabalho, portanto. Trata-se, pois, de levantamento de campo,cujos dados resultam de pesquisa direta, e não de aproveitamento deregistros iscais incompletos ou viciosos. O viés que possa ter havidonessapesquisadiz respeito, fundamentalmente, à recusado informanteemcederosdadoseà impossibilidadedeobtê-losatravésdosvizinhos.Dequalquermodo, tal viés semanifestaria nas informações agrícolas ezootécnicas e não no número de propriedades, pois estas teriam sidoforçosamenteidentificadasnocampo.

9C£MinisteriodaAgricultura,IndustriaeCommercio-DirectoriaGeraldeEstatística, Recenseamento do Brazil Realizado em 1 de Setembro de1920,RiodeJaneiro,Typ.daEstatística,v.v,1aparte,p.LxrIIeixt,1927.No mesmo ano de 1920, os espanhóis de São Paulo tinham 3.530estabelecimentosagrícolaseosdoBrasiltinham4.725estabelecimentos.C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annoxiii,n.46e47,São Paulo, Typographia Brasil, Rothschild & Cia., 11 e 2° trimestres de1923,p.29ss.

10C£FreitasNobre,Históriada imprensa emSãoPaulo, SãoPaulo, Leia,1950, passim; Ana Maria de Almeida Camargo, Hemeroteca JúlioMesquita - Catálogo cronológico, São Paulo, Instituto Histórico eGeográficodeSãoPaulo,1975.

C£ "Entre amigos", Elgrito delpueblo (Defensor de los interesesdelproletariado),a io1,n.2,SãoPaulo(Brasil),20deAgostode1899,p.2-3. Sobre as reações à indicação de um cônsul espanhol em Ribeirão

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Preto(SP),cf.LavozdeEspana(Organode1aColôniaEspanola),a ioiii,n.96,S.Pablo(Brasil),3deAbrilde1902,p.1.

12C£MinistériodaAgricultura, IndustriaeCommercio -DirectoriaGeraldeEstatística,RecenseamentodoBrazil realizadoem1deSetembrode1920,v.iv,1aparte,RiodeJaneiro,Typ.daEstatística,1926,p.312-7.

13Idem.

14 C£ José de Souza Martins, "Espanhóis na formação e simbolização daidentidadebrasileira", emAA.W.,Brasil eEspanha -Diálogos culturais,São Paulo/Madrid, Fundação Cultural Hispano- Brasileira, 2006, p. 81-98; Maria dei Rosário S. Albán, A imigração galega na Bahia, Salvador,CentrodeEstudosBaianos/UniversidadeFederaldaBahia,1983,p.10;Jeferson Bacelar, Galegos no paraíso racial, Salvador,lanamá/Universidade Federal da Bahia, 1994; Célia Maria Leal Braga,Memóriasdeimigrantesgalegos,Salvador,CentroEditorialeDidáticodaUniversidadeFederaldaBahia,1995,p.93ss.;JosédeSouzaMartins,ApresençaespanholanoBrasileacontribuiçãodosespanhóisàformaçãodasociedadebrasileira(inédito),56p.

15 C£ Eduardo Dias, Um Imigrante e a Revolução (Memórias de ummilitanteoperário,1934-1951),SãoPaulo,Brasiliense,1983,passim.

16C£JacobPenteado,Belenzinho1910(Retratodeumaépoca),SãoPaulo,Livraria Martins, 1962, p. 57 e 228; Everardo Dias, História das lutassociais no Brasil, São Paulo, Edaglit, 1962, p. 42- 3. Um belo romancesocialsobreascondiçõesdevidaeoscon litosentreimigrantesitalianoseespanhóis,nosbairrosdoBrásedaMooca,nacidadedeSãoPaulo,nosanos1920e1930,éodePauloLícioRizzo,PedroManeta,publicadonoiníciodosanos1940.Esseautor,quandoaindaseminaristadoSeminárioPresbiteriano de Campinas, fora encarregado de uma congregação nobairro da Mooca. Na convivência com a população local, recolheu amatéria-primadeseuromance.Faleceuem1957,quandoerapastordaIgreja Presbiteriana Filadél ia, de São Caetano do Sul (SP). Deixoudiversoslivrosinéditos.Sobreoscortiçosdessaáreaedessaépoca,háanovela,finaeterna,deAfonsoSchmidt,Miritaeoladrão.

17 Num total de 1.617 vítimas de acidentes de trabalho ocorridos nacidade de São Paulo, em 1913, 156 eram espanholas. Calculando a

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porcentagemdeacidentadosespanhóissobreasomadeacidentadosdecada pro issão, os espanhóis superam sua própria proporção, sobre ototal de acidentados, nas seguintes pro issões: cocheiros, pedreiros,serventes de pedreiro, sapateiros, condutores de bonde, serviçosdomésticos,trabalhadores(braçais),cozinheiros,padeiros.C£BoletimdoDepartamento Estadual do Trabalho, ano ttt, n. 10, São Paulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,11trimestrede1914,p.199-203.Em 1914, os acidentes de trabalho que vitimaram espanhóis emproporção acima da média da pro issão, ocorreram nas seguintespro issões: motoristas, serventes de pedreiro, pedreiros, padeiros,operários, mecânicos, empregados. C£ Boletim do DepartamentoEstadual do Trabalho, anuo iv, n. 14, São Paulo, Typographia Brasil,Rothschild&Cia.,l°trimestrede1915,p.179-206.

sParachegaraessesresultados, izumatabulaçãoespecialdosdadosdoCenso de 1920 (c£ Ministério da Agricultura, Industria e Commercio -DirectoriaGeraldeEstatística,RecenseamentodoBrasil realizadoem1deSetembrode1920,v.iv,1"parte,p.818-67)combasenadistribuiçãomunicipal das plantações de café, de 1918 a 1928 (c£ Directoria daAgriculturaeCommercio,Ocafé,EstatísticadeProduçãoeCommercio -1928,SãoPaulo,EscolasPro issionaisdoLyceuCoraçãode Jesus,1929,passim.

19C£"EstatísticadosimmigrantesentradosnoEstadodeSãoPaulo,1827a1920",BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,anuox,n.38e39,SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,1°e2°trimestresde1921.

20C£"MovimentodepassageirospeloportodeSantosnoperíodode1908a1939",BoletimdoServiçode ImigraçãoeColonização,n.3, SãoPaulo,SecretariadaAgricultura,IndústriaeComércio,mar.1941,p.45-76.

C£BoletimdaDirectoriadeTerras,ColonizaçãoeImmigração,anuoi,n.1,SãoPaulo,SecretariadaAgricultura,IndústriaeCommercio,out.1937,p.61.

22C£PériclesdeMelloCarvalho,"A legislação imigratóriadoBrasilesuaevolução", em Revista de Imigração e Colonização, ano i, n. 4, Rio deJaneiro, Conselho de Imigração e Colonização, out. 1940, p. 719-36; c£,

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também,AngeloTremo,op.cit.,p.22-40.

13C£JosédeSouzaMartins,Oimaginárionaimigraçãoitaliana(esp.Cap.1:"Aviagemdovapor`Europa'aoAtlânticoSul,emjulhode1877"),SãoCaetanodoSul(SP),FundaçãoPró-Memória,2003,p.21-53.

2aCf. "Portashaciendas:bandidajecriacción", IavozdeEspana(ÓrganodeIacoloniaespanola),anoix,n.406,SãoPaulo,19deMarzode1908,p.2. Sobre os procedimentos adotados pela agência o icial na chegada doimigrante, c£ A immigração e as condições do trabalho em São Paulo,Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Publicas - DepartamentoEstadual do Trabalho, São Paulo, Typographia Brasil, Rothschild & Cia.,1915.

25C£AdolphoPosada, "Política da emigração", BoletimdoDepartamentoEstadual do Trabalho, anno ti, n. 8 e 9, São Paulo, Typographia Brasil,Rothschild&Cia.,3°e4°trimestresde1913-1914,p.389-90.

26 C£ Boletim de Departamento Estadual do Trabalho, anuo i, n. 1 e 2,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,SãoPaulo,1912,p.189;BoletimdoDepartamento Estadual do Trabalho, anuo i, n. 5, Typographia Brasil,Rothschild&Cia.,SãoPaulo,4°trimestrede1912,p.719.

27 Em 1914, entraram em São Paulo 14.903 imigrantes espanhóis;procediam da Espanha apenas 11.402 (76,5%). Cf. Boletim doDepartamento Estadual do Trabalho, anno iii, n. 12 e 13, TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,SãoPaulo,30e4°trimestresde1914/1915,p.806-7. Em 1915, entraram 4.369 espanhóis e desembarcaram apenas2.607 pessoas procedentes da Espanha (59,7%). C£ Boletim doDepartamentoEstadualdoTrabalho, anno iv, n. 17,TypographiaBrasil,Rothschild & Cia., São Paulo, 1915, p. 733-5. Em 1916, entraram 7.409espanhóis, embora procedessem da Espanha apenas 2.236 pessoas(30,2%). C£BoletimdoDepartamentoEstadual doTrabalho, annovi, n.22,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,l°trimestrede1917,p.209-11.Em 1917, entraram 9.691 espanhóis, dos quais apenas 1.834embarcados em portos da Espanha (18,9%). Cf. Boletim doDepartamento Estadual do Trabalho, anno vii, n. 26, São Paulo,Typographia Levi, l° trimestre de 1918, p. 301-3. Em 1924, entraram5.639 espanhóis, dos quais 3.545 embarcados em portos da Espanha

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(62,9%).C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annoxv,n.54 e 55, Typographia São Paulo, Brasil, Rothschild & Cia., 1° e 2°trimestresde1925,p.40-1.Em1926,desembarcaram5.180espanhóis,sendo que 4.117 procediam da Espanha (79,5%). C£ Boletim doDepartamento Estadual do Trabalho, anno xvi, n. 58, São Paulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,1°trimestrede1927,p.9-12.

28C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,anuovi,n.22,cit.,p.209.

C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annoxvi,n.59-61,SãoPaulo, Typographia Brasil, Rothschild & Cia., 2°, 3° e 4° trimestres de1927,passim.

soC£BoletimdoDepartamentoEstadual doTrabalho, anuo vi, n. 23, SãoPaulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,21trimestrede1917.

31Cf.BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,annoxvi,n.59-61,cit.

32C£BoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,anuovi[,n.26,SãoPaulo, Typographia Levi, 1° trimestre de 1918, p. 303; Boletim doDepartamento do Trabalho, anuo vi, n. 22, cit., p. 211; Boletim doDepartamento Estadual do Trabalho, anuo xiv, n. 53, São Paulo,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,4°trimestrede1924,p.40-1.

33C£SergioMilliet,op.cit.,p.5-72;PierreMonbeig,op.cit.,p.147-90.

34C£SecretariadaAgricultura, IndustriaeCommerciodoEstadodeSãoPaulo - Directoria de Industria e Commercio, O café, estatistica deproduçãoecommercio,1928,cit,passim.

35 Ficou no folclore rural paulista um belo acalanto que registra essemomentodatransiçãonaorganizaçãodotrabalhonas fazendasdecafé,que ouvi quando criança, cantado por minha mãe, de uma família deimigrantes espanhóis subvencionados, enviados para os cafezais daregiãodeBragançaPaulista,em1913:"Nananenê,queaCucavempegá.Mamãe tá na roça, papai no cafezá". Florestan Fernandes, em suaspesquisas folclóricas na cidade de São Paulo, recolheu uma variantedesse acalanto, provavelmente trazido para a cidade por migrantes

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oriundosdomeiorural:"Durmanenén,queocucavempegá,papaifoiàroça, mamãe no cafezá". C£ Florestan Fernandes, Folclore e mudançasocialnacidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,Anhembi,1961,p.263.

36 Sobre a problemática da personalidade básica, c£ Abram Kardiner eta1., 7he PsychologicalFrontiers of Society, Columbia University Press,New York, 1959; Mikel Dufrenne, La personalidad básica, trad. JorgeGarciaBouza,BuenosAires,Paidos,1959.

37C£MinisteriodaAgricultura, IndustriaeCommercio -DirectoriaGeraldeEstatística,RecenseamentodoBrazil realizadoem1deSetembrode1920,v.Iv,1aparte,p.818-67.

38C£SecretariadaAgricultura, IndustriaeCommerciodoEstadodeSãoPaulo - Directoria da Industria e Commercio, O café, estatistica deprodução e commercio, 1928, cit., passim. Nas regiões do antigo oestenovo,comoaMogiana,aprodutividadecaiude62,64arrobaspormilpésdecafépara38,30.Emregiõesmaisnovas,comoaNoroeste,aquedafoide53,93arrobaspara47,09.Entre1918e1927,opreçodocafé,emmilréis, subiu cercade300%.Emcompensação,o câmbio caiuamenosdametade. C£ Paulo R. Pestana, O café em São Paulo, São Paulo,TypographiaLevi,1927,p.23.

39C£SecretariadaAgricultura,CommercioeObrasPúblicasdoEstadodeSãoPaulo,EstatisticaAgricola eZootechnica-AnnoAgricolade19041905,cit., passim.Na publicação, faltam os dados para osmunicípios deMogidasCruzes,Sta.Isabel,Tietê,Itu,ApiaíeIguape.Essafaltacorrespondea13%daspropriedadesestimadas.Paraonúmerodeimigrantesentradosa partir de 1880, c£ Boletim do Departamento Estadual do Trabalho,annov,n.19,TypographiaBrasil,Rothschild&Cia.,2°trimestrede1916,p.183-5.

40C£SecretariadoAgricultura,CommercioeObrasPublicasdoEstadodeSão Paulo, Estatística Agrícola e Zootechnica - Anno Agricola de1904.1905,cit.,passim.

41 C£ Secretaria do Agricultura,' Industria e Commercio, EstatisticaAgricola e Zootechnica, 1930.1931,Directoria de Estatistica, Industria eCommercio,SãoPaulo,1932,p.22-3.

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42C£DiarioEspanol,a ioxviii,n.2.131,Viernes,12deMayode1916,p.4e 5. C£, também, Mensagem apresentada ao Exmo. Snr. De Carlos deCampos,em1odemaiode1924,peloExmo.Snr.Dr.WashingtonLuisP.deSouza,ex-presidentedoEstadodeSãoPaulo,SãoPaulo,TypographiadoDiárioOfEcial,1924,p.42-3.

43 C£ Secretaria de Estado dos Negocios da Agricultura, Industria eCommercio, Recenseamento Agricola-Zootechnico Realizado em 1934,Anno Agricola 1933-34, São Paulo, 1936, p. 25. A respeito, c£ SergioMilliet, "O desenvolvimento da pequena propriedade no Estado de SãoPaulo",Roteirodocaféeoutrosensaios,cit.,p.73-116.

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Populaçãoeprodução:quatroproblemas

A teseprincipaldestecapítuloéadeque,aomododeexplorara forçade trabalho nas fazendas de café, no Brasil, no período de transição daescravaturaparaotrabalholivree,navigênciadotrabalholivre,àsváriase sucessivas formas que assumiu em direção ao trabalho assalariado,corresponderam momentos do movimento da população no que a esserespeitofoimaiscaracterísticoefundamental,aimigraçãoestrangeiraeasmigrações internas. Assim comonão se sustenta a tese de uma transiçãodo trabalho escravo para o trabalho assalariado, tampouco se sustenta atese de que a imigração foi um movimento de característica única e dedinâmicaconvergente.Foioquemostreinacomparaçãoentreaimigraçãoespanholaeaimigraçãoitaliana,nocapítuloanterior.Comissoquerodizerque, se em relação à produção cabe uma análise minuciosa do processocomoela sedeu, tambémpelamediaçãodela cabedescobrirosvariantesmodoscomoapopulaçãofoimobilizadapeloprocessodetrabalho.

É o que nos permite compreender o que foi o longo e complicadoprocessoderompimentodosentravesàlibertaçãodosaláriodaestruturasocialarcaicaquereduziaotrabalhadoràcondiçãodecoisaesemovente,na escravidão, e à condição de objeto servil, no colonato. A demogra iadaquela economia de tipo colonial produzia carências populacionais quebloqueavamasvirtualidadesdeumasociedadeque icavanomeiotermode uma lentidão histórica em direção ao capitalismo característico; queimpunhaumritmode transformação social comedidoe a exacerbaçãodemediações de transição de que o colonato do café foi a expressão maissigni icativa e mais documentativa. Esse longo e complicado processo égeralmente simpli icado e reduzido a um esquematismo abstrato em quese perde completamente de vista o complexo e demorado caminho daconstituição das classes sociais propriamente ditas, ainda difusas entre

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nós,comoforametêmsido,merareferênciapolíticaeinterpretativa.

É aí inútil buscar o operário que personi ica o salário, na economia docafé, se nem mesmo o capital se libertou dos entraves agrários que lhepermitiam apenas a personi icação num capitalista híbrido que nemsempre podia assumir-se consciente e e icazmente como empresário,sendo,antes,oproprietáriodeterra.

Adotocomodatasdereferênciaoperíodoentreosanosde1880e1914.Oprimeirocomoolimiteinicialdafasesocialehistoricamentemaisdensae rica da história do café; o segundo como marco da decadência daimigração estrangeira, quando começa a crescer a importância dochamado trabalhador nacional na economia do café.' De qualquer modo,não me ative rigidamente a essas datas, trabalhando com elas apenasreferencialmente.Meu interesseno textoépôraênfasenaconstituiçãoedesagregação de relações historicamente fundamentais para acompreensão do que foi a relação entre população e produção, entre aforçadetrabalhoeaacumulaçãodecapitalnomundodocafé.

Entre 1850 e 1930, o café foi o principal artigo de exportação daeconomia brasileira, associado em diferentes graus de importância e emdiferentesmomentosàexportaçãodoaçúcaredaborracha.Sendoelaumaeconomia agrária, de tipo colonial, foi o café, desse modo, a mercadoriaprincipal e aquela que marcou fundo a organização social e política dasociedadebrasileira,principalmentea sociedadedoSudestedopaís -Riode janeiro e São Paulo - a que determinou acontecimentos social epoliticamente fundamentais: a extinção do trá ico negreiro, em 1850, alibertaçãoprogressivadosescravosnegroseaaboliçãodaescravatura,em1888, a proclamação da República, em 1889, a industrialização, a partirdos anos 1880, e aRevoluçãode 1930, quepôs im à hegemonia políticadosgrandesfazendeirosdecafé.

UmdosmaismovimentadoscapítulosdahistóriadapopulaçãonoBrasilestá diretamente relacionado com essemomento da história econômica ecom o predomínio do café. A cessação do trá ico negreiro provocou o

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deslocamento interno de escravos das lavouras da cana-de-açúcar doNordesteparaaslavourasdecafédoSudestedopaís,nochamadotrá icointerprovincial, na lavoura açucareira daquela região substituída peloschamados "moradores" das fazendas, mestiços e remanescentes daescravidão indígena, formalmente cessada em 1757. A economia do café,em expansão, não podia depender de um escravismo em extinção, aindaquelenta.Porisso,esseprocessoéacompanhadopelaimplantaçãodeumapolíticade imigraçãode trabalhadoresestrangeiros, acentuada sobretudoa partir de 1880, dirigida principalmente para a região cafeeira de SãoPaulo.Entre1877e1914, essa região recebeu1.779.470 imigrantes,dosquais 845.816 eram italianos, seguindo-se em importância numérica osespanhóiseosportugueses.'Dezenasdemilharesdeimigrantes,incluindoaindaalemães,suíçosepoloneses,dirigiram-se,também,paraaregiãoSuldopaís.Masonúmeromaissigni icativodestinou-seàsgrandesplantaçõesdecafédaregiãodeSãoPaulo.

Quando se toma como referência o movimento da população, e dapopulação enquanto força de trabalho das fazendas de café, surgemalgumas questões importantes para a compreensão do desenrolar doprocesso histórico. A primeira é questão corrente nos estudos sobre aeconomia cafeeira, ainda hoje insu icientemente resolvida: por que,dispondo o país de uma grande massa de homens livres e pobres nocampo, teveocaféquerecorrerà imigraçãoestrangeiraparasubstituiroescravo?

Uma segunda questão, respondida de modo inadequado em muitosestudos, como vimos, refere-se àmodalidade de relação de trabalho queocupouolugardarelaçãoescravista:porqueoescravonãofoisubstituídopor trabalhadores assalariados e sim por formas não capitalistas deexploraçãodaforçadetrabalhopelocapital,comoaparceriaeocolonato,baseadasnaproduçãodiretadosmeiosdevidapeloprópriotrabalhador?

Uma terceira questão diz respeito ao modo como se combinaram adinâmicadapopulaçãoeadinâmicadaprodução.Deinício,acessaçãodotrá ico de escravos e o comprometimento da escravatura a longo prazoapareceram, para o fazendeiro e para a economia do café, como umproblemadeofertademãodeobra,comoumaquestãodequantidadede

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força de trabalho disponível para os cafezais e não, como se é tentado asupor, como tendo chegado a hora de uma transformação profunda nasrelaçõesdeprodução.Tantoque, jáem1850,ogovernopreconizavaumapolítica imigratória que garantisse um substituto para o trabalhadorescravo.Defato,porém,oproblemadapopulaçãoeraoproblemadaforçadetrabalhoparaagrandefazendaeoproblemadotrabalhoconsistia,naverdade, no problema das relações sociais de trabalho, no problema daforma das relações de produção. A questão da quantidade detrabalhadoresnecessáriosàgrandefazendafaziacomqueomovimentodepopulaçãosedeterminassepelomododeexploraçãoda forçadetrabalhoepelomododecriaçãodariquezaatravésdocafé.

Daí decorre uma quarta questão. Estando o movimento da populaçãodeterminado pelo modo de explorar a força de trabalho, é necessárioesclarecer a relação que há entre as características do movimentopopulacionaleomododeorganizarotrabalhonafazendadecafé.Omododeproduzir o café, o processode trabalhona fazenda cafeeira, a relaçãoentreo trabalho,apropriedadeeocapital, re letiram-sedequemodonomovimento da população? Essa indagação permitemostrar a relação quehouve entre o trabalho no café e a forma assumida pelo movimentopopulacional. Vou me referir àquilo que foi mais signi icativo nacafeicultura:afundamentalimportânciadaimigraçãoedapreponderânciada família no processo imigratório e na organização do trabalho nafazenda. Em outros termos, assim como em relação à grande indústriapode-sefalarnaquestãodasuperpopulaçãorelativa,meiodereduçãodossalários, em relação à economia da grande lavoura, pode-se falar numafalsacarênciadeterrasparaotrabalhofamiliar,comomododecriarumasuperpopulação relativa ictícia que tornava compulsório o trabalho dosimigrantesdesprovidosdemeiosnasfazendasdecafé.

Adívidaearoçanasujeiçãodotrabalholivre

Embora o país dispusesse de milhões de camponeses livres, segundoCouty,3nomomentoemquesecon igurouacrisedotrabalhoescravoeoimprováveldaescravidão,osgrandesfazendeirosdecaféencontraramasoluçãoparaoseuproblemademãodeobranaimigraçãodecentenasdemilhares de trabalhadores estrangeiros. Essa aparente contradição

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esconde características e processos muito importantes para acompreensão do que foi omundo do café e das di iculdades para que acafeicultura evoluísse direta e plenamente para relaçõescaracteristicamente capitalistas, tanto no que se refere à organização daprodução quanto no que se refere à composição da força de trabalho. Asolução para o problema da força de trabalho estava diretamentedeterminada pelas di iculdades objetivas que se levantavam diante dofazendeiro e diante dos trabalhadores rurais para que se confrontassemlibertados das peias representadas pela propriedade da terra, pelo ciclonaturaldaagriculturaepelaproduçãodiretadosmeiosdevidaporpartedotrabalhador.

Dequalquermodo,nãoéinteiramenteverdadeiroqueagrandefazendanão tivesse incorporado o trabalho desses camponeses livres. Quando acessaçãodotrá icoameaçoucomprometeraslavourasdecafé,noSudestedo país, desenvolveu-se o chamado trá ico interprovincial de escravos,sendo particularmente signi icativo o que drenou escravos do Nordeste,mesmodoNordesteaçucareiro,paraasfazendasdecafédoRiodejaneiroe de São Paulo.' Nesse caso, os próprios mecanismos de mercadoencarregaram-sederemoveramercadoriaescravodasfazendasdecana-de-açúcar, que começavam a viver a sua decadência econômica, para asfazendasdecafé,queporsuavezcomeçavamaviveraprosperidadequese estenderia até quase o inal do século xix. Portanto, a crise do trá iconegreiro foi se re letir primeiro na velha economia açucareira, já que, deimediato, manifestou-se na elevação dos preços dos escravos. O trá icointerprovincial transformouoprejuízo certo comessaelevaçãodepreçosdos cativos em lucro extraordinário, com a desimobilização da rendacapitalizadanapessoadotrabalhadorescravo.

Nolugardonegro,começaramaserincorporadososantigosagregadosdasfazendasdoNordeste,oschamadosmoradores.Essesmoradoreseramhomens teoricamente livres que, devido aos mecanismos de exclusão ediscriminação do regime de propriedade fundiária que teve vigência noBrasil durante todo o período colonial, permaneceram ao longo dasgerações como moradores de favor das grandes fazendas de cana-de-açúcar. Eram, principalmente, populações mestiças de índias e brancos,indígenas domesticados e escravizados há várias gerações, juridicamente

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libertos comoDiretório, que seDeveObservarnasPovoaçõesdos índiosdoPara eMaranhão, em1757, emantidos, desde então, comoagregadosdentro de terras que muitas vezes haviam sido de suas próprias tribos.Além deles, mestiços de negros e brancos, negros libertos e brancosempobrecidos.Geralmente,essescamponeses livres tinhampermissãodefazer suas roças de mandioca, feijão e milho nas terras limítrofes dasfazendas. Com a diminuição da mão de obra escrava, os fazendeiroscomeçaram a cobrar foro de seus moradores, sob a forma de dias deserviço no canavial, o chamado cambãos a renda da terra em trabalho,paraquecontinuassematerpermissãodeplantarsuasroças.

Essa fórmula, entretanto, não podia disseminar-se por todo o país. OmesmoCouty,antesmencionado,enãosóele,masoutrosparticipantesdoamplo debate sobre as consequências sociais e econômicas do im daescravidão, entendia que a fórmula de integração dessa massa decamponeseslivresnaeconomiadocaféseriamedianteafragmentaçãodolatifúndio e a disseminação da pequena propriedade. Nesse caso, osfazendeirosde café, assimcomo,de certomodo, começavaaocorrer comos de cana através da instalação dos chamados engenhos centrais, setransformariamemempresários industriais.Teriamaseucargoapenasobene iciamento e preparação do café para exportação, das quais ospequenos agricultores seriam .6 Em outros termos, os camponeses livresentrariam diretamente para a produção dos artigos de exportação,especialmenteadocafé,atéentãomonopóliodosgrandesproprietáriosdeterrasedeescravos.Talproposta,entendiamseusdefensores,acelerariaodesenvolvimento do caráter capitalista da economia do café e, de certomodo, superaria os obstáculos que impediam o fazendeiro de cumprir,plenamente, a personi icação do capital, obstáculos representadosparticularmentepeloescravoepelaescravidão.

Essa passagem, todavia, não era simples e não dependia de que osfazendeiros fossem tomados por uma "clareza de consciência' a respeitodosseusinteressescomocapitalistas.Justamenteporqueeramfazendeiroscapitalistas podiam perceber, com clareza até excepcional, como ocorriacom o grande empresário e grande fazendeiro Antônio da Silva Prado,?que,nointeressedeseuprópriocapital,estavamsujeitosàsdi iculdadeseaos entraves representados pela escravidão e,mais tarde, pelas relações

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de trabalho não capitalistas que implantaram em suas fazendas. Ascontradições do capital, naquele momento e naquela situaçãohistoricamente singular, não podiam ser superadas por mero ato devontade - tinhamquesersuperadasobjetivamente, resolvidasnopróprioprocessodocapital,dequeofazendeiroerameroagente.

Aprincipaldificuldade,portanto,comquesedefrontaramosfazendeirosdemuitasregiõesdopaís,e,particularmente,os fazendeirosdecafé, foiadequenemsempredispunhamdemecanismossociaiseeconômicosquetornassem compulsório, em seu bene icio, o trabalho dos pequenoslavradores livres e pobres. Couty tinhapresente essa di iculdadequandonãoviaoutrasaídaparaacrisedotrabalhoescravosenãoaredistribuiçãodapropriedadefundiária.Portanto,numareformaagrária.

Na caso do Sudeste, a domesticação, expulsão ou extermínio dapopulação indígena ocorrera séculos antes que surgisse uma agriculturadeexportaçãosu icientementedisseminada.'Houveumperíodograndedetempo entre um acontecimento e outro, o que esvaziou a área de umapopulação de trabalhadores livres potenciais su icientemente numerosa.Quando o café, mais ou menos rapidamente, se espalhou pelo Rio dejaneiroemdireçãoaoValedaParaíbae, posteriormente, aooestedeSãoPaulo, já encontrou regiões de povoamento ralo de populações nativas emestiças. Populações que não estavam sob jugo e dependência dasgrandes fazendas, há quase três séculos vegetando na pobreza daagricultura de subsistência,9 diversamente do que ocorria com osagregadosdasfazendasnordestinas.ErasituaçãobemdiversadaqueladaregiãocanavieiradaNordeste,ocupadapelacana-de-açúcarquasedesdeocomeço da colonização emuito antes da abolição da escravidão indígenaqueseconsumariaemmeadosdoséculoxviii.

Alémdisso,haviaoutrasdiferenças importantesentreacana-de-açúcare o café, que se re letiram diretamente no modo de incorporar oslavradores livresepobresàagriculturadeexportação.Aculturadacanamanteve-se,ao longodosséculos,namesmaregiãolitorâneadoNordeste.Já a cultura do café foi se deslocando progressivamente em direção aterrasmais férteis emaisdistantesdo litoral,nummovimentoqueduroupraticamentecemanos,atéqueoscafezaisalcançassemochamadonorte

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do Paraná, a mais de mil quilômetros do lugar de sua primeiraexpansão.10Poressemotivo,diversamentedoqueocorreucomacana,ocafésedefrontousemprecomoproblemadaformaçãodasnovasfazendas(e, não raro, com o abandono das culturasmais antigas, substituídas pornovos e diferentes usos da terra, como a pecuária leiteira), o quecompreendia a derrubada da mata e a formação da cafezal; o querepresentavaumademandaespecialdemãodeobraparaessatarefa.Poroutro lado, enquanto o ciclo de renovação do cafezal era demorado,aturando bem 20 a 30 anos em boas condições de produção, havendomesmo cafeeiros capazes de resistir por aindamais tempo, a cultura dacana exigia uma renovação cíclica muito rápida. Antonil, no século xvill,mencionava plantações que, na melhor das hipóteses, resistiam duranteseis a sete anos," impondo-se em seguida a renovação do plantio, que demodo algum se confundia com o trabalho de formação de uma novafazendaporqueerafeitaemáreajádesbravada.

Só aparentemente os lavradores livres e pobres, os posseiros, oschamados caboclos e caipiras, foram excluídos da economia do café. Sãomuitas as indicações de que, na medida em que se dava a expansãogeográ ica do café, esses lavradores devotados à chamada agricultura deroça(dederrubadadamata,dequeimada,decoivara,deplantiodomilhoedofeijão,dedeslocamentoparanovaterraapósalgunsanosdecultura),foram sendo expulsos da terra pelos grandes fazendeiros.' Ou seja, nãohavia lugarparaelesno interiordagrande fazendadecafé.Entretanto,aexpansão dos cafezais chegou a incorporar esses lavradores comoplantadoresdecaféeformadoresdefazendas.Jánotempodaescravidão,como mencionei antes, não era o negro cativo o responsável peladerrubadadamata,pelalimpezadoterrenoepeloplantiodocafé.'IEssastarefaseramcomumenteatribuídasalavradoreslivresepobres,àsvezeschamados de empreiteiros, aos quais se incumbia, durante um períodogeralmente de quatro anos, formar o cafezal. Em troca, recebiam umpequeno pagamento em dinheiro, mas, principalmente, recebiamautorizaçãoparaplantar,entreos jovenspésdecafé,oseumilhoeoseufeijão, cabendo-lhes ainda, com frequência, o direito de colher o café queeventualmente fosse produzido no quarto ano.14 Particularmente, oplantio domilho erado interesse do fazendeiro, já que servia de sombraparaoscafeeirosaindajovens,sujeitosaoriscodesecar.

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Esse procedimento, que marcou a formação das fazendas de café atémuito depois da abolição da escravatura, foi a fórmula encontrada pelosgrandes proprietários para incorporar na própria economia cafeeira oshábitos de itinerância dos lavradores pobres e seus costumes relativos àchamada agricultura de roça: derrubada, queimada, cultivo pordeterminadonúmerode anos e deslocamentoparanova áreademata.Aitinerânciaporsimesmaafastavaesseslavradoresdoscafezaisemdireçãoaterrasvirgens.Mas,emtrocadeumanãoexpulsãoimediatae,portanto,em troca do favor e da permissão de fazer a roça de subsistência,entregava ao fazendeiro o cafezal formado,15 isto é, pagando com ele oqueeradefatoumarendaemtrabalho.

Assim, enquanto no Nordeste canavieiro o agricultor livre e pobrepermaneceuno interiorda fazendacomoagregado, sujeitoaopagamentoperiódico e permanente de uma renda em trabalho, de dias de foro nocanavial, no Sudeste cafeeiro, o foro também foi cobrado em trabalho, naformaçãodocafezal,masdeformadiferente,umaúnicavez,semconstituirvínculo de agregação nem, portanto, agregar permanentemente a iguradesse trabalhador ao latifúndio. Enquanto noNordeste o lavrador livre epobre foi incorporado no próprio processo de produção da cana e,portanto,noprocessodereproduçãodaeconomiacanavieira,noSudesteolavrador pobre foi incorporado "exteriormente" na formação da fazenda,masnãonaproduçãodocafé.ComexceçãodaregiãodoValedoParaíba,onde, após a escravidão, perdurou o regime de parceria, que nãorepresentou o avanço social do colonato e onde predominou o chamadotrabalhador nacional. Mas, depois do im do escravismo, essa foi umaregiãosecundárianaeconomiadocafé.

Embora o fazendeiro de café arrancasse dos lavradores pobres afazenda formada como um tributo pelo uso da terra, mascarava aexpropriação que assim se consumava com a itinerância dos sitiantes. Aexploração que nele aparecia embutida, aparecia como se sua concessãode plantio na verdade protegesse a sobrevivência e reprodução dessamodalidade de campesinato. O que era diferente do que ocorria com acana, em que o tributo representado pelos dias de cambão, de foro,con iguravaumasujeiçãoeoenvolvimentodoscamponesesnumprocessodeexploraçãopermanenteesistemáticapelofazendeiro.Aintensidadeea

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violência dessa sujeição do morador ou do processo de subjugação dolavrador pobre pela grande fazenda não raro produziu inquietaçõessociais e con litos. Na Revolução Praieira, de Pernambuco, em 1848,quandojátramitavanoParlamentodoImpériooprojetodaLeideTerras,queseriaaprovadoeentrariaemvigorem1850,ospróprios fazendeirostemiamqueoquechamavamde"LeiAgrária"pudesseprivá-losdasterrasedosmoradores,amãodeobragratuitadequedispunhamsoboarti íciodopagamentodoforo.'6

Essequadronosindicaqueaproduçãodecafépropriamentedita icouameaçada com a possibilidade de redução da mão de obra escrava e,sobretudo,comapossibilidadedeextinçãodoescravismo,jáquenãohaviafacilidade para incorporar os agricultores livres e pobres ao próprioprocesso de produção do café. Portanto, os cafeicultores tiveram quedesenvolver outrosmecanismos de recrutamento e incorporação demãode obra para seus cafezais, mecanismos completamente diferentesdaquelesqueforamdesenvolvidosnoscanaviaisdoNordeste.

Talsituaçãode iniuanecessidadedaimigraçãomaciçadetrabalhadoresestrangeiros, cujo apogeu se deu entre 1880 e 1914. A importâncianumérica dessa imigração para formar a força de trabalho dos cafezaisbrasileiros já foi su icientemente estudada. O que importa, entretanto, édesvendar os mecanismos sociais e econômicos da incorporação dotrabalhodo imigrante na economia do café. Emoutros termos, suprimidaprogressivamente e inalmente abolida a escravidão do negro, foramabolidos também os mecanismos de exploração compulsória da força detrabalho.Oadventodotrabalholivredoimigrantereclamadopesquisadorumaanálisesobreagêneseeadisseminaçãodosmecanismossociaisquetornaram, de outra forma, também compulsório o trabalho do imigrantelivre, que o forçaram a não só oferecer o seu trabalho ao fazendeiro decafé,parasobreviver,masasubmeter-seaoritmoeàdisciplinadafazendacafeeira.Osmecanismos,enfim,queasseguraramasujeiçãodotrabalhodoimigranteàfazendadecafé.

A primeira providência nesse sentido envolveu a reformulação doregime de propriedade da terra, o que se deu em setembro de 1850,apenas duas semanas após a extinção legal do trá ico negreiro.

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Evidentemente,apromulgaçãodachamadaLeideTerrasnãoconstituiuainvençãosúbitadeumnovoregimedepropriedade.Acompraevendadefazendas era corrente, enquanto negócio de benfeitorias feitas sobre aterra. Sobre a terra nua, porém, permanecia o domínio do Estado,separadodesuaposseútil.Épobreoquestionamentodainterpretaçãodeque a Lei de Terras, ao formalizar e instituir um novo regime depropriedadefundiáriacomafunçãodecercearoacessoàterraporparte,sobretudo,dosimigrantesqueseriamtrazidosparaoBrasil,comopreviaamesma lei.'7 O longo debate, de mais de trinta anos, que precedeu aaprovação dessa lei, girou em torno, justamente, das funções históricas,sociaisepolíticasqueteria.Nessedebate,aalternativadoquesechamariahoje de reforma agrária foi considerada, como instrumento de separaçãoentre a propriedade da terra e a do capital, pressuposto teórico dalibertação do capital e, portanto, da emancipação do capitalismo.Pressuposto,aliás,tambémdateoriadocapitalismodeKarlMarx,extensotema do terceiro e inacabado volume de O capital. Os grandesproprietários,noBrasil, jáerammodernosnomomentodatransiçãoparaotrabalholivreporque,nogeral,tinhamumaconsciênciaclaradequesuariqueza era tolhida pela escravidão e de que a escravidão era inevitávelsem o cerceamento do direito de propriedade mediante a conversão daterraemequivalentedemercadoria,seuacessoreguladopeloprimadodopreçoedacompra.18

Háumquadrodereferênciahistóricoepolíticoquede inecomclarezaas razões objetivas de instauração das regras de propriedade da Lei deTerras.` Como mencionei antes, já foi dito em diferentes ocasiões, e pordiferentes autores, a nova legislação fundiária de 1850 nasceuestreitamente relacionada com a crise do trabalho escravo plantada nasuspensão do trá ico negreiro e com a ameaça que essa crise poderiaestender à grande lavoura, fundada no latifúndio porque fundada naescravidão.AsprimeiraspressõesdaInglaterracontraotrá iconegreiroeoprimeiro acordonesse sentidoocorreramnos anos1820, comoumdoscomponentes do processo de independência do país. Em 1822, poucosmeses antes da proclamação da Independência, era suspenso o velhoregime de sesmarias, o regime colonial de propriedade, em que o reipreservavaodomíniodaterraconcedida,concedendoapenasaposseeouso aos fazendeiros, sob determinadas condições.20 Porém, já no século

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xvrrr e no século xix, nas regiões próximas ao grande mercado dealimentosdoRiode Janeiro,ounas regiõesdemaiordesenvolvimentodaeconomiadeexportação,aterraemsimesmacomeçouadestacar-secomoobjeto de comércio e especulação, como fator de geração de rendaabsoluta.`Masnão tinhamseuniversalizadona sociedadebrasileira,nemtinhamseliberado,osfatoresdeconversãodaterraemmercadoria,oquefaziadessescasos,casosexcepcionais.

A imigraçãocomosoluçãoparaacrisedo trabalhoescravoentrariaemcon lito com a liberdade de acesso à terra, ao menos formalmenteassegurada, seopaíspassassea serprogressivaemaciçamentepovoadoporhomenslivres,aindaquepobres,sobreosquaisnãorecaíssenenhumainterdição racial, social e jurídica para impedir que se tornassemfacilmente proprietários de terras. A criação de uma nova forma deinterdiçãonasceujuntocomacessaçãodotrá icoea instauraçãodonovoregimedepropriedade.Jáem1842,numaconsultadoConselhodeEstado,na fasedegestaçãodaLeideTerras,esseprincípioeraestabelecidocominteiraclareza:

Umdosbene íciosdaprovidênciaqueaSecçãotemahonradepropor a Vossa Majestade Imperial é tornar mais custosa aaquisição de terras [...]. Como a profusão em datas de terras tem,mais que em outras causas, contribuído para a di iculdades quehojesesentedeobtertrabalhadoreslivreséseuparecerqued'oraem diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma.Aumentando-se, assim, o valor das terras e di icultando-se,consequentemente, a sua aquisição, é de esperar que o imigradopobre alugueo seu trabalho efetivamentepor algum tempo, antesdeobtermeiosdesefazerproprietário.22

Desse modo, até mesmo as terras livres que, no regime anterior,estavamsujeitas a simplesocupação, só teriamaquisição legítimaatravésdacompra.Éoqueabreumlongoperíododecon litosfundiáriosatéhojenão encerrado, pois as outras formas de aquisição da terra tornaram-seautomaticamente ilegais e sujeitas a contestação judicial, salvo nos casosexpressamentecontempladosnasleis.Seriaenganosuporquea inalidadedaLeideTerrasfosseadedemocratizaroacessoàpropriedadefundiária.

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Na verdade, ela nasceu como instrumento legal que assegurava ummonopólio de classe sobre a terra em todas as regiões do país, mesmonaquelasaindanãoocupadaseconomicamente.Comisso,oquede fatoseconseguia era interditar o acessodo lavradorpobre à terra, impedindo-ode trabalhar para si e obrigando-o a trabalhar para terceiros,especialmenteparaosgrandesproprietários.

Um segundo mecanismo de sujeição do trabalhador agrícola pobre,postoempráticapelosfazendeirosdecafé,foiodoseuendividamento.Osprimeiros imigrantesestrangeirosquechegaramaoBrasilpara trabalharnacafeiculturaforamengajadosnoregimedeparceria.Comoofazendeiroeraquemcobriaasdespesascomotransporteealojamentodoimigranteequem o custeava até que obtivesse os primeiros resultados de seutrabalho,arrolavaessesgastoscomodívidadocolono,aqueacresciaaindaos juros correspondentes.Aparceriaenvolvia todasasdespesas,desdeotrato do cafezal até a colheita, o bene iciamento, o transporte e acomercialização, e mais os adiantamentos feitos para aquisição deferramentaseparacusteiodafamíliadolavrador.23

Embora as discussões e análises sobre a substituição do trabalhoescravo pelo trabalho livre tivessem geralmente como referência otrabalhadorassalariado,ograndemedodosfazendeirosestavajustamentenas consequências econômicas do assalariamento.24 O salário introduziauma temporalidade especí ica na remuneração do trabalhador e norelacionamento com o fazendeiro, que não coincidia com o ciclo daprodução do café, com o ano agrícola. O temor escondia o fato de que osaláriodescompromissavao trabalhadorcomocicloagrícolae colocavaofazendeiro no risco de ver-se, no momento da colheita, sem ostrabalhadores necessários à apanha do café. Por meio do salário, otrabalhadoradquiriaumaliberdadedecirculaçãoquecomprometiatodaaeconomia cafeeira. Ainda que não fosse o único, esse foi um fatorponderável para que as relações salariais não se disseminassem nafazenda de café na mesma proporção da substituição do escravo pelotrabalhador livre. Outro fator foi o da consciência do encarecimento docultivo do café se todo o trabalho fosse feito por trabalhadoresassalariados,comováriasvezesapontaramobservadoreseestudiosos.21

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A parceria reduzia o acerto de contas a uma vez por ano, após oencerramento do ciclo agrícola, e comprometia o trabalhador com o ciclointeiro. 0 meca nismo do endividamento do trabalhador ampliava a suasujeição, obrigava-o a permanecer mais tempo na fazenda. Ainda que otrabalhadorpudessedeslocarsedeumafazendaaoutra,taldeslocamentoestava sujeito à compra da sua dívida, pelo outro fazendeiro. E, comodesdobramentodessasujeiçãopordívidaotrabalhadornemmesmopodiaausentar-se da fazenda sem prévio consentimento do fazendeiro ou doadministrador. Isso impedia que fosse oferecer o seu trabalho a outrofazendeiro e que burlasse, pois, os interesses do fazendeiro que, poradiantamento,haviasetornadosenhordeseutrabalho.Impedia,também,que izesse suas compras em outros armazéns que não o armazém dafazenda em que trabalhava.21 Justamente amanipulação dos preços dasmercadorias desses armazéns constituía um instrumento fundamental nasujeiçãopordívida.

Enquanto a parceria veio a decair como forma de exploração dotrabalhador pela fazenda, outro mecanismo de sujeição, que com elanascera,sobreviveuaolongodotempo:re iro-meàpermissãoparaqueolavrador tivesse sua própria roça de gêneros de subsistência e suapequena criação de animais domésticos. Na vigência da parceria, eracomumqueofazendeirotambémse izesseparceirodosprodutosdaroça.Masaroçaacabousetransformandonoinstrumentoquemaise icazmentevinculariaotrabalhadoraocicloagrícolaeaocontratoanualdocafé.Comoprogressivo desaparecimento da parceria nas principais e mais ricasregiões cafeicultoras, surgiu uma variação do regime de locação deserviçosqueveioaserconhecidacomocolonato.Ocolonatocombinavaumpagamento ixo emdinheiro pormil pés de café tratados (isto é, limpezadas ervasdaninhasdo cafezal, de três a cinco vezespor ano, conformeoterreno, e preparação da terra ao redor do cafeeiro para realização dacolheita,bemcomoaespalhaçãodociscoapósacolheita),umaquantiaemdinheiro proporcional à quantidade de café colhido, prestação dedeterminados trabalhos gratuitos ao fazendeiro durante o ano (como aconstruçãooureparodecercas,limpezadepastosecaminhos,controledeincêndios etc.). E permissão de plantio demilho, feijão e, eventualmente,arrozoualgodão,nomeiodoscafeeiros,ou,conformeaidadedocafezalouconforme o seu arruamento, em terreno separado, geralmente as terras

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baixaspoucoadequadasaocafé,comomencioneiantes.Ocolono,comoerachamado esse tipo de trabalhador, podia excepcionalmente contratartrabalhadoresassalariados,por jornada,paraajudá-lonacolheitadocafé,pagos pelo fazendeiro por adiantamento para acerto na prestação decontas.Ou trabalhar, elemesmo, como assalariado de outro colono ou dofazendeiroemdeterminadassituações.17

Emboraosciclosdo feijãoedomilhonão fossemosmesmosdocafé (ofeijãocomdoisciclosanuaisdeaproximadamentetrêsmeses,omilhocomum ciclo de seis meses e o café com um ciclo anual), o pagamento emdinheiropelo tratoepelacolheitageralmentenãocobriaasnecessidadesde sobrevivência do trabalhador e sua família. Esse pagamento, além domais,nosprimeiros temposdocolonato,era feitono inaldoanoagrícola,depoisqueofazendeiroconcretizasseacomercializaçãodocafé.Portanto,o colono dependia signi icativamente da produção direta da parte maisimportantedosseusmeiosdevida,osdaalimentação.Nãopodia,porisso,cingir a sua sujeição à fazenda ao ciclo mais curto desses alimentos.Quando colhia o feijão das águas em dezembro e janeiro, já tinha queprovidenciaro feijãodaseca,plantando-oem fevereiroemarço,paraemseguidacomeçaracolheitadomilhoplantadoemoutubroe,poucodepois,a do feijão da seca, seguida da do café. Antes mesmo que o fazendeiroprovidenciasseoacertodecontasdotratoedacolheitadocafé,tinhaquese assegurar o plantio do milho e do feijão das águas. De modo que,quandohaviaoacertodecontaseestavateoricamentelivreparadeixarafazenda,tinhageralmentenaterraessasduasplantasquelhepertenciam,cuja colheita não podia fazer se a deixasse, a menos que o fazendeiroliberalmente a comprasse. Dessa maneira, combinavam-se duasinsu iciênciasrelativas:acolheitadealimentoserainsu icienteparacobrirtodas as necessidades da família de colonos e o dinheiro recebido notrabalho do cafezal era igualmente insu iciente para cobrir todas as suasnecessidades. Assim, essas insu iciências eram atendidas por um ritmodesigualecombinadodecolheitas,queencadeavaaroçadocolonocomocafezaldofazendeironumcicloúnicoemqueofinaldociclodecadaplantaimpunha a necessidade de começar o ciclo da outra, di icultando ouimpedindoasaídadocolonodafazenda.Comisso,reduzia-seamobilidadeda força de trabalho, assegurando para o fazendeiro a permanência dotrabalhadoraomenosporumanoagrícola,ao inaldoqualéquepodiam

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ocorrerosdeslocamentosdetrabalhadoresdeumafazendaaoutra.28

Ocolononoritmodocapital:aproduçãodoprodutor

Os mecanismos de sujeição do trabalho na grande lavoura de café,apontados anteriormente, não dão conta de toda a complexa organizaçãosocial do processo de trabalho na fazenda. Mas são indicativos de que aagricultura propriamente dita e nela, particularmente, o trato do cafezal,constituíam o fundamento do modo de inserção da força de trabalho naprodução cafeeira. O trato da lavoura de café era, nesse sentido, ofundamentodaorganizaçãodotrabalho,tantosobaescravidãoquantosobo colonato. Embora os trabalhos agrícolas propriamente ditos tivessemprecedência sobre a etapa de produção e preparação do café para ocomércio, a chamada etapa do bene iciamento, a etapa propriamenteindustrial da cafeicultura, constituía o momento técnico, econômica ehistoricamentemaisavançadoeaquelequetinha,comoefetivamenteteve,maiorpoderdedesorganizaçãoetransformaçãodasrelaçõesdeproduçãona economia do café. Em outros termos, o processo de trabalho do caféestava não só marcado pela diversidade das relações de trabalho, peladiversidade até étnica da organização dos diferentes momentos dotrabalho. Estava marcado também pela contradição que, no mesmoprocesso, combinava e opunha a forma camponesa de organização dotrabalho agrícola à forma salarial de organização do trabalho industrial,combinação essa estabelecida, subjugada e reproduzida pelo própriocapital.Emboraasubjugaçãodasrelaçõesdetrabalhodocafépelocapitalnão fosse transparente e assim tenha permanecido durante dezenas deanos,diferentesacontecimentosqueatingiamaproduçãocafeeiratendiamaseresolveremmaior liberaçãodocapitalpropriamenteditodaspeiasecontradições representadas pelo trabalho escravo ou, mais tarde, pelaprodução direta dos meios de vida do colono: a cessação do trá iconegreiro impôsalteraçõesno regimedepropriedade,que constituíam,naverdade,mecanismosdesubjugaçãodotrabalho.

Porisso,aparentemente,asubstituiçãodoescravopelotrabalhadorlivrenão representou uma modi icação propriamente técnica no processo detrabalhodafazendacafeeira.Àprimeiravista,nolugardoescravoentrouo imigrante;a instituição jurídicadaescravidãoteriasidosubstituídapela

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instituiçãojurídicadotrabalholivreecontratual.Entretanto,essamudançatinha maior profundidade. A economia do café teve justamente acaracterística de incorporar, produzir e reproduzir relações sociais erelaçõesraciais,combinando-ascontraditoriamentenoprocessodocapital.Duranteaescravidão,combinouotrabalholivrecomotrabalhoescravo.Aformação das fazendas de café foi geralmente feita, conformemencioneiantes, por lavradores livres e pobres, sob empreitada, que praticamentepagavamcomo cafezalodireitode fazeremsuaagricultura itinerantederoçanaterradequeseassenhorearaofazendeiro."'Astarefasauxiliaresda fazenda - construção de cercas, serviços de ferreiro e de carpinteiro,trabalhos de construção e mesmo o bene iciamento do café - foram secon igurando como tarefas de trabalhadores livres, chamados decamaradas,querecebiamempagamentoumsaláriomensal.Àmedidaquese acentuou a crise do trabalho escravo e à medida que os escravosdisponíveis foram deslocados exclusivamente para o trabalho agrícola,essas tarefas foram cada vez mais se con igurando como tarefas doscamaradas,verdadeirosoperárioslivresnointeriordasfazendas.30

Comaimplantaçãodotrabalholivre,muitosnegroslibertostornaram-se,juntocomoscaipirasecaboclos,mestiçoselivres,formadoresdefazendasdecafé.Paramuitos,a liberdadeadquiriaplenosentidonaagriculturaderoça, que já havia dado sentido à liberdade para índios e mestiços noséculo xviii; que constituía, na verdade, a contrapartida da expropriaçãoqueosgrandesfazendeirospraticavamcontraoslavradorespobres.

Oadventodotrabalho livrenãomodi icouadiversidadederelaçõesnointerior da fazenda de café. Se tomarmos como referência três etapasprincipaisdoprocessode trabalhonacafeicultura -o trato, a colheitaeobene iciamento (apenas nas grandes fazendas esta última etapa eraplenamente desenvolvida, limitando-se nas outras à secagemdo café nosterreiros), cada um dessesmomentos icoumarcado por uma relação detrabalho distinta, ainda que pudesse envolver as mesmas pessoas. Astarefasde tratoe colheita couberamao colono, sob formadeempreitada,comojáfoivisto,combinadacomautorizaçãoparaoplantio,dentroouforado cafezal, de gêneros alimentícios, principalmente feijão e milho. Asrelações de trabalho do bene iciamento de iniram-se como relações docamarada, mediante salário, que era o geralmente chamado trabalhador

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nacional,nãoimigrante.31

Embora aparentemente não sejam signi icativas, as mudançasveri icadas no processo de trabalho da fazenda de café, houve umamodi icação fundamental, que alterou toda a dinâmica da produçãocafeeira e que, ao longo do tempo,modi icou acentuadamente a inserçãodaforçadetrabalhonacafeicultura.Soboregimedetrabalhoescravo,osprincipaisdispêndiosdecapitaldofazendeiroeramfeitoscomaaquisiçãodosescravosnecessáriosasuafazenda.32Àmedidaqueprogrediaacrisedo escravismo, pela reduçãoproporcional da oferta de força de trabalho,osescravosnãosóforamsetornandocadavezmaiscaros,exigindomaiorimobilização de capital, como foram sendo deslocados para as tarefasagrícolas,ondeaquestãodamãodeobraeraessencial.33Nessaépoca,obene iciamento do café ainda era feito por máquinas primitivas demadeira, como o monjolo, o pilão d'água e o carretão.34 Assim, o maiorinvestimento de capital do fazendeiro era feito na agricultura, ondetendiam a se concentrar os escravos da fazenda. Entretanto, esseinvestimento de capital tinha uma particularidade que a impedia defuncionar como capital propriamente dito. O preço do escravo era, naverdade, um tributo que o fazendeiro pagava ao tra icante para ter odireito de explorar a mão de obra do negro, como mencionei antes.Tratava-se,pois,deumaimobilizaçãoimprodutivadecapital,deconversãode capital em renda capitalizada?' Desse modo, o capital perdia a suae icácia como capital verdadeiro, porque perdia as funções propriamentecapitalistas de extrair do trabalhador a sua mais-valia. Era o inverso doque aconteceria na aplicação de capital em máquinas que não sósubstituiriam trabalhopor capital, como tambémmultiplicariamae icáciados trabalhadores restantes. A compra do escravo não aumentava emnada a capacidade de produção do trabalhador cativo, sujeito ainda adespesas adicio nais diretas ou indiretas, na aquisição dosmeios de vidanecessáriosàsuamanutençãoereproduçãocomotrabalhador.

A substituição do escravo pelo trabalhador livre na própria lavoura,quando essa libertação se consumou (o que só veio a ocorrer de fato eplenamente muito mais tarde, com a supressão dos mecanismos desujeição do trabalhador por dívida), libertou o capital até então aplicadoimprodutivamentenoescravoparaquefosseaplicadoprodutivamentenas

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máquinasmodernas de bene iciamento do café, que começaram a surgirentre 1860 e 1880. Aí a máquina não só substituía o trabalho, comotambémimpunhaumritmointeiramentenovoaoprocessodetrabalhodafazenda cafeeira, como se pode inferir de estudo sobre as máquinas debene iciar café.36 O capital deixava de ser renda capitalizada para setornar verdadeiramente capital, com as funções de capital. Embora seargumente que o escravo não representava um empecilho ao progressotécnico da cultura de café,37 devido ao fato de se constituir em rendacapitalizada da fazenda, desviava recursos das funções propriamentecapitalistas do capital. Impunha ao fazendeiro dispêndios excepcionaispara que pudesse alcançar um desenvolvimento tecnológico maior,particularmente através da introdução de máquinas na produção ebene iciamentodocafé.Oescravonãoeraumempecilho,empecilhoeraaescravidão.

Pode-se perguntar por que, então, não houve a mecanização dostrabalhos agrícolas após o im da escravatura, embora existissemequipamentos,jánoséculoxrx,quepodiamserempregadosnostrabalhosdecarpaelimpadocafezal.Équenemtodososmomentosdoprocessodeproduçãodocafépodiamsermecanizadosoumecanizadoscomamesmaintensidade. O bene iciamento foi que alcançou maior grau demecanização, com a introdução de máquinas a vapor, ventiladores,brunidores,vagonetasdetransportedocafénoterreiro,secadores,canaisde transporte do café por gravidade, tanques de lavagem etc. Máquinascarpideirastambémchegaramaseradaptadasparaastarefasdelimpezado cafezal, de remoção das ervas daninhas.38 Apenas o trabalho decolheitafoioquesemanteveinteiramentedependentedotrabalhomanualao longodo tempo. Sóhápoucosanosvêmsendo testadase empregadasmáquinasdecolheitadecafé.39

Mesmoassim,entretanto,atarefaeminentementemanualdecolheitadocafé não deve ser isolada do conjunto do processo de trabalho paraexplicaropredomíniodademandademãodeobranafasedacolheitaeaimpossibilidadedemodernizaçãodesse trabalho.O simples fatodeque aacentuada modernização e mecanização do bene iciamento tenha seintroduzido na economia cafeeira não só possibilitou um preparo maisrápido do café para comercialização, com vantagemna concorrência com

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outros produtores mais atrasados, como, ao que tudo indica, impôs umnovo ritmo no trabalho de colheita.40 Desse modo, o predomínio dotrabalho manual na colheita não se devia apenas à impossibilidade demecanizar essa tarefa,41mas resultava também de um acrescentamentononúmerodetrabalhadoresnecessáriosàcolheitamaisrápida,reclamadapelo ritmo mais intenso introduzido pela mecanização a vapor nobeneficiamentodocafé.

A interpretação que segmenta o processo de trabalho por suasqualidadeshomogêneas,que resultadeumraciocínio formal, acobertaascontradiçõesqueaintensi icaçãodousodocapitalemmáquinasmodernasintroduzia na produção do café, tendo um efeito aparentementeincompatível comomaior desenvolvimento do capital que era, aomesmotempo, o aumento do número de trabalhadores braçais nas tarefas decolheita. Assim, contraditoriamente, amaiormodernização e aplicação decapital na fazenda implicava mais mão de obra. Por sua vez, sendo acolheitamaisdependentedemãodeobraesendoelaatarefareguladorada força de trabalho da cafeicultura, impunha, como se verá, maiorimportânciaaocolonato,aformanãocapitalistadeexploraçãodotrabalhopelocapital, jáqueocolonatomantinha fortescaracterísticascamponesasno processo de trabalho, no modo de vida e na mentalidade dotrabalhador. Nele se impedia que a força de trabalho do colono selibertasse da produção direta dosmeios de vida para tornar-se trabalhoassalariado.

Contradiçõesdocolonato

Máquinascarpideiraschegaramaseradaptadasoudesenvolvidaspararealizarastarefasdetratodocafezal,deremoçãodaservasdaninhasedelimpezadas ruasentreos cafeeiros.Masamodernização técnicado tratonãopodiadestacar-se comoetapa independenteno conjuntodoprocessode trabalho da produção cafeeira. A mecanização do trato deixaria afazendadesprovidademãodeobraparaostrabalhosdecolheitadecafé,que não podiam ser mecanizados e que dependiam inteiramente dotrabalhadorbraçal.

Conformejámencionei,amecanizaçãoavaporeamodernizaçãotécnica

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das diferentes tarefas do bene iciamento (transporte, secagem, limpeza,descascamento, ventilação etc.) abreviaram o tempo do tratamentoindustrial do café na própria fazenda. Isso não só representava apossibilidade de obter melhores preços pela chegada do café mais cedoaos centrosde comercialização, comomelhoravaospreçosemvirtudedamelhorqualidadedoproduto,eaindaviabilizavaarealizaçãodocapitalemtempomenor.42

Emtemposmaisrecuados,entreoséculoxlxeasprimeirasdécadasdoséculo xx, no caso das fazendas maiores, e até há não muito tempo nasfazendasmenores,menos desenvolvidas tecnicamente, era comum que operíododecolheitaseestendesseporcincomeses,demaioatésetembro.Comisso,ocorriamuitasvezesquenemtodoocaféestavacolhidoejáumanova loração se anunciava. Nos ins de setembro de 1895, o BarãoGeraldo de Rezende, que tinha em Campinas a sua Fazenda SantaGenebra, escrevia a um sobrinho e dizia: "já vão aparecendo botões queprometem nova lorada para o mês de outubro". E, antes de terminar acarta, comenta: "como a lor já está aberta há três dias...", coisa de quemcomeçava a escrever uma carta num dia para terminar em outro.Acrescentava que "no interior os cafezais loresceram mais cedo".43 Osistema de colheita geralmente difundido, que era o de derriçamento, apuxadamanualaolongodogalho,oquearrancavafolhasjuntocomgrãosmaduros e verdes, e não de catação das cerejas do café, acabavaprejudicandoasafraseguinteeesseparecetersidoofatordacostumeirasucessãodesafrasboasporsafrasmásnacafeiculturabrasileira.

O bene iciamento moderno do café, incluídas as máquinas secadoras,libertava o fazendeiro dos fatores naturais, como a secagem natural edemorada nos terreiros, dependente de tempo bom, seco e quente. Comisso, o bene iciamento impunha à colheita o ritmo da máquina e,consequentemente, o ritmo do capital. Esse ritmo do capital, viabilizadopelos equipamentos industriais de bene icio, iam além do bene iciamentopropriamente dito, in luenciando o trabalho agrícola de colheita. É bemverdadequeamaturaçãodocaféparachegaraopontodecolheitanãoerauniformenointeriordadiversidadedetalhõesdasfazendas,dependendoainda da variedade de cafeeiro e de outros recursos que as fazendasadotassem. Historicamente, a colheita podia ser reduzida a um período

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maiscurto,dedoisatrêsmeses,entre imdemaioe imdejulho.Demodoque, de fato, um novo ano agrícola podia começar em agosto, como eranatural,antesdeumanovafloraçãodocafezal.

Oencurtamentodotempodebene ícioedecolheitadocafé impunhaanecessidadedemaior concentraçãode trabalhadoresnessaúltima tarefa.O que, por sua vez, se re letia na organização do trabalho e na força detrabalho da etapa de trato do cafezal. Para garantir o número detrabalhadoresnecessáriosàstarefasdecolheita,afazendaprocuravateromaior número possível de trabalhadores permanentes, ocupados emoutros trabalhos fora da época de colheita, demodo que esta última nãodependesse ou não dependesse de modo signi icativo da procura detrabalhadorestemporários,geralmenteescassos.

Sendoocaféumaculturapermanenteedurantelongotempo,aomenosde1850a1895,emgrandeexpansão, tornou-se tambémumsorvedourodemão de obra. Mesmo as fazendas de mais baixa produtividade, comoacabaramsetornandoasdoValedoParaíba,continuavamnecessitandodetrabalhadores, já que de fato não havia alternativas muito amplas numaeconomiaagrícolaquaseque inteiramentevoltadaparaaexportação.Poroutro lado, o avanço dos cafezais em direção ao oeste simplesmentemultiplicavaanecessidadedebraços.Outrofator,ainda,quecomplicavaaquestãoda forçade trabalho é que os cafezais que se desenvolveramnaregiãooestedeSãoPauloproduziammuitomaiscaféporárvoredoqueosantigos cafezais do Rio de Janeiro, o que implicava número maior detrabalhadoresparaumcafezaldemesmotamanho.44Oquesecomplicavana medida em que, a rigor, o café não gerava uma população sobrante,uma superpopulação relativa, que estivesse disponível no tempo dacolheita. Se alguma unanimidade houve nas reclamações dos fazendeirosao longo de um período de praticamente cem anos foi na queixapermanentecontraafaltadebraçosparaalavoura.

Foram essas algumas das principais razões que izeram com que oproblema da força de trabalho para a colheita do café se re letissediretamentenacomposiçãoenaquantidadedeforçadetrabalhodotratodocafezal.Onúmerode trabalhadoresdo tratosede iniapor intermédiodo número de trabalhadores necessários à colheita. É verdade que esse

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problema já existia nos anos inais da escravidão, sendo os fazendeirosobrigadosarecorreraotrabalhadoralugado-livreouescravo-àsturmasde alugados para realizar as tarefas da colheita.41Mas o contexto aí eracompletamente diferente daquele que existiria com a implantação dotrabalholivre.EssaocorrecomocaracterísticadadisseminaçãodocafénaregiãooestedeSãoPauloe se combina coma introduçãoedisseminaçãodas máquinas modernas de bene iciamento.46 Na região paulista, aposiçãocentraldotrabalhobraçalnaorganizaçãodoprocessodetrabalhodocaféeraoprodutocontraditóriodoprópriodesenvolvimentocapitalistada cafeicultura, da inversão de capital nas tarefas industriais dobeneficiamento.

Esses fatores izeram com que os chamados colonos se tornassem oprincipalemaisnumerosogrupodetrabalhadoresdafazendadecafé,aoredor de 75% do total ou até mais.47 Era o colono a igura central dochamado regime de colonato, que constituía, de fato, uma variante e, aomesmo tempo,umamodi icaçãodo regimedeparceria, combinado comoregimedelocaçãodeserviços.Aprincipalcaracterísticadocolonoeraque,ainda que recebendo parte do seu pagamento em dinheiro, não era demodo algum um trabalhador assalariado, como venho indicando. E issoporqueproduziadiretamenteosseusmeiosdevida,plantandonoprópriocafezal, ou fora dele, dependendo da idade dos cafeeiros e de outrasrestrições técnicas, os gêneros alimentícios de que necessitava. Osexcedentes podiam ser, como frequentemente eram, negociados comvendeiros e intermediários da região ou com o próprio fazendeiro que,muitas vezes, exigia direito de preferência na sua aquisição. O colonopodia, ainda, conforme foi dito, contratar o trabalho de terceiros paraauxiliá-loemsuastarefas,casoemqueopagamentoerafeitopeloprópriofazendeiroque lhedebitavaarespectiva importância.Ou,então,podiaelemesmo trabalhar eventualmente como assalariado do fazendeiro ou deoutro colono, sendo-lhe creditada a respectiva importância parapagamentonaépocadoacertoanualdecontas.Ocolonosesujeitavaaindaa certos trabalhos gratuitos que já forammencionados. Além disso, tinhadireitoàmoradia,aumoutropedaçopequenodeterranoquintaldacasaparafazerhortaecriaranimaisdomésticos,alémdodireitodeteranimalno pasto da fazenda. Uma das diferenças que distinguiam o colono docamaradaeraofatodequeafazendanãooempregavaisoladamente,mas

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empregava sua família. O regime de colonato era fundamentalmente umregimedetrabalhofamiliarfundadonoimagináriocamponês.

Nesse sentido, o próprio desenrolar do trabalho era muito distinto dodesenrolar do trabalho escravo. Na escravidão, o trabalho no cafezal eranoeito-umgrandenúmerodenegrosdirigidosporumfeitor,numritmoarticulado,carpiaem linhaeemconjuntoasruasdecafé, supervisionadopelofeitor.Jánocolonato,alimpezadocafezaleacolheitaseorganizavamcombaseno grupo familiar: a família empreitava o tratodedeterminadonúmerodepésdecafé,naproporção,geralmente,dedoismilporhomemadulto e demil paramulher e criança.Opagamento era igualmente feitopor mil pés tratados. Desse modo, quanto maior a família, maior o seurendimentomonetário anual. Já a colheita, que podia ou não ser feita notalhãoempreitadoparaotrato,erapagaporquantidadedecafécolhido.Ocolonatoorganizouatémesmoacolheitaembasesfamiliares,distribuindoosmembrosda família ao redordo cafeeiro:oshomensadultos colhendonotopodaplanta,medianteusodeumaescada,asmulheresnomeioeascriançasnasaiadocafeeiro,conformedescreviantes.

O processo de trabalho no cafezal combinava o trato do café e suacolheita coma agriculturade subsistência, dentro ou, atémesmo, foradocafezal.Tomandocomoreferênciaocicloagrícoladecadaplantaenvolvidanarelaçãocafé-agriculturadesubsistência,pode-senotarquehaviaentreelasumacombinaçãopraticamenteperfeita.48Oanoagrícolaseencerravacomaespalhaçãodocisco,dosdetritosvegetais,aoredordoscafeeiros,aípelomêsdesetembro.Outubroeraomêsdereferênciaparaoplantiodomilho e do feijãodas águas, períodoque correspondia a uma carpa, umalimpezadocafezaldaservasdaninhas.Dezembroejaneiroerammesesdecolheitadofeijãodaságuas;fevereiroemarço,deplantiodofeijãodaseca;maioeraomêsdereferênciaparaacolheitadomilhoedofeijãodasecaeépocadefazeracoroaçãodocafeeiro,alimpezadosoloaoredordaárvoreparaderriçarocafé,nasfazendasmaisrústicas,ousobreumamplolençolou toldoali colocado,nas fazendasmaismodernas.Emalgumas fazendas,jáemmaiosecomeçavaacolheitadocafé .41Demodoqueaarticulaçãodos ciclos dessas plantas com o ciclo do próprio café permitia que asoperaçõesdeplantiooucolheitademilhoefeijãofossemaomesmotempoasoperaçõesdecarpadocafezal.Quando,aliás,seimpôsanecessidadede

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realizaraagriculturadesubsistênciaforadocafezalhouve,decertomodo,aduplicaçãodajornadadetrabalho,razãodedesinteressedoscolonosporcafezais velhos onde tal separação era necessária.50 Mesmo assim, osfazendeiros ainda aceitavam, como forma de evitar tal problema, que osgênerosalimentíciosfossemplantadosemruasalternadasdocafezal.Nãoera raro que os próprios fazendeiros, ao formarem seus cafezais,deixassem entre os cafeeiros, para isso ruasmais largas do que aquelasexistentes nos velhos cafezais do Rio de janeiro, formados no tempo daescravidão."

Nacombinaçãodaculturadocafécomaculturadealimentos,doartigode exportação com o artigo de subsistência, o primeiro era produto dofazendeiroeosegundoeraprodutodocolono.Somentenamedidaemquese tem presente essa relação e essa diversidade é que se podecompreendera formaassumidapelaexploraçãodotrabalhodocolonodafazenda de café. O fazendeiro tolerava a agricultura de subsistênciapraticada pelo colono como forma de reter na fazenda sua família, comomão de obra permanente. Para ele, o café era o produto principal efundamental.Nacabeçadocolono,porém,ascoisassepassavamdemododiverso.Paraele,oprincipaleraconstituídopelosgênerosdesubsistência,eorendimentomonetáriodocafééqueseconstituíaemganhosecundárioeexcepcional, foradarotinadasobrevivência.Paraele,ocaféerade fatoumexcedentedoseutrabalho.Dessemodo,dopontodevistadaeconomiada fazenda, o produto do tempo de trabalho excedente tinha formamaterial distinta do produto do trabalho necessário à sobrevivência ereproduçãodotrabalhadoresuafamília.

Por outro lado, na organização econômica da fazenda, o café tratado ecolhido podia parecer trabalho pago em dinheiro, porque haviaefetivamentedispêndiosmonetáriosnopagamentodessastarefas.Mastaispagamentosrepresentavamumaparcelamínimarelativamenteaosganhossalariais anuais dos trabalhadores urbanos de mais baixos salários.Acobertada pelo acerto anual em dinheiro, a família do colono tambémpagavaemcaféumarendaterritorialemprodutopelodireitodemoradiae pelo direito de plantio de gêneros dentro ou fora do cafezal. Embora ocolonato assumisse a forma de relação não capitalista de produçãoconstituída e subjugada pelo processo de reprodução do capital, por isso

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mesmo,mesclava-secomformasaparentementesalariaisdetrabalho.

Análises como esta, fundadas na sociológica constatação da "impureza'teórica e conceitual da realidade histórica e social do café, podem serobjetodoincômododeautoresparaosquaisométodoémeraquestãodenomencla tura. Nessa linha, a orientação formalista e classi icatória dealgumas correntes de análise social, no Brasil, inspirada no marxismoestruturalista de Louis Althusser, representa um empecilho real àcompreensão de uma formulação totalizadora como esta: de que areprodução capitalista do capital não exclui necessariamente a produçãode relações não capitalistas de produção, que é, também, produção decapitalporquemediadaporsuareproduçãocapitalista.Umexemplodessefatoéestaformulação,numacríticadirigidaaumdosmeustextossobreotema, tendo como referência e pressuposto a ideia de "subordinaçãoindireta da produção (ou do trabalho) ao capital": "a subordinação derelaçõespré-capitalistasounãocapitalistas(comoele[Jsm]preferedizer)pelo capital supõe a existência real dessas relações" (o primeiro grifo émeu).52Naorientaçãometodológicaqueadoto,demodoalgumadistinçãoentreprécapitalistaenãocapitalistapodeserreduzidaaumaquestãodepreferência.Essadistinçãoenvolveopostasconcepçõesdemétodoentreadocríticoeadoautordoqueéobjetodacrítica.Nodiscursodocrítico,aconcepção de "précapitalistá' decorre de uma interpretação evolucionistadahistória econômica e, nela, do capitalismo, edeuma interpretaçãonãohistóricadavidasocial,particularmente,darealidadesocialehistóricadocampo. É procedimento cuja e icácia se esgota na mera rotulação dasrelações sociais que, por serem "diferentes", não podem receber arotulaçãodecapitalistas.

Demodogeral,oraciocínioemquetalformulaçãosebaseiaéexpressãodo que Gutterman e Lefebvre de inem como "a força das formas" epressupõeoprincípiológicodeidentidadecontraoprincípioexplicativodacontradição.53Éomesmoequívocoque levouaumadiscussãosobreumsuposto feudalismonoBrasil.Daíque seusadeptos coloquemadiferençano lugardacontradição,aestruturano lugardaHistória,aarticulaçãonolugardomovimento,aclassificaçãonolugardainterpretaçãoetc.

A concepção de não capitalista envolve uma postura metodológica

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radicalmentediferente,constituídaapartirdoprincípiodacontradição.Dizrespeitoàscontradiçõeseaosbloqueiossociaisehistóricosque impedemque os conteúdos da relação descrita gerem a forma social apropriada emediadora de que carecempara se libertarem e se realizaremnomarcoda realidade capitalista que os determina. O salário irrealizado estavapotencialmentecontidonasdeterminaçõessociaisehistóricasdocolonato.Issoéradicalmentediferentedepré-capitalista,cujotempoéoutro.Masopotencial não era o real de sua manifestação histórica e cotidiana e,portanto,sociológica.

A existência deformas sociais, de produção ou não, que não aquelasformas caracteristicamente capitalistas de expressão e mediação domovimentodo capital, odesenvolvimentodesigualdoprocessodo capital,não constitui uma anomalia histórica e, certamente, não pressupõe umtempo histórico distinto, "anterior", em relação ao tempo do capital. Naverdade, Marx o demonstrou com clareza, o tempo do capital não é umtempolinear.Éotempodacontradição:éotempodastemporalidadesnãoresolvidas - a produção social e a apropriação privada dos resultados daprodução.Nãohá aí a anterioridadedeummomento em relação a outro,masatrasoseadiantosdomesmoesimultâneo.Portanto,otempotriádicoporquedialético,comoode ineHenriLefebvre,dasoposiçõessintetizadasnopresenteenoatual,noreal,entreasrelaçõesresiduaisnãosuperadaseasrelaçõessociaispossíveiseaindanãorealizadasqueodeterminamedeterminam a práxis de seu momento.54 Essa orientação metodológicapressupõe distinguir a forma das relações sociais, de que os respectivosconteúdos necessitam como mediação para se expressarem econcretizarem,daquiloqueelamediatizaepormeiodaqualsedetermina,queéaproduçãoeaacumulaçãodocapital.Nãosetrata,pois,comopensaSérgioSilva,nostrabalhoscitados,desimplessubordinaçãoderelaçõesaocapital, relação que em seus estudos tem uma conotação mecanicista,desprovida de suas funções metodológicas de mediação, determinação,contradição e movimento. Não compreender a diferença entre o pré-capitalista e o não capitalista, já signi ica situar-se nas limitações decompreensãodaprimeiraperspectiva,aestruturalistaenãoadialética.

Aquelas formas assumidas pelas relações de trabalho, apesar dainterveniênciadepagamentosemdinheiro,devido,entretanto, aopróprio

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caráter predominantemente camponês do trabalho do colono, não selibertavam como formas salariais características justamente porquenecessáriosefaziaromperesuperaraproduçãodiretadosmeiosdevida,libertarosalárioparalibertarcompletamenteotrabalhodocolono,privá-lo da autonomia residual da condição de camponês para que, en im, seconvertesse num operário da agricultura. E isso, evidentemente, nãodependia nem da lucidez nem da vontade do fazendeiro ou do própriocolono.

Não cabe, nesse caso, aplicar a distinção que Marx desenvolveu entretempode trabalhoe tempodeproduçãoparacaracterizaraproduçãodesubsistência como aplicação do tempo de não trabalho.55 Tal suposição,emvezdereconstituiroprocessodetrabalhoconcretoeobjetivodocafé,reproduzantesaperspectivadoprópriofazendeiro,paraquemocaféeraofundamentalenquantoprodutoemercadoria.Entretanto,objetivamente,o processo de trabalho da cafeicultura era, também e ao mesmo tempo,processo de exploração da força de trabalho. Tal exploração não secon igura, senão deformadamente, se não reconstruímos a produção docafépormeiodaproduçãodegênerosdesubsistência,semaqualaquelanão era possível. A di iculdade para transpor sem mais critério adiferenciação do tempo de trabalho e do tempo de produção, que Marxanalisara fundamentalmente em relação à valorização do capital, está emqueoprodutoqueeletememcontanãoéapenasacoisaútil,esimamais-valia." No caso do café, não havia como separar, antes que se criassemdeterminadas condições sociais e se superassem determinadascontradições aqui apontadas, senão como abstração acadêmica, acombinaçãodos diferentes ciclos de plantas articuladas por ummesmo eúnicoprocessodetrabalho.Talunidadeeraconstruídaedeterminadapelaexploração do trabalho que em tal processo se dava. O fato de haverdiferentes produtos como resultado do processo de trabalho, comdiferentes destinos e desiguais inserções no mercado, não deve criar ailusãodeque cadaumdeleserao resultadodeumprocessode trabalhodistinto.Aquestãonãoésimplesmentetécnica,esimsociológica.Portanto,aagriculturadesubsistêncianãopodia,comefeito,nessasituaçãoconcretadocolonatonemnasituaçãoconcretadaescravidão,serconsideradacomoforma de ocupação do tempo de não trabalho decorrente da maturaçãonaturaldocafé.Osupostamentenaturaléaísobredeterminadopelosocial,

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comoformasocialmenteorganizadadeprodução.

A agricultura de subsistência não se destinava fundamentalmente aomercado, embora os excedentes, quando houvesse, pudessem sercomercializados, até mesmo fora dos marcos racionais do lucro. A rigor,taisprodutosnãoeram,nosmesmostermosdocafé,produtoscomerciais.A agricultura de subsistência, como mencionei antes, destinava-sefundamentalmenteàreproduçãodopróprio trabalhadoresua famíliaeaatenuar as despesas monetárias do fazendeiro de café, que com basenumaeconomiaestritamentesalarialcorreriaoriscodenãoconcretizarosobjetivos capitalistas de sua empresa. Por esse meio, o colono sereproduzia como trabalhador para o café e, consequentemente, comotrabalhadorcamponêsparaocapital.Emtermossociológicos,asituaçãoé,pois, completamente distinta da situação do trabalhador assalariado dagrandeindústria.

Todo o seu tempo, enquanto trabalhador para o capital e para apropriedade, era tempo de trabalho e tempo de produção. A distinçãoentreambossópoderiaexistirparaocapital(enãoparaotrabalhador)eparaocapitalista,queporissomesmoseempenhavanareduçãodotempodeprodução,istoé,reduçãodotempodereentradadocapitalnoprocessoprodutivodemais-valia,aparcelaparadelaarrecadaroquelhecabiasobaformadelucro.Oproblemadaconceituaçãodeummomentodoprocessodetrabalhocomotempodenãotrabalhoéquepressupõe icaroprodutoparado, istoé,quenãocirculaporqueaindanãoestápronto.Mas,paraocapitalista,oqueinteressanãoéautilidadedoproduto,esimoseuvalor.Não estando pronto, o produto não pode circular, nem pode, portanto,realizaroseuvalorelibertarparaocapitalistaamais-valiaquecontém.Oproblema do capitalista não está no trabalho vivo (na capacidade detrabalho do trabalhador que ica parado porque o produto estáamadurecendo), mas sim no trabalhomorto, o trabalho de que ele já seapropriou e que só se realiza no mercado. Só aí se converte em capitalparaserutilizadonovamente.Ora, consideraraproduçãodesubsistênciacomo emprego de tempo de não trabalho, que permite a reprodução dotrabalhadorenquantotrabalhadorexpropriadoquedevetrabalharparaofazendeiro, é considerar o próprio trabalho vivo, trabalho criador decapital,comonãotrabalho.

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Naindústriaenotrabalhoassalariado,osmeiosdevidadotrabalhadornãosãoproduzidosdiretamentecomooeramnamaiorparteosmeiosdevidadocolono;elessãopossibilitadospelosalário, resultamdaconversãode salário em meios de vida, salário que foi antes capital variável docapitalista.Dessemodo,emqualquersituação,osmeiosdevidaconstituemnecessariamente uma parte do tempo de trabalho, o tempo de trabalhonecessário à reprodução e sobrevivência de quem trabalha. Jamaispoderiamsair,enquantofrutoecondiçãodotrabalhoexplorado,aindaquesob formade trabalho camponês e sob o nomede colonato, de tempodenão trabalho. O trabalho empregado em sua produção, embora nãopassasse fundamentalmente pelamediação do salário e domercado, eracondição fundamental para que o produto do trabalho se con igurassecomo propriedade do fazendeiro, corno café para o fazendeiro, para ocapital e a propriedade fundiária que ele personi icava. A irmar que aprodução de subsistência, nessas condições, era possibilitada pelaexistênciadeumtempodenãotrabalhoéumaciladaconceitual,quepõeoconceito no lugar do método, a diferença no lugar da contradição, autilidadedoprodutonolugardoseuvalor,atécnicadaproduçãonolugardaexploraçãodotrabalho.

Nesse sentido, estou em completo desacordo com Maria NazarethBaudel-Wanderley quando a irma que a pesquisa, para explicar ecompreender o camponês na sociedade capitalista (no Brasil), tem sidofeita por autores que escolhem "o caminho mais fácil".57 Também elaentende, incorretamente, no meu modo de ver, que as relações pré-capitalistas e as relações não capitalistas são uma coisa só nos trabalhosdosautoresquesubmeteà suacrítica;eque,emambososcasos, seestáfalando, ainda que para negá-lo, em "camponês feudal". Refere-se a umpressuposto de fundo ideológico e partidário que nutriu interpretaçõessobreaquestãoagrárianoBrasil,nasdécadasde1950e1960.Sónocasode que essa interpretação fosse correta, seria possível descobrir umadesigualdadedecritériosnasconstataçõesquefaço.Deumlado,adequeocapitaltransformaarendafundiáriapré-capitalistaemrendacapitalistae, de outro lado, a de que a produção capitalista de relações nãocapitalistas de produção expressa não apenas uma forma de reproduçãoampliadadecapital,mastambémareproduçãoampliadadascontradiçõesdo capitalismo - o movimento contraditório não só de subordinação de

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relações pré-capitalistas, mas também de relações antagônicas esubordinadasnãocapitalistasdeledecorrenteseaelenecessárias.

Estoudeacordocomela,noentanto,eissotenhodemonstrado,emqueocapitalnãopreserva,strictusensu,ocamponês,oumelhor,asrelaçõesnãocapitalistasdeprodução,pelaúnicaesimplesrazãodequeocapitalascriaou recria, transformando-as, porque as determina por suamediação. Nocafé, nem o capital recuperou relações de produção pré-capitalistas nemcriouumregimedetrabalhoassalariado.Adi iculdadeteóricanotrabalhodessaautoraestáemterdeixadodeladoaquestãodométodonaavaliaçãodas interpretações de diferentes autores, contrapondo-seinterpretativamenteaeleseesquecendo-sedequepor trásdecadaumaestáummétodoeumaconcepçãodemétodo.

O que penso ter demonstrado em diferentes ocasiões, e neste texto, éque o processo do capital envolve a criação ou a recriação de relaçõessociaisdeproduçãoquenãosãorelaçõescapitalistascaracterísticas.Marx,aliás, tratando do extremo do processo do capital, ainda distingue asujeição formal do trabalho ao capital da sujeição real do trabalho aocapital, que são momentos histórica e sociologicamente distintos daprodução capitalista.58 No caso aqui considerado, são relações que sedeterminampeloprocessode reproduçãodocapital semquepossamserreduzidas, no entanto, à indeterminação do genérico. Isso signi ica, comoocorre com o colonato referido neste trabalho e com os moradores dasfazendasdecana-de-açúcarqueelaprópriaestudou,que,nesseprocesso,o capital, ao incorporar a produção direta dos meios de vida pelotrabalhador,comomeiodereproduçãodaforçadetrabalho,criaourecriaformassociaisnãocapitalistas,determinadas,contudo,pelareproduçãodocapital. O que permite entender esse fato não é a lógica classi icatória enominalista das diferenças e das semelhanças, mas o princípio dacontradição.Issoquerdizerqueocapitalcriaourecria,comonecessidadeepossibilidadede sua reprodução, aquiloque a lógicado seumovimentonecessitarádestruir,amediaçãodesuaa irmaçãohistórica.Estoufalando,é claro, do camponês que é um trabalhador para o capital, diverso dooperário da indústria, que trabalha para o capital semmediações outrasquenãoexclusivamenteamediaçãodosalário.

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A forma camponesa do trabalho no regime de colonato não pode sercompreendida senão pela mediação do capital que a determinava e dapropriedade como instrumento de sujeição do trabalho que a constituía.Emvezdeolatifúndioevoluirparaafragmentaçãoquecriariaumaclasse(um terceiro estado, como dizia Couty) de camponeses, de pequenosagricultores de café, subsidiários dos engenhos de bene iciamento quepermaneceriam nas mãos dos grandes fazendeiros, de modo a instituirumaexploraçãoindiretadotrabalho,agrandelavouradecafépromoveuo retrocesso à organização camponesa do trabalho, mas dentro dapropriedade, um campesinato expropriado. Por esse meio, foi possívelgerar um campesinato cujo trabalho já nascia subjugado pela fazenda,obrigadoatrabalharparaofazendeiro,entregando-lhecafécomosefosseum tributo, ainda que ocultado pela remuneração insu iciente eparcialmenteemdinheiro.Guardadasasdevidaseevidentesdiferenças,ocolonato criavanos cafezaisumasituação similaràquelaqueo forohaviacriadoparaosagregadosdoscanaviaisdoNordeste.Agrandelavoura,poresse meio, conseguiu substituir o trabalho escravo e, ao mesmo tempo,evitar a redistribuição da propriedade da terra, fazendo dela uminstrumentodesujeiçãodo trabalho livre,semavançarparaaexploraçãosalarialdotrabalho.

Por esse caminho, os grandes fazendeiros conseguiram evitar que aterra sedivorciassedo capital, demodoa tornarem-se, aomesmo tempo,capitalistas e proprietários. Ou seja, criaram as bases de um capitalismosingular, em face do modelo teórico, que se nutre ao mesmo tempo dolucroedarendadaterra,impossibilitandooantagonismoentreocapitalea propriedade fundiária e, portanto, neutralizando as bases sociais dogrande con lito que está no nascimento do capitalismo em outros países,comoodocapitalopondo-seaorentismodapropriedadedaterra.Nocasodocafé,certamente,époraíqueseexplicaoenormepoderdeacumulaçãode capital da elite empreendedora, especialmente em São Paulo, e averdadeira revolução urbana e cultural que teve condições de promoveratéaCrisede1929emesmodepois.

Esserecursointroduziuumtempo,umritmoespecí ico,narelaçãoentreo trabalho e a propriedade. Emvez de a propriedade se tornar condiçãoparacolocarotrabalhoàdisposiçãodofazendeiro,o trabalhodocolonoé

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quesetornoucondiçãoparaoacessoàpropriedade.Emvezdeaterrasetornar livre, tornouse renda capitalizada nas mãos do fazendeiro ecapitalista.Emvezde separar-sedocapital, comocondiçãodaexploraçãodotrabalhoalheio,dotrabalhador,noprocessodereproduçãodocapital,aterrasetornoucondiçãodaexploraçãoqueserealizavanaacumulaçãodecapital. Como se houvesse uma acumulação primitiva contida na própriaacumulaçãocapitalista.Ocolonoteriaquepercorrerocaminhodasujeiçãoà propriedade, ao longo do tempo, para inverter o processo e tornar-seproprietário, convertendo, ao mesmo tempo, a renda territorialcapitalizadaemcapitaldofazendeiro,umasegundaformadeexploração,oque se concretizaria mais amplamente e claramente, a partir dos anos1920,sobretudonacrisedosanos1930,coma fragmentaçãodegrandesfazendas e a compra de terra por colonos que se tornaram pequenosproprietários.59

Ocolonatofezda famíliadocolono,do imigrante,aunidadedeforçadetrabalhoda fazendadecaféeocernedomovimentode imigraçãoparaoBrasil. Era essencialmente omodo de restringir ou impedir amobilidadedo trabalhador, evitar-lhe o deslocamento empregatício fácil e rápido,segundo os estímulos do mercado de trabalho. Era um recurso paradi icultar que o colono encarasse o cafezal comomeio para enriquecer eretornaraoseupaís.Ocolonatocriava,paraocolono,aomesmotempo,afarturadealimentoseapobrezamaterial.Cartasdecolonosaseusamigose parentes na Itália indicam com clareza que sua visão da vida estavaorganizadasegundocritérioscamponeses,ocritériodafarturademilhooudecarne.60Nolugardoretorno,davoltaàterraeàsociedadedeorigem,queeraaperspectivaqueseabriaparaoimigranteitalianonaagriculturaargentina, para o imigrante no Brasil, sem impossibilitar o retorno, aperspectivaqueseabriaeraoutra:adechamarosparentes,quetambémpodiam ser bene iciados pela imigração subvencionada, reconstituir noscafezais e na nova sociedade a família dilacerada pela imigração, o paiseparado do ilho, o irmão da irmã, o avô do neto. Por isso, o colono nãorespondiaaestímulosdomercadodetrabalho,quefuncionavasegundoasregras do mercado livre e do trabalho assalariado, mas a outrasmotivações.61Issonosindicaqueomododeexploraraforçadetrabalhoencerra,também,ummododeconcretizaradinâmicadapopulação-nessecaso, concretamente, a imigração, a ideologia do imigrante e do

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imigrantismocentradosnafamíliaenotrabalhofamiliar.

Na medida em que a constituição e o funcionamento do regime decolonatoeramdeterminadospelocapital,areduçãodonúmerodecolonos,ascrisesdocafé,aproibiçãodaemigraçãoitalianaparaoBrasil,em1902,e,maistarde,daespanhola,asrestriçõesaoplantiodenovoscafezaisnãose manifestaram como recuo do colonato propriamente dito. Essesproblemasrecaíramsobreoeloqueconstituíaamediaçãoarticuladoradocolonato, o trabalho de colheita do café. A falta de mão de obra nãoaparecia como falta de colonos, mas como falta de apanhadores de café,expressão que se disseminou sobretudo no começo do século xx.Diversamentedocamarada,comoqualnãodeveserconfundido,queeraum assalariado permanente, o apanhador de café surge como o operáriosazonal da cafeicultura, o trabalhador volante, como foi batizado já nocomeçodoséculoxx.Turmasdevolanteseramrecrutadasparatrabalharnoscafezais,nacolheita.Nãosóentreospequenosagricultores,queassimaproveitavamoperíododaentressafradaagriculturadesubsistênciaparatrabalhar na colheita de café, mas também entre desempregados daprópriacidadedeSãoPaulo,garantidootransporteeoalojamento.`Surgenesse contexto, mais intensamente, o clamor pelo desenvolvimento dapequena propriedade como forma de criar viveiros de mão de obraestacional para as fazendas de café, cujas colheitas já não podiam seratendidas exclusivamente pelos colonos63, devido sobretudo àreemigração dos que retornavam ao país de origem ou, principalmente,dosqueiamparaaArgentinaeoUruguai.

O processo fez com que a colheita se destacasse como momentodeterminado do processo de trabalho do café e consequentementeproduzisse ou expandisse o lugar do operário assalariado na lavoura.Superouentravesnalibertaçãodotrabalhoemrelaçãoàpropriedadeeaocarátercamponêsdotrabalho.Osaláriolibertavaotrabalhadordafazendaparasubmeteroseutrabalhodiretamenteaocapital;separavaotrabalhoda terra enquanto meio de produção direta dos meios de vida. Mas,libertavaprincipalmenteofazendeiro,enquantotitulardarendaterritorialcapitalizada: o crescimento da agricultura familiar fora da fazenda, nossítiosenúcleoscoloniais,nosviveirosdemãodeobrasazonal, libertavaarenda fundiária, expandia o mercado de terras. Criava e expandia,

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contraditoriamente, o lugar social e histórico do salário no processo dereproduçãodocapitalagrícola,alteravaasbasessociaisdereproduçãodafazenda e do fazendeiro - comprometia, en im, o colonato e suareprodução, na medida em que a terra usada pelo colono tornava-seclaramenteequivalentedecapitaleavultavacomorendacapitalizadacujaexploraçãoestavaforadosmecanismosdolucroedareproduçãoampliadadocapital.Por issodeviasersubstituídaporsalárioeporumapopulaçãoreduzida às regras domercado, submetida a ummodo capitalista de serforçadetrabalho.

Alibertaçãodosalário

Retomo, inalmente, alguns pontos fundamentais no processo detransiçãodotrabalhoescravoparaotrabalhoassalariadonasfazendasdecafé e que são os pontos fundamentais na transformação do trabalhoescravonotrabalholivredaparceriaedocolonato,enatransformaçãodocolonato em trabalho assalariado. Essa ordem lógica não coinciderigorosamentecomaordemcronológicadasmudançasocorridas,emborahaja coincidência na tendência geral. É que determinadas modi icaçõespodemterocorridoaproximadamenteaomesmotempo,mas,nogeral, asmudançashistóricaseestruturalmentesigni icativasnãoseconcretizaramsemquetivessemseconcretizadotambémascondiçõessociaisehistóricasde sua realização. É nesse plano e nessa sequência que se podecompreenderolugarfundamentaldarelaçãoentrepopulaçãoeproduçãona cafeicultura, da relação entre as formas assumidas pela força detrabalhonocafezaleascondiçõessociaisdeproduçãodocaféedolucro-ascondiçõessociaisdeexploraçãodotrabalho.

A crise do café tem início com um problema "exterior" à fazenda e"exterior" à própria economia cafeeira: a pressão política da Inglaterrasobre o governo brasileiro para obter o im do trá ico negreiro entre aÁfricaeoBrasil,comoformadeaperfeiçoaracirculaçãodasmercadoriasnecessárias à reprodu ção da força de trabalho na Inglaterra e defavorecer a reprodução do capital naquele país.64 Para a economiabrasileira de tipo colonial, de cana-de-açúcar e de café, principalmente, aconcretização dessa medida na suspensão do trá ico negreiro,comprometeuimediatamenteoreabastecimentodasfazendascommãode

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obraescrava.

Oprocesso,jádescrito,provocounãosóadisseminaçãodotrabalholivreatravésda imigração,masuniversalizoupela leio regimedepropriedadeprivada, superou o divórcio colonial entre a posse e uso do terra, de umlado, e o domínio, de outro.Apropriedade fundiária se generalizou comopropriedade absoluta; consequentemente, a terra em si mesma seuniversalizoucomoequivalentedemercadoria.Portanto,comoempecilhoàlivreocupação,comoinstrumentodecoerçãodotrabalho.

Essaprovidêncianãofoisuficienteparaqueotrabalhadorjuridicamentelivre fosse efetivamente livre.Namedida emque, numaprimeira fase, ospróprios fazendeiros faziam despesas para trazer os imigrantesnecessáriosaotrabalhodesuasfazendasenamedidaemqueencaravamo trabalho livre também como capital livre, entendiam que o imigrantedeviareporodinheirogastonoseu transporte,alojamentoealimentação,além dos juros correspondentes a essas despesas. Criava-se, assim, ummecanismo de sujeição por dívida, que já foi indicado no começo destecapítulo. De fato, essa relação cerceava o imigrante, instituía umaexploraçãodotrabalhoeumarelaçãocomotrabalhadornãomuitodiversadarelaçãoescravista.

Como mostrei antes, a sujeição por dívida não se limitava a constituirumagarantiadereposiçãododinheirogastocomavindadoimigrante.Eratambémuma formade sujeitaro trabalhadorao ciclonaturaldaplantaeasdiferentestarefasdoprocessodetrabalhoaolongodoanoagrícola.Porisso, quando o mecanismo da sujeição por dívida foi anulado, com aimigraçãosubvencionada,nãoanulouasujeição,jánãomaisaofazendeiro,masaoprópriociclodocafé.

Ainda assim, nos anos 1870, mas principalmente entre 1880 e 1888,surgemmedidaslegaiseadministrativas,particularmentenaregiãodeSãoPaulo,pelasquaisogovernoindenizavaofazendeiropelasdespesasfeitascoma imigraçãodosseus trabalhadoresouentãocontratavadiretamentecom companhias especializadas o agenciamento de mão de obra emdiferentes países europeus.6s Era a chamada imigração subvencionada,que, entre 1885 e 1895, teve momentos em que se constituiu na quase

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totalidadedosimigrantesentradosnaregiãodeSãoPaulo.

A subvenção à imigração pelo próprio governo foi o primeiro fatosigni icativo para concretizar o trabalho livre nas fazendas de café. Foi aprovidência que facilitou a evolução da parceria para o colonato e,portanto, para aquilo que foi a característica relação de trabalho dacafeicultura.

Houve um conjunto de fatos relacionados com a concretização dotrabalho livre, além da imigração subvencionada. Os mecanismos desujeiçãopordívidacriavamconstantementesituaçõesdecon lito,àsvezescon litos graves entre trabalhadores e fazendeiros, como ocorreu naFazenda Ibicaba em 1856.66 Por outro lado, embora o mecanismo dodébito tenha sido fortemente atenuado, os fazendeiros mantiveram oesquema de acertos anuais de contas. Isso gerava pressões dos colonos,mas sobretudo dos governos dos respectivos países de origem,particularmente o governo italiano, cuja economia dependia fortementedas remessas monetárias de seus emigrantes no exterior, nos EstadosUnidos, na Argentina e no Brasil. Entretanto, a forma de engajamento doimigrantenoscafezais,atravésdaproduçãodiretadosmeiosdevidaedepagamentos monetários inferiores aos salários correntes, reduzia suacapacidade como consumidor de mercadorias importadas (um dosinteresses do governo italiano) e como remetedor de dinheiro para osremanescentesda famílianaItália.Asmenoresremessasanuais foramasdosimigrantesnoBrasil.Opagamentomonetáriomaisfrequenteaocolonoera uma reivindicação constante. Para não comprometer a sujeição aoprópriociclodocafée terassimgarantiademãodeobra,ospagamentosmonetários se amiudaram, mas sob forma de adiantamentos sobre osganhosquea família colona teriano inaldo anoagrícola.Adiantamentospassarama ser feitosa cada trimestreoumesmomensalmente,mas semse converterem em verdadeiros salários, mantida uma relação dedébito.67

Outro acontecimento importante na transformação das relações detrabalho nas fazendas de café foi o do deslocamento da agricultura desubsistência,docolono,docafezalparaosterrenosimprópriosparaocafé,dentro da fazenda. Como tenho mostrado, a rigor não há um momento

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cronológico que se possa de inir como sendo aquele em que essamodi icação teria ocorrido. A permissão ou não da cultura de alimentosdentroou foradocafezal,desdeoséculoxix,dependeusempredeváriosfatores: esgotamento do solo, estreitamento das ruas de café nas novasplantações, novas variedades de café menos tolerantes à consorciação,idadedoscafeeirosetc.Masatransferênciadaagriculturadesubsistênciadocolonoparaforadocafezalrepresentouumaduplicaçãoda jornadadetrabalho, instaurou uma nova divisão do trabalho agrícola dentro dafazenda e no interior das famílias de colonos, permitiu aperfeiçoar,racionalizar e modernizar o próprio plantio e trato do café, com maiscafeeiros por área cultivada. Esse fato é indicativo do aparecimento davisibilidadedaimportânciaeconômicadaterraemsimesma.Houveépocaemquea importânciaeconômicadocafezaleracalculadapelonúmerodecafeeiros e não pela extensão de terra ocupada. O deslocamento daagriculturadesubsistênciaparaforadoscafezaisfoievidênciasigni icativadaimportânciaeconômicaqueaterrapassouater.

Essa medida, que concretizava a trans iguração da terra em rendaterritorialcapitalizada,noplano lógicoviabilizouaroça forada fazenda,odesenvolvimentodeumaagricultura familiar libertadacoerçãoterritorialpermanente do fazendeiro, que era a coerção da precedência das regrasagronômicasdocafé.Aomesmotempo,viabilizouocomérciodeterrasdeque se valeriam os grandes proprietários, nos anos 1920 e sobretudo apartirdaCrisede1929,parareconstituirouampliaradisponibilidadedecapitaisameaçadospelacrisedocafé.Éapartirdessapossibilidadequeaterra começa a concretizar sua própria libertação, para converter-se emmercadoria, livre da condição de acessório e instrumento de coerção dotrabalho.

Em 1965, já na época do im do que restava do colonato, ouvi de umgrande fazendeirodaBaixaMogiana,emAmparo (SP),deuma famíliadebarõesdocaféqueháquatrogeraçõesocultivavanamesmalocalidadeenasmesmasfazendas,quepreferiaarrecadardevolta,deseuscolonos,asterras fora do cafezal dedicadas às suas culturas de subsistência,entregando-lhesemquantidades ísicasomesmoquecolheriamdemilhoefeijão em suas roças nas terras da fazenda, cultivando ele mesmo essesprodutos, nasmesmas terras. É que, sendo a deles uma agricultura pré-

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moderna, de mera subsistência, não regulada por cálculos de naturezacomercial, poderia obter o dobro ou mais da produção plantando essesgrãoscomtécnicasmodernaseaindasairiaganhandoemuito.Levavaemconta que os cultivos dos colonos, do ponto de vista da renda da terra,valiammenosdoquepoderiamvaler.

É no começodo século xx, sobretudo, quemais insistentemente se falasobreacriaçãodeviveirosdemãodeobra foradas fazendas:núcleosdepequenos proprietários cujas famílias seriam recrutadas comoassalariadas no período de colheita. É importante notar que orecrutamentodecolhedores,emborarepresentassemeioimportanteparadisseminar as relações salariais nas fazendas, continuava sendo feito embases familiares. Eram recrutadas famílias de colhedores.68 Embora aformadoengajamentotrabalhistafossefamiliar,aessênciadarelaçãoerasalarial.

Abre-se assim caminho para que a relação salarial invada e destruaprogressivamente, embora lentamente, a forma camponesa deengajamento do colono na fazenda de café. Abre caminho para que oassalariadosubstituaocolono.Éapartirdessapossibilidadequeamãodeobra começa a libertar-se, por sua vez, da peia da propriedade alheia.Mesmo recriando fora da fazenda o campesinato, a agricultura familiar,criaassimapopulaçãosobranteparaocaféeexpande,pois,aestruturaderelações salariais na cafeicultura, a mão de obra inteiramente liberta dociclo da natureza, inteiramente salarial do ponto de vista da economiacafeeira. Em vez de receber renda em trabalho, materia lizada namercadoriacafé,ofazendeiropassaapagarsalário.Oseudinheiro,emvezdesermaterializaçãodarendarecebida,passaaserefetivamentecapitalvariável. O fazendeiro, com isso, também começa a libertar-se comocapitalistaagrário,comoempresáriorural.

Antes de transformá-lo num capitalista da agricultura, o café fez dofazendeiro um capitalista. O avanço técnico do cafezal, a aceleração dacolheita e do bene iciamento propiciaram a conversão do produto emcapitalmaiscedo.Masnãohaviacomoaceleraremtodasasfasesotempodeproduçãodocafé(sóodacolheitaedobeneficiamentoindustrial),comomostrei. Por isso, a mais-valia representada por essa economia, pelo

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encurtamento do tempo de produção, tinha que se materializar ematividadeseconômicas forado cafezal, emoutros setoreseconômicos cujociclo de reprodução fosse liberto das limitações da natureza. O capitalproduzidopelocafétinhaquesereproduzirforadafazendadecafé,comoocorreu com a transformação do fazendeiro em empresário. Por isso, ofazendeiro era capitalista de um modo determinado num primeiromomento da sua história e passou a ser capitalista de outro modo,característico do capital, num outro momento, ao longo de um processopraticamentesecular.

O aparecimento do colhedor, do camponês que temporariamente seassalaria, ainda não completa o processo. Cria o lugar estrutural doassalariado característico de certa fase da agricultura, o temporário,masnãocriaooperáriopermanentementeassalariado,comoaconteceriamaistarde, já emnosso tempo, como chamado "boia-fria'.Não cria o operárioassalariado,quepersoni iqueosalárioearelaçãosalarialtodootempo,eque, portanto, con igure uma potencial classe social. Ao mesmo tempo, econtraditoriamente, esse trabalho assalariado temporário recria ocamponês, recria a agricultura familiar no pequeno proprietário; é fontedessa recriação que nega a relação salarial já con igurada estrutural eobjetivamente.

Nãoseconfundaocolhedorassalariadocomocamarada,cujaexistênciaremontaàescravidão.Haviamaisdiferençaentreambosdoqueofatodeque o primeiro recebia salário por jornada ou por quantidade de cafécolhido,porpeçananomenclaturaapropriada,eosegundorecebiasaláriomensal. Ao contrário do colhedor, o camarada na fazenda de café eracomplemento da escravidão e,mais tarde, do colonato. Sua presença nãocomprometia nem destruía as formas não capitalistas de exploração daforça de trabalho. Já o colhedor de café, assalariado temporário, era acontradição do colonato, a destruição potencial do colonato, como acabousendoaofimdemuitasdécadas.

Na medida em que o colonato, como forma característica do trato docafezal se constituiu pela mediação da tarefa decisiva e problemática dacolheita, conforme foi indicadoantes, foiproduzidopelasnecessidadesdemão de obra do período de colheita. E na medida em que se tornou

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necessário e se disseminou o trabalho assalariado sazonal na colheita decafé, começou também a ser destruído o colonato no trato do cafezal;começou a ser minado o processo de reprodução do colonato. Abre-se,pois, o lugar para outromodode integração da população como força detrabalhonafazendadecafé.

Trabalho apresentado no Seminário sobre População e mão de obra naAméricaLatina,1880-1930,organizadoedirigidoporNicolasSánchez-Albornoz, no 8° CongressoMundial de História Econômica, UniversidadInternacionalMenendes Pelayo, Santander (Espanha), 10- 12 de agostode 1982. C£ José de Souza Martins, "Dei esclavo al asalariado em tashaciendas de café, 1880-1914. La génesis dei trabajador volante", emNicolas Sánchez-Albornoz (org.), Población ymanode obra emAméricaLatina,Madrid,AlianzaEditorial,1985,p.229-57.

Notas

1C£ChiaraVangelista,Lebracciaperlafazenda(Imigratiecaipiras"nellaformazionedelmercatodel lavoropaulista, 1850-1930),Milano, FrancoAngeliEditore,1982,p.84.

2Cf.FrancoCenni,ItalianosnoBrasil,SãoPaulo,LivrariaMartins,1975,p.172. Dependendo de diferentes de inições de anos limites para acontagemdosimigrantespornacionalidade,essaordemsealtera,oqueexplicadesencontrosdecifrasentrediferentesautores.

... estesmilhões de camponeses, caboclos, caipiras, campeiros espalhadosporquasetodaasuper íciedoImpério......C£LouisCouty,L'EsclavageauBrésil,Paris,LibrairiedeGuillauminetCie.,Editeurs,1881,p.36;ChiaraVangelista,op.cit.,p.34.

C£ Paula Beiguelman, Formação política do Brasil, São Paulo, LivrariaPioneira, 1967, v. 1, p. 29-30; Paula Beiguelman, Joaquim Nabuco, SãoPaulo, Ática, 1982, p. 33. Os estudos de Paula Beiguelman apresentammuitasindicaçõessobrearesistênciaaotrá icointerprovincialesobreosrecursospolíticosutilizadosparaimpedi-loousustá-lo.

C£ManuelCorreiadeAndrade,AterraeohomemnoNordeste,2.ed.,SãoPaulo, Brasiliense, 1962, p. 97 e 109; Maria de Nazareth Baudel

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Wanderley, Capital e propriedade fundiária: suas articulações naeconomiaaçucareiradePernambuco,Riode Janeiro,PazeTerra,1978,p.37.

6C£LouisCouty,op.cit.,p.37.

C£Nazareth Prado, op. cit., passim; Darrell E. Levi, A família Prado, trad.JoséEduardoMendonça,SãoPaulo,Cultura70,1977,passim.

8 Embora no litoral paulista, no século xvi, tenha se iniciado a produçãoaçucareiranoBrasil, ela só sedesenvolveu signi icativamenteno séculoxviii,na regiãocentraleno litoralnortedaCapitania.C£MariaTherezaSchorer Petrone, A Lavoura canavieira em São Paulo, Difusão EuropeiadoLivro,SãoPaulo,1968.

9C£DanielPedroMuller,Ensaiod'umquadroestatísticodaprovínciadeS.Paulo (1aedição:1838),Reedição litteral, SecçãodeObrasd' "OEstadodeS.Paulo",SãoPaulo,1923,p.122-132.

10 C£ J. R. deAraujo Filho," 0 café, riqueza paulista", BoletimPaulista deGeogra ia,n.23,julhode1956,p.84-85e102-104;SergioMilliet,op.cit.,p.5-70;PierreMonbeig,op.cit.,p.147-188.

C£ André João Antonil, Cultura e opulência do Brazilpor suas drogas eminas(Iaedição:1711),SãoPaulo,CompanhiaMelhoramentos,1922,p.109.

12Cf.CarlotaPereiradeQueiroz,Umfazendeiropaulistanoséculoxrx,cit.,p.25-8;WarrenDean,RioClaro,cit.,p.1-23.

13Emépocatãorecuadaquantooanode1823,MariaGrahamdiz,sobreaderrubadadamataparaformaçãodeumafazendanoRiodeJaneiro:"Osproprietários de fazendas preferem contratar ou negros livres, ounegrosalugadospelossenhoresparaosserviçosnas lorestas,porcausados numerosos acidentes que ocorrem na derrubada de árvores,especialmentenasposiçõesescarpadas.Amortedeumnegrodafazendaéumaperdadevalor;adeumnegroalugadosódálugaraumapequenaindenização......Cf.MariaGraham,DiáriodeumaviagemaoBrasil(ediçãooriginal: 1824), BeloHorizonte, Itatiaia/Editora daUniversidade de SãoPaulo,1990,p.333-

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1¢CfLouisCouty,Étudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.5e117-9;WarrenDean,op.cit.,p.35;CarlotaPereiradeQueiroz,op.cit.,p.85;PierreDenis,op.cit.,p.126.

15C£AugustoRamos,op.cit.,p.207-8.

16Cf.VamirehChacon,"Introdução",emJerônimoMartinianoFigueiradeMelo,AutosdoinquéritodaRevoluçãoPraieira,Brasília,SenadoFederal,1979,p.XXII, LIVe cii.A sujeiçãodosmoradoresde engenho ica claranesta passagem do inquérito: "... Senhor de Engenho que forçou seusmoradores e lavradores, com ameaças de despejo e casas abaixo...... C£Jerônimo Martiniano de Melo, op. cit., p. 136 e 233. Nas Revoltas doQuebra-Quilos, também no Nordeste, em 1874 e 1875, motivadas pelaimplantação do sistema métrico decimal, em 1872, estava presente otemordeescravizaçãodosagricultoreslivres.Umanovalegislaçãosobreregistro de nascimentos e de óbitos tornou-se conhecida como "Lei doCativeiro". Cf. Armando Souto Maior, Quebra-Quilos Lutas sociais nooutonodoImpério,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1978,p.36.

7Éoque levaumautoraconcluirqueaanáliseque izdaLeideTerrasde1850,enquanto instrumentodecerceamentoda liberdadedeacessoà terra e veículo da sujeição do trabalho pelos fazendeiros "signi icariaqueocapitaldominanãosóotrabalhocamponês,mastambémaclassedeproprietários,enquantoocampesinatosecomportacomo`assalariadodefato—.Cf.MauroW.B.deAlmeida,Notassobreapequenaproduçãofamiliar, texto para discussão n. 5, Instituto de Filoso ia e CiênciasHumanas-Campinas,Unicamp, junhode1981,p.6.Nadaémaisopostoedistantedo textode referênciadoqueessa formulação simpli icadaeredutivaque suprimeasmediações edeterminaçõesdadiversidadedoprocessosocialehistórico.Oassalariadoouoéounãooé.Oque tentomostrar é que, justamente, a concepção de salário disfarçado (e adecorrente pressuposição funcionalista de "assalariado de fato")constituiumrecursodelinguagemquedescartaadiversidadeconcretaedialéticadas formassociaisdeexploraçãodotrabalhoeascontradiçõesdo desenvolvimento capitalista, reduzidas por alguns autores à simplesoposiçãoentretrabalhoassalariado(eseussupostosequivalentes,comoas variantes do trabalho livre) e capital (e seu suposto equivalente, apropriedadedaterra).Essaoposiçãoéestruturaleteórica,masaelanãosereduzoprocessorealdocapitalnumpaíscomooBrasil.Arelevância

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docolonatoparaacompreensãosociológica,nessemomentodahistóriasocial do país, está justamente na sua contraditória diversidade e nosdesencontrosentreformaseconteúdosnomovimentoemqueasformassociais antecipam e mediatizam as possibilidades históricas do capital,tolhidoebloqueadoemsuarealizaçãopelascircunstânciashistóricasdatransiçãodotrabalhoescravoparaotrabalholivre.

1sCálculospublicadosemOAuxiliadordaIndústriaNacional,defevereirode 1851, na mesma época da aprovação da Lei de Terras, mostravamqueo trabalho livre eramais barato do que o trabalho escravo. Em12anos, o trabalho livre de um homem na lavoura custaria ao fazendeiro85,3%doquecustariaoescravoesuamanutenção.Cf.EduardoSilva,"OBarão de Pari do Alferes e a fazenda de café na velha província", emFrancisco Peixoto de Lacerda Werneck, Memória sobre a fundação deuma fazenda na província do Rio de janeiro, (Ia edição: 1847),Brasília/Riode janeiro, SenadoFederal-FundaçãoCasadeRuiBarbosa,1985, p. 24. Esses cálculos são bem anteriores á progressiva esigni icativa elevação do preço do escravo em decorrência da cessaçãodotráficoedaexpansãodaculturadocafé.

19OBarãodeParidoAlferesobservava,em1847:"Abundânciadebraçoscativoseo imenso terrenoporcultivaresquivamo trabalhador livredocultivo de nossos campos". Cf. Francisco Peixoto de Lacerda Werneck,idem,p.62-3.

20 "... suspendem-se todas as sesmarias futuras até a convocação daAssembleiaGeral,ConstituinteeLegislativa."Cf.n.76-Reino-ResoluçãodeconsultadaMesadoDesembargodoPaçode17deJulhode1822,emInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Vade-mecumagrário,CentroGrá icodoSenadoFederal,Brasília,1978,v.1,p.17;RuyCirne Lima, Pequena história territorial do Brasil - Sesmarias e terrasdevolutas,2.ed.,PortoAlegre,LivrariaSulina,1954,p.42-3.C£também,sobre a história fundiária brasileira:Maria Yedda Linhares e FranciscoCarlos Teixeira da Silva, História da agricultura brasileira, São Paulo,Brasiliense, 1981; Ciro Flamarion S. Cardoso, Agricultura, escravidão ecapitalismo,Petrópolis,Vozes,1979,esp.cap.iii.

Cf.MariaTherezaSchorerPetrone,ALavouracanavieiraemSãoPaulo,cit.,p.56ss;JohnLuccock,NotassobreoRiodeJaneiroepartesmeridionais

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doBrasil, BeloHorizonte, Livraria Itatiaia, 1975, p. 194-5, 306 e 381-2;JohnMawe,ViagensaointeriordoBrasil,BeloHorizonte,LivrariaItatiaia,1978, p. 55 e 66. Esses três livros indicam não só as condições desurgimentodamodernapropriedadeprivadadaterranopaís,emqueaprópriaterra,independentementedasbenfeitorias,setornaequivalentede mercadoria, como indicam, também, o caráter anômalo desse fatonumasociedadeemqueaterranãotinhavaloreraramentetinhapreço,cujo domínio eminente pertencia ao rei; ao fazendeiro o monarcaconcediaapenasaposseeouso.

C£RuyCirneLima,op.cit.,p.82;EmíliaViottidaCosta,DaMonarquiaàRepública,cit.,p.133.

3CfThomasDavatz,op.cit.,esp.p.71-139.Sobreatransiçãodosmecanismosdecoerçãodotrabalhoescravoparaosdacoerçãodotrabalholivre,cf.AntonioBarrosdeCastro,"Emtornoàquestãodastécnicasnoescravismo",Simpósiosda29"ReuniãoAnualdaSociedadeBrasileiraparaoProgressodaCiência,SãoPaulo,1980,p.196-7.Sobreoduplomecanismodaroçaedadívidacomomeioparacoagirotrabalhadorlivreapermanecernafazenda,C£J.J.Tschudi,ViagemàsprovínciasdoRiodejaneiroeSãoPaulo,p.134-6e182;MaxLeclerc,op.cit.,p.102;PierreDenis,op.cit.,p.122.

C£StanleyJ.Stein,GrandezaedecadênciadocafénoValedoParaíba,cit.,p.305.

zsC£AugustoRamos,op.cit.,p.562.

aóC£PierreDenis,op.cit.,p.143.

27C£B.Belli,Ilcafe-Ilsuopaeseelasuaimportanza(S.PaulodelBrasile),Ulrico Hoepli, Editore- Libraio delta Real Casa, Milano, 1910, p. 112;PierreDenis, op. cit., p.124;OlavoBaptistaFilho,A fazendade caféemSãoPaulo,ServiçodeInformaçãoAgrícola,RiodeJaneiro,1952,passim.

~$Cf.PierreDenis,op.cit.,p.140.

29C£LouisCouty,Etudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.5e119;C£ C. E Van Delden Laèrne, op. cit., p. 185; Carlota Pereira de Queiroz,Umfazendeiropaulistanoséculoxix,cit.,p.85-

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31C£Stanley J. Stein,GrandezaedecadênciadocafénoValedoParaíba,cit.,p.279ss.,esp.p.325;EmíliaViottidaCosta,Dasenzalaàcolônia,cit.,p.210;C£C.F.VanDeldenLaèrne,cit.,p.278-

31C£LouisCouty,Étudedebiologie industriellesur lecafé, cit.,p.116-7;MariaSylviaC.BeozzoBassanezi,loc.cit.,p.247-

31C£C. F.VanDeldenLaèrne, cit., p. 292-3; J. J. VonTschudi,ViagemàsprovínciasdoRiodejaneiroeSãoPaulo,cit.,p.55.

33Cf.Stanley J. Stein,GrandezaedecadênciadocafénoValedoParaíba,cit.,p.279ss.

34C£HugodeAlmeidaLeme,"Aevoluçãodasmáquinasdebene iciarcaféno Brasil", Anais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz,Piracicaba(SP),1953,v.10,p.5-14.

35"Opreçoquesepagapeloescravonão-ésenãoamais-valiaoulucroantecipadooucapitalizadoquesepensaarrancardele.Masocapitalquesepagaparacompraroescravonãoformapartedocapitalmedianteoqualseextraemdele,doescravo,olucro,otrabalhosobrante.Pelocontrário,éumcapitaldequesedesfezopossuidordoescravo,umadeduçãodocapitaldequepodedisporparaaproduçãorealeefetiva.Estecapitaldeixoudeexistirparaele,exatamentedomesmomodoqueocapitalinvestidonacompradaterradeixoudeexistirparaaagricultura."CarlosMarx,Elcapital,cit.,t.II[,p.748-9.JacóGorender(Oescravismocolonial,SãoPaulo,Ática,1978,p.172-91),referindo-seaessaclaraformulaçãodeMarx,entendequeelapermitecaracterizaroescravocomocapital-dinheiro.Porcoincidência,namesmaépocaemqueseulivrofoipublicado(marçode1978),eaindasemacessoaele,eujáhaviaencaminhadoaosorganizadoresdoSemináriosobreModosdeProduçãoeDinâmicadaPopulação,queserealizarianomêsseguinte,emCuernavaca,organizadopelaUniversidadNacionalAutónomadeMéxico,oestudoquefiznosmesesanterioressobre"Aproduçãocapitalistaderelaçõesnãocapitalistasdeprodução:oregimedecolonatonasfazendasdecafé"(cap.1destelivro).Nessetexto,recorrendoaomesmoMarx,tratooescravocomorendacapitalizada,enãocomocapitalfixonemcomocapital-dinheiro.Essaé,nomeumododever,acorretainterpretaçãodoqueera,dopontodevistacapitalista,oescravopara

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Marx,oquemepareceindiscutívelàluzdessacitação.Docontrário,Marxnãoteriafeitoaassociaçãoentreapropriedadedoescravoeapropriedadedaterraàluzdesuasconsideraçõesteóricassobrearendaterritorialcapitalizada,imobilizaçãoimprodutivadecapitalnaaquisiçãodeterraparaseuusopelocapitalista.Guardadasasdiferençasevidentes,dopontodevistacapitalista,entreaterraeoescravo,queGorenderassinala(p.190-1),assimcomoaterra,oescravoaparecianaeconomiadafazendaenoprocessodeproduçãodocafécomorendacapitalizada,comoimobilizaçãoimprodutivadecapital,completamentedistintadodinheiro.Atéporqueseria,anomalamente,umdinheiro"quemorria",reduzidoafunçõeseventualmentemonetáriasunicamentenomomentodacompraedavenda.

36Cf.HugodeAlmeidaLeme,Aevoluçãodasmáquinasdebene iciarcafénoBrasil", cit., p. 15-7; ThomasH.Holloway, "Condições domercadodetrabalhoeorganizaçãodotrabalhonasplantaçõesdaeconomiacafeeiradeSãoPaulo,1885-1915:umaanálisepreliminar",EstudosEconômicos,v.2,n.6,InstitutodePesquisasEconômicas-USP,1972,p.151.Acoleçãode documentos de família de Arrelia de RezendeMartins (Um idealistarealizador-BarãoGeraldodeRezende,RiodeJaneiro,Of icinasGrá icasdoAlmanakLaemmert,1939)contémvários indíciosdarelaçãoentreamodernização do bene iciamento e a aceleração do processo deproduçãodocafé.

37 ... incompatibilidade entre a permanência do regime escravista e amecanização,obrigavaautilizaçãodemãodeobranumerosa."Cf.EmíliaViottidaCosta,Dasenzalaàcolônia,cit.,p.27.UmaargumentaçãoopostaàdeViottidaCostaencontra-seemAntonioBarrosdeCastro,"Emtornoà questão das técnicas no escravismo", cit. Diversamente desses doisautores, penso que é preciso distinguir técnicas que exigiaminvestimentos de capital, como no caso da mecanização, de técnicasrelativas à simples substituição da população envolvida no processo detrabalho, como foi o caso da passagem do trabalho coletivo do eito, naescravidão, para o trabalho familiar, no colonato. No primeiro caso, oescravo não era empecilho, enquanto trabalhador, mas a escravidão oera, na medida em que o escravo constituía renda capitalizada, capitalquenáosetransformavaemmeiodeincrementodaforçadetrabalho.Odispêndiodecapitalnacompradocativodesviavaocapitalquepoderiaserempregadonacompradamáquina,comocapitalconstante,coisaque

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não aconteceria se o trabalho fosse livre e mesmo salarial, o capitalempregado na mobilização da força de trabalho reduzido ao capitalvariável.

38 "A carpa dos cafezais, que emmuitos lugares em grande parte senãoquasecompletamentepodeserfeitapormáquinas,éumdosserviçosemque o trabalho dos colonos hoje ainda émuito esperdiçado namaioriadasfazendas."Cf.F.W.Dafert,RelatórioannualdoInstitutoAgronomicodoEstadode S. Paulo (Brasil) emCampinas - 1894 e1895, v. vii e vttt,São Paulo, Typographia da Companhia Industrial de S. Paulo, 1896, p.200;LouisCouty,Etudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.26-7.

39Cf.JoséGrazianodaSilva,Progressotécnicoerelaçõesdetrabalhonaagricultura,SãoPaulo,Hucitec,1981,p.111.

40Cf.AmeliadeRezendeMartins,Umidealistarealizador-BarãoGeraldodeRezende,cit.,p.252,298e488.

41 José Graziano da Silva, num trabalho documentado, tratando dadesagregação do colonato, mostra que a modernização da agriculturabrasileira "onde se fez presente, atingiu apenas algumas fases do cicloprodutivo", o que acentuou a sazonalidade das atividades agrícolas,tornandomaisvantajosooempregointermitentedotrabalhadorvolante.Cf. José Graziano da Silva, Progresso técnico e relações de trabalho naagricultura, cit., p. 5. Essa característica do nosso desenvolvimentoagrícolajáhaviasidoapontadapelosagrônomosAntonioA.B.Junqueirae Antonio D. Piteri, num trabalho apresentado, em janeiro de 1965, nareunião anual da Sociedade Brasileira de Economistas Rurais, apropósito dos então chamados trabalhadores volantes, mais tardedenominados"boias-frias":"Assim,amecanizaçãodispensandomaismãode obra em algumas fases do labor agrícola que em outras, podecontribuir para agravar o problema." Cf. Antonio A. B. Junqueira eAntonio D. Piteri, "Estudo preliminar da mecanização agrícola em SãoPaulo", Anais da iv Reunião da Sociedade Brasileira de EconomistasRurais, São Paulo, 1966, p. 362 ss., esp. p. 364. Em ambos os casos, éproblemática a concepção esquemática de "fase" na organização dotrabalhonoregimedecolonato.NocasodotrabalhodeGrazianodaSilva,náo só as fases do processo de produção são de inidas de modomecânico,comoopróprioprocessodeproduçãoestácircunscritoàquela

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parte do tempo de produção propriamente agrícola. Ora, o tempo deproduçãodeumdeterminadoprodutoagrícolapodeounãocompletar-sena fase propriamente agrícola. Alguns produtos estão, hámuito tempo,sujeitos a uma elaboração industrial, como era e é o caso do café, nobene iciamento. Se segmentarmos o processo da mercadoria e osepararmosdomomentoedascondiçõesdesua realizaçãocomo tal, seperdermos de vista que o tempo da produção se concretiza quando oprodutose tornaefetivamentemercadoria,perdemosdevista conexõesimportantes na determinação capitalista da produção. Perdemosigualmentedevistaasdeterminaçõesrecíprocasdasdiferentesfasesdoprocesso. A determinação capitalista da produção, ainda que não hajamodernizaçãoagrícola,podealterarosritmoseascondiçõesdotrabalhona agricultura, a partir de determinações "externas" à produção. Amodernização do bene iciamento do café, "fora", portanto, da atividadeagrícola, impôs colheita mais rápida que, sendo fase não mecanizável,naquele momento, teve que responder com mais mão de obra nacolheita, em período menor. Se separarmos as fases, como se fossemsegmentosautônomos,comoseamodernizaçãodeumasenãodeoutrasfosseumaquestãopuramentetécnica,umaquestãodeengenharia,enãouma relação social, suprimiremos o movimento que faz da sequênciadessas fases um processo social, uma sequência de relaçõesdeterminadasreciprocamente.

42C£AmelladeRezendeMartins,op.cit.,p.488;EmíliaViottidaCosta,Dasenzalaà colônia, cit., p.187;LouisCouty,Etudedebiologie industriellesurlecafé,cit.,p.43e47.

4sCf.AmeliadeRezendeMartins,op.cit.,p.553.

41C£C.F.VanDeldenLaèrne,LeBrésiletfava,cit.,p.296-310.

asC£C.F.VanDeldenLaèrne,idem;EmíliaViottidaCosta,cit.,p.29e54;Verena Stolcke, "A família que não é sagrada - sistemas de trabalho eestrutura familiar:ocasodas fazendasdecaféemSãoPaulo",emSuelyKofesdeAlmeidaeta1.,Colchaderetralhos-EstudossobreafamílianoBrasil, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 46-7; Verena Martinez-Alier eMichael M. Hall, From Sharecropping to the Colonato, abril de 1978,mimeo,p.3e7;MariaSylviaC.BeozzoBassanezi, loc.cit.,p.247e262;MarioRamos,Aillusãopaulista,RiodeJaneiro,1911,p.19;PierreDenis,

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op.cit.,p.154-5.

46 Na Segunda Exposição de Café no Brasil, realizada em 1883,apresentaram-se1.277produtores.Desses, 49,5%utilizavammáquinasmodernas de bene iciamento e 50,5% utilizavam máquinas primitivas(carretão, pilão d'água e monjolo). A proporção dos que utilizavammáquinas modernas nas diferentes províncias era a seguinte: EspíritoSanto, 31,6%; Rio de Janeiro, 48,2%; Minas Gerais, 48,9%; São Paulo,58,7%. C£ Hugo de Almeida Leme, "A evolução das máquinas debeneficiarcafénoBrasil",cit.,p.15-7-

41 C£ Maria Sylvia C. Beozzo Bassanezi, loc. cit., p. 248-52; ChiaraVangelista,op.cit.,p.146.

41C£LouisCouty,Étudedebiologieindustriellesurlecafé,cit.,p.75;C.EVan Delden Laèrne, cit., p. 257; Pierre Denis, op. cit., p. 151. Comoreferência comparativa do calendário agrícola, utilizei, também, oAlmanach Commercial Brasileiro - 1918, São Paulo, "Revista deCommercioeIndustria",1918,passim.

49 Já em meados do século xix, o Barão de Pari do Alferes, grandefazendeirodecafénaProvínciadoRiodeJaneiro,mencionavaousodostoldos na colheita, feitos de algodão grosso de Minas, de 4 metrosquadrados.C£FranciscoPeixotodeLacerdaWerneck,Memóriasobreafundação de uma fazenda na província do Rio de janeiro (1a edição:1847), Brasília/Rio de Janeiro, Senado Federal/ Fundação Casa de RuiBarbosa,1985,p.67.

50C£PierreDenis,op.cit.,p.151.

51 Cf. Guido Maistrello, "Fazendas de café - Costumes (S. Paulo)", emAugustoRamos,op.cit.,p.556.

szC£SérgioS.Silva,Valorerendada terra,SãoPaulo,Polis,1981,p.104.C£,também,domesmoautor,"Formasdeacumulaçãoedesenvolvimentodo capitalismo no campo", em Paul Singer et al., Capital e trabalho nocampo,SãoPaulo,Hucitec,1977,p.7-24.

53Sobreofetichismodasformas,cf.NorbertGutermaneHenriLefebvre,LaConsciencemystifzée,LeParis,Sycomore,1979.p.12-5.

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54Cf.HenriLefebvre,HegelMarx,Nietzsche(Oel reinode Iassombras),trad. Mauro Armi io, segunda edición, México, Siglo xxt Editores S.A.,1976,p.1-69.

55 ... em situações extremas, por exemplo, emque não havia umapréviaexistência da pequena exploração, a grande exploração, a grandepropriedadeobrigava-seacederpartedesuasprópriasterrasparaqueos trabalhadores rurais a explorassem por conta p róp ria'durante operíododenão trabalho,aoqual ideologicamentechamava-sede tempolivre."C£JoséGrazianodaSilva,Progressotécnicoerelaçõesdetrabalhona agricultura, cit., p. 55 (grifo meu). Mais adiante, Graziano da Silvaincorpora uma interpretação de Jacob Gorender ("Da senzala aocaminhão", Anais da iv Reunião Nacional de Mão de Obra Volante naAgricultura, Botucatu, 1978,mimeo, p. 5-22) sobre a "economianaturaldesubsistência",duranteoescravismo,comotrabalhodaentressafradocafé,ea irma:"...omesmoproblemadavariaçãosazonaldasexigênciasdeforçadetrabalhoexistiatambémanteriormentenaculturadocaféeocolono representou uma solução admirável numa época em que omercadodetrabalhoestavaemgestação:presentenaépocadecolheitacomo assalariado, sobrevivia com sua `roça de subsistência' - quepreferencialmenteerainclusiveintercalaraocafé-nosdemaismesesdoano."C£JoséGrazianodaSilva,op.cit.,p.113.Narealidadeostrabalhosde trato do cafezal, para o fazendeiro, e de cultivo de gêneros desubsistência, para o colono, (e, antes, para o escravo que, com seusfrutos, podia formar pecúlio), tanto no escravismo quanto no colonato,excetuadososcasosemqueaagriculturadesubsistênciafoiexcluídadocafezal, constituíam umúnico e combinado processo de trabalho, e nãoprocessos distintos entre si, como supõem Gorender e Graziano, que oacompanhanainterpretação.Sócomoabstraçãoessastarefaspodemserseparadas umas das outras. Em sua viagem de 1883-1884, DeldenLaèrne notou que "semede sempre a extensão das plantações de cafépelaquantidadedemilhoquesetemoutinhahábitodeplantarentreoscafeeiros."Op.cit.,p.241.Nãolevaremconta,pois,queessesdiferentesprodutoseramoresultadodeumúnicoprocessodetrabalhoéquelevaessesautoresaconsideraraproduçãodesubsistênciacomoprodutodenãotrabalho.NoesquemadeGraziano,otempodenãotrabalhotendeacrescer pela redução do tempo de trabalho em relação ao tempo deprodução. Nesse caso, a questão problemática está em de inir o que étrabalhoeoqueénãotrabalho.

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96Anão coincidência entre o tempodeprodução e o tempode trabalhosomente pode dever-se ás condições naturais que aqui interferemdiretamente na valorização do trabalho, isto é, na apropriação desobretrabalho pelo capital. Tais obstáculos no caminho deste nãoconstituem, naturalmente, vantagens, mas, de seu ponto de vista,perdas." C£ Karl Marx, Elementos fundamentales para Ia crítica de laeconomia política, trad. Pedro Scaron,México, Siglo Veinteuno Editores,1978,v.2,p.191.

57 CL Maria Nazareth Baudel-Wanderley, O camponês: um trabalhadorpara o capital, texto para discussão n. 2, Campinas, Departamento deEconomia ePlanejamentoEconômicodo InstitutodeFiloso ia eCiênciasHumanas-Unicamp,maiode1979,p.26.

58 Cf. Karl Marx, Un Chapitre inédit du capital, trad. Roger Dangeville,Paris,UnionGéneraled'Editions,1971,p.191-223.

59 C£ Sérgio Milliet, "O desenvolvimento da pequena propriedade noEstado de São Paulo", Roteiro do café e outros ensaios, cit., p. 73-116.Tratando da introdução da empreitada nos cafezais, depois da aboliçãoda escravatura, sem o recurso à reforma agrária preconizada porsetoresdaopiniãopúblicaedaprópriaclassedosproprietáriosdaterra,umautorobservou:"Umfatoquecomprovaasvantagensdosistemafoique os fazendeiros evitaram a divisão de seus latifúndios. Completodomíniosobreaterraeascolheitascontinuousendoaregra."C£StanleyJ.Stein,GrandezaedecadênciadocafénoValedoParaíba,cit.,p.328.

C£ Emilio Franzina, Merica! Merica! - Emigrazione e colonizzazione nellelettere dei contadini veneti in America Latina, 1876-1902, Milano,GiangiacomoFeltrinelliEditore,1980,passim.

61C£ChiaraVangelista,op.cit.,p.92e100;PierreDenis,op.cit.,p.133;A.Piccarolo,Umpioneirodasrelaçõesítalo-brasileiras(B.Belli),cit.,p.27.

62C£SecretariadosNegóciosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasdo Estado de São Paulo, Relatorio Apresentado ao Dr. Jorge Tibiriçá,presidentedoEstado,peloDr.CarlosBotelho,SecretariodaAgricultura-Annode1905,SãoPaulo,TypographiaBrazil,Rothschild&Co.,1907,p.179- 180; Pierre Denis, op. cit., p. 154-5 e 169; Joaquim Silvério daFonseca Queiroz, Informações úteis sobre a cafeicultura, São Paulo,

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EstabelecimentoGraphicoUniversal,1914,p.23;AugustoRamos,op.cit.,p. 203. O Departamento Estadual do Trabalho distinguia colonos deapanhadores de café e estes de assalariados, isto é, camaradas. Osapanhadoresdecafé,ganhandoporquantidadecolhida,recebiamsaláriopor peça; os assalariados recebiam, conforme o ajuste, salário porsemana,porquinzenaoupormês.C£BoletimdoDepartamentoEstadualdo Trabalho, Anno 1, n. 1 e 2, , São Paulo, Secretaria da Agricultura,CommercioeObrasPublicasdoEstadodeSãoPaulo1912,p.19-21.

63 "O remédio consiste em facilitar a este (imigrante) os meios deestabelecer-seporcontaprópria,semtirar-lheacondiçãodeassalariadoda grande lavoura ... [...] Já em 1899, a Comissão de Obras Públicas doSenado [...] salientava a conveniência de estabelecer estes núcleos demodo a constituí-los em viveiros de trabalhadores para a grandelavoura."C£RelatórioApresentadoaoDr.FranciscodePaulaRodriguesAlves, Presidente do Estado, pelo Dr. Antonio Candido Rodrigues,Secretario da Agricultura -Anno de 1900, São Paulo, Typographia do"DiárioO icial",1901,p.11(grifomeu);ChiaraVangelista,op.cit.op.cit.,p.51.

64 Cf. Eric Williams, Capitalism ee Slavery, New York, Capricorn Books,1966; Leslie Bethell, A abolição do trá ico de escravos no Brasil, SãoPaulo,ExpressãoeCultura,1976.

65Cf.PierreDenis,op.cit.,p.128;MichaelM.Hall,ApproachestoLatinAmericanHistory",cit.,passim.

66ThomasDavatz,op.cit.,p.140-208;J.J.VonTschudi,op.cit.,p.145-6.

67C£A.Lalière,op.cit.,p.270-3.

61C£ChiaraVangelista,op.cit.,p.70e77.

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Na história visual do mundo do café, há fotogra ias de imigranteschegando de navio ao Porto de Santos, imigrantes no porto embarcandoem trem da São Paulo Railway com destino à Hospedaria de Imigrantes,imigrantes desembarcando na estação da Hospedaria, em São Paulo,imigrantes trabalhando nos cafezais. De certo modo, há um triunfoimagético do trabalho livre na con iante expectativa dos que foramdesenraizadosnapátriadeorigememrelaçãoaodesconhecidodaterradaadoção. As fotogra ias antigas contam a história de um articulado econtínuo sistema de abastecimento das fazendas de café com a mão deobraimportada.

Hátambémumahistóriavisualdatransiçãonasrelaçõesdetrabalho,daescravidãoaocolonato.Há fotogra iasdecolônias,mistodealdeiasevilasoperárias,deportasvoltadasparaarua,oavessodassenzalas,deportasvoltadasparadentrodoquadrado.Aportadacasadocolonovoltadaparaaruaera,numcertosentido,símbolodotrabalho livre,símbolodo imdocon inamento do trabalhador. O cativeiro do trabalhador tutelado pelofeitor,comaabolição,passaadependerdofeitorquecadaumtinhaagoradentro de si. Durante muito tempo, até o casamento do colono de umafazenda com a colona de outra dependia de permissão do fazendeiro, domesmomodoqueausentar-separa iràcidadeporalgummotivoeraalgoquedependiadeautorização.A liberdade jurídicadocolononãocoincidiacoma sua liberdade social.Nessa transição,os símbolosdo trabalho livreforammaisfortesdoqueaefetivaliberdadedotrabalhador.

As imagens fotográ icas do café mostram um aspecto importante dahistória social da transição do trabalho escravo para o trabalho livre noscafezaisdoBrasil.Secompararmosasfotosdeescravosnoeitocomasdecolonosnoeito,asdeescravoscolhendocafécomasdecolonoscolhendocafé, as de escravos secando café no terreiro com as de colonos secandocaféno terreiro, como façoaqui,notaremosqueo imdaescravaturanãorepresentou uma transformação no processo de trabalho, o que atenuousignificativamenteasmudançasnomododeproduçãopropriamentedito.

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Asfotogra iasregistramgestosquesãoosmesmosnosdoiscasos,oqueéessencialparacompreendere interpretararelaçãoentreotrabalhadore o instrumento de produção, entre o sujeito da produção, os meios detrabalho e o objeto da produção. A mudança no arcabouço jurídico dotrabalho foi imensa, mas foi muito pequena na relação de produção. Asfotogra ias mostram grandes mudanças no bene iciamento do café,pequenasmudançasno trabalhodo terreiro,maspraticamentenenhumamudançanacarpaenacolheitadocafédurantelongoperíodo.

Nas fotogra ias, pode-se ver algumas permanências e algumasmudanças na organização social do trabalho livre em relação ao trabalhona escravidão. Nelas, o trabalho no eito, na carpa do cafezal, tanto naescravidãoquantonocolonato,temumacertaorganizaçãomilitar,comosefossetrabalhoindustrialetrabalhomasculino.Jáacolheita,naescravidão,mantinha essa característica da organização do trabalho e, no colonato,organiza-se como trabalho familiar, o que permite notar crianças eadolescentes incorporadas ao trabalho em torno do cafeeiro. No terreiro,naescravidão, apresençaostensivado feitor, oshomenspuxandoo rododaespalhaçãoeasmulherescarregandoosjacásdetransportedocafé;nocolonato,homensfazendotodootrabalhodoterreiro.Sendoacolheitafeitaporempreitadaeasecagemporassalariamento,esendoelastarefasqueocorriam na mesma época, na secagem utilizava-se ou mão de obrasobrante das famílias de colonos oumão de obra externa à fazenda. Já afamília do colono empenhava-se na colheita, até como forma de evitar opagamentodesaláriosatrabalhadoresauxiliares,defora,oquecorriaporcontadocolonoparaquepudesseincumbir-sedaempreitada.

O caféera,naEuropaenosEstadosUnidos,umartigode sobremesaefoi historicamente um artigo de luxo. Luxo exibido pelo re inamento debules e colheres de prata, bules e xícaras de porcelana iníssima,verdadeirasobrasdearte.Foiabebidadaostentaçãosocialepúblicaedoprazer da sociabilidade burguesa. Fez nesse sentido contraponto ao chá,queerabebidamaisfemininadoquemasculina,ocháque,nointeriordasmansões, palacetes e palácios, incorporou a mulher à sociabilidadecivilizada dos salões, no nascimento da vida privada.O café, ao contrário,foi sobretudo bebida masculina, só adjetivamente acolhendo a mulher àmesa, bebida que se tomava durante a conversação extradoméstica no

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esplendorenoluxodoscafésfamosos, foradecasa,portanto.NoBrasil,ocafé fez de cidades caipiras, como São Paulo, uma extensão de Paris, nospalacetes espalhados pelos bairros novos e aristocráticos dos CamposElíseos, da Avenida Paulista, de Higienópolis, as residências dos saraus edaconfinadasociabilidadedaelite,querepudiavaaruaeatéatemia.

Acompreensãodarevoluçãoeconômicaesocialrepresentadapelocafédepende de que se compreenda a mediação do luxo na sua realizaçãocomomercadoriae como lucro.Eraobemsupér luoquegerava relaçõesdetrabalhosupér luas,lucrossubstanciaisnasremuneraçõesresiduaisdotrabalho. O que era diferente dos bens essenciais, como os da indústria,quegeravamrelaçõesdetrabalhoigualmenteessenciaisevitais,combaseem de inidas relações de classe, as tensões sociais e os antagonismostrazidosparaocotidiano,aestruturasocialexpostaabertamentenassuastensõesenosseusconflitos.

EmbarquedeimigrantesjaponesesemtremespecialdaSãoPauloRailway,noPortodeSantos,comdestinoàHospedariadeImigrantes,nobairrodo

Brás,emSãoPaulo.

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ChegadadeimigrantesaoPortodeSantos.(Foto:GuilhermeGaensly)

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ChegadadeimigrantesàestaçãodaHospedaria,emSãoPaulo,provenientesdoPortodeSantos.

TremnaestaçãodoMemorialdaImigração,ondedesembarcaramesehospedarammilharesdeimigrantesdeváriasnacionalidades,entre1888e1930,antesdeseremencaminhadosàsfazendasdecafédointeriorde

SãoPaulo.(Foto:JosédeSouzaMartins)

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ImigrantesnaHospedaria,emSãoPaulo.

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ImigrantesnaHospedariaàesperadoencaminhamentoàsfazendasdointerior.

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Tropatransportandoprovisõesporumapicadanamata,nafrentepioneiradaregiãoNoroeste(c.1921).

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RemanescentedamataoriginaldaFazendaSantaGenebra,emCampinas(SP).

Derrubadadamataparaaberturadefazenda.

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Ocafezalavançasobreafloresta:caieirasdeproteçãodoscafeeirosrecém-plantadoscontraainsolação.Osrestosdaculturaconsorciadademilhosãoumcomponentenecessáriodapaisagemnafasedaformaçãodocafezal.Oempreiteiropagavaaofazendeiro,emcafezal,odireitodeusaraterraparaplantaralimentosparaconsumopróprioecomércio.(Foto:L.Misson,c.1906

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Cafezalnovo.

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Colonostransportamjacazinhoscommudasdecaféparareplantionasfalhasdocafezal.Areplantaeradeobrigaçãodoempreiteiro,que,nofinaldocontrato,dequatroaseisanos,recebiaumpagamentofixoemdinheiropornúmerodecafeeirosplantadoseemprodução.(Foto:J.Michel,1907)

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Escravosnoeitodocafezal.

Colonosnoeitodocafezal.

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CafezalnovoemfazendadoimigranteGeremiaLunardelli,quesetornariao"reidocafé".Nosprimeirosanosdepoisdoplantio,aindasepodeveros

restosdaflorestaabatidaequeimada.

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Iníciodacolheitadecafé.

Colonoscolhendoocafé.

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Escravacolhendocafé.(Foto:ChristianoJr.

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Escravoscolhendocafé.

(Foto:MarcFerrez)

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Colonoscolhendocafé.Comocolonato,acolheitapassaaserfeitaemfamília,comparticipaçãodehomens,mulheresecrianças,consequênciadaremuneraçãoporquantidadedecafécolhido.Aincorporaçãodetodososmembrosdafamílianacolheitaeramododeocolonoevitaracontrataçãodeassalariadosavulsosparadarcontadacolheitanotalhãoquelhecabia.

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Famíliadecolonoscolhendocafé.(Foto:GuilhermeGaensly)

ColôniadaFazendaSantaVeridiana.Portrásdacapela,remanescentesdamataoriginal.(Foto:GuilhermeGaensly)

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Colôniadeumafazenda.Noprimeiroplano,oscercadosparahortaecriaçãodomésticadecadafamíliadecolono.

ColôniadeumafazendadecaféemRibeirãoPreto(SP).

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ColôniadaFazendaSantaGenebra,emCampinas(SP).

Máquinasdebeneficiamentodecafé.

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Escravosnasecagemdocafénoterreiro.(Foto:MarcFerrez,1890)

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Colonos trabalhando na secagem do café no terreiro da Fazenda SantaGenebra, em Campinas, SP. O trabalho de carregamento do café para oterreiro,espalhaçãoeamontoamentoaíaparececomotrabalhomasculino.Outras fotosmostrammeninospuxandoo rodonaesparramaçãodocafé.(Foto:JuliusNickelsen)

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EstivadorescarregandocaféparaumnavionoPortodeSantos.(Foto:GuilhermeGaensly)

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Bulesdeprataparacafé.(séculoxvui)

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CaféBauer,Berlim.(LesserUry,1895)

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PalacetedeDonaVeridianaPrado,emHigienópolis,SãoPaulo.

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CaféLaPaix.(Paris,1900)

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PalacetedoConselheiroAntonioPrado,naChácaraCarvalho,CamposElíseos.

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AvenidaPaulista,emSãoPaulo.

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Meuobjetivonestecapítuloéanalisaraproduçãoideológicadanoçãodetrabalho, tendo como referência principal a área de in luência do café,como uma contribuição ao entendimento das relações de classe nasociedade brasileira. Essa noção tem um lugar central na realidade dasclasses sociais em confronto e possibilita a compreensão das formas docon lito social e doque, aparentemente, surgena cenapolítica comoumaacomodação entre classes historicamente contrapostas. Esse é o caminhopara penetrarmos na realidade cotidiana das relações de classe e dasformasdoconflitodeclasse,poisotrabalhoestánonúcleodessasrelações.

Trabalholivre:aforçadasorigens

A institucionalização do trabalho livre na sociedade brasileira é umfenômeno relativamente recente: mais de um século se passou desde aaboliçãoda escravidãonegra e em relação à chamadaGrande Imigração,principalmente italiana - a principal corrente de imigrantes que resultouna formação do contingente de trabalhadores livres, empregadosprincipalmentenotratodoscafezaisenacolheitadocafé.Esseperíododetempo,porserrelativamentecurtose levarmosemcontaqueosavósdosavós de hoje conviveram com ex-escravos, é um ponto de grandeimportância histórica e política na deter minação da consciência dotrabalhador e das relações de classe. O que temos, de fato, é uma classeoperária de origem relativamente recente, sem uma forte e duradouratradiçãodeclasse.

Ainda hoje é possível encontrar pessoas cujos pais vivenciaramdiretamente essemomentodamoderna constituiçãoda forçade trabalhonopaís.Umgrandenúmerodetrabalhadoresruraiseurbanos,sobretudona região Sudeste, foi socializado nas condições sociais dessa fase detransiçãoedas inde iniçõesque lhe forampróprias.Oestudodasorigensdo trabalho livre, emparticular relacionado coma imigração, é umpassoessencialparapenetrarmosnarealidadesocialdeamploscontingentesde

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trabalhadoresdoBrasildehoje.

O primeiro fato a ser considerado é o de que o nosso contingente detrabalhadores livres era, nessa época, constituído principalmente deimigrantes,estrangeiros,particularmenteitalianos,espanhóis,portuguesese alemães. Esse fato marca indelevelmente a classe operária brasileira,entreoutrasrazões,porqueosseussetoresmaisantigosedemaisnítidatradição proletária estão fortemente caracterizados, ainda hoje, pelaascendênciaestrangeira.Aimigraçãoemnossahistóriadealgummodoseconfunde com os primeiros passos da industrialização, decorrentes daexpansãodocafé,daadoçãodotrabalho livrenoscafezaiscombasenumregime de trabalho que anulava a função história do salário, porquehíbrido.

A origem desse contingente de trabalhadores está diretamenterelacionadacomasubstituiçãodosescravoseapreservaçãodaeconomiacolonialcontraqualquertipodetransformaçãoquepudesseserproduzidapelo desaparecimento do regime de trabalho cativo.' O processo foiconduzido demodo a garantir a reprodução da economia voltada para aprodução de artigos tropicais destinados aos mercados metropolitanos,fundamentalmenteocafé.Noentanto,énecessárioacentuarqueessanãofoi a única tendência no processo migratório. Houve imigrantes que sedevotaram ao comércio ou à indústria, seja como empresários, seja comotrabalhadores; assim como houve os que se dedicaram a atividadesculturais. Mas eles foram exceções. Um caso como o de FranciscoMatarazzo,quese tornaria famoso industrialemilionário,demodoalgumcaracterizaaverdadeiranaturezadaimigraçãoestrangeiraparaoBrasil.

Mais tarde, na passagem do século, quando a indústria começou acrescer signi icativamente,muitos daqueles primeiros imigrantes ou seusilhos e ilhas mudaram-se para as cidades onde a indústria tornava-seimportante para juntar-se aos imigrantes que vieram diretamente doexterior para trabalhar nas fábricas que surgiam ou para trabalhar porconta própria em o icinas de artesãos. Mas sua principal experiência devida era rural, basicamente camponesa, e de modo algum eracaracteristicamenteoperária.

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Emoutraspalavras,issosignificaqueoprocessobásicodeacumulaçãoprimitiva,quelevaàseparaçãodotrabalhadordeseusmeiosdeprodução,resultandonasuatransformaçãoemhomemlivresemoutrorecursodesobrevivênciaquenãosejaavendadesuaforçadetrabalhonomercado,ocorreuforadasociedadebrasileira.Istoé,aexpropriaçãodotrabalhador,comsuacaracterísticaviolência,queseexpressanachamadaacumulaçãoprimitivaenaproduçãodascondiçõessociaisehistóricasparaareproduçãocapitalistadocapitaledaforçadetrabalho,enquantoprocessovividopessoalesubjetivamentepelamaioriadosprópriostrabalhadores(imigradosparaoBrasil)deu-seforadasociedadebrasileira.Essasociedaderecebeuotrabalhadorlivresemterfeitoaacumulaçãoresponsávelportalliberação,istoéaacumulaçãodosmeiosexpropriadosdocamponês,aterraemparticular.Aexpropriaçãoocorreunassociedadesdeorigem,demodoqueaprópriaemigraçãofoiepisódiodela,queveioaseconsumarnoBrasil,namigraçãodessaforçadetrabalhodesprovidademeiosprópriosparaasfazendasdecafé.3Trata-sedeumacircunstânciahistóricaquediferenciaascondiçõesdeexpansãoedesenvolvimentodocapitalismoaqui,emcomparaçãocomaquelasemquetaltransformaçãoseguiuosmoldeshojedefinidoscomoclássicos.

No entanto, também tivemos o que foi o nosso tênue equivalente daacumulação primitiva. A Lei deTerras, de 1850, que legalizou euniversalizou o regime de propriedade privada da terra, condição dasgrandes transformações institucionais que nos anos seguintes levarão àabolição da escravatura e à viabilização plena do capitalismo no Brasil,determinou que se izesse o Registro Paroquial das terras havidas porqualquertítulo.Esseregistroseriafeitoem1854e,emalgunslugares,em1856,peranteopároco, em livro sob sua guarda, que se tornaria a fontedalegitimidadedacadeiadominialemnossodireitodepropriedade.

Teoricamente,aLeideTerrasreconheciaaostitularesdepossedeterraa qualquer título o direito à propriedade da terra possuída a qualquertítulo. Os posseiros, muitos dos quais mestiços remanescentes daescravidão indígena - abolida em 1757 pelo Diretório, que se DeveObservarnasPovoaçõesdosíndiosdoParaeMaranhão,cujosefeitosforamestendidosaoEstadodoBrasil,em1758-adquiriramporelaodireitodefazeremo registrode suaspossese sítios, aindaque fossemenclavesem

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sesmarias dos grandes senhores de terra. Tiveram, assim, oreconhecimentodequesuaspossesestavamcobertas,retrospectivamente,combasenoprópriolegadodatradição irmadanaLeideSesmarias,pelodireito de en iteuse, que a Lei de Terras convertia em direito depropriedade mediante simples declaração, em livro próprio, redatada efirmadapelopároco.

A leitura dos Registros, porém, mostra que frequentemente essaspessoas foram levadas pelo fazendeiro ao pároco para que declarassemexpressamente que as terras que ocupavam eram efetivamente terrasdele e não deles. Nesse ato renunciavam, sem o saber, a um direito eformalizavamemnomedo fazendeiro, enãoemnomepróprio, o registroque lhes daria direito a terem como sua a terra ocupada. No fundo, adominaçãopatrimonialepessoaldosagregadospelofazendeirofuncionoucomo instrumento de expropriação do direito reconhecido, na "suave"violência cultural, política e psicológica que fazia dos agregados dasfazendas seres sem vontade própria. No momento oportuno, foram elesexpulsos da terra, convertendo-se em pessoas livres porque livres doúnico meio que, de fato, lhes asseguraria a liberdade. Foi essa a formaextensiva da acumulação primitiva entre nós, o nosso processo deconversãodosremanescentesdaescravidãoindígenaempessoaslivresdequalquerdireitosobresuaterradetrabalho.

Absorvidos pela sociedade brasileira, na grande maioria dos casos osimigrantesexperimentaramumarelaçãoentreohomemeaterraeentreo trabalhador e o proprietário que se havia se tornado di ícil no país deorigem(comoamezzadrianonortedaItália,encontrandoaquiumregimeformalmenteanálogonaparceriaeaténaempreitada).Emconsequência,a interpretaçãoqueopróprio imigrantedesenvolveusobreaacumulaçãoprimitiva-aexpropriaçãonasociedadedeorigem,aexpulsãoouprivaçãoe a emigraçãopara oBrasil - assumiuum conteúdo conservador, porquenum certo sentido restauracionista de relações sociais historicamentevencidas. A sociedade de adoção aparentemente, num outro formato,recriava relações que estavam desaparecendo no país de origem e seapresentavaparaelecomoa"boasociedade",poisosqueoexpulsaramdaterra e que se bene iciaram com a expulsão não estavam aqui para seracusadoseenfrentados.Asociedadebrasileira,decertomodo,oferecia-lhe

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devoltaoquelhehaviamtiradonopaísdeorigem,faziadesuaprivaçãoabase de uma esperança, o que ganhava corpo na motivação de "farel'America", "fazer aAmérica", mote da ideologia da ascensão social pelotrabalho.

Éconvenientedizerqueaaboliçãodaescravaturanãofoi,emsimesma,fatordeacumulaçãoprimitiva,porqueelanãoproduziuaseparaçãoentreo trabalhador e os seus meios de trabalho. A própria escravidão já eraresultado dessa separação, garantindo ao fazendeiro o monopólio dosmeios de produção. A libertação dos escravos produziu unicamente aseparaçãoentreotrabalhadoresuaforçadetrabalho.'Mas,acentuo, issoocorreuemrelaçãoaumtrabalhadorjádespojadodosmeiosdeprodução.Apoiadanotrabalhocativo,porqueocativeiro jáeraabasedeseparaçãodo trabalhador de seus meios de trabalho, a sociedade brasileira nãodispunha de outra via regular e institucional para subjugar a força detrabalho,nãopodendofazê-lounicamenteatravésdomonopóliodosmeiosde produção, como ocorria nas sociedades metropolitanas. Emconsequência,quandofoipossívelperceberquemaiscedooumaistardeaescravidão seria abolida, os fazendeiros e os políticos (na verdade, comgrande frequência eram um único e mesmo personagem) passaram apreocupar-se comoproblema.'A libertaçãodo escravo, em faceda terralivreàocupaçãodos juridicamente iguais,destruíaoúnicomeioacessíveldesujeiçãodotrabalho.

Impõe-se, também, considerar uma outra questão. A abolição daescravatura não foi o resultado de um processo estritamente interno dasociedade brasileira. Sua dinâmica ligou-se a uma dinâmica própria daeconomia internacional daquele momento e das peculiaridades como aquestão da liberdade da pessoa se propunha também em outrassociedades, cujo poder político de interferência em questões como essaultrapassava fronteiras nacionais. Para entendê-la temos que levar emconta o processo econômico como um todo, porque ele inclui não só aprodução da mercadoria, mas também a sua realização na circulação, arealização do valor que contém, do trabalho que a ela se incorporou noprocesso de produção. Como assinala Marx, esses dois momentos estãovinculados entre si, de modo que o momento da produção só se tornasigni icativoeinteligívelpelamediaçãodomomentodarealizaçãodovalor

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damercadoria.'Asrelaçõesproduzidaspelamercadoria,istoé,tecidasporseuintermédio,envolvemmaisdoqueameracompraevendadaforçadetrabalho.

O trabalho escravo foi, no Brasil, uma forma de trabalho diretamenteligada às relações comerciais. Sem elas, a escravidão não tinha sentido.Essa é razão pela qual a escravidão indígena foi, na forma, diferente daescravidão negra. O desenvolvimento da mineração aurífera no inal doseiscentismodeixouclaroessevínculo.Eledemonstrouasbasesfuncionaisde uma primeira abolição do cativeiro indígena em 1611, umreconhecimentodoíndioforadomarcodepresaecativo,queprecisou,noentanto,dereiteraçõesnosséculosseguintes,amaisimportantedasquaiscontidano jámencionadoDiretório,queseDeveObservarnasPovoaçõesdos índios do Para e Maranhão. Efetivamente, estabeleceu-se que amineração do ouro e das pedras preciosas seria realizada mediante oemprego de escravos africanos. As concessões auríferas seriam feitas deconformidade com o número de escravos negros possuídos pelorequerente da data. Como os paulistas, devotados à caça ao índio ehabituados à exploração do seu trabalho teriam seus interessesprejudicados por essa decisão metropolitana, sobretudo porque estavamapoiados numa economia monetariamente pobre, o rei de PortugalestipulouqueumacotadosescravosdesembarcadosnoRiodejaneirolhesseria vendida por um preço favorecido. Isso garantiria a prevalência doprincípiodequeessanovaetapadaeconomiacolonialestariaapoiadanoescravonegro, istoé,noescravo-mercadoriaenãonoescravoobtidoforado marco propriamente mercantil, como era o caso do cativo obtido pormeio da caça ao índio. Ou seja, tinha em vista a promoção do comérciomarítimo e os interesses dos mercadores metropolitanos envolvidos notráficodeescravosafricanos.

Amineração,particularmenteaaurífera,criouumsistemadetrocasqueincluía necessariamente a importação de escravos, consolidando oescravismo brasileiro, já anunciado na economia açucareira doNordeste,combasenotrá ico,enãonacaçadecativos.Emconsequência,tudoindicaque a produção fundada no trabalho escravo resultou do comércio deescravos,enãoocontrário.'Daíqueotrá icodeescravosnegrostenhaseconstituídonopontonuclearesensíveldaescravidão.Aeconomiacolonial

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poderia, pois, ser rede inida como o regime em que a produção ésubjugada pelo comércio, dado que não só o produto do trabalho,mas opróprio trabalhador, é objeto de comércio - isto é, a forma da produçãocolonialeradeterminadapelasujeiçãoaocomérciocomametrópole,oquede inea singularidadedaexploraçãoda forçade trabalho, como trabalhoescravo.

Quando, nas primeiras décadas do século xix, a Inglaterra aboliu aescravidão nas índias Ocidentais, para romper as condições dos preçosmonopolísticosdasmercadoriasquedalirecebia,ointentoeraodereduziro custo de reprodução de sua própria mão de obra industrial. Assim,mercadorias como o açúcar brasileiro, ainda produzidas sob regimeescravista, começaram a competir com a produção colonial britânica. Osantigos senhores de escravos das colônias britânicas, proprietáriosabsenteístas de terras, que viviamna Inglaterra, passaram a exigir o imdotrá icodeescravos,demodoasuprimiraescravidãoemoutrospaíses.Diferentes grupos trocaram seus papéis contra e a favor da escravidão,principalmenteemdefesadeseusprópriosganhos.'

Como consequência, a Inglaterra declarou-se contra o comérciointernacional de escravos nas suas relações comoBrasil e obteve, nessesentido,umacordocomogovernobrasileiro,favorávelàssuaspretensões.No entanto, esse acordo só se tornou efetivo pouco depois dalei que, em1850,extinguiuotráficonegreiro?

O impacto da cessação do trá ico na economia brasileira foitemporariamente atenuadopelo chamado trá ico interprovincial, a que jáme referi, a venda de escravos de diferentes regiões do país, sobretudoNordeste, aos fazendeiros do Sudeste, onde começava a expandir-se acultura do café.10 Na própria extensão dos cafezais para o oeste daprovíncia de São Paulo, região que icaria marcada pela inauguração dotrabalho livre do colono estrangeiro, mas onde a escravidão aindapersistiu, houve a importação de escravos da Bahia, como se vê pelosnumerosos registros de sepultamento do cemitério deAmparo, na regiãodeCampinas.

Aindanomesmoanode1850, foramadotadasmudançasna legislação

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que assegurassem que a substituição dos trabalhadores cativos portrabalhadoreslivres,quesepreviaacabariaacontecendo,nãoprivassemachamada grande lavoura da mão de obra de que carecia. No debateparlamentarascoisasseencaminharamparaapromoçãodaimigraçãodetrabalhadores livres, do exterior, tendo-se cogitado, até mesmo, naservidão temporária dos trabalhadores. Nesse ponto re letiu-se o fato deque, no Brasil, a escravidão era o principal recurso institucional paragarantiraosfazendeirosumaofertadeforçadetrabalhocompatívelcomademanda de seus empreendimentos. Se a escravidão cessasse nadapoderia prevenir o deslocamento dos antigos escravos e dos novostrabalhadoresparaasabundantesterraslivresdafronteiraagrícola,assimreconhecidas pela legislação sesmarial, suspensa mas não substituída,onde poderiam tornar-se trabalhadores autônomos em suas própriasterras."

Aproduçãoideológicadanoçãodetrabalho

Oregimedecolonatoconsagrouumapremissaqueeraaprincipalideiae a principal necessidade do fazendeiro: o colono deveria serprimeiramente um trabalhador da fazenda para tornar-se independentesó após certo período de trabalho em terra alheia; o seu trajeto seria deempregado, primeiro, e de autônomo ou, até, patrão, depois. Algunsautores que trabalham numa perspectiva meramente culturalistapreferemencararessapropostacomoumelementodatradiçãoculturaldoimigranteitaliano,oqueexpressaapenasae icáciadoquefoi,naverdade,ideologia da classe dominante. Mesmo onde tal aspiração já existia, nasociedadedeorigemdo imigrante,ela foimobilizadapelos fazendeirosdecafé, propositalmente, e agregada aosmeios que a própria sociedade docafé de iniu como legítimos para efetivá-la. Esses fazendeiros, quandoexpressaram seu ponto de vista a respeito, sempre estiveram alarmadoscom a mobilidade ocupacional de seus colonos, mesmo de uma fazendaparaoutra.Nofundo,temiamoquepropunham,pelosriscosqueenvolvia.

A autonomia do trabalhador, preconizada no que tenho chamado deideologia do trabalho, embora fosse ideologicamente mobilizada edifundida pelos setores mais conspícuos da burguesia cafeeira, erasabotada na prática pelos próprios fazendeiros mais distantes das

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premissas e condições da política de superação do trabalho escravo pelotrabalho livre. Tal autonomia representava um problema para areprodução do regime de colonato. Sobre ela tinha precedência areproduçãodocapitalnaperspectivadofazendeiro,decorrentedasmuitascomplicaçõesdaprópriatransiçãoparaforadaescravidãoqueotornavamumcapitalistainconstituído,semplenitude.Nãoraroeraeleumcapitalistadeformado pelos atalhos pré-capitalistas que condicionavamhistoricamente a reprodução de sua riqueza. Autonomia do trabalhadorparamover-sesegundooscritériosprópriosdeummercadodetrabalhoereprodução ampliada do capital passaram por combinação ideológicacontraditória, que atendia à hegemonia dos interesses desse capitalismotolhido.Masascomplicaçõesexistiamtambém,eemconsequência,doladodos trabalhadores do café, socializados na cultura camponesa darestauração e do retorno a uma situação social utópica, que não fazia dotrabalho autonomizado e contratualizado, propriamente, o eixo de seuprojeto de vida e de suas esperanças. Na convergência desses atrasos eretardamentos de iniam-se as bases conservadoras do pensamento daclasseoperáriaquenasceriadessasrelaçõesedocolonato.

É importante observar que o caminho percorrido para chegar a essameta,detransformarotrabalhadoremcúmplicedaideologiadaascensãosocialpelotrabalhoe,poressemeio,legitimaromodopré-modernodesuainserção na economia do café, está fortemente marcado por umaconcepçãopré-capitalistaoucamponesadetrabalhoautônomo.Noentanto,a mediação formal pré-capitalista propôs-se e impôs-se através daexploração do trabalho sob pressupostos e orientações capitalistas,vinculadosà reproduçãodo capital.Essavia foipossívelporqueo regimede colonato tornou-se uma complexa combinação de formas nãocapitalistas e capitalistas na produção e reprodução do capital. Amesmarelaçãoentreocolonoeofazendeiroenvolviaelementosnãocapitalistas(aprodução direta dosmeios de vida) e elementos capitalistas (a produçãodo café para exportação sob o pagamento de salário por empreitada, notrato, e por tarefa, na colheita). Porém, o conjunto do colonato sedeterminava pela reprodução capitalista do capital. A de inição concretadasrelaçõesdeproduçãonãopodeserencontradaestritamentenaformadas relações de trabalho, mas nos seus antagonismos, vinculações edeterminações,nascontradições,en imqueestãonolugardessasrelações

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nadinâmicasocial,

Tal conciliação produziu o que se pode chamar de ideologia damobilidadeatravésdotrabalho(consagradaatémesmoemalgunsestudosde sociologia do trabalho feitos no Brasil). Nesse caso, admite-se comolegítima a ideia de que um estilo de vida prévio ao advento domodo deproduçãocaracteristicamentecapitalistapoderiaserumbomobjetivoparaocapitalismo(naverdade,arestauraçãodomundodaordem,asupressãodas tensões de classe). Esse ponto de conciliação ideológica foi alcançadoimediatamenteantesdaaboliçãodaescravaturaeconstituiuabaseparaoque foi de inido como "a grande imigração", entre 1886/1888. Naspalavras de um conspícuo representante dos fazendeiros, os imigrantesdeveriamser"morigerados,sóbrioselaboriosos".Assimpoderiam,atravésdo trabalhoárduo, obteros recursospara comprar a terranecessária aoseu trabalho autônomo. A ideia era a de que os imigrantes deveriamcultivarasprincipaisvirtudesconsagradasnaéticacapitalista.Nessecaso,o trabalho árduo e os sofrimentos e privações dos primeiros temposseriam compensados pelo acesso à pequena agricultura familiar maistarde.Osnúcleoscoloniaiso iciais,defatoemdecadência,chegaramaserutilizados,nessafase,comoprovaquelegitimavatalaspiração.

Essasideiassustentaramumapolíticadeseleçãodeimigrantes.Famíliastiveram preferência em relação a imigrantes solteiros. Além disso, ositalianos eram preferidos em relação aos trabalhadores de outrasnacionalidades.Osalemãessofreramfortesobjeçõesporquepreferiamdeimediato o trabalho autônomo; os portugueses eram rejeitados porquepreferiam trabalhar no pequeno comércio. A predominância de italianosnas correntes migratórias para o Brasil não pode ser absolutamenteexplicada sem amediação das necessidades de reprodução do capital nagrandefazendadecafé.Oitalianosubmisso,provenientedasáreasemquea economia ainda estava baseada em relações pré-capitalistas, preenchiauma condição essencial à reprodução capitalista numa economia, como acafeeira,quecontinuavaamesmaapesardaaboliçãolegaldaescravatura.

Por isso, um ponto precisa ser esclarecido: é crença comum a muitospesquisadores que a principal corrente de imigrantes italianos procediadasregiões industrializadasda Itália (havendoquem,por isso, faleaténa

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superioridadetécnicadotrabalhadoritaliano),poisoprincipalcontingentedeoperáriosnasorigensdaindustrializaçãobrasileiraeraitaliano.Muitosdesses autores fazem tal inferência apartir da super icial constataçãodeque tais imigrantesprocediamdoNorte. Logo, comooNorte era a regiãoitalianamaisindustrializada,osimigrantesquevieramparaoBrasilteriamexperimentado antes uma militante existência nas regiões fabris de seupaís.Tal suposição,entretanto,nãoécorreta.FoerstereSereniobservamque no porto de Nápoles, no Sul, as pessoas eram necessariamenteembarcadasparaosEstadosUnidosdaAméricaenodeGênova,noNorte,elas eram necessariamente embarcadas para o Brasil ou para aArgentina.12 Entretanto, os dados estatísticos mostram que, do Norte, oVêneto era a região de onde procedia a maioria. Logo, não vinham doNorte industrializado. O Vêneto era tão pobre e subdesenvolvido como oSul. Por isso, é pelomenos curioso que omais famoso imigrante italiano,queaquisetomariagrandeindustrial,ocondeMatarazzo,nãoveio,a inal,doNorte industrializado,masdeSalerno,noSul agrícola.Tal fatodeveriaservirpararelativizarasinterpretaçõesculturalistas.

Do mesmo modo, as origens da ideologia da mobilidade pelo trabalhonão correspondem a ideias comuns a vários cientistas sociais. Algumaspessoas creem que ela foi essencialmente produzida pelo próprioimigrante. Minhas pesquisas, no entanto, mostram que ela foi produzidapelaelitefundiáriaparaotrabalhadorimigrante.Essaeliteestabeleceuascondiçõeseoroteirosocial,osmeios,pararecebereassimilaroimigrante,verdadeiras técnicas sociais cuja meta não se limitava à incorporaçãoeconômica do trabalhador imigrado. Este não teve, em princípio, outrocaminho senão se conformar com essas condições. Sua integração naeconomia cafeeira consistiu em orientar suas aspirações para os canaisinstitucionaisde inidospela classedosgrandesproprietáriosde terra,demodoque,aindaquecomalgumatensãoedescaracterização,acabasseseconcebendodeacordocomasnecessidadeshistóricasdaquelaclasseeascircunstânciasdesuaimigração.

Mas,essanãoera,realmente,comojádisse,umaideologiademobilidadesocial. Ela consistia numa ideologia que legitimava a um só tempo aconcepção camponesa da vida e a exploração capitalista do trabalho. Épreciso não esquecer que antes de deixar o seu país de origem, o

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imigrante tinha, em princípio, a possibilidade de optar por tornar-se umverdadeiro trabalhador assalariadonasplantaçõesde trigodaArgentina.OBrasil,porém,nãotinhacondiçõesdeoferecer-lheumverdadeiroregimede trabalho assalariado. É conveniente lembrar que a crise do regimeescravistafoiproduzidaessencialmenteforadasociedadebrasileiraeforada economia do café. O advento do trabalho livre teve que ocorrer comomeioparapreservar(enãoparamudar)aeconomiadetipocolonial,comoobservou M. Hall. Isto é, teria que ocorrer como meio para preservar aprodução tropical baseada em alguma modalidade de trabalhocompulsórioenãocaracteristicamentebaseadanopagamentodesalários.

Isso signi ica que a combinação da produção da mercadoria e daprodução direta dos meios de vida, na economia do café, constituía umacombinaçãonecessária e contraditória. Semuma é impossível entender eexplicar a outra; sem a segunda é impossível realizar a primeira. Emconsequência, o que importa no que tem de repercussão ideológica, areproduçãodaforçadetrabalhonãoeraplenaeexclusivamentemediadapelo comércio de mercadorias. Assim, o imigrante aparentemente nãotrabalhavaapenasparaosoutros,mastambémparasi.

O imigrante encontrou, desde o começo da sua vida no novo país,condiçõesdetrabalhoqueconvergiamparaoseudesejodepreservarumestilo camponês de vida, embora não completamente autônomo. A suaautonomia permaneceu fundamentalmente como um forte desejo, comoum sonho político, comouma virtualidade da sua situação concretamenteambígua.EssesonhoalcançouumafortepossibilidadederealizaçãocomaCrise de 1929. Como observam Milliet e Prado, a crise acentuou aproliferaçãodepequenaspropriedades.13Nãosópeladivisãodegrandesfazendas em sítios menores (pois, com a crise a terra se desvalorizou),vendidos aos antigos colonos. Como, também,pelo avanço sobre asnovasterrasdafronteiraagrícola,conduzidopelosespeculadoresimobiliários,deformaaatenderumaagudademandadepequenaspropriedadesagrícolasquejávinhadosanos1920.Onúmerodeimigrantesitalianoseespanhóisproprietáriosde terra, emSãoPaulo,multiplicou-seváriasvezes entreosanosanteriores à crise eosprimeiros anosposteriores ao inícioda crise.Queessaascensãosocial tenhasidopossibilitadapela crisenãocon irma,propriamente, a e icácia da ideologia de ascensão pelo trabalho. Se não

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tivesse havido a crise, provavelmente a conversão de colonos emproprietários de terra teria tardado, ainda, alguns anos ou, no mínimo,teria sido bemmais lenta. De um lado, os colonos puderam atender suaânsia pela terra investindo as economias penosamente feitas no colonato.Deoutrolado,muitosfazendeirosdescobriramquepoderiamtransformarsuas terras,diminuídasdepreçoapósacrise,emcapitalquepoderia seraplicadoemoutrossetoresdaeconomiaouquepoderiasaldardébitos.

A crise da economia cafeeira e a proliferaçãoda pequenapropriedadederam uma inesperada e nova vida à autonomia suposta na ideologia damobilidade pelo trabalho. A proliferação de pequenas indústrias, pelainiciativa dos que tinham habilidades artesanais, coadjuvantes dodesenvolvimentoindustrialdosanos1930e1940,trouxeumnovosuportepara essa concepção. Esses são dois momentos importantes paraentendermos a forte aspiração pelo trabalho autônomo ainda hoje entreamplos contingentes do operariado brasileiro, pois essa ideia é derevitalizaçãomuitorecente.

Essa autonomia é uma espécie de pedra fundamental da ideologia dotrabalho, sobretudoporqueelaencobreeobscureceoconteúdoprincipaldarelaçãoentreopatrãoeoempregado.Pormeiodela,o trabalhonãoéconsiderado principalmente como uma atividade que enriquece o patrão.Ao contrário, o trabalho é considerado como uma atividade que cria ariquezaprópria e, aomesmo tempo, pode liberar o trabalhadorda tuteladopatrão.O trabalhador énela sempre consideradoumpatrãopotencialde si mesmo, sobretudo porque a condição de patrão é essencialmenteconcebida como produto do trabalho árduo e das privaçõesmateriais dopróprio patrão, quando era trabalhador, regulados por uma espécie deprática ascética. A riqueza, no sentido de capital acumulado, torna-seaceitável e legítima porque é produto do trabalho e porque o trabalho éconcebido como uma virtude moral universal. A capacidade de criarriqueza através do trabalho é concebida como uma virtude socializada,semdistinçãodeclasses,queabreacessoaocapitaleaocapitalismoatodohomemquetrabalha.

Noentanto,esseéopontocrucialdoproblema,ocapital(ariqueza)nãoé visto nem concebido como produto do trabalho de outros, isto é, como

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produto do trabalho do operário despojado dos meios de produção, doconfrontoedoantagonismoentreocapitaleotrabalho,personi icadosnocapitalistaenoproletário.Aocontrário,ocapitaléconcebidocomoprodutodo trabalhodopróprio capitalista.É exatamenteessa concepçãoqueestána raiz do mais importante mito no corpo da ideologia do trabalho noBrasil: a biogra ia popular do condeMatarazzo, ummilionário de grandesucesso, que veio da Itália no século xix e morreu em 1937. As pessoasacreditam, sem fundamento,queelenada tinhaquandochegouaoBrasil.Teriaenriquecidoatravésdoseuprópriotrabalhopesadoesofrido.

Essedeslocamentodaideiadequeariquezanãoéprodutodotrabalhoexplorado do trabalhador, mas resulta do trabalho e das privações dopróprio patrão, na origem do seu capital, consagra e justi ica para otrabalhador a sua exploração por outra classe. Em outras palavras, essaconcepção legitima a exploração do proletariado pela burguesia,constituindo-senumaespéciederedençãooriginaldocapitalismo.

A autonomia suposta na ideologia do trabalho sofrido, porém, não temunicamente os componentes burgueses que poderíamos supor por suasimilaridade com a ética capitalista. Na medida em que a exploraçãocapitalistaéocultadapelaênfasenasvirtudesdo trabalhodoempresáriocomo base de sua riqueza, temos, em decorrência, que a solidariedade éconsideradamaisimportantedoqueaexploração.Aconcepçãoéadequeas pessoas que trabalham estão naturalmente unidas entre si porquetrabalham. Nesse caso, o capitalista tem que ser solidário com asaspirações do trabalhador. Essa ideia é um ponto importante para oentendimento do paternalismo patronal, do populismo, dos princípios da"paz social" e do corporativismo quemarcaram as relações de classe noBrasilpor longo tempo.Talsolidariedadeenfatizaantesoqueécomumapessoas vinculadas a classes sociaisdiferentes e opostas, obscurecendooque é comum e característico a cada classe. Na verdade, há umacomunidade utópica suposta na ideologia do trabalho, cuja quebra, emgeral por parte do patronato, compromete a dominação que daí decorre.Ela, no entanto, está essencialmente em tensão contra a concepçãoestritamente burguesa de que é necessário trabalhar pelo trabalho.Enquanto para o burguês o trabalho é meio e im, para o proletáriosubjugadopelasconcepçõesburguesasotrabalhoéapenasmeio.

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O trabalhador, no contexto aqui analisado, concebe o trabalho como oveículo da libertação, não só como meio de exploração. A libertação dotrabalhador seria, assim, um resultado necessário do trabalho penoso. Aessênciadessaideiaéadequesóotrabalhoredime.Populismo,pazsocial,corporativismo, de algum modo são resultados da produção ideológicadessa concepção de trabalho, a da atividade produtiva dominada peloideário da ascensão social, a honra do trabalho como sua condição e seuprêmio.Todavia, a acomodaçãoentre classesantagônicas, aí suposta, estánegadanaprópria base.Muito alémda ênfaseno trabalhopelo trabalho,quepoderiabasearumpontodevistapatronal,naessênciadaconcepçãodo trabalhador o trabalho é admitido como veículo de libertação, comomeio para superar a dependência no trabalho, a exploração baseada notrabalho. Ou seja, o homem se torna livre quando trabalha para si. Daínasce a dimensão ambígua da ideologia do trabalho. Incorporado àprodução capitalista, sobretudo na indústria, e vinculado, pois,irremediavelmente ao trabalho socializado pelo capital, o trabalhadorconsegue entender que no trabalho está o segredo da sua liberdade.Entretanto, a sua concepção de trabalho está em grave tensão com arealidade do trabalho moderno, como virtude do trabalhador coletivo,como trabalho abstrato. Espera, por isso, escapar da sujeição ao capitalmovendo-se para trás, em direção a uma concepção camponesa detrabalho que se efetivaria no trabalho independente - na agriculturafamiliar,noartesanatourbanoounopequenocomércio.

Essa formaambíguadeconceberacondiçãoeasuperaçãodacondiçãooperária está fortemente marcada pelas origens recentes da classeoperárianoBrasil,porsuas raízesnacrisedocampesinatoedo trabalhoescravo.Decifraressaambiguidadepodeserumpassoimportanteparaoentendimentodosavançose recuosda classeoperáriabrasileiradesdeofimdoséculoxlxatéhoje.

*Comotítulo"lheOriginsofFreeLabour inRuralBrazil -TheProblemofItallan Immigration", este trabalho foi originalmente apresentado numsemináriodoCentreofLatinAmericanStudies,UniversityofCambridge(Inglaterra)em29dejaneirode1976erepetidonoSr.AntonysCollege,University of Oxford, em 12 de março de 1976. Foi publicado emportuguêscomotítulo"Asrelaçõesdeclasseeaproduçãoideológicada

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noçãodetrabalho",emContexto,n.5,SãoPaulo,Hucitec,mar.1978.

Notas

1C£MichaelM.Hall, lheOriginsofMass immigration inBrazil,1871-1914,cit.,p.181.

2C£JosédeSouzaMartins,CondeMatarazzo-Oempresárioeaempresa,2.ed.,2.reimp.,SãoPaulo,Hucitec,1976;AzisSimão,SindicatoeEstado,SãoPaulo,Dominus/EditoradaUniversidadedeSãoPaulo,1966.

3Fernando Henrique Cardoso já havia sublinhado que o fazendeiropaulista do oeste "sequer precisou, como seus antecessores capitalistaseuropeus, libertar pela violência seus trabalhadores dos meios deproduçãoquepossuíam: importou-os já inteiramente livres, istoé, livresjuridicamente e `livres' dapossedemeios e instrumentosde trabalho".C£MudançassociaisnaAméricaLatina,cit.,p.190.

Importantes análises sobre a separação entre a força de trabalho e apessoa do trabalhador foram feitas por Florestan Fernandes, Aintegração do negro na sociedade de classes, cit.; Octavio lanni, Asmetamorfosesdo escravo, cit.; FernandoHenriqueCardoso, CapitalismoeescravidãonoBrasilmeridional,cit.;EmíliaViottidaCosta,Dasenzalaàcolônia,cit.

C£JosédeSouzaMartins,AimigraçãoeacrisedoBrasilagrário,cit.,p.47-80.Otrá icodeescravosdaÁfricaparaoBrasil foiabolidoo icialmenteem1850 sobpressãobritânica.Todavia, antesdaaboliçãode initivadaescravidão, as crianças nascidas de mãe escrava foram declaradaslibertas (Lei do Ventre Livre) e os escravos adultos tornaram-se livresaos 60 anos de idade (Lei dos Sexagenários). Desse modo, o im daescravidãoseriaapenasumaquestãodetempo.

C£CarlosMarx,Elcapital,cit.,ti,cap.1.

"Este talvezsejao segredodamelhor `adaptação'donegroà lavouraE...]escravista. Paradoxalmente, é a partir do trá ico negreiro que se podeentenderaescravidãoafricanacolonial,enãoocontrário."C£FernandoA.Novais,op.cit.,p.32.

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8C£EricWilliams,CapitalismeiSlavery,NewYork,CapricornBooks,1966.

C£LeslieBethell,AaboliçãodotráficodeescravosnoBrasil,SãoPaulo,ExpressãoeCultura,1976.

°C£PaulaBeiguelman,Aformaçãodopovonocomplexocafeeiro,cit.

C£MaurícioVinhasdeQueiroz,loc.cit.,passim.ALeideSesmarias,quefoivigenteemPortugaleseriavigenteemsuas futurascolônias,erade26de junho de 1375. De fato, instituiu as bases de uma reforma agráriapermanente contra o abuso dos proprietários, arrendatários, foreiros eoutros ocupantes da terra que não a cultivassem ou que a ocupassemapenas com a criação de gado. Nesses casos, podiam os particulares, apartirdalei,paracumpri-la,fazercultivá-laporquemlhesaprouvesse.Alei estabelecia, porém: "Se por negligência ou contumácia, osproprietários não observarem o que ica determinado, não tratando deaproveitarporsiouporoutremassuasherdades,asjustiçasterritoriais,ou as pessoas que sobre isso tiverem intendência, as deem a quem aslavre, e semeie por certo tempo, a pensão ou quota determinada". C£Maria Jovita Wolney Valente (org.), Coletânea (Legislação agrária,legislação de registros públicos, jurisprudência), Brasília, MinistérioExtraordinárioparaAssuntosFundiários,1983,p.55.Nãosóas rendasassim obtidas iam para o comum, e não para o proprietário, comotambém podiam as terras ser perdidas para o comum. No Brasil, esseprincípio com frequência implicou a separação entre domínio e posseútil, tendo o domínio do rei precedência sobre os direitos do sesmeiro.Nessecaso,afaltadecultivodaterraouseunotórioabandonoresultavaem sua distribuição a quem a ocupasse com agricultura, que poderia,assim,obteremseu favoracartadesesmariadas terras jáconcedidas,mascaídasemcomissoearrecadadaspelaCoroa.NoBrasil,oregimedesesmariasfoisuspensopelaResoluçãon.76,de17dejulhode1822,atéa Convocação da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa, quedeliberariaarespeito.AIndependênciaencontrouopaísjáemprocessodeordenaçãodeumnovo regimedepropriedadeda terra, oque só seefetivariacomaLein.601,de18desetembrode1850,queestabeleceu,contra o que era próprio do regime sesmarial: "Ficam proibidas asaquisições de terras devolutas por outro título que não seja o dacompra".C£MariaJovitaWolneyValente,cit.,p.356-7.

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12Robert F. Foers ter, lhe Italian Emigration of OurTimes, New York,Russel & Russel, 1968; Emilio Sereni, II capitalismo nelle campagne,Torino,PiccolaBibliotecaEinaudi,1968.

13SérgioMilliet,op. cit.,p.73-116;CaioPrado Júnior,EvoluçãopolíticadoBrasileoutrosestudos,cit.

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Acontrovérsiasobreocaféeaindústria

Diversos estudos referenciais têm sido feitos sobre a industrializaçãobrasileira. Seguindo diferentes caminhos, os pesquisadores procuramdescobrir quais foram os recursos mobilizados pela economia daagricultura de exportação para se chegar à atividade industrial, comoforam engendradas as novas relações sociais envolvidas na gênese daindústria, como se deu a transição histórica dessa passagem, qual aarticulaçãoquesedeuentreagriculturaeindústria,particularmenteentreocaféeaindustrialização.'

No entanto, pode-se notar diversas falhas em vários desses estudos,sobretudo a irmações, hipóteses e conclusões geralmente negadas pelosfatos empíricos. Apesar de todos os esforços, a história e a análisehistórico-concretada industrializaçãobrasileiraaindaestãoporser feitas.Temos hoje, infelizmente, mais interpretação e generalização do que apesquisaempíricarealizadacomportaria.Umatendênciaaoesquematismo,apoiado no que se conhece dos países de referência da história daindustrialização, induz à leitura seletiva das informações conhecidas e aconclusõesquepodemserquestionadascomcertafacilidade.

Dequalquermodo,osestudosdereferênciadestecapítulo,relativosaosimpasses históricos do período prévio ao golpe de Estado de 1964,orientaramse para dois temas relacionados com a questão das condiçõesdo grande salto histórico e econômico pelo qual a sociedade brasileirapassoucomaaboliçãodaescravatura:asubstituiçãode importaçõespelaprodução interna, num país agrícola que sempre dependera demanufaturados importados; e a emergência e difusão da competênciaempresarialnumaelitemarcadapelalongatradiçãodotrabalhoescravoedobloqueioqueessefatorepresentavaàemergênciadeumamentalidadecapitalista centrada na lógica própria do capital. É claro que os caminhosseguidosparaanalisar esses temasnão são sempreosmesmose é claro,

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também,queelesnãotêmsidopropostoscomotemasalternativosumemrelação ao outro. Em um dos casos, esses temas foram consideradosconjuntamente.Na verdade, nos anos1960, quandomaior foi o interessena história da questão da transição da hegemonia do café para ahegemonia da indústria na economia brasileira, a diversidade deabordagens e perspectivas evidenciavam a tensão de opções políticasconflitantesquantoaodestinodoBrasil.

O debate acadêmico era claramente um debate político, um con lito deprojetoshistóricos.Aagudezado interessena transição, comosevê tantona obra de Caio Prado Júnior quanto na de Celso Furtado, é que estavareferido a uma busca de legitimidade para rumos futuros nas evidênciasdopassado.Amotivaçãodefundoeraonacional-desenvolvimentismo.EmCelso Furtado, é notória a intenção de colher indicações de que, naeconomia, o Brasil que dera certo emmomentos decisivos da história, osmomentos da reorientação de rumos, como na Revolução de Outubro de1930, eraoBrasil da economiavoltadaparadentro, apoiadanomercadointerno,oBrasilalternativoaoBrasildaeconomiacolonialedeexportação,aoBrasil do café e da cana-deaçúcar.Na obradohistoriador e industrialRobertoCochraneSimonsen,quefoiin luentenoindustrialismodeGetúlioVargas e precursor dessa orientação interpretativa, a história econômicaeraorecursopararastrearevidênciasdequeocaféeaeconomiaagrícolade exportação se esgotavam. Nesse esgotamento e no potencial dedesenvolvimento econômico que havia criado estava a possibilidade deuma superaçãonecessária em favorda indústria.Ali estavao clamorporuma política de Estado-demiurgo que interferisse criativamente noprocessoeconômicoparaosaltohistóricoemfavordaindústria.

Nestetrabalho,pretendosublinharalgunsproblemasquepodemserencontradosnosdiferentesestudos.Estoucientedequeestas considerações implicamasugestãodeumainterpretação alternativaparaagênese daindustrializaçãobrasileira.

O leitor de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado,2surpreende-se pela falta de um capítulo ou secção sobre as origens da

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indústria no Brasil e, particularmente, sobre as relações da indústrianascente com a economia cafeeira e a economia de outros produtosprimários de exportação. Entre a parte iv, sobre "Economia de transiçãoparao trabalhoassalariado (século xix)" e apartev, sobre "Economiadetransição para um sistema industrial (século xx) ", há um capítulounicamente sobre a crise do café, mas absolutamente nada sobre asorigens da indústria. O leitor se depara repentinamente, sem nenhumesclarecimento, com a referência ao sistema industrial como base para aexplicaçãodasrazõespelasquaisaCrisede1929nãofoidesastrosaparaoBrasil, quando houve declínio nos preços do café e, consequentemente,declíniodacapacidadebrasileiradeimportação.Aocontrário,acriseteriapropiciado a oportunidade decisiva para que a dominância agrária naeconomiabrasileirafossevencidapelaprecedênciadinâmicadaindústria.

Quando a crise começou, o preço do café sofreu enormes reduções nomercado internacional, enquanto a produção cafeeira cresceu emdecorrênciadoincrementodoplantioemmeadosdosanos1920.

Alémdisso,omercadointernacionaldocafénãocresceu.Osprodutoressedefrontaram,então, comestedilema:nãocolherocafé,paranão fazergastos inúteis, ou procurar suporte inanceiro para colher e estocar oproduto. A última solução parecia impraticável porque as estimativasmostravam que esse café não poderia ser negociado a curto prazo. Dezanosseriamnecessáriosparaqueomercadoretornasseaníveisnormais.

Na interpretaçãodeFurtado, o governo, visando estritamenteprotegerosinteressesdosprodutoresdecafé,tomoumedidasparaqueocaféfossecolhido e decidiu inanciar essa operação para em seguida estocar edestruir o produto. Em consequência das condições externas di íceis, ocrédito não poderia ser recebido de fora. Assim, o governo adotou umsistema de expansão interna do crédito. O café poderia ser comprado apreços que não prejudicassem os interesses dos cafeicultores. Issoocorreria de modo que recursos de origem externa fossem substituídospor recursos de origem in lacionária. Em vez de a crise atuar comomultiplicadordedesemprego,queeraoqueestavaacontecendoemoutraspartesdomundo,elaatuarianadireçãooposta.Amanutençãodarendadosetor importador promoveu o crescimento da demanda de importações,

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desproporcionalmente à capacidade de importação do país. Esse fatoimplicou um crescimento dos preços de produtos importados, acima doque teriaocorridoseoEstadonão tivessedecididocomprarocaféeseoseuresultadonãotivessesidoodecréscimododesempregoprovável.Poresse meio, os preços das importações subiram mais do que os preçosinternose,emconsequência,asituaçãoeconômicatornou-sepropíciaparaaindústriainterna.Emdecorrência,o luxoderendaoriginadodacompraequeimadecaféincrementouarendaeoempregonossetoresindustriaiseagrícolasdevotadosaomercadointerno.

A política econômica do governo teria, assim, produzido o que Furtadodenomina de "socialização das perdas".3 Ou seja, por meio do créditointerno a sociedade inteira foi obrigada a pagar pelas perdas do café,distribuídososprejuízospormeiodain laçãoqueafetouopreçodetudoeavidade todos.Noentanto,asocializaçãodasperdas teriaproduzidoumresultado não esperado. Inconscientemente, teria sido promovida umapolítica de emprego que estimulou principalmente a produção industrialpara o mercado interno.4 A indústria, então, encontrou-se na função deproduzirparasubstituirimportações.

Esseesquemageralapresentadiversosproblemas.Oprincipaldeleséodaa irmaçãodequeamanutençãodoníveldeempregoeoseuresultado,o estímulo à industrialização, foram produtos inconscientes da políticaadotada.' O icialmente, o governo teria pretendido proteger apenas osinteressesdoscafeicultores.Teriamiradonumacoisaeatingidooutra.Naverdade, entretanto, isso não parece completamente verdadeiro. Emprimeiro lugar, porque um certo período de tempo decorreu entre ocomeço da crise e as primeiras tentativas de resolvê-la. Quando a crisecomeçou, em 1929,Washington Luís era o presidente. Aparentemente, oseugovernoeraexpressãodopoderdosfazendeirosdecafé.Massabe-seque ele discordava dos cafeicultores sobre a política do café e que tinhacom os industriais um relacionamento bem diverso do que supõe oesquematismoque,emoutrosautores,contrapõeoquesesupõeseremosinteresses da burguesia industrial aos interesses de uma supostaaristocracia agrária.Muitos fazendeiros eramacionistasdeempresasnãoagrícolasehaviaatéosqueeramgrandesindustriais,domesmomodoquemuitos industriais tornaram-se fazendeiros para verticalizar suas

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economias.

Isso quer dizer que, pelo menos, o Estado brasileiro não estavaexclusivamentecomprometidocomosrepresentantesdaeconomiadocafé,embora fossem eles hegemônicos, nem era necessariamente refém dosinteresses da cafeicultura, nem estava contraposto aos interesses dosindustriais.Osautoresdessatendênciadecompreensãodotemaforçamouso, descabido, de um esquema interpretativo que toma a Crise de 1929comodivisoranumasupostaeequivocada,porquesimplista,passagemdepré-capitalismoacapitalismo,eaRevoluçãodeOutubrode1930comosefossearevoluçãoburguesadequeoBrasilcareciaparalibertar-sedeseussupostosbloqueiosfeudais.

Somenteumanomais tarde,depoisdaRevoluçãoqueassumiuopodercomGetúlioVargas,noplanomilitarconduzidapelostenentesdasrevoltasde1922ede1924,aliados,agora,aosregionalismosinconformadoscomahegemonia política de São Paulo e Minas Gerais, é que foram tomadasmedidas para resolver o problema do café e seus desdobramentos noconjunto da economia brasileira. Antes dessa ocasião, há indicações decasos de fazendeiros que icaram sem recursos para enfrentar a crise etiveram que entregar suas terras para os credores - bancos ecomerciantes-eatéfragmentá-lasevendê-lasacolonos.

Não é absolutamente correto que evitar o desemprego e a inatividadeeconômica tenha sido completamente inconsciente por parte do governobrasi leiro, que se tenha praticado "inconscientemente" uma políticaanticíclica ou que o objetivo do governo tenha sido unicamente o deprotegeros interessesdosprodutoresdecafé,devendo-sea recuperaçãoeconômica, após 1933, "à política de fomento seguida inconscientementeno país e que era um subproduto dos interesses cafeeiros".6 O próprioresponsável pela política econômica do Governo Provisório, o banqueiropaulista e negociante de café José Maria Whitaker, assim explica asdecisões governamentais em relatório publicado em abril de 1933, antesdarecuperação:

Formara-se, então, emSãoPaulo,umgrandeestoquede café,que impedia, como uma muralha de barragem, a livre saída da

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produção desse estado. Atrás dessamuralha debatia-se a lavouranasituaçãoterríveldenãopodernemvenderoseuproduto,quesóchegaria a Santos depois de dois anos e meio de retenção, nemlevantar sobre ele qualquer quantia, que os particulares lhenegavam e os institutos o iciais já lhe não podiam fornecer. Emconsequência dessa situação cessaramde ser pagos regularmenteos próprios colonos, e como, com isso, não recebessem oscomerciantesdointerior,oquejálhestinhamadiantado,deixaram,porseuturno,depagaraosatacadistase importadores,re letindo-se, naturalmente, tais di iculdades nas indústrias, que icaraminteiramente paralisadas. [...] Resolvida pelo Governo, a demoliçãodaquela barragem, iniciada, por outras palavras, a compra doestoque, a produção pôde escoar normalmente, restabelecendose,assim,oritmointerrompidodavidaeconômicaemtodooPaís.

Constata Whitaker, então, que "o comércio reanimou-se, as indústriasmovimentaram-se, desapareceram os `sem trabalho' '.7 Desde 1928, aode inirem os seus antagonismos com os comerciantes, com os quais secongregavamnaAssociaçãoComercialdeSãoPaulo,e fundaremoCentrodas Indústrias de São Paulo, os industriais optaram por constituir-se emgrupo de pressão sobre o governo para obter em seu favor uma políticaprotecionista.'

Uma falha no estudo de Furtado é, justamente, a falta de dadosempíricos e históricos para apoiar seu esquema de uma políticainconsciente de emprego, pois inconsciente não foi. Uma outra é que oleitor ica sem saber de onde vem a indústria, cuja produção passa asubstituirasimportaçõesequesedesenvolvecomonovocentrodinâmicodaeconomiabrasileira.

Há mais dois autores, pelo menos, que explicam a industrializaçãobrasileira como resultado da substituição de importações. Um deles éRoberto Simonsen9 e o outro éAntônio Castro.`Nesses casos, a PrimeiraGuerra Mundial é considerada um ponto de referência essencial naconsideração dos fatores da industrialização. Embora não se explicitemquais os meios econômicos que suportaram a industrialização, de formaclaracomoofazFurtadonassuasconsideraçõeshipotéticas,essesautores

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tomamcomoreferênciaalgumasevidênciasestatísticasquecomprovamoboomindustrialnesseperíodo.

Deumlado,ocensode1920fornecedadossobreoanodeorigemdasindústrias recenseadasnesseano.Essesdados,àprimeiravista, sugeremque o período da guerra foi importante para a indústria brasileira. Masessesautoresnãolevamemcontaquefábricasorganizadasmuitoantesdaguerra foram fechadas, devido a vários fatores próprios da dinâmicaindustrial, e seu patrimônio reaparece mais tarde, como empresas maisrecentes,nasmãosdeoutroscapitalistasquenãoosdoprimeiromomento.Outras vezes, as empresas foram reorganizadas anos depois da origemeda data o icial de sua formação ou foram simplesmente fechadas. Épossívelque,nesteúltimocaso,novas fábricas tenhamocupadoseu lugarnoperíododaguerra,semqueadatamaisrecentesigni iqueorigemmaisrecente. Além do que, os dados desse recenseamento omitem o fatoessencialdomovimentodeconcentraçãodecapital,quefoisigni icativonoperíodoporelecoberto.Osdadosde1920nãoreconstituemaverdadeirasequência de fatos relativos à história da nossa industrialização. O censosobrestimaoqueocorreuduranteoperíododaguerraesubestimaoqueocorreu em anos anteriores, já desde antes do Encilhamento e após aaboliçãodaescravaturaealiberaçãodecapitaisnelaempregados.

Deoutrolado,em1907,oCentroIndustrialdoBrasilrealizouumcensoincompletodaindústriabrasileira.Noentanto,algunsautoresnãohesitamem comparar entre si os dados incomparáveis de 1907 e de 1920 paraconcluirqueumgrandecrescimentodaindústriatevelugarentreaquelasduasdatas.Emconsequência,elesadmitemqueascausasdocrescimentoteriam sido as di iculdades de importação de manufaturados durante osanos da guerra. Entretanto, como demonstrou Warren Dean, o períodointercensitárioabrange13anos,enquantoaguerradurouapenasquatroanos. O seu cuidadoso exame dos dados mostrou que o crescimentoindustrialdessaépocaocorreuantes-enãodurante-daguerra."

Numa certa medida, alguns dados arrolados por Richard Graham,relativosàimportaçãodebensdecapitaldaGrã-Bretanha,sãoindicativosde um contínuo e crescente investimento na indústria desde temposrecuadosaté1909,quandocessamas informações.A importaçãodebens

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decapitaldaquelepaíssubiu, sobreo totalde importações,de14,2%,em1850/1854,para41,7%,em1905/1909,enquantoaimportaçãodetêxteiscaiude72,5%,em1850/1854,para35,8%,em1905/1909.12

Essas são indicações de que o crescimento da indústria no período daguerra foi seguramentemenordoque levaacreracomparação indevidadas duas fontes e de que a guerra teve um papel menos importante nodesenvolvimentoindustrialbrasileiro.Asestatísticasrelativasàdiminuiçãoda importação de manufaturados durante a guerra e ao substancialaumento da produção interna sugerem, antes, que as restriçõeseconômicas impostaspelocon litomundialestimularamsigni icativamenteo aproveitamento da capacidade ociosa da indústria já instalada. Umaindústria, portanto, originária de outros fatores e condições que nãopropriamenteaguerra.

Warren Dean representa outra tendência na tentativa de relacionar asubstituição de importações com a industrialização brasileira. Em suainterpretação, foi a familiaridade dos comerciantes importadores com omercadoconsumidordemanufaturadosecomosprodutosindustriaisquecostumavam importar que lhes abriu a porta para que produzissem elespróprios as mercadorias que mandavam buscar no exterior. Dean tentaprovarsuainterpretaçãoatravésdeumalistaemquearrola65empresasque,em1910,sedevotavamà importaçãoequepassaramadedicar-seàindústria antes da guerra. Ele descobriu que 37 dessas 65 casasimportadoras passaram a produzir diretamente alguns produtos que atéentãohaviamimportado.13

Noentanto,éprecisosercuidadosocomessainterpretaçãododado.Nãoéamesmacoisadizerquequase50%dascasasimportadoraspassaramadesenvolver algum tipo de atividade industrial e dizer qual a proporçãodestas no total das indústrias da época. O que Dean faz é produzir umaexplicaçãoparaoqueocorreucomascasasimportadorasenãoparaoqueocorreu com a indústria. Se pudéssemos organizar um rol de todas asindústrias existentes nesse ano, quantas de fato originaram-se nosnegócios de importação? A proporção será, provavelmente,muitomenor,comosepodeinferirdoricoelencodeinformaçõescontidasnoestudoqueMaurício Vinhas deQueiroz realizou cuidadosamente de 1962 a 1972.14

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Alémdoque, serianecessário trabalhar comdadosmaisprecisosdoqueaquelesutilizadosporDean.Dealgumasdasempresasconstantesdasualista,há indicações,poroutras fontes,dequenão inauguraramatividadesindustriais,masadquiriramocontroledefábricasjáexistentes.

Dentre os grandes grupos econômicos, há o caso, por exemplo, deZerrener, Bülow & Cia., uma casa importadora que começou suasatividades no século xix, na cidade de Santos, e que mais tarde setransferiu para São Paulo. Essa empresa assumiu o controle,provavelmentenocomeçodoséculoxx,daimportantefábricadecervejas,gelo e refrigerantes Companhia Antárctica, cujas origens remontam aosanos 1880. Na lista de Dean, Zerrener, Bülow & Cia. aparecem,equivocadamente, como iniciadores da atividade industrial da empresaqueforadeJoaquimdeSalles,empresaqueentrouemdi iculdadeselheschegouàsmãosporqueeramosseusmaioresfornecedoresecredores.

É inegável que as casas importadoras desempenharam um importantepapel na difusão de conhecimento sobre os mercados para bensindustriais, sobre costumes econômicos ou praxes de comercialização, oque foi signi icativo na experiência dos importadores que se tornaramindustriais.Maséabsolutamenteclaroqueosnegóciosdeimportaçãonãoforamoúnicoe,provavelmente,nemomais importantepontodepartidapara a industrialização brasileira. De qualquer modo, a conclusãoalcançadaporDeanémaissimplesemodestadoqueaquelasugeridaporsua declaração inicial. Ele diz: "a industrialização de São Paulo dependeudesde o começo da demanda gerada pelo crescentemercado externo decafé".15

Deanarrola algumas condições, relacionadas comessa suposiçãogeral,paraqueaindustrializaçãoseefetivasse.Aprimeirarefere-seàexistênciadeumaeconomiamonetária.Apropósito,afirma:

Ocaféfoiofundamentodocrescimentoindustrial interno,emprimeirolugarporquepropiciouomaiselementarpré-requisitodeum sistema fabril - uma economia monetária. Sem um artigo deexportação,osfazendeirosdeSãoPaulotinhampoucanecessidadede dinheiro ou crédito. Antes da introdução do café, as fazendas

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eram tipicamente devotadas à agricultura de subsistência,mesmoquando fossem su icientemente extensas para necessitar trabalhoescravooude16

Essaa irmaçãoécompletamenteerrônea.Primeiramente,porqueocaféfoi antecedido, na região oeste, por um ciclo da cana-de-açúcar, que seestendeuàregiãonorte-litorâneadeSãoPaulo.Aprimeiradessasregiõesfoiondeocafépenetroujánafasedesubstituiçãodoescravopelocolonoe na fase de surgimento da indústria. Muitos fazendeiros de cana-de-açúcar tornaram-se fazendeiros de café.Nunca é demais destacar o casode uma família emblemática na história dessa mudança, a família SilvaPrado.Seufundador,oBarãodeIguape,fezfortunacomoarrematadordacobrançadedireitossobreapassagemdetropasdemuareserebanhosdegado pelo registro de Sorocaba e tornou-se depois grande produtor decanaedeaçúcarnoséculoxviiieemboapartedoséculoxix.Afamíliaveioaser,emseguida,umadasmaioresprodutorasdecafédomundo.17

Alémdoqueénecessárioteremcontaaagriculturadoalgodão,quenaprovíncia de São Paulo teve seumomento entre 1861 e 1875, praticadapor pequenos proprietários e trabalhadores livres, estimulada pelacessaçãodofornecimentoda ibraàindústriatêxtilinglesaemdecorrênciada Guerra Civil americana. Um surto econômico que coincidiu com atransiçãodopredomíniodacana-de-açúcarparaopredomíniodocafénaagricultura paulista de exportação. Não por acaso, o declínio do surtoalgodoeiro coincide com o surgimento de várias fábricas têxteis naprovíncianesseperíododetransiçãoagrícola.`

DesdeoséculoxviiialgumtipodeeconomiaexportadoraexistiraemSãoPaulo.Issoestáamplamenterelacionado,emboranãoexclusivamente,comadecisãodogovernoportuguêsdecentralizarasatividadesdeexportaçãono porto de Santos, na passagem do século xviii para o século xix, aomesmotempoquedeterminouo fechamentodeoutrosportosdos litoraissul e norte da capitania ao comércio externo. Foi nesse momento que ocrescimentoeconômicodeSãoPaulotornou-sesigni icativo,propiciandooaparecimento de uma dinâmica burguesia comercial, que se ligará aosnegócios do açúcar e que assumirá a hegemonia política do processo deIndependência, estando no centro dos acontecimentos de 1822, em São

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Paulo (a "bernarda"deFrancisco Inácioe a Independênciapropriamentedita).

Mesmoassim,énecessárioconsiderarque,paraDean:

EmSãoPaulohaviaapenasdoisbancosantesde1872,ambosiliaisde irmasdoRio.Apartirdomomentoemqueosfazendeirosencontraram um mercado monetário para os seus produtos, noentanto, o volume de dinheiro em circulação e o crédito bancáriocresceram."

Acontece, porém, que o desenvolvimento das atividades bancárias e oaparecimento de novos bancos, principalmente durante os anos 1890,estão relacionados com a transformação das então chamadas secçõesbancárias das casas comerciais em bancos autônomos. Tudo indica quecomerciantesefazendeirosabonadosdesempenharamumpapelbancárioantesdessaépoca,nãosepodendoesquecerqueascasascomissáriasdecafé tinham essa função. O número de "capitalistas", arrolados nosalmanaquespaulistasdoséculoxix,sugerequenãosedevedeixardeladoesses emprestadores particulares que viviam de juros. Assim sendo, oaparecimento de instituições de crédito com o nome de bancos não deveserconfundidocomocomeçodeumsistemadecréditoemSãoPaulo,massimcomseudesenvolvimento.

Aquelas referências estão relacionadas com a suposiçãomais geral deumamplocrescimentodaeconomiademercadoqueteriaocorridonaáreadeSãoPaulo,nessaépoca,exclusivamenteemfunçãodocomérciodecafé.

MasDeanvaiadiante:

EmSãoPaulo os fazendeirosdescobriramque era impossívelatrair trabalhadores da Europa sem o pagamento de salários emdinheiro. Depois eles descobriram que o pagamento em dinheirolhes era vantajoso. O emprego mais econômico de seustrabalhadores era na produção do café e não na de produtos desubsistência; em consequência, os colonos - trabalhadoresimigrantes - foramproibidosdecultivarqualqueroutracoisaquenãofossecafé,umavezoscafeeirosalcançassemamaturidade.20

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Essa é uma interpretação demasiadamente esquemática. Comodemonstrei em capítulos anteriores, nem os colonos eram característicostrabalhadores assalariados nem foram proibidos de cultivar outra plantaque não fosse café após a maturação dos cafeeiros e o início de suaproduçãocomercial.Ocontrárioéoverdadeiro.A imigraçãoparaoBrasilsó se tornou um fato, tanto para os fazendeiros quanto para ostrabalhadores,quandosechegouàfórmulaquecombinouopagamentodotrabalhoemdinheiro(pelascarpasdocafezalepelacolheitadocafé)coma permissão para cultivo de gêneros de subsistência entre as leiras docafezal ou num terreno à parte, dentro da fazenda, a chamada roça. Oregime de colonato desenvolveu-se como uma complexa combinaçãotécnicaeeconômicadeproduçãodocafécomomercadoriaedeproduçãodireta dosmeios de vida necessários à reprodução da força de trabalho.Emconsequência,aextensãodaeconomiademercadoedodinamismodomercadofoimenordoqueDeanpresumeou,aomenos,foidiferente.21

Ospagamentosmonetáriosresiduaisaoscolonosdecafé,semdúvida,aseu modo, tiveram amplo desdobramento no estímulo à expansão daindústrianomarcosingulardefábricas locais.Signi icativamente,nelasseaproveitavaaculturaartesãedomésticaquemuitos imigranteseuropeustrouxeram consigo. Não se tratava de substituição de importações,propriamente, mas de uma indústria complementar da importação demanufaturados que expressava o bifrontismo da economia cafeeira. Aimensa massa de trabalhadores agrícolas trabalhava por menos do quevaliaoseutrabalho,nãosóemconsequênciadataxanormaldaexploraçãodotrabalhonasociedadedolucro,masporqueremunerava-seasimesmacom a produção direta dos seus meios de vida. Recebia em dinheiroapenasocomplementodesseganhodireto,principalenãomonetário.Umdinheiromaisparapoupardoqueparagastar,comoseviucomaextensaconversão de colonos em pequenos proprietários de terra dedicados àagricultura familiarna lentaascensãosocialdo imigranteagricultorentre1886e1930,sobretudodepoisdesteúltimoano.

As diferentes interpretações sobre o papel desempenhado pelasubstituiçãodeimportaçõesnaindustrializaçãobrasileiratememcomumaideia redutiva de um mercado interno estreitamente vinculado àsexportações. Um pressuposto que não leva em conta a duplicidade de

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moedas do Brasil de então, com o mil-réis como moeda do residualmercadointernoeasmoedasestrangeiras,principalmenteofranco,comomoeda dos importados. Uma sociedade em que na elite dos fazendeiroshaviaosquenafazendatomavamatésopadesidratadaimportada,22comoocorria com os avós de Tarsila do Amaral, en quanto o colono secontentava com a serralha que brotava espontaneamente no meio docafezal, como mistura de seu feijão com farinha. Poupava seus restritosganhos monetários para emancipar-se em relação à fazenda, evitandoconsumi-los com o que não fosse além do vestuário e das despesasinevitáveis, como as que se fazia com médicos e remédios. Duas lógicasdiversasdeconsumo,deinserçãonomercadoedemercado.

Existia no Brasil, e isso foi particularmente signi icativo em São Paulo,umpotencialdecriatividadeempresarialeindustrialqueseaproveitoudademanda intersticial de produtos industriais, não atendida pelaimportação. Foi bene iciada pelo protecionismo não intencionalrepresentado pela duplicidade do dinheiro, uma moeda para quemtrabalha, e não pode consumir o produto importado, e umamoeda paraquem lucra e se sente inferiorizado no consumo do relativamente toscoproduto da indústria local. A capacidade de consumir, da sociedadebrasileira, cresceu muito mais do que sua capacidade de importar noperíododoreinadodocafé.Essedesencontroeraparteintegrantetantodamodalidade econômica e cultural de exploração da força de trabalho noscafezais, quanto das técnicas econômicas e sociais de acumulação decapital que os grandes fazendeiros adotaram. Foi uma política explícita eclara,deliberadaesocialmentecriativa,quepromoveuatravessiadopaísparaasociedadeindustrialemodernanomarcodeumalentidãohistóricaquerespondeatéhojeporaquiloqueoBrasilésocialepoliticamente.13

Emoutraspalavras,naperspectivadosautoresquerevejocriticamente,a economia de exportação teria sido inteiramente responsável peloaparecimento do mercado ou, dizendo de outro modo ainda, o mercadoteria sido uma função das exportações. Entretanto, tendo em conta essalinhadere lexão,não icaabsolutamenteclaraaorigemdaindústriaentrenós, quais os fatores de seu surgimento e da sua disseminação.Particularmente,nãosepodeentendercomoa indústriacresceu foradosperíodos de crise no setor exportador. O importante a notar é que, para

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explicar a substituição de importações nos períodos críticos do café, osautores referem-se ao fato de que a indústria veio socorrer a economia;mas ocorre que essa indústria já existia, por outros fatores, e não seexplicava,portanto,apenaspelascrisesexternasepelaimpossibilidadedeimportar produtos industrializados ou pela redução da capacidade daeconomiaparafazê-lo.Em1907,oCentroIndustrialdoBrasilcomparouovalorda importaçãocomovalordaproduçãonacionaldetrintaprodutos,dos mais consumidos. Mesmo com os valores da produção nacionalsubestimadose tendosidoexcepcionala importaçãodesses itensnaqueleano, o valordaproduçãoda indústrianacional correspondeua78,2%dototal?

Como sugeri em estudo anterior sobre a industrialização, tendo comoreferência o caso Matarazzo,2s e constatei na pesquisa histórica que izsobre doze grupos econômicos pioneiros de São Paulo ,21 a indústriabrasileira não surgiu no próprio corpo das relações imediatamenteproduzidas pelo comércio de produtos coloniais de exportação, como ocafé.Massimnosinterstíciosdessasrelações,àmargemecontraocircuitode trocas estabelecido pelos importadores. Assim, a gênese da indústriabrasileira não deve ser buscada nas oscilações da economia do café, naalternância de períodos de crise e de falta de crise. Na verdade, oaparecimento da indústria está vinculado a um complexo de relações eprodutosquenãopodeserreduzidoaobinômiocafé-indústria.

Issonãominimizaas interpretaçõesqueressaltamosperíodosdecriseeconômica,sobretudodocafé,comopoderosoestímuloaodesenvolvimentoindustrial (haveria que levar em conta, também, a crise e a ruína daindústriaextrativadaborracha,ao imdaprimeiradécadadoséculoxx,ea redução da entrada de suas divisas). A capacidade de importação demanufaturadosgeradapelo cafénãoanuloua indústria já instalada e, decerto modo, nem concorreu com ela. Era uma indústria do padrão doartesanatoedamanufatura,depequenaescala,masdisseminadapelopaísinteiro, localista, protegida pela insu iciência e precariedade das vias decomunicação contra as mercadorias desembarcadas nos portos, quedependiamdedemoradoemuitasvezesprecáriotransporteparachegaracompradores inais. Sem contar as limitações de escala do mercadoconsumidor interiorano e a lentidão dos retornos inanceiros em face de

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umaeconomiadominanteparaaqualtempoeradinheiro.

A disseminação rápida de uma rede ferroviária, que chegaria a serextensa, não foi su iciente para quebrar a importância dessa economiaindustrial prémoderna: em boa parte tinha ela como referência apopulação que não era diretamente bene iciada pelo luxo de dinheirogerado pela exportação de café. O café não modi icou de imediato nemrapidamente a estrutura de consumo dessa população. Agregou, sim, umpadrão europeu de consumo às famílias diretamente bene iciadas pelariquezaquegerava,queapenassubsidiariamentesedifundianoconjuntodasociedade.

Convém lembrar que a sociedade brasileira manteve por largo tempocaracterísticas estamentais, a população dividida e con inada emsegmentos commentalidade e costumespróprios, segmentação reforçadapelomodorestritocomosedavaadistribuiçãodariqueza,numasociedadeque não era propriamente uma sociedade de assalariados. O dinheirocirculava de maneira restrita, segundo regras sociais próprias de cadagrupo. A imensa população pobre tinha acesso preferencial aos produtosdessa indústriaantiga,emboaparteporqueeraelavinculadaàdinâmicaagrícola e era extensão e desdobramento da agricultura. Não operava,propriamente,comregrasdocapital industrial.Seusprodutoscirculavam,portanto, como mercadorias de um complexo econômico centrado nasubsistênciaesómarginalmentereferidoaomercado.Minhahipóteseéade que esse dualismo da economia brasileira de então funcionou comoproteção contra os efeitos desagregadores da importação demanufaturados, por seu lado mais orientada para bens de consumo,comparativamente, do rol dos produtos de luxo. Num país agrícola, essaimportaçãoestavavoltadaparaascidadesdaexplosãourbanaqueocaféprovocounoRiode janeiroeemSãoPauloeparaaurbanizaçãoresidualqueserefugiounointeriordacasa-grandedasfazendasdecafé.

Se compararmos as listagens nominais do censo da indústria que oCentroIndustrialdoBrasilrealizouem1907,comas listagenspublicadas,muitasvezesanualmente,nosvolumososeinformativosalmanaques,comooAlmanaqueLaemmert,especialmentenasegundametadedoséculoxrx,veremosqueasdiferençasde classi icaçãoedenominaçãodosdiferentes

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ramos da atividade industrial são poucas. Em boa parte, porque aconcepção de indústria que presidiu a realização do censo re letia aprópriaconcepçãoquedaindústriatinhamosindustriaisdoRiodejaneiroque o ordenaram. O conceito de indústria, nesse censo, é abrangente esigni icativamente diverso da concepção de indústria que prevalece nasanálisesaqueestoumereferindoenodebatesobreaindustrializaçãonoBrasilentreo imdoséculoxixeoiníciodoséculoxx.Se,deumlado,incluia jámoderna indústria têxtil, inclui tambémasqueijariasruraisdeMinasGerais, os fotógrafosdoRiode janeiro, os latoeirosdediferentes lugares,ospequenosengenhosdeaçúcaraoladodemodernasusinasnoNordesteaçucareiro, as muitas atividades domésticas de transformação queabasteciamessemercadodual.

Apesar dos vários alertas tópicos dos organizadores do censo para ocaráter incompletode seu levantamento,os resultadosdãoumpanoramaesclarecedor dos rumos que tomava então a industrialização brasileira edasuaprocedênciaparcialnasformasaindaartesanaisdaprodução.Seocenso, como tudo indica, subestima a indústria que era extensão daagricultura, por outro lado parece documentar bem a indústriapropriamente moderna. Mesmo assim, o peso dos pequenosestabelecimentos no emprego da população que o censo de ine comooperária é um dos dados signi icativos desse levantamento, conformemostraoquadroaseguir.

Brasil-Distribuiçãodosoperáriosindustriaisporregiãoetamanhodosestabelecimentos-1907

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Fonte: Centro Industrial doBrasil, O Brasil- Suas riquezas naturaes, suasindustrias,RiodeJaneiro,OfficinasGraphicasM.Orosco&C.,1909,v.rir.

Emprincípio,osdetalhesmencionadosnolevantamentosugeremquesepodetrabalharcomasuposiçãodequeostrabalhadoresempregadosnasindústrias com mais de 500 operários eram trabalhadores da grandeindústria, de tecnologia moderna, já privados do conhecimento artesanalque era próprio daqueles situados nos pequenos estabelecimentos queempregavam até nove operários e muitos que empregavam até 25operários.Mesmo que se adote a necessária cautela de levar em conta aépoca e as características atrasadas de muitos setores da economiabrasileira.ACia.MateLaranjeira, produtora e exportadorade erva-mate,no Mato Grosso, empregava mil operários. Mas essa empresa era, naverdade, uma imensa senzala, em várias ocasiões denunciada peloempregode trabalhoescravo.27Estavamuito longede serumaempresamoderna, apesar do número de seus trabalhadores. A alta proporção deoperáriosque,noNordeste, trabalhavamem indústrias commaisde cemtrabalhadorese,mesmo,maisdequinhentos,deve-seaopesoquenessesnúmeros tiveram os empregados nas grandes e modernas usinas deaçúcar,noentanto trabalhadoresqueviviamnumcenário rural atrasado,parcialmentepresosàeconomiadesubsistência.

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Na segunda metade do século xix, os engenhos começaram a setransformar em engenhos de fogomorto, vencidos por modernas usinasindustriais de açúcar, os engenhos centrais, grandes responsáveis pelaintrodução da grande indústria no Brasil. Foram acompanhados pelamodernaindústriatêxtilquesedifundiuporváriasregiõesbrasileiras,emcidadesinterioranas,grandementeestimuladapelaproximidadedasáreasde produção algodoeira. Essa indústria de certo modo concorreu com aindústria têxtilcaseiraquedesdeos temposcoloniaisproduziu tecidosdealgodão para o vestuário dos escravos, dos índios administrados e dosmestiçosagregadosàsgrandes fazendas.Nosdois casos, a importaçãodeequipamentosasseguroua introduçãodemoendase tearesmodernosnaeconomia brasileira. Porém, ambas as indústrias conviveriam por largotempoaindacomossimilaresrústicoseaproduçãodeescalamodesta,detipoartesanal.

A grande indústria têxtil,mais do que substituir importações, com elasconcorreu,jánoséculoxrxe,naépocadocensode1907,jáeraaindústriabrasileiradeponta,muitoantes,portanto,dosefeitosdaPrimeiraGuerraMundial, cujas restrições econômicas estimularam a industrializaçãobrasileiraapartirdeumaindústriadeváriosmodosjáestabelecidaequeabsorveu,emparte,omercadoantesatendidopelasimportações.

Oquadroanteriormostraoquantoaforçadetrabalhoindustrialestavaempregadaempequenosemédiosestabelecimentoseoquantoaindústriase disseminara, por isso mesmo, pelos vários estados brasileiros. Umaindústria que ainda dependia muito do capital social representado peloconhecimentoartesanaldotrabalhador.Noconjuntodopaís,quasemetadedos operários trabalhava na própria casa ou em pequenas o icinas defundo de quintal. A chamada grande indústria, para impor-se, nosdemorados anos seguintes, teria que vencer essa indústria artesanal emanufatureira capaz de absorver, como absorveu, as irracionalidades daeconomiabrasileira,quetornavamomercadoincertoeinstáveleque,commaiorfacilidadepodiamatingiragrandeindústria.Grandeindústria,aliás,queoperavacomcapacidadeociosa,mobilizadanosmomentosdeaumentodademandaemfacedacrisedeimportações.Nessemovimento,amédiaegrande indústria não só substituíram importações, como substituíram aprodução industrial interna de pequena escala representada por esse

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setorquenosvinhaaindadotempodaescravidão.

Nessesentido,oquechamaaatençãonocensode1907é,justamente,ofato de que a presença do imigrante estrangeiro na indústria icoucircunscritaaosestadosdoSuleaSãoPaulo.EmMinasGerais,ositalianosestavamsignificativamentepresentesnaindústriadealimentação,masnãonos demais setores.Nomes luso-brasileiros, predominamna indústria, namaior parte do país. Uma indicação amais de fatores da industrializaçãonão necessariamente vinculados à imigração estrangeira nemnecessariamente vinculados à grande indústria e à suposta funçãoinauguraldocafé.

O estudo de StanleyJ. Stein sobre a indústria têxtil no Brasil, o carro-chefedaindústriaemgeraleseuprincipaldinamizador,aquela,portanto,quesepodepresumirtersidoestimuladapelasdificuldadesdeimportaçãoadvindas com o início da Primeira Guerra Mundial, mostra como essaindústriajáderaumsaltonaépocadoEncilhamentoeumnovosaltoentre1905 e 1915, quando o número de fábricas nesse setor passou de 110para240eonúmerodeoperáriosde39.159para82.257.28

Osprincipaisgruposeconômicos,comodemonstrouaamplapesquisadeMaurício Vinhas de Queiroz, já citada, que se tornaram grandes depois,surgiramnoúltimoquartodoséculoxix.Praticamentetodoselesnascerampara substituir a produção artesanal e doméstica ou a produção empequena escala disseminadas por um grande número de pequenosestabelecimentos tantonacapitalquantono interior.Aliás,a indústriaemSãoPaulonasceudistribuídaporquase todososmunicípiosdaprovíncia.Só depois do Encilhamento, nome da crise especulativa de 1890-1891, éque passou a concentrar-se na capital e nuns poucos municípiosimportantes do interior, o que completou um processo iniciado com aexpansão das ferrovias, que facilitaram a concentração industrial. Aindustrializaçãodareferênciademuitospesquisadoresfoiantesdetudoamodernizaçãoindustrial,apassagemdoartesanatoparaamanufaturaeagrande indústria, passagem alimentada pela repercussão das criseseconômicasnaexportaçãodocaféenaimportaçãodemanufaturados.

Isso não anula,mas situa, a interpretação deWarrenDean quanto aos

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fatores da industrialização, se os entendermos como fatores dodesenvolvimento industrial. No seu entender, a habilidade dosempresários devotados à importação, como assinalei antes, tornou-se oprincipal fator da industrialização porque eles perceberam a suaimportânciaduranteosperíodosdeestabilidadenocomérciodocafé.Deancentra sua análise num fator cultural, na cultura como produtora derelações sociais e de transformações sociais. Ele faz sua própria leitura,invertendo-a, da concepção marxista da produção da consciênciahistoricamente determinada, como antecedente das relações sociais quemediatiza.Nesseplano, confundeahabilidadeou adestreza empresarial,de inidoscomoelementosculturaisaprendidosnapráticacomercial,comaconsciência empresarial, o capital, na plenitude de suas possibilidades,personi icado pelo capitalista. Dean, desse modo, descaracteriza aconsciência como interpretação e componente do processo social, comoproduto, ao mesmo tempo criativo, da práxis burguesa, e a reduz àdimensãodecapitalculturalquecausaas transformaçõeshistóricas.Essaculturateriasidoacessívelaoscomerciantes importadores, transferidadoexterior,masnãoaosdemaissetoresdaburguesialocal,quejáinvestiaemoutras atividades econômicas. Era como se a demonstrada criatividadeempresarial dos capitalistas brasileiros, na abolição da escravatura, porexemplo, fosse bem em todas as outras atividades econômicas,menos naatividadeindustrial.

Ocaféeagestaçãodoempresário

A posição de Dean é o ponto de partida para um segundo temarelacionado como problema da industrialização brasileira - o que chamode habilidade empresarial. Até onde sei, Dean é o único autor que tentajuntar essas duas linhas de interpretação - a da substituição deimportaçõeseadadifusãodehabilidadenagestãocapitalistadocapital -formuladas e postas em discussão por pesquisadores brasileiros. Essesegundo tema tem uma origem bem mais rica, teoricamente falando,riquezaque,noentanto,progressivamenteseperdeu.

Aexplanaçãopioneiracomo temarelacionadaprocededeestudosqueFernando Henrique Cardoso realizou sobre o café e a industrialização."9Pela originalidade, ela difere profundamente de outras baseadas numa

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certa ideiadedifusãocultural,comoasdeDeanedeGraham.AprincipaldiferençaéadequeCardosoanalisaosfundamentoshistóricosesociais,eas determinações históricas, da consciência empresarial relativa àindustrialização.

O problema básico é este: como foi possível a uma economia agrícola,devotada à exportação e baseada no trabalho escravo, transformar-senuma economia industrial baseada no trabalho livre? Quais foram ascondiçõeshistóricaseosfatoresdessatransiçãoprofunda?Arelaçãoentresenhor e escravo não era uma relação capitalista e, à primeira vista, nãoexplicitavaosfatoresdesuadesagregaçãonemindicavaapossibilidadedeque dela emergisse uma sociedade estruturada em seus opostos. Comoapareceu o capitalista industrial, então? Cardoso orienta sua pesquisa esuaanálisenosentidodeexplicitarasrelaçõesdeproduçãocujamediaçãodeterminavaaconsciênciadocapitalistaindustrialquenasciaeaomesmotempoatransiçãohistóricaemqueesseprocessosedava.

Aos que não estão familiarizados com o tema pode ser útil esclarecerqueocafé,numacertamedida,temsidonahistóriaagrícolabrasileiraumacultura itinerante.30Ocultivo intensivoeeconômicodocafécomeçounasvizinhanças do Rio de janeiro, no inal do século xviii, embora não tenhasido aí a sua introdução no Brasil. Progressivamente deslocou-se pelaprovínciadoRiodeJaneiroemdireçãoàprovínciadeSãoPaulo,peloValedo Paraíba. Durante a primeira metade do século xix cobriu o Vale doParaíba paulista, envolvendo toda a área situada entre a cidade de SãoPauloeoantigoMunicípioNeutrooudaCorte.Nãoobstante,oportodoRiodejaneiropermaneceucomooprincipalportodeexportaçãodecafé,tantooriginário das plantações luminenses como das paulistas do Vale doParaíba. No começo da segunda metade do século xix, o café já haviapenetrado na região oeste da província paulista, começando a disputarterrascoma jáantigaculturadacana-de-açúcar.Nocomeçodoséculoxxjá abrangia o chamado oeste velho. Nas décadas de 1930 e 1940 foipenetrandonoParanáehojejápenetranoParaguai.Aomesmotempo,asregiões mais antigas foram sendo progressivamente abandonadas emfavor,sobretudo,dapecuáriadeleite.Issotinhamuitoavercomodeclínioda fertilidade do solo no Vale do Paraíba. Em 1926, a produtividade doscafezaisdessa regiãoerademetadeparamenosdaprodutividademédia

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doestadoedemenosdeumterçodaprodutividadedasregiõesnovas.31

Durante o períodododeslocamentodo café doVale doParaíbapara ooeste, inicialmenteparaaque foi conhecida tambémcomo região central,deu-se o im do trá ico de escravos. Começaram, então, as primeirastentativas de substituição dos escravos por trabalhadores livres,principalmente imigrantes europeus, dentro das próprias fazendas, poriniciativa dos próprios fazendeiros, dado que experiências brasileirasanteriores com imigrantes estrangeiros referiam-se apenas a programasoficiaisdecolonização.

Numacertamedida,masnãocompletamente,odeslocamentodocafédeuma região para outra, que colocou a cidade de São Paulo na rota dessamercadoria, foi momento marcado também pela passagem do trabalhoescravoparaotrabalholivre.Issosigni icavaqueosfazendeirospassaramavivenciarrelaçõesdeproduçãoemqueotrabalhotornara-seumfatordelucratividade calculável do capital, com seus capitais empregados emfunções parcialmente diferentes das funções cumpridas durante aescravidão.Daíqueo café tenha levado rapidamenteaodesenvolvimentocapitalista em São Paulo, embora não tivesse promovido essa mesmamudança, com a mesma rapidez, em outras regiões por onde passaraantes.

Diversos fazendeiros adotaram uma posição em favor da abolição daescravaturaporqueteriamcompreendidoqueotrabalhoescravoimpunhadi iculdadesaocálculodarentabilidadedocapital,aomesmotempoqueoescravo representava uma imobilização de capital na pessoa dotrabalhador, como renda capitalizada, sem que funcionasse como capitalpropriamentedito,colocadoentreparêntesesnoprocessodeproduçãodariqueza.

Em consequência, a abolição da escravatura não somente tornoupossível ouso racionalda forçade trabalho,mas liberouo fazendeiro, aomesmo tempo, da imobilização de capital na compra de escravos. Essaliberação de capital teria sido um dos primeiros fatores na acumulaçãorelacionadacomaindustrializaçãobrasileira.32

Como fator adicional, muito fazendeirosmudaram-se para a cidade de

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São Paulo, o que foi favorecido pelo transporte ferroviário, que alterou arelação de duplamoradia que era a característica da cultura residencialdos grandes fazendeiros e que se consolidara com a expansão daagriculturadecana-deaçúcar jánoséculoxviii.Atéentão, a residêncianacapital era a residência secundária, sendoaprincipal ada fazendaoudeumadas fazendasdeummesmofazendeiro.Comas ferrovias,surgemnacidadeos bairrosmodernosdos potentados rurais, comoCamposElíseos,avenida Paulista e Higienópolis, cujos palacetes se tornaram a moradiaprincipal dos fazendeiros. Com a São Paulo Railway, em 1866, São Pauloicou no meio do caminho entre as fazendas e o porto de Santos, quepassou a ser o porto de referência da exportação do café paulista e, porisso,acidadedascontasedosnegócios,acidadedosbancos,numaespéciededivisãodo trabalho coma capital.Muito rapidamente, a cidadede SãoPaulopassouasera sededeumaculturaurbanare inada,maispropíciaaodesenvolvimentocapitalistadoqueavidaagrária,patriarcal eestreitadasfazendas,emqueofazendeiroseconfinavacomsuafamília.

Supõe-sequeaacumulaçãodecapitalesteveestreitamenterelacionadacom o desenvolvimento da habilidade empresarial. De um lado, porquequandoacalculabilidadedocapital tornou-sepossívelembases racionaisteria propiciado condições para que diversos fazendeiros expandissemseus negócios como comerciantes, como comissários de café, comoexportadoresecomoimportadores.Maistardeelesteriampodidodedicar-se a atividades bancárias, o que os teria habilitado a descobrir que arentabilidadedocapitaldecorredousodocapitalpelocapital.Equeousocapitalista do capital é bemmais do que emprestar dinheiro a juros, queera a noção comum por aqui no último quartel do século xix, sendodefinidocomocapitalistaapenasaquelesqueviviamdetaisempréstimos.

Numa certa medida, isso teria permitido o aparecimento de umaatividade empresarial "pura'. A liberação do capital, resultante dalibertaçãodoescravoeda transformaçãodas relaçõesdeprodução, teriaproduzido,comoconsequência,aqueletipodepessoa,oempresário,capazde assumir a racionalidade desse capital, dedicando-se, então, aodesenvolvimento da atividade industrial comoparte necessária do elencodasalternativasde investimentodocapitaloriginariamenteacumuladonaproduçãodocafé.

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Como se vê, esse esquema trata o assunto integradamente: aomesmotempo que centra a discussão na transição histórica das relações sociais,trata essas relações no âmbito da totalidade por elas engendradas,vinculando-asaumamodalidadedeconsciência-aconsciênciaburguesa-necessária, comomostrouMarx, à realização domovimento do capital. Oqueelaexpressaéapersoni icaçãodocapitalpelocapitalista.Poraítemosindicações de como o capital se libera das peias que di icultam o seucircuitoe,aomesmotempo,decomoeleseapossadapessoadocapitalista,para assumir a vida que não tem, para que sua racionalidade, a suanecessidade de reprodução, semetamorfoseie na necessidade existencialdocapitalista.

NãoobstanteasuaadequaçãoteóricaparaexplicaraindustrializaçãonoBrasil,esseesquemaaindaassimoferecealgunspontosdedúvida.

Um primeiro ponto, teoricamente claro, mas empiricamente, no casobrasileiro,sujeitoadúvidas,consisteemsaberseaconsciênciacapitalistafoicondiçãoouresultadodastransformaçõesnasrelaçõesdetrabalho.Deum lado, porque é preciso não confundir origem com determinação.Sabemosque,nessescasos,aconsciênciasedeterminapelamediaçãodasrelações de produção. O que não quer necessariamente dizer que, noefetivo processo de transição, a emergência da consciência capitalistadependa da emergência do que Marx chamou de modo de produçãocaracteristicamente capitalista, pois nesse caso estaríamos numcirculacionismo imobilizante, o oposto do que a transição é. Os ritmosdesiguaisdodesenvolvimentodescompassamosplanosda realidadeque,assim, se propõe contrapondo esses planos entre si e na contraposiçãoevidenciando contradições e embates que determinam transição esuperações.

Concretamente,aexperiênciaeastradiçõesdaburguesiacomercialtêmum papel signi icativo, embora nem fundamental nem exclusivo, naconduçãodoprocessodereformulaçãodasrelaçõesdetrabalho.Nãoépormenos que, no caso brasileiro, a substituição do trabalho escravo pelotrabalho livre, como demonstraram os estudos de Florestan Fernandes,Otáviolanni,FernandoHenriqueCardoso,PaulaBeiguelmaneEmíliaViotti,entreoutros,teriasidoconduzidapelocaráterimpositivodaracionalidade

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do capital, admitida, assumida, praticada e difundida por muitosfazendeiros e comerciantes. Para a cafeicultura, a escravidão entrou emcrise quando seu custo revelou-se irracional em face dos preços do café,quandocomprometeuotaxadelucrodafazendacafeeiraequandoentrouem con lito com a racionalidade econômica alternativa e possível dotrabalholivre.Daíquealiberdadedoescravonãotenhaseconstituídoemliberdadeparaoescravo,noquealiberdadepropriamentesigni ica,esimemliberdadeparaofazendeiro,istoé,paraocapitalqueelerepresentavaepersoni icava, aindaquenomarco enas limitaçõesdas tradiçõesqueotolhiam.

A noção de liberdade que comandou a Abolição foi a noçãocompartilhadapelossetoresdaelitequenelaseenvolveram,enãoanoçãode liberdade que tinha sentido para o escravo. Em consequência, oescravo,quandolivre,caiunaindigênciaenadegradação,mergulhadonaanemia, comomostrou Florestan Fernandes.33 Foi o fazendeiro quem selibertou do escravo, e não o escravo quem, propriamente, se libertou dofazendeiro. A proposta da Abolição, em tese, não se destinava a remir ocativo mas a dele libertar o capital, que se contorcia nas limitações,impedimentos e irracionalidades da escravidão. Era o capital que queriaromper caminho nas contradições do cativeiro, sem que se ignore,evidentemente,osideaishumanistasquenorteavamavida,asinspiraçõese as decisões dos que batalharam, no Parlamento e fora dele, peladisseminação da liberdade jurídica da pessoa como valor universal. NaAbolição,alémdomais, libertavam-sebrancosenegros,atémesmoquemsendobranconão tinhaescravos, comose libertavam, também,osnegrosque,sendolivres,tinhamescravoseàcustadelesviviam,especialmenteoschamados escravos de aluguel ou de ganho, como se dizia, de que hánotícias aqui e ali, bem como os negros que eram feitores de escravos ecapitãesdomato.Osistemainteiroruía.

Por outro lado, quando a escravidão ainda era a principal fonte detrabalho, fazendeiros e comerciantes que se dedicavam à produção dacana e do açúcar na região central da província de São Paulo, a deCampinas e Piracicaba, e a diversos negócios comerciais com elarelacionados, organizaram um banco e uma indústria têxtil. Isso se deuainda nas proximidades do período da Independência.34 O que indica o

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quanto,mesmonavigênciadoregimeservil,aeconomiaquepraticavamseapoiavanumcapitalquepediadesdobramentospropriamentecapitalistas,alémdoslimiteseconstrangimentosdeumregimedeproduçãoemqueotrabalhonãoestavalivredocorpodotrabalhadorecomeleseconfundia.Esse é um dado que não pode ser esquecido quando se quer analisar aemergência de uma burguesia moderna entre nós e transformações noper ildoquenoséculoxixseautode iniacomofazendeirooumesmocomocapitalista.Convémterpresenteque,atémeadosdoséculoxix,fazendeiroeraoadministradordecabedal,afazenda,mesmodecabedalalheio.Comoera o caso, nos séculos xviii e xix, dos chamados padres-fazendeiros, osmongesadministradoresdasfazendasdaOrdemdeSãoBento,gestoresdocapital de custeio que recebiam do padre-gastador para manutenção efuncionamentodaeconomiaagrícolaeindustrialdasfazendasaseucargo.De modo algum o conceito de fazendeiro se restringia ou mesmo seconfundiacomodedonodagrandepropriedadeagrícolaoupecuária,queveioasermaistardeoseusignificado.

Alémdoque,mesmonoperíodocrucialparaagêneseda indústriaemSão Paulo, que vai, aproximadamente, de 1870 a 1905, não parece quetenhamsidomuitososfazendeirosquesededicaramàatividadeindustrial,em parte devido ao caráter intersticial da indústria e às incertezasdecorrentes,emparteporqueacafeicultura jáeraumnegócioconhecido,baseado em padrões estabelecidos de gestão e conduta econômica. Umapesquisa exploratóriaque realizei há alguns anos, cobrindoesseperíodo,sobre "A cafeicultura e a urbanização dos investimentos", mostrou que,pelomenosaté1905,os fazendeirosdedicavamseaváriosnegócios,alémdodassuasfazendas,nãose limitandoaelas:comércio,bancos, ferrovias,indústria, comércio imobiliário, como coristas ou, principalmente, comoacionistas das empresas - sociedades anônimas em que tinham pequenaparticipaçãojuntamentecomumgrandenúmerodeoutrosinvestidores.Apalavracapitalista,nessaépoca,emSãoPaulo, signi icavaparaeles, comojámencionei, apessoaqueviviados rendimentosde seu capital, comoosjuros do dinheiro emprestado a terceiros, mais na perspectiva doproprietário que vive da renda da terra, o rentista, embora essesrendimentossereferissemprincipalmenteaolucrodocapitalaplicadoemempresasdeoutrem.Éverdade,noentanto,quediversosdessesacionistastornaram-se diretores de empresas, sobretudo bancos e ferrovias, e que,

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em consequência, envolveramse no processo tipicamente empresarial detomadadedecisõesnosnegócios.

Nasduassituações,háelementosparaconsiderarqueoescravismonãofoi, em termos causais, impeditivoparaaprática capitalistanumcontextode abundânciademãode obra escrava, antesdaproibiçãodo trá icoquese tornaria efetiva em 1850. E, de outro lado, o desaparecimento doescravismonãofoisu icienteparaumdespertardevocaçõesempresariaisentreospossuidoresdecapital.

Outropontoaserconsideradoéodequeodesenvolvimentodacidadede São Paulo não parece ter sido tão exclusivo quanto se supõe nocrescimento e diversi icação dos negócios e, especialmente, para osurgimento do comportamento capitalista e empresarial entre osfazendeiros. De 18 bancos arrolados no estado de São Paulo, em 1902,cincoeramestrangeiros,seistinhamasuamatriznacidadedeSãoPauloesetetinhasuamatrizemcidadesdointeriordoestado.35Entreosúltimos,podemos encontrar o BancoMelhoramentos de Jaú,mais tardeBanco deSãoPauloS/A,umdosmais importantesbancospaulistas,queexistiuaté1973, quando foi incorporado pelo Banespa. Isso indica que mesmo nointerior distante, nas proximidades da vida culturalmente estreita dasfazendas,osfazendeirosdesenvolviamatividadesempresariaisintensivas.

Finalmente, parece que, ainda que apenas num número reduzido decasos,fazendeirosacumularamumaexperiênciadeliderançanosnegócios,seguindo esta sequência: fazendeiro, comerciante de café, empresário deferrovia, negócios imobiliários rurais e urbanos, banqueiro, industrial. Namaior parte dos casos, combinaram algumas dessas atividades. O únicocaso, largamenteconhecido,emqueomodelofoiseguidoporinteiroeéasua referência, pelomenos o único invocadopara sustentar e legitimar omodelo,éodeAntôniodaSilvaPrado,oneto.Algunsautoresesperamquea essa biogra ia comprove acima de qualquer dúvida o que teriaacontecido na economia do café para transformar o senhor de escravosnum moderno capitalista industrial. Prado parece reunir todas ascondiçõesparaserconsideradootipoidealdoempresáriobrasileirodessafase: ele e a família foram proprietários de várias grandes fazendas decafé, sua família fundou e administrou a Companhia Prado Chaves

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Exportadora,dedicadaàexportaçãodecafé,foidiretordebanco(oBancodo Comércio e Indústria), foi diretor de ferrovia (a Companhia Paulista),organizouedirigiuempresas industriais,comooFrigorí icodeBarretosea Vidraria Santa Marina. De outro lado, foi senador e ministro daAgricultura, do Império. Nessa função foi o principal responsável peloencaminhamento da Abolição da escravatura e pela promoção daimigração emmassa de trabalhadores estrangeiros, livres, para o Brasil,especialmente para os cafezais de São Paulo, segundo um modelo quepreservou a economia de exportação e a grande propriedade em que sebaseava. Mais tarde tornou-se o prefeito de São Paulo que durante dezanostransformouoquerestavadocentrocaipiranumacidadeeuropeiaemoderna.

Entretanto, uma pesquisa mais cuidadosa pode revelar outrascaracterísticas de grande importância na sua biogra ia e na sua históriafamiliar. Prado nasceu e cresceu na cidade de São Paulo, longe dasfazendas da família. Era ilho de um rico produtor de café e de donaVeridianaPrado,umadasprimeirasmulheresempresáriasnoBrasil.Seuavô homônimo, o Barão de Iguape, e outros parentes, ancestrais ecolaterais,foram,alémdefazendeiros,importantescomerciantes,algunsjánoséculoxviii.EsseavôcomeçouavidacomonegociantedetropasegadotrazidosdoSulparaSãoPauloe comerciantedeváriosefeitos.Depoisdeviver um tempo na Bahia, negociando, retornou a São Paulo, onde foifornecedor de tropas militares, arrematador de impostos, acionista dacaixa ilial do Banco do Brasil e fundador de uma indústria têxtil nasprimeiras décadas do século xix.Mas foi também produtor de açúcar nooeste inicial, a chamada região central da província, onde mais tardeentrariaocafé.

Nãomeparecequeabiogra iadeumaúnicapessoa,quandoestudadacomo exemplo e não como caso, seja a melhor maneira de explicar ahabilidadeempresarialeaacumulaçãodocapitalcomoexpressõesdoqueuma sociedade é. Mais importante é ter em conta o próprio capital, suareproduçãoeascondiçõesdesuareprodução,aspersonalidadesquecriaesocializa.NocasodosPrado,aliançasdefamília,doséculoxviiiaoséculoxx, criaram uma rede parental extensa em que comprovadas vocaçõesempresariais nas várias famílias que se uniram tornam pouco provável

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que não tenha se formado nela uma cultura empresarial intrafamiliar, acomeçar da própria grandematriarca que foi dona Veridiana Valéria daSilvaPrado.36

Nessa rede, trânsitos entre a economia e a política foram frequentes euma visão empresarial da economia na política marcou toda a obra depolíticodeAntônioPrado.37Suavisãodosnexosentreosváriosplanosdaeconomia capitalista foi, sem dúvida, uma dasmais completas que houveemtodaahistóriadoBrasil.Oquedelefezumreformadorsocialcapazdearticular as relações de produção com o poder, de um lado, e com umaideologiaconformistadostrabalhadoresruraiseurbanos,deoutro.Foielequem enunciou, num discurso no Senado, em 1888, os princípios daideologia da ascensão social pelo trabalho em conexão com o modelo dedesenvolvimentoagrícolaeindustrialquedecorreudomodocomopropôserealizouasubstituiçãodotrabalhoescravopelotrabalholivre.

Outros complexos familiares, concebidos como empreendimentoseconômicos, norteados por uma cultura ao mesmo tempo empresarial epatriarcal podem ser facilmente identi icados em São Paulo. O quecon irma,nofundo,jánoséculoxixe,provavelmente,atéantes,agestaçãodeumcapitalismofundado,aomesmotempo,natradiçãoconservadoraefundiária, mas aberto até a ousadas tendências inovadoras não só naeconomia,mastambémnacultura,especialmentenasciênciasenasartes.

Não foipequenoonúmerode fazendeirospaulistasqueenviaramseusilhos à Europa e aos Estados Unidos para estudar Medicina ouEngenharia. É signi icativo que o governo de São Paulo tenha criado,respectivamente em 1891 e 1893, a Faculdade de Medicina e a EscolaPolitécnica, que forneceu os quadros de engenheiros para a formação edisseminação da indústria em São Paulo. Na Medicina, é necessáriomencionar que um de seus fundadores, o médico e também ilósofoluminenseLuísPereiraBarreto,deumafamíliadefazendeirosdecafé,foium dos principais descobridores das terras roxas da região de RibeirãoPreto, fazendeiro ele próprio que trouxe consigo, do Rio, outrosfazendeiros de café. Era ele um experimentador de técnicas agrícolas epromotorde inovaçõesna agricultura, tendo sido o principal responsávelpelaintroduçãodaculturadavideemSãoPauloedaproduçãodovinho.É

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de 1898, a criação da Escola Prática de Agricultura, em Piracicaba, queveio a ser a Escola Superior deAgricultura Luís deQueirós, para formartécnicos agrícolas e engenheiros agrícolas. Outras iniciativas foramtomadas, ainda nessa época, no campo da ciência e da pesquisa, porfazendeirose ilhosdefazendeiros,oqueindicaumdensoeativoespíritoinovador, muito além da mera consciência empresarial referida aosinteressesparticulares.38

As transformações estruturais da economia paulista, identi icadas porCardoso,foramfatorreferencialebásicoparaaexpansãoedifusãodoquesepodechamardevocaçãoedeconsciênciaempresariais(equeaparece,simpli icada, como cultura e habilidade empresariais em Dean), mascertamente não foram os exclusivos fatores de sua origem no Brasil. Noentanto,essastransformaçõeslibertarameexpandiramumaexperiênciaeuma visão de mundo que já ocorria, ainda que em pequena escala, nomundodaescravidão,emdiferentesregiõesdopaís.Ariquezacriadapelocafé atraiu, aliás, capitalistas de outras províncias, como o conde Prates,origináriodoRioGrandedoSul,queemSãoPauloteveafamosaFazendaSantaGertrudes e foi umdos grandes investidores na renovação urbanado centro de São Paulo. Ou Domingos Jaguaribe, médico cearense,historiador,quefezinvestimentosimobiliáriosemSãoPauloeOsascoefoiumdospromotoresdacriaçãodaestânciaclimáticadeCamposdoJordão,de que restamemória na denominação de Vila Jaguaribe de um de seusbairros.

Warren Dean e Richard Graham são os dois autores que, em meuentender,adotaramasproposiçõesdeCardoso,maso izeramnumplanosensivelmenteempobrecidoporquedestituídodahistoricidadeprópriadaanálise daquele autor. Em Cardoso, o centro da análise está nastransformações históricas profundas e radicais. Em Dean e Graham, areferênciaé amudança social.Ou seja, eles reduziramas formulaçõesdeCardoso sobre a consciência capitalista a simples domínio da culturaempresarial,aumproblemadedifusãodehabilidadesempresariaisenãode gênese (histórica) da consciência do empresário. Com isso,historicamente falando, eles promovem uma alteração radical nainterpretação de Cardoso. Essa alteração permite introduzir no assuntouma visão missionária, criadora e positiva da dominação econômica dos

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países hegemônicos simultaneamente com uma concepção negativa dadinâmica histórica do país dominado. Essa interpretação idealista dastransformações sociais tem como última implicação a ideia de que ahistória se faz nos centros hegemônicos do capitalismo, tendência muitomais nítida em Graham do que em Dean. Eles tomam a expansãoempresarial como uma função das relações econômicas externas e nãocomo produto de rupturas internas da economia que engloba relaçõesexternas. É como se fosse um apêndice exterior à sociedade brasileira,comoseestanãoconstituísseumarealidadehistórica,comdeterminaçõesexternas e internas. Isso não exclui que se proclame a importância dostrabalhosdessesdoisautores,queacabaramsecundandoaproduçãodospesquisadores brasileiros com uma contribuição signi icativa sobre umdado do problema que vinha tendo um tratamento menor em váriosestudos - que é o vínculo entre as transformações sociais e a hegemoniaeconômicadospaíseseconomicamentedominantes.

Como já indiquei, Dean presume que a experiência empresarialenvolvida na industrialização provinha de uma familiaridade prévia doempresário com os negócios de importação - um elo importante nadependência externa produzida pelo que Caio Prado Júnior chamou deeconomia colonial. Nesse ponto, Dean adota a premissa de que asatividades agrícolas não continham as condições su icientes para agestação do que se poderia chamar de habilidades empresariais ou, naperspectiva de Cardoso, o espírito de empresa.39 O que, na verdade, sere letenessainterpretaçãoéasuposiçãodequenãosendocapitalistasasrelações de produção na grande lavoura, baseadas no trabalho escravo,não poderiam engendrar uma concepção empresarial e propriamentecapitalista da existência e uma interpretação capitalista para o uso dariqueza,segundoasregraseadinâmicadoprópriocapital.Ocorre,porém,queaanálisedatransiçãohistóricanãopode icarcentradanapolarizaçãomecânicademodosdeprodução,porqueaísetornaimpossívelapreenderomovimentodahistória,ocarátercomplexoehistoricamentedesigualdoprocesso social. O trabalho escravo também permitia a acumulação decapital, ainda que principalmente fora dos quadros restritos da fazenda,nas escalas percorridas pela circulação damercadoria e pela exploraçãoeconômicaquepormeiodelasedavanoplanopropriamenteespeculativo.No meu modo de ver, Cardoso está lidando essencialmente com a

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emergência das condições históricas para a reprodução capitalista docapital,quetevenaadoçãodotrabalholivre,nolugardotrabalhoescravo,a transformação necessária e a condição decisiva. A diferença detratamentodo temaentreCardosoeDeanéqueoprimeiro trabalhacomuma teoriada transição concreta, emque fatores objetivos interferemnocursodasmudanças,de inindoasituaçãosocialdatomadadedecisõesporparte do capitalista. É nesse quadro que se pode pensar no campo dealternativasepossibilidadesdasdecisõesdocapitalistaouaquiloqueMarxde iniu como personi icação do capital. Por seu lado, Dean trabalha comuma teoria da mudança social, em que os homens são os agentesconscientes e intencionais das mudanças, produzidas segundo seusinteresses.

Numoutroplano,háoestudodeGraham,quenãopretendeseconstituirnumaexplicação sobre a industrialização, a não ser indiretamente, pois éum estudo sobre a in luência britânica no Brasil, o país maisindustrializado de então, sem a qual a indústria no Brasil era inviável. Épor issoque cabe aqui sóum comentário geral sobre a sua suposiçãodequeosinglesesteriamsidoospatrocinadoresdamodernizaçãonecessáriapara vencer o tradicionalismo brasileiro. O comércio com aGrã-Bretanhatrouxe capital e conhecimento para a construção de uma economia embases modernas. Mas parece que ele atribui demasiada importância aoqueSchumpeterdenominaderacionalidade técnica, confundindo-acomaracionalidade do capital. Graham esquece que uma das regras principaisdocapitaléadenãofazerfavoresaquemquerqueseja.Elenãoassumeque a racionalidade técnica opera sob o domínio da racionalidadeeconômica.Mas,umaquestão,pelomenos,subsistedoseutrabalhonoquepossa ter como implicação para a análise da industrialização: foi ain luência britânica que incrementou o desenvolvimento industrialbrasileiro ou o desenvolvimento industrial que incrementou a in luênciabritânica?

Gostaria de concluir fazendo ligeiras referências a consideraçõesalternativasque,acredito,estãocontidasnestecapítulo:

1. Há várias indicações de que antes da Abolição da escravatura e dachamada grande imigração (1886-1888) ocorreu uma signi icativa

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expansãodaatividadecomercialeda indústriadepequeno tamanhoeempequenaescalanaprovínciadeSãoPaulo;nãoapenasnacapital,mas em quase todas as cidades do interior. Isso parece sugerir quenessa época a indústria artesanal passou a desenvolver-se maisintensamentenosmeiosurbanosdoquenasfazendasdecafé,canaealgodão,con igurandonumcertosentidoaseparaçãodeagriculturaeindústria.

2.No começodos anos 1890, durante o chamadoEncilhamento, houveem São Paulo uma intensa atividade econômica extra-agrícola.Diversas empresas foram organizadas com a inalidade de adquirirpequenasfábricas.OresultadodoEncilhamento,emSãoPaulo,pareceter sido uma alteração na escala da produção industrial. Nessesentido, no iní cio, a industrialização visível como ramo autônomodaeconomia, visou principalmente substituir a produção industrialdoméstica e, até, clandestina, e a produção organizada em pequenaescala.

3.Umúltimopontoaserconsiderado,quantoaoenvolvimentodoEstadona industrialização, é o de que desde 1900 o Estado brasileiroimplantara o imposto de consumo. Com isso, o governo reconheceuqueas taxasde importaçãonãocobriama totalidadedoconsumodasociedade brasileira e que o Tesouro Federal estava, emconsequência, perdendo dinheiro. Desde então, os rendimentospúblicos passaram a depender progressivamente desse imposto e,portanto,daindustrialização.Osetorindustrialpassou,pois,aterumaimportância vital para a manutenção do Estado. Assim sendo, aindústriaganhousuaimportâncianasdecisõesgovernamentais,comoocorreu durante o Governo Provisório da Revolução de Outubro de1930,emfacedaCrisede1929,quandoogovernopagouparaqueocafé sem mercado fosse colhido e posteriormente queimado. Umapolítica que, se bene iciou o café, bene iciou também a indústria, aoque parece deliberadamente, pelo que sugere o já mencionadorelatóriodoministroJoséMariaWhitaker.

*ExposiçãofeitanoInstituteofLatinAmericanStudies,UniversityCollege,Londres, em 18 de fevereiro de 1976; no Institute of Latin American

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Studies, University of Glasgow (Escócia), em 2 de junho de 1976; e noSeminar of Economic Research, Pembroke College, University ofCambridge, em junho de 1976. Texto publicado originalmente emContexto, n. 3, São Paulo, Hucitec, jul. 1977. Agradeço ao Prof. SérgioBuarquedeHolandaaleiturainteressadadesteartigoeoscomentáriosadiversasdesuaspassagens.Agradeço igualmenteaTamásSzmrecsányia leitura atenta e os comentários. Fiz, para esta edição, uma revisãocrítica do texto à luz das grandes transformações que a chamadaRevoluçãode1964promoveunaeconomiabrasileira, justamentecontraoprojetohistóricodovarguismoeaalternativaapontadanosestudosdeCelso Furtado, da interiorização dos centros de decisão e da economiavoltadaparadentro,paraomercadointerno.

Notas

Além dos trabalhos citados nas notas seguintes, menciono, entre outros:Caio Prado Júnior, História econômica do Brasil, cit.; Nélson WerneckSodré,Históriadaburguesiabrasileira,2. ed.,Riode Janeiro,CivilizaçãoBrasileira, 1967; Heitor Ferreira Lima, História político-econômica eindustrialdoBrasil,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1970;OmerMont'Alegre,CapitalcócapitalismonoBrasil,RiodeJaneiro,ExpressãoeCultura, 1972; Carlos Manuel Peláez, História da industrializaçãobrasileira, Rio de Janeiro, Apec, 1972; Florestan Fernandes, História daRevoluçãoBurguesanoBrasil,Riode Janeiro,Zahar,1975;SérgioSilva,ExpansãocafeeiraeorigensdaindústrianoBrasil,cit.

2CelsoFurtado,-FormaçãoeconômicadoBrasil,2.ed.,RiodeJaneiro,FundodeCultura,1959.

3C£CelsoFurtado,op.cit.,p.218-20.

Idem,p.225.

"Praticou-senoBrasil,inconscientemente,umapolíticaanticíclicademaioramplitudequeaquesetenhasequerpreconizadoemqualquerdospaísesindustrializados."C£CelsoFurtado,op.cit,p.224-5.

eIdem,p.224-5.

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7Cf. José Maria Whitaker, A administração inanceira do GovernoProvisóriode4denovembrode1930 a16denovembrode1931, SãoPaulo,RevistadosTribunais,1933,p.10e14(grifosmeus).

8Cf. Joséde SouzaMartins, CondeMatarazzo:O empresário e a empresa,cit.,p.103-4.

9Cf. Roberto C. Simonsen, Evolução industrial do Brasil, São Paulo,FederaçãodasIndústriasdoEstadodeSãoPaulo,jul.1939.

°Cf.AntônioBarrosdeCastro,7ensaiossobreaeconomiabrasileira,RiodeJaneiro,Forense,1971,v.u,p.103-4.

Cf. Warren Dean, lhe Industrialization of São Paulo, 1880-1945,Austin/London,UniversityofTexasPress,1969,p.83-104.

2Cf. Richard Graham, Britain and the OnsetofModernization in Brazil:1850-1914,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1968,p.330-2.

13Cf.WarrenDean,op.cit.,p.26-8.

14C£MaurícioVinhasdeQueiroz,Gruposeconômicosemodelobrasileiro,mimeo.,Brasília,1972.

15C£WarrenDean,op.cit.,p.3.

Idem,p.4.

17Cf. Maria Thereza Schorer Petrone, O Barão de Iguape, cit., passim;MariaTherezaSchorerPetrone,A lavouracanavieiraemSãoPaulo, cit.;DarrellE.Levi,op.cit.

18C£ A. P. Canabrava, O desenvolvimento da cultura do algodão naprovínciadeSãoPaulo(18611875),SãoPaulo,IndústriaGrá icaSiqueiraS/A,1951,esp.p.275ss.

19Cf.WarrenDean,op.cit.,p.4-5.

20Idem,op.cit.,p.5.

21Cf. José de SouzaMartins, A imigração e a crise do Brasil agrário, cit.;

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JosédeSouzaMartins,Capitalismoetradicionalismo,op.cit.

22C£ Nádia Batrella Gotlib, Tarsila doAmaral, a modernista, 2. ed., SãoPaulo,SENAC,2000,p.29.

23Sobre o tema e outros desdobramentos dessa con iguração estruturalda sociedade brasileira, cf. José de Souza Martins, O poder do atraso(Ensaiosdesociologiadahistórialenta),SãoPaulo,Hucitec,1994.

24CC Centro Industrial do Brasil, O Brasil - Suas riquezas naturaes, suasindústrias,RiodeJaneiro,Of icinasGraphicasM.Orosco&C.,1909,v.iii,p.261(ediçãofac-similardoIBGE,RiodeJaneiro,1986).

25Cf.JosédeSouzaMartins,CondeMatarazzo-Oempresárioeaempresa,cit.

26Re iro-me à pesquisa coordenada pelo Professor Maurício Vinhas deQueiroz,noInstitutodeCiênciasSociaisdaUniversidadedoBrasil,sobreos grupos econômicos no Brasil, em 1965. Coubeme parte dolevantamentohistóricocombasenoqualprepareiasmonogra iassobreaorigemdecadaumdosseguintesgrupos:Matarazzo,CicilloMatarazzo,Matarazzo Pignatari, Antárctica, Almeida Prado, Alcan, Vidro Plano,Dedini-Ometto, Bunge cá Born, Wallace Simonsen e Monteiro Aranha.AntonioCarlosdeGodoyencarregou-sedapesquisasobreasorigensdeum segundo elenco de grupos econômicos e sobre um deles, o GrupoVotorantin,elaborouasuadissertaçãodemestrado.

27C£NelsonWerneck Sodré, Oeste - Ensaio sobre a grande propriedadepastoril,RiodeJaneiro,LivrariaJoséOlympio,1941,passim.

28C£ Stanley J. Stein, Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil-1850/1950, trad. JaimeLarryBenchimol,Riode Janeiro,Campos,1979,p.97e111.

29Cf. FernandoHenrique Cardoso, "O café e a industrialização na cidadedeSãoPaulo",emRevistadeHistória,n.42,SãoPaulo,1960;FernandoHenriqueCardoso,"CondiçõesefatoressociaisdaindustrializaçãodeSãoPaulo", emRevistaBrasileiradeEstudosPolíticos,n.11,BeloHorizonte,1961; Fernando Henrique Cardoso, "Condições sociais daindustrializaçãodeSãoPaulo",MudançassociaisnaAméricaLatina,São

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Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1969, p. 186-98; FernandoHenriqueCardoso, Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil,SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1964.

30Cf.SérgioMilliet,op.cit,passim.

Cf. Paulo R. Pestana, O café em São Paulo (notas históricas), São Paulo,TypographiaLevi,1927,p.20(anexo).

32Cf. Octavio Ianni, Raças e classes sociais no Brasil, Rio de Janeiro,CivilizaçãoBrasileira,1966.

33Cf.FlorestanFernandes,Aintegraçãodonegronasociedadedeclasses,cit.,v.i,esp.p.70-190.

34Maria Teresa Schorer Petrone, em dois livros, documenta e explicitaváriosaspectosdeumdoscasos,odeAntôniodaSilvaPrado,oBarãodeIguape. C£ seus A lavoura canavieira em São Paulo, cit., e O Barão deIguape,cit.São,nessesentido, igualmenteimportantes,respectivamente,a orelha e o prefácio que Sérgio Buarque de Holanda escreveu paraessesdoislivros.

ssC£ JosédeSouzaMartins,CondeMatarazzo:Oempresárioeaempresa,cit.,p.80.

36Sobre a fascinante história de dona Veridiana Prado e a história datramaparentaldosSilvaPradoenquantotramadealiançaseconômicasepolíticas, cf. Luiz Felipe D'Avila, Dona Veridiana -A trajetória de umadinastiapaulista,SãoPaulo,AGirafa,2004,esp.p.31-79.

37Darrell E. Levi fez uma reconstituição dessa rede e da presença deváriosmembrosdafamíliaemváriosâmbitosdasociedade,dapolíticaedaeconomia.Cf.DarrellE.Levi,op.cit.,esp.p.243ss.

31Umaspecto signi icativodo alcancedasmudanças sociais que estavamocorrendo em São Paulo nessa época é que, na criação da EscolaPolitécnica,alémdeseuprincipalidealizador,AntônioFranciscodePaulaSouza,branco,deumafamíliadefazendeirosdeItu,tenhamparticipadodois mulatos: Ramos de Azevedo, ilho de uma negra e de umcomerciantebranco,deCampinas,eobaianoTeodoroSampaio,nascido

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escravoe ilhodeumaescravacomumpadrebranco,queoalforriounobatismo e que foi responsável por sua educação no Rio de Janeiro.DepoisdeformadoemEngenharia,SampaioretornouàBahiaecomprouelibertousuaprópriamãeedoisirmãos,todosescravos.

39NainterpretaçãodeCardoso,oquesepoderiachamardeonascimentodaindústriadependeudacombinaçãodeváriascondiçõesnumprocessoemqueo fazendeiro"perdiasuacondiçãodesenhorparatornar-seumempresário capitalista". De um lado, dependeu não só de condiçõeseconômicas, como a acumulação propiciada pela economia do café, odeclíniodocaráterautárquicodaeconomiadafazenda,otrabalholivreeaconsequenteampliaçãodomercadointernoemrelaçãoàescravidão,ea generalização da economia mercantil, e de condições naturais. Mastambém, de outro, de condições sociais, decisivas na articulação dosvários fatores envolvidos na "formação do sistema capitalista deorganização econômica", como o "espírito de empresa" ou "espírito deracionalizaçãodaempresa".C£FernandoHenriqueCardoso, "Condiçõessociais da industrialização: o caso de São Paulo", Mudanças sociais naAméricaLatina,SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1969,p.186-98.

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Aconstituiçãodasrelaçõesnãocapitalistasnaeconomiacapitalistadocafé

A partir do último quarto do século xix, imigrantes italianos chegaramregularmenteadiversasregiõesbrasileiras.Emboramaisdametadedelestenha se dirigido ao estado de São Paulo, foi signi icativo o número deitalianosqueseestabeleceramnoRioGrandedoSul,emSantaCatarina,noParanáenoEspíritoSanto.Alémdeitalianos,vieramparaoBrasilgrandescontingentesdealemães, espanhóis,portuguesese japoneses. Sóa regiãodeSãoPaulorecebeu,entre1877e1914,1.728.620imigrantes,dosquais845.816eramitalianos.'

As condições de imigração para o Brasil não podem ser corretamenteentendidas se partirmos dos pressupostos liberais das mais difundidasteoriasdamigração.Oquadrodereferênciahistóricaquede ineosentidodasmigraçõesparaoBrasil,nos insdoséculoxixenocomeçodoséculoxx, está impregnado de características que nada têm a ver com osprincípios liberais da individualização da pessoa, da sua liberdade dedeslocamento, do seu direito de ir e vir. A sociedade brasileira estavamergulhandonacrisedoregimedetrabalhoescravo,apartirdaqualjásepodia perceber que, com o tempo, a economia brasileira, que era umaeconomia de tipo colonial, de exportação de produtos de origem agrícola,comoocafé,oalgodãoeoaçúcar,nãopoderiaseexpandirnadependênciadotrabalhodonegrocativo.

Éimpossívelentenderaformadaabsorçãodosimigrantesestrangeirosnasociedadebrasileira senão tivermosemcontaquea suavindaparaopaís estava intimamente articulada com o processo de substituição dotrabalho escravo pelo trabalho livre. Não foram poucos os imigrantesitalianos que chegaram a trabalhar, nas fazendas de café, ao lado de

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trabalhadoresnegrosescravizados,emcondiçõespraticamenteservis.

É impressão geral, muito difundida no Brasil e no exterior, que essascentenas demilhares de imigrantes vieram para o Brasil na condição detrabalhadores assalariados, muitos dos quais a partir de uma árduadisciplinade trabalho teriam feito fortunae se transformadoemgrandesempresárioscapitalistas.Nemumacoisaéverdadeiranemoutra.Agrandemassados imigrantes que vierampara este país destinou-se ao trabalho,mas não àquilo que se poderia chamar corretamente de trabalhoassalariado, como mostrei em capítulos anteriores. Do mesmo modo, osimigrantes, italianos em particular, que se tornaram aqui grandesempresáriostêmorigemmuitodistintadaquelesque foramdestinadosaodurotrabalhonoscafezais.

DevemserdistinguidostrêsdestinosdadosaosimigrantesitalianosquechegaramaoBrasil. A partemais numerosa foi levada compulsoriamentepara as fazendas de café do interior de São Paulo. Uma parte, atésigni icativa, foi levada para os núcleos coloniais, namaior parte núcleoso iciais, organizados pelo governo imperial ou pelos governos provinciais,geralmentenasregiõespioneiraseafastadasdoscentrosurbanos,nocasodeSãoPaulo,RioGrandedoSul, SantaCatarina,ParanáeEspíritoSanto.'Uma terceira parte dirigiu-se às cidades, sendo composta de pequenosnegociantes, intelectuais, artesãos, operários e até capitalistas. Cada umdesses grupos viveu o problema damigração demodo diferente, porqueemcadaumadessassituaçõeseradistintooprocessodeengajamentodoimigrante.Domesmomodo,essesdiferentesgruposjásediferençavamnopróprio processo de migração, na própria viagem. Desde 1870, ascorrentes migratórias para o Brasil eram constituídas por migrantesclassi icadoscomoespontâneosousubsidiados.Viaderegra,osprimeirosviajavampor suaprópria conta. Jáos segundoseramarregimentadosemsuas aldeias de origem na Itália e transportados para o Brasil poragenciadores e tra icantes de mão de obra contratados pelo governobrasileiro, tendo as suas passagens e a sua manutenção pagas até odestino inal, nas fazendas ou nos núcleos coloniais.' Os imigrantes quedesembarcavam em Santos eram imediatamente transportados porferroviaparaacidadedeSãoPaulo,desembarcandodiretamente,apartirde 1888, na grande Hospedaria de Imigrantes que fora construída pelo

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governoprovincial.Dali os colonos eram remetidos, por estradade ferro,para as estações do interior em cujas regiões as fazendas tivessemnecessidadedemãodeobra.Naprimeiradécadadoséculoxx,osserviçosdeimigraçãoemSãoPaulorecebiaminformesconstanteseminuciososdointeriorsobreaprocuradetrabalhadoreseomontantedopagamentoemdinheiroparaasdiferentestarefas.'Naestaçãoferroviáriadechegada,osfazendeiros ou seus gerentes e capatazes percorriam a plataformaexaminando os imigrantes e escolhendo para suas fazendas os que lhesconviessem, como no passado recente haviam feito no ato de compra deseus escravos. Outras vezes, donos de pensões e alojamentos daspequenas cidades do interior recolhiam os imigrantes e depois tratavamde repassá-losparaos fazendeiros em trocadasdespesasdealojamento.Àsvezes,ocorriadeo imigranteburlaresseesquemafechado, fugindodaHospedariaouentãoseextraviandojánoportodeSantos,paraevitarquefosse levado para as fazendas, preferindo localizar-se na cidade de SãoPaulo,geralmentejuntoapatrícioseconhecidosqueo.6

A imigração subvencionada ou subsidiada teve um papel essencial natransformaçãodasociedadebrasileiraenatransiçãoparaotrabalholivre,que se dá basicamente no período que estou analisando. Sem eladi icilmentecorrentesmigratóriasespontâneasteriamseorientadoparaoBrasil,poissemelateriasidoimpossívelpôr imàescravidãonegra,comoa inal se deu a 13 demaio de 1888.70 Brasil não tinha ummercado detrabalho desenvolvido, já que as tarefas fundamentais da economiabrasileira eram realizadas pelo escravo. O imigrante espontâneo era, naverdade, o trabalhador livre ou o livre negociante que circulava nasociedade segundo os mesmos critérios de liberdade que regem acirculaçãodasmercadoriasdequesãoportadores-otrabalhoouocapital.Seo trabalhonãoé livre, tambémotrabalhadornãooé.Por issopode-sedizer que, na crise do trabalho escravo, a imigração espontânea para oBrasil foi caudatária da imigração subvencionada. Esta última produziutransformaçõessociaisquederamsentidoàquelaoutra.

O imigrante subvencionado ou vinha já contratado para se instalar emnúcleos coloniais ou vinha com o destino certo da fazenda, nesse sentidoconduzido emonitorado pormecanismos de cerceamento que o levavamatéaestação ferroviáriamaispróximada fazendaqueoencomendara.A

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liberdadede circulaçãodesse imigrante eramuitopequena. Sedestinadoaosnúcleoscoloniais,jádeimediatoseenvolvianadívidaparapagamentodo lote colonial. A sua localização era decidida exclusivamente pelosfuncionários dos programas de colonização. Não raro, o imigranteassentado num núcleo em São Paulo esperava que, em vez disso, fosselevado para Santa Catarina ou Rio Grande do Sul, onde já estavamparentesqueoantecederam.Oscontratosdeengajamentode imigrantes,assinados em Gênova entre recrutadores-concessionários do governobrasileiro e os interessados em migrar, estabeleciam condições rígidaspara localização inal dos imigrantes, sendo extremamente di ícil a suaremoçãoparaoutrasáreas,suareemigraçãooumesmoseurepatriamento.Nessescasos,amovimentaçãodo imigrantepassavaadependerdosseusprópriosrecursos,geralmenteescassos, jáqueos imigrantesselecionadospara os programas de colonização o icial eram-no deliberadamente porsua pobreza.' Além disso, a imigração subvencionada recrutava, depreferência, famíliasde trabalhadoresa trabalhadores isolados.Amesmacoisaocorriaemrelaçãoaostrabalhadoresdestinadosàsfazendasdecafé,cujas condições de vida ultrapassavam em muito pouco os limites dasobrevivência.

No período que nos interessa, a imigração subvencionada alcançou57,5% dos imigrantes, contra 38,7% dos imigrantes espontâneos. Só noperíodo de 1891 a 1895 correspondeu a 89,1%dos imigrantes entradosemSãoPaulo.Em1891,chegoua98,9%dosimigrantes.

A substituição do escravo pelo colono, como era chamado o imigrantedestinado às fazendas e não aos núcleos coloniais, como mostrei antes,passouporduasetapasprincipais-deumlado,adaimigraçãoparticular,em que as despesas de transporte e alojamento do imigrante eramcusteadas pelo fazendeiro para posterior desconto dos ganhos que ocolonoobtivessenoseutrabalho;deoutrolado,aimigraçãoo icial,emqueogovernobrasileiro,oudaprovíncia,custeavaasdespesasdetransporteealojamentodo imigranteatéqueele,dentrodeumprazo limitadoecurto,fosseengajadonotrabalhodealgumafazenda.Aimigraçãoo icial,porsuavez, também teve duas etapas: uma em que o imigrante trazido pelogoverno era destinado aos núcleos coloniais o iciais; outra em que oimigrante subvencionado era entregue aos fazendeiros sem necessidade

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dequalquerretribuiçãoou indenização.Basicamente,operíodoemqueaimigraçãosubvencionadapelogovernoeradestinadaaosnúcleoscoloniaiso iciais correspondeu à fase em que a imigração estrangeira para asgrandesfazendasdecaféeracusteadapeloprópriofazendeiro.

Asubstituiçãodotrabalhadorescravopelotrabalhadorlivretinharaízessociais bem de inidas. O abastecimento demão de obra nas fazendas deaçúcardoNordestebrasileirooudecafédoSudestedependiaemgrandepartedotrá iconegreiro.QuandoaInglaterraaboliuaescravidãonassuascolôniasdas ÍndiasOcidentais, em1833,devidoànova situaçãopolíticaeaos interesses dos seus antigos senhores de escravos, começou apressionar o governo brasileiro para que também cessasse o trá ico deescravos para este país. O açúcar das Antilhas só tinha condições deconcorrer com o açúcar de países como o Brasil, produzido ainda comtrabalho escravo, por meio de tarifas protecionistas que o tornavampreferencial na Inglaterra. Essas tarifas encareciam o custo de vida daclasse trabalhadora empregada na indústria inglesa, o que, no inal,redundava emônus para o capital industrial e, na prática, no pagamentodeumtributoaosproprietáriosdeterranassuascolôniasaçucareiras.Aspressõesbritânicasacabaramproduzindoresultadosem1850,quandofoiabolidootráficodeescravosdaÁfricaparaoBrasil.

A cessação do trá ico trazia sérios problemas para os fazendeiros. Oprimeiro deles é que a expansão das culturas de cana-de-açúcar e cafédependia da expansão de oferta de trabalhadores escravos. Uma políticade imigraçãomaciçadetrabalhadores livres,noentanto,acarretavaoutroproblema.Éque, comomostrei antes, o regimedeocupaçãode terrasnoBrasil ainda estava inspirado nos pressupostos do chamado regime desesmarias, que decorria da livre ocupação das terras devolutas,sancionada depois pelo poder público através da concessão de títulos deterras,ascartasdesesmarias.Emboraesseregime tivessesidosuspensoem 1822 e formalmente abolido com a Constituição de 1824, nenhumoutro chegou a ser formulado até 1850, subentendendo-se, no entanto, odireito de livre ocupação da terra. Se o critério da livre ocupação dasterras devolutas tivesse perdurado, a entrada maciça de imigrantes nolugar de escravos teria levado os novos trabalhadores a ocuparem asnovasterras,comoestavaacontecendoemoutrospaíses,casodosEstados

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Unidos, recusandoo seu trabalho aos grandes fazendeiros, coisaquenãoacontecia com o negro porque era escravo. Na previsão de semelhantedesfecho, nomesmoanode1850 é promulgadauma lei, conhecida comoLeideTerras,queproibiaoutraformadeacessoàterra,mesmoàsterrasdevolutas, que não fosse por meio da compra. Com isso se instituíam oscritériosdeabsorçãodotrabalhadorestrangeiropelasociedadebrasileira:sendo imigrante pobre, deveria trabalhar primeiro para os fazendeiros,paraformaroseupecúlioecomprardepoisaterra,sequisessetornar-seum trabalhador rural autônomo. De certo modo, para tornar-se umcamponês livre, o imigrante deveria oferecer durante tempoindeterminado ao grande proprietário de terras, como uma espécie detributo, o seu trabalho e o da sua família. Um dos principais artí ices dasubstituição do escravo pelo imigrante, grande fazendeiro, senador eministro do Império, mais tarde industrial e banqueiro, Antônio da SilvaPrado,assimsemanifestavaarespeitonoSenado,em1888,omesmoanodaaboliçãodaescravatura:

No entanto, a experiência tem demonstrado, pelo menos naprovíncia de São Paulo, que a colocação dos imigrantes nasfazendas é o melhor sistema porque, ao cabo de três ou quatroanos,afamíliaporaquelemodocolocada,seformorigerada,sóbriaelaboriosa,poderáteracumuladopecúliosu icienteàaquisiçãodeterras[...].10

Numa primeira etapa do processo de substituição do escravo pelotrabalhadorimigrante,emSãoPaulo,foramseguidosdoiscaminhos:deumlado, os próprios fazendeiros providenciavama vindade imigrantes paraas suas fazendas, pagando as passagens e outras despesas de viagem.Esses gastos eram imediatamente debitados nas contas correntes dostrabalhadores, sujeitos a juros, para serem saldados progressivamente, àmedidaqueotrabalhadorfosseobtendocréditosnacarpadoscafezais,nacolheita e em serviços avulsos. Por esse meio, o imigrante icavainteiramentesubjugadopelofazendeiro,queotratavacomosujeitodesuapropriedade. Na verdade, pouca diferença havia entre a situação de umnegrocativoeadeumcolono,anãoseradaprobabilidadedeque,dentrode certo tempo, o colono poderia readquirir a liberdade saldando seusdébitos para com a fazenda. A subjugação por dívida invadia e anulava

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completamente não só a liberdade de trabalho do colono,mas também asua liberdadecivil.Umcolono insatisfeitocomseupatrãosópodiamudarde fazenda se o novo patrão aceitasse comprar do anterior a dívida dotrabalhador,fazendoumrepassedasujeiçãodesteúltimo.Atémesmoumaquestão tão particular como a do casamento de um colono dependia doassentimentodopatrão.Ocorriamsérias tensõesnorelacionamentoentrefazendeirosquandoocolonodeumafazendacasavacoma ilhadocolonodeoutrafazenda,poisoproprietáriodestaúltimaseconsideravaroubado,já que mantinha sobre os trabalhadores uma tutela por dívida. Mesmoquandoessa tutelanãoexistia, o fazendeiropodia considerar-seofendidopelo fato de que um outro lhe "roubara" um trabalhador. Portanto, até orelacionamento doméstico do colono e a sua intimidade familiar icavamsubordinadosaosinteresseseconômicosdofazendeiro.Asimplesausênciadafazenda,paraumavisitaàcidademaispróximaporqualquerrazãoouparaumavisitaaumparenteouconhecidoemoutrafazenda,dependiadoconsentimentodo fazendeirooudoadministradorda fazenda.Aausêncianão autorizada era motivo de fortes tensões no relacionamento com ocolono.

A imigraçãosubvencionadapelogoverno,no início,não sedestinavaàsfazendas,esimaosnúcleoscoloniaiso iciais,ondeocolonorecebiaumlotepara trabalhar. Normalmente, nos dois primeiros anos após a criação donúcleo,ogovernoassumiaasuatutelaatravésdeadministradoresqueseincumbiamdelocalizarosimigrantesemseuslotes,dedirigironúcleo,deservirdeintermediáriosentrecolonoegoverno,deoferecerassistênciadesaúdeeatendersolicitaçõesdos lavradoresnoquefossepossívelatendernoâmbitodassuasatribuições,geralmenterestritas.Eraregraoscolonosreceberemumadiária pelonúmerodepessoasda família durante a faseda tutela para permitir que izessem suas plantações e colhessem osprimeiros frutos. Casas ou apoio para sua construção também eramrecebidos pelos colonos, além de assistência religiosa e escola. Depois daemancipação,deviamdirigir-seporsimesmos,começando,então,apagaras dívidas contraídas com a compra da terra e com os inanciamentosrecebidos. No inal, geralmente depois de dez anos ou mais, recebiam otítulodefinitivodepropriedade.

Um traço característico da colonização o icial é que os núcleos nem

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semprese localizavamemregiõesdeterrasférteis,comoeramasregiõesdasgrandesfazendasdecaféoucana,ouemregiõespróximasamercadosurbanos. Toda a argumentação em favor dosnúcleos coloniais repousavanum suposto mercado interno de gêneros alimentícios que seriaabastecidopeloscolonos,jáqueasgrandesfazendasnãotinhaminteresseno cultivo desses produtos, a não ser para o seu próprio gasto. Essaproposta, no entanto, logo foi comprometida pela própria expansão doscafezais:duranteafasedeformaçãodocafezaleatédepois,osfazendeirospermitiamqueseusempreiteirosplantassemmilhoefeijãoentreospésdecafé,comomeiodereduziropagamentoemdinheiroquelhesdeviafazer.A colheita desses produtos pertencia ao colono ou era dividida com afazenda,numsistemadeparceria,demodoqueotrabalhadoreafazendaobtinhamcolheitasdealimentosparaoseupróprioconsumoeexcedentesqueeramlançadosnomercadoapreçosqueomercadoestivessedispostoa pagar, porque não era produção regulada pela demanda do mercado.Essa produção excedente alterava o comportamento do mercado dealimentos, ressalvados os períodos de carestia, tornando di íceis e atéinsustentáveisascondiçõesdevidaedetrabalhodoscolonosdosnúcleosque dependiam exclusivamente da comercialização de alimentos paraconseguirem o dinheiro necessário à aquisição dasmercadorias que nãoproduziamdiretamente,comoeraocasodotecido,doremédioetc.

Osfazendeiros,porsuavez,desejavamqueosnúcleoscoloniaistivessemsido ou fossem estabelecidos nas proximidades das suas fazendas, comoenclavesdemãodeobradisponívelparaos trabalhosextraordináriosnafase da colheita do café. Nesse período, trabalhadores adicionais eramnecessários não só na própria colheita como para os serviços deespalhamento e amontoamento de café nos terreiros de secagem ediversasoutrastarefasrelacionadascomacolheita.

Os impasses da imigração de trabalhadores custeada pelo própriofazendeiro, que geravam tensões e con litos no interior das fazendas ecriavambarreirasàemigraçãonospaísesdeorigem,jáqueasautoridadesconsulares acabavam intervindo, o que repercutia, foram resolvidos pelareorientaçãodapolíticadeimigraçãosubvencionadadosnúcleoscoloniaiso iciais para as fazendas de café. É verdade que colonos subvencionadospelo governo já eram encaminhados aos chamados núcleos coloniais

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particularesdasprópriasfazendasdecafé,comunsnoiníciodaimigração.Maséapartirde1887queosimigrantes,naimensamaioriaitalianos,sãoencaminhadosmaciçamenteàsfazendasdecafé,trazidosaoBrasilatravésdo regime de imigração subvencionada pelo governo. Quando se dá aabolição da escravatura, em 1888, o número de imigrantes entrados emSãoPaulo jácorrespondiaàsnecessidadesdemãodeobraquesurgiriamcomotérminodotrabalhoescravo.

Somente através da imigração subvencionada, encaminhadainteiramenteparaasgrandesfazendasdecafé,équesetornoupossívelaefetiva libertaçãodocolono.Elaanulouapossibilidadedasuasubjugaçãopordívida.Aomenos,reduziuasuadependênciaemrelaçãoaofazendeiroquantoàsdespesasanuaisdecusteiodafamíliadotrabalhador,contraídasjuntoaoarmazémdafazendaouaqueleporeleindicado,aoperíododeumano, jáqueosacertosdecontassedavamanualmente,apósacolheitadocafé. Mais tarde, já no século xx, devido a pressões das autoridadesconsulares em face de abusos que comprometiam a liberdade do colono,esseperíodo foi reduzido aum trimestreou aummês, alémde se exigirliberdadeparaocolonofazersuascomprasnosarmazénsquedesejasseenãonaqueledepropriedadeoudeinteressedofazendeiro.

A verdade é que cada trabalhador imigrante, colocado na fazenda,representavadefatoumsubsídiogovernamentalaofazendeiro.Atravésdaimigração subvencionada, o conjunto da sociedade brasileira, pagando otransporteeasdespesasdoimigrantedeGênovaatéafazenda,pagavadefato o custeio de produção da força de trabalho da economia cafeeira.Evidentemente isso só era possível devido ao poder político de que osgrandes fazendeiros de café dispunham, o que os levou a ministériosimportantes,noImpério,eàpresidência,naRepública,apartirde1894.

Poressemeioinstituíram-seasrelaçõesdetrabalhoquecaracterizariamaeconomiado cafédurantedezenasde anos, atéos anosde1950.Essasnãoeram,comojámencionei,relaçõesdetrabalhoassalariado.Ochamadoregime de colonato combinava várias características: era um regime detrabalhofamiliar.Comoexpusantes,cadafamíliatinhaaseucuidadoumaparte do cafezal com um determinado número de cafeeiros,correspondenteaonúmerodetrabalhadoresdacasa,cabendo-lherealizar

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as diversas carpas anuais, destinadas amanter o cafezal livre das ervasdaninhas.Paracadamilpésdecafétratadosafamíliarecebiaumaquantiadeterminadadedinheiro.Alémdisso,noperíododesafra,amesmafamíliarecebia,porsorteio,umapartedocafezalparacolherocafé, cabendo-lheoutro pagamento por quantidade de café colhido. Além disso, o colonotantopodiatrabalharparaoutrocolonoouparaa fazenda,medianteumadiária, como podia assalariar o trabalho de outra pessoa, mesmo colono,para auxiliá-lo nos seus serviços. O colono estava ainda sujeito adeterminado número de dias de trabalho gratuito para a fazenda,destinado à reparação de cercas, caminhos, controle de incêndios etc.Finalmente,afamíliadocolonorecebiaautorizaçãoparaplantaralimentosna parcela do cafezal que estivesse ao seu cuidado, como foi dito,produzindo assim, diretamente, a parte principal dos meios de vidanecessários ao seu sustento, e de sua família, e à sua reprodução comoforçadetrabalhoda fazenda.Quandonãohaviacondiçõespararealizaroplantio de alimentos nomeio do cafezal, o fazendeiro cedia um terreno àparte,geralmentenasregiõesbaixasdafazenda,paraquecadafamíliadecolonos izesse a sua roça. Alémdisso, a fazenda cedia casa demorada equintalparaplantiodehortasdomésticas a cada famíliade colonos, alémde autorizar que o colonomantivesse no pasto do fazendeiro umou doisanimaisdetrabalhooudemontaria.

Tratava-se, portanto, de uma relação social muito complexa quediferençava claramente o colono do operário da fábrica, já que eramdiferentesascondiçõessociaisdecadaumeoentendimentoquecadaumpodia ter da respectiva situação social. No meu modo de ver, é por issomesmo que eram proporcionalmente escassos os movimentos grevistasnasfazendasenãoháindíciosdequeostrabalhadoresdocafétenhamsejuntado aos seus colegas das fábricas nas greves que izeram, ou vice-versa.

O caráter peculiar das relações de trabalho nas fazendas de café temsido alcançado por interpretações que, na verdade, simpli icam a suanatureza e as suas determinações históricas. Uma delas vê no regime decolonato relações salariais disfarçadas." Trata-se, na verdade, de umarti ício semântico já que, concretamente, no colonato o trabalhadorproduzia diretamente a parte principal dos seusmeios de vida e recebia

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um ganho complementar em dinheiro. Nesse sentido, essa relação social,emborafosserelaçãodeumtrabalhadorexpropriado,nãosedeterminavapela mediação do mercado, senão de modo incompleto, subtraindo aexistência do colono da mediação representada pelo processo decaracterístico de reprodução do capital. Essa mediação é determinaçãonecessária para que as relações de produção se de inam como relaçõescapitalistase,portanto,salariais.

Outra tendência mais recente, sugerindo-se a si mesma singular, é naverdade mera extensão daquela outra. É a que vê no colono umassalariado temporário, isto é, um trabalhador que se de inia comoassalariadounicamentepelotempodetrabalhosujeitoàremuneraçãoemdinheiro.'2 Essa concepção é produto de um arti ício positivista eclassi icatório que segmenta a totalidade da relação social e privilegiaarbitrariamenteumdosseusaspectos,queéodopagamentodotratoedacolheitade caféemdinheiro.Toma-se,pois, comoreferênciaoabstrato, enãooconcretodarelaçãodocolonocomofazendeiro,toma-seapartepelotodoparaenquadraroregimedecolonatonumesquematismoteóricoquetraria o colono para o universo político do operário da fábrica,simpli icando a explicação do processo social, mas des igurando-o aomesmotempo.

Averdadeéqueoregimedecolonatonasfazendasdecaféseconstituiunum regime de relações não capitalistas de produção engendradas ereproduzidas comomomento do próprio processo do capital. Portanto, aquestão metodológica da mediação das formas sociais na determinaçãohistórica dessa relação de produção se propõe mais densamente na suamaior e mais problemática visibilidade, a que não há nas relações maisde inidasemaissimples,comoadaindústriacomooperário.Éprecisoterem conta que o desenvolvimento das relações capitalistas num ramo ounum setor da produção já cria as condições para que a reproduçãocapitalista do capital aí ocorra, realizando como excedente capitalista osexcedentesgeradosemrelaçõesnãocapitalistas.Aexpansãodocafezal,areprodução ampliada da economia do café, tinha predominantemente acaracterísticadeumareproduçãoextensiva.Eladependiabasicamentedeuma espécie de pagamento de renda territorial. A abertura de umafazenda, a plantação do cafezal, era feita por empreitada. O empreiteiro

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derrubavaamata,queimava-aelimpavaoterreno,plantandoasmudasousementesdecaféquelheeramentreguespelofazendeiro.Tinha,porém,oconsentimentodoproprietárioparaplantarmilho, feijãoeoutrasplantas,entre as linhas de café, durante os quatro anos da formação do cafezal.Comfrequência,cabendo-lheaindaacolheitadocaféquefosseproduzidonesse período, geralmente no quarto ano. Em seguida, entregava o caféformadoaofazendeiro.Nessaépocarecebiaumaquantiainsigni icantededinheirocorrespondenteacadapédecaféformado.Emboranaaparênciao fazendeiropagasseo trabalhodoempreiteiro comaautorizaçãoparaoplantio de alimentos, na verdade isso ocultava o fato básico de que era otrabalhador quem pagava ao fazendeiro, em cafezal, o direito de plantaralimentos em suas terras. O cafezal era, portanto, formado mediante acobrança de uma renda da terra ao lavrador. Nesse sentido é que umgrande fazendeiro de cana e profundo conhecedor da economia do cafépodia dizer que a formação de uma fazenda de café nada custava aofazendeiro.13

Por issomesmoéquea riquezageradana fazendade café luía comopróprio caféparaoutros setoresdaeconomia.Aproduçãonão capitalistadocapitalnaeconomiadocaféalimentavaesesubordinavaàreproduçãocapitalistadessemesmocapital,oquesedeunaindústriaquenasceueseexpandiuemSãoPaulo juntamente como café e o trabalho livre, emboapartetrabalhodoimigranteitaliano.

Oimigranteeaindústria

É muito difundida a ideia de que a burguesia industrial brasileira,particularmente em São Paulo, era, nas origens, constituída sobretudo deimigrantes-osimigrantesteriaminiciadoaindustrializaçãoemSãoPaulo.É igualmente difundida a ideia de que esses imigrantes tiveram origemmodesta e graças à perseverança no trabalho tornaram-se ricos epoderosos. No primeiro caso, chegouse mesmo a supor que os grandesfazendeiros de café optaram exclusivamente pelos negócios agrícolas,deixando o terreno livre para os imigrantes que, enriquecendo-se notrabalho,pudessemsededicaràindústria.Equandosepensanoimigranteindustrial, pensa-se de preferência no imigrante italiano. Um deles, ofuturo conde Francisco Matarazzo, que chegou ao Brasil em 1881,

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procedente de Salerno, tornou-se uma espécie de símbolo e prova dasduas ideias - os primeiros industriais brasileiros seriam imigrantes eimigrantespobres.

Nenhumadasduasideiasécorreta.

Oprocessoda industrializaçãoemSãoPauloémais complicadodoquegeralmentese imagina.Teve,comoveremos,umaparticipação importantedosimigrantesitalianos,masnãosódeles-tambémdeimigrantesalemãeseportugueses,alémdosprópriosbrasileiros,que foramos iniciadoresdaatividade industrial na região. Ao se estabelecerem as grandes correntesmigratórias para São Paulo, o imigrante italiano que se dedicaria àsatividades empresariais já encontrou o processo de industrializaçãoiniciado.

A ideia, por outro lado, de que esses industriais eram imigrantes epobres vem em grande parte do sentido mais difundido da palavraimigrante entre os descendentes dos próprios imigrantes. Ainda hojemuitas pessoas de inem como imigrante aquele que chegou ao Brasilatravésda imigração subvencionada, isto é, o imigrantepobre, o quenãotinhanada.Écomumouvir-sedevelhosimigrantes,ouseusdescendentesmais antigos, que "fulano veio de imigrante, veio com uma mão atrás eoutranafrente".Istoé,veiosemnada,praticamentenu,nosentidoforçadodapalavra,despojado.Oquequerdizerqueasoutraspessoasdeorigemestrangeira não são de inidas, popularmente, como imigrantes. Maisadiante, veremos que essa ideia compõe a ideologia que presidiu ainstauração das relações de trabalho entre industriais e operários nessafasedaindustrializaçãobrasileira.

Embora seja crença mais ou menos generalizada que o imigrante,particularmente o italiano, foi uma espécie de demiurgo daindustrialização,averdadeéqueoimigrantequesetornouempresáriojáse defrontou com um quadro de relações e oportunidades econômicaspraticamente de inido. É preciso não se esquecer de que ele veio para oBrasil pela mão e pelo interesse de uma burguesia agrária e comercial,aliada ao comércio e aos bancos internacionais. Seu interrelacionamentocaracterizava o que se de iniu como economia colonial - uma economia

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exportadoradeprodutosagropecuárioseimportadorademanufaturados.14 Um autor de iniu as transformações dessa época de modo claro,dizendo que elas ocorreram basicamente para fortalecer e não paramodificaraestruturadasrelaçõeseconômicasdetipocolonial.15

Durante a época que interessa para a nossa análise, os diferentes"lugares" na estrutura econômica icaram de inidos de modo bastanteclaro. Na agricultura, a produção do café, o principal artigo da economiabrasileira, estava nas mãos de uma larga e forte categoria de grandesproprietários de terra, cujos elementos mais conspícuos, os chamadosbarões do café, tinham também uma velha tradição na agricultura e nocomércio.Muitos dosmais importantes fazendeiros de café pertenciam afamílias que desde a segunda metade do século xviii eram grandesproprietáriosdeterra,plantadoresdecana-de-açúcar,comoeraocasodoBarãode Iguape,AntôniodaSilvaPrado.`Nocomeçodoséculoxixváriasdessas famíliasestavamenvolvidasematividadescomerciais, chegaramaorganizarumbancoeatécriaramcondiçõesparaoaparecimentodeumaindústriadetecidos.Foramelasqueseenvolveramnaslutaspolíticasqueculminaram com a proclamação da Independência do país em São Paulo,em 1822. Esses negociantes, antes disso, foram não poucas vezesdiscriminados e alijados dos negócios públicos pelos capitães-generais dacapitania exatamente porque eram comerciantes. Foi dessa camada dapopulação, igualmente, que se originou a Faculdade de Direito de SãoPaulo, pouco depois da Independência, e que teve grande in luência naformaçãodosempresáriospaulistasnoséculoxixenasprimeirasdécadasdoséculoxx.

No último quartel do século xix, essa mesma burguesia agrário-comercial dedicou uma parte dos seus capitais e do seu interesse àconstrução das várias estradas de ferro de São Paulo que se seguiram àimplantaçãodaSãoPauloRailwaypelosinglesesem1867,umaespéciedelinha-tronco que recolhia as cargas, das demais, destinadas ao porto deSantosoudeleprocedentes.17Tambémelafezinvestimentosnaindústriadetecidos,comoéocasodaTecelagemAnhaia,emItu,edaindústriatêxtilmontadapelomajorDiogoAntoniodeBarrosna cidadedeSãoPaulo, em1877. Ela se interessou ainda por outras atividades industriais no imdoséculoxrxenocomeçodoséculoxx,tantonacapitalquantonointerior?

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Os interesses estrangeiros tinham no Brasil uma presença bemlocalizada. Eles se dirigiam basicamente às atividades bancárias, e osbancos ingleses, seguidos dos alemães, eram os mais fortes. Serviamprincipalmente de apoio ao comércio de importação e de exportação.Tinham,portanto,inteirocontroledosvínculosdaeconomiabrasileiracomo exterior. Eram esses bancos que, até quase o inal do século XIX,custeavama comercializaçãode safras de café emSãoPaulo, de charquenoRioGrandedoSul,deaçúcarnoNordesteedeborrachanaAmazônia.Frequentemente, os mesmos capitais empregados na comercialização dasafra de um produto eram remanejados para outras regiões a im depermitir a comercialização da safra de outro produto, dada a nãocoincidênciadesazonalidades.'9

Asempresasestrangeiras interessavam-se, também,nessaépoca,pelosserviços de transporte onde fossem rentáveis. Os ingleses izeraminvestimentos em ferrovias em várias regiões brasileiras. Em São Paulointeressaram-se pela construção da São Paulo Railway, uma ferrovia doporto de Santos até Jundiaí, praticamente na entrada da região cafeeira.Essa ferrovia teve uma importância estratégica na circulação tanto dasmercadorias exportadas, fundamentalmente o café, quanto na dasmercadorias importadas, principalmente manufaturados ou matérias-primas. Já as rami icações dessa linha-tronco foram construídas porempresasconstituídaspelosprópriosfazendeirosenegociantes.Mesmoaíos bancos estrangeiros, particularmente os ingleses, tiveram um papelessencial, já que os equipamentos eram importados sobretudo daInglaterra.Assimforamconstruídasferroviasimportantes,comoaPaulistaquecomeçavanooestevelho;aMogiana,queentravanooestenovo;aSãoPaulo-RiodeJaneiro,queatravessavaoValedoParaíba,aprimeiraregiãopaulistadecafé,chegandoatéCachoeiraparaentroncarcomaestradadeferroPedroir,quelevavaatéacapitaldoImpério;aSorocabana,queiaemdireçãoaoSuleàregiãoalgodoeira;alémdeoutrasferroviassubsidiáriasemenores.

A importação estava nas mãos de estrangeiros, mas nãonecessariamente de empresas estrangeiras. Eram imigrantes querecebiamarepresentaçãodegrandescasasexportadorasemseuspaísesde origem, principalmente na Alemanha, na França, em Portugal.` Era

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comumosgrandescomerciantesdapraçadeSantosreceberemtambémaincumbência da representação consular de seus países de origem ou depaíses com os quais os seus mantivessem boas relações comerciais ediplomáticas. Os fundadores de um dos mais importantes gruposeconômicosbrasileiros,Zerrener&Bülow,quese tornaramproprietáriosdaCia.AntárticaPaulista,tiveramessetipodeorigem.Essescomerciantestinham relações muito sólidas com os bancos estrangeiros, através dosquais realizavam seus negócios, mas suas empresas eram empresasbrasileiras,enãoestrangeiras.EleseramimigrantesradicadosnoBrasil.

Osnegóciosdeexportaçãodecaféestavamdivididosentrecompanhiasestrangeiras, que cuidavam da exportação propriamente dita, e casascomissárias, pertencentes a brasileiros, que faziam a conexão com osfazendeiros. Chegou a existir, nesses tempos, uma camada intermediáriadeensacadoresdecafé,quefaziammisturas,os"blends",pararepassá-lasaos exportadores. Nos ins do século xix, os exportadores começaram aprocurarocafédiretamentenasfazendas,rompendoocírculoderelaçõesque ligavamo fazendeiroà casa comissária.Esta,normalmente, recebiaocafé diretamente da fazenda, que era sua cliente exclusiva e com a qualmantinhaumaconta-corrente.O comissário cuidavadeamplos interessesdo fazendeiro. Procurava vender o café no momento de alta de preços,faziacomprasemnomedofazendeiro,faziaempréstimos,pagavadespesasdo fazendeiro e até supervisionava e provia as despesas de ilhos eparentes do fazendeiro hospedados na cidade, em viagens de estudo ounegócio. Ao comissário cabia unicamente uma porcentagem dos negóciosrealizados.` Nas primeiras décadas do século xx, as casas comissáriasentraramemdecadência.Enãoforampoucasascasasdeexportaçãoquedisputaram espaço nos negócios de café, na região do porto, organizadaspor fazendeiros de antigas famílias. Justamente esses negociantesbrasileiros é que tinham o controle da mais importante associação declassedaregiãocafeeira,queeraaAssociaçãoComercialdeSantos.22

Traçandoumquadrobastante sumário, podemos ver que as empresasestrangeiras dedicaram-se de preferência aos negócios bancários,ferroviáriosedeexportação.Negociantesdeorigemestrangeira,surgidosainda na fase da escravidão, localizados no porto de Santos a partir dapassagemdasculturasdecafédaregiãodoValedoParaíbaparaaregião

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centraldaprovínciadeSãoPaulo,aregiãodeCampinas,aqueveioaserooeste velho, dedicaram-se de preferência aos negócios de importação.Capitalistasbrasileirosdedicaram-sefundamentalmenteàlavouradecafé,aos negócios ferroviários, aos negócios bancários e ao comércio de café.Esse era o quadro da situação quando começou a imigração em massaparaoBrasil,maciçamenteimigraçãoitaliana,noperíodode1886/1891.

Énesseperíodoqueaindústriacomeçaatornar-sesigni icativa.Pode-sedizer que a década de 1890 é a década da primeira grande expansãoindustrialemSãoPaulo.Indústriasjáhaviamcomeçadoaseestabelecernaregião a partir de 1870. Um relatório de 1886 mencionava 12"manufaturas de algodão" na província, que contavam 1.200 teares eempregavam cerca de 1.600 operários, fabricando 12milhões demetrosde pano. Eram ainda mencionadas fábricas de móveis, de produtosalimentícios, de fósforos, de chapéus, de papel e outras de menorimportância.Haviaainda,nointerior,quatrograndesengenhoscentraisdeaçúcar.23

A indústria teve grande importância na história do imigrante, eparticularmente na do imigrante italiano, no Brasil, porque foipraticamente o único espaço econômico relativamente aberto que eleencontroupela frente, durante certo tempo.A indústria foi um setor quepraticamente nasceu e cresceu com o imigrante, apesar da atividadeindustrial inicial já instalada.Aocontráriodoquepreconizavamosvelhosfazendeiros, que haviam promovido a substituição do escravo peloimigrante,estetevemuitadi iculdadeparatornar-seproprietáriodeterra.No ano agrícola de 1904/1905 havia em todo o estado de São Pauloapenas 8.392 proprietários de terras estrangeiros - 14,8% daspropriedades - às quais correspondiam 9,5% da área. Até essa datahaviam entrado em São Paulo mais de 1 milhão e 200 mil imigrantesestrangeiros. Ainda que muitos tivessem retornado a seu país oureemigrado para a Argentina ou o Uruguai, aquele número é muitopequeno.24Dototaldeproprietáriosagrícolasestrangeiros,apenas5.197eram italianos, quando nessa época os italianos ainda eram a imensamaioriadosimigrantesentradosemSãoPaulo.25

As atividades empresariais urbanas, ainda não ocupadas pelos

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investidorestradicionaisequecomeçavamanascerjuntamentecomo imda escravidão e o incremento da imigração italiana, eram a indústria, ocomércio na capital e nas cidades do interior e as atividades bancáriasvinculadas à nova realidade econômica baseada no trabalho livre. Foi aelasqueos imigrantes sededicaramdepreferência, emboranão tenhamsidoelesosúnicosinteressadoseminvestirnelas.

Costuma-se dizer que o desenvolvimento industrial brasileiro se deunum processo de substituição de importações. A questão, no entanto,meparecebemmais complicada.As importaçõesdemanufaturados, nanovaondadaeconomiacafeeira,propuseram-sequasequesimultaneamenteaomovimentodesuaprópriasubstituiçãopelaproduçãointerna.A indústriabrasileiranasceuecresceunaquelesanosparaatenderànovaecrescentedemanda de produtosmanufaturados que surgiu com as transformaçõessociais e econômicas da época. Não só surgiu um mercado de bens deconsumo,pobredevidoaocaráterespecí icodasrelaçõesdetrabalhonasfazendas de café, só parcialmente realizadas através de dinheiro, comosurgiu um mercado de bens de capital relacionado até mesmo comtransformações técnicas ocorridas no bene iciamento do café no interiorda própria fazenda.26 A indústria têxtil, supostamente voltada de modoexclusivo para a produção de tecidos para vestuário, produzia também esigni icativamente equipamentos para as fazendas de café - não apenassacos de aniagem, mas também grandes lençóis de algodão que eramcolocados sob o cafeeiro na hora da colheita para evitar que os grãos decafé se misturassem com terrões, gravetos e outras impurezas que lhedepreciavam a qualidade e o preço. Num certo sentido, a indústriabrasileira nasceu concorrendo antecipadamente comas importações pelomercadointernoqueseexpandiajánaescravidãocomaextensaexpansãodo café e mais ainda com a difusão do trabalho livre. O Brasil tinha asvantagens comparativas da proximidade dos mercados, da proximidadedas fontes dematéria-prima, comoo algodão para a indústria têxtil, e damãodeobrabarata.

A partir dos anos 1880, a importação de máquinas da Grã-Bretanha,paíscomoqualoBrasilmantinhaamaiorpartedoseucomércio,duplicaemrelaçãoaosanosanteriores,eaimportaçãodebensdecapitalsobreaimportação de outros bens passa de 26,9% em1880/1884, para 41, 8%

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em1905/1909.27Anovademandadeprodutosmanufaturadospassavaaseratendidadeummodonovo,atravésdaproduçãointerna.Comisso,osbancos estrangeiros tradicionaismantinham e reforçavam o seu papel jáconsagrado de inanciadores das importações brasileiras, não vindo aocasosefossemtecidosoumáquinas.

Um outro dado da situação, que não tem sido levado em conta nasanálisessobreaindustrializaçãonoBrasil,refere-seàproduçãoartesanal,amplamente difundida em toda a região paulista e no país. Em 1873,quandocomeçamaocorrergrandestransformaçõeseconômicaseurbanasna cidade de São Paulo e o café passa a ser signi icativo na regiãotributária do porto de Santos, havia na província 2.829 estabelecimentosde artesãos de metais, madeiras, tecidos etc. Havia, também, 778estabelecimentos industriais, desde as fábricas movidas a vapor, asmovidas a água, até as movidas por força humana. Fabricavam açúcar,aguardente, descaroçavam algodão, faziam chapéus, cigarros, materialcerâmico etc.28 Não se tratava, ainda, com uma ou outra exceção, deestabelecimentosorganizadossegundoopadrãodagrandeindústria,maseraaproduçãomanufatureiraquetinhaeteriaaindadurantelongotempoumaamplaimportâncianomercado.

Ainda em 1903, um relatório governamental mencionava o signi icadoque tinha, então, a produção de açúcar em pequenos engenhos e aproduçãodetecidosemtearesisolados.Haviaengenhocasqueproduziamde 100 a 200 kg de açúcar anualmente. Em 1900, a Secretaria daAgriculturaacusavaaexistênciade2.494engenhocasemSãoPaulo,sendo2.259 para aguardente, 123 para açúcar e 72 para rapadura, o querepresentavaaproduçãode57mil toneladasdeaçúcaranuais,enquantoos grandes e modernos engenhos centrais não produziam mais do quenove mil toneladas.29 No mesmo relatório é mencionado "o grandenúmerodetearestrabalhandonointerior",tearesamão.30Algunsdessesteares já estavam agrupados em pequeno número, sendo relacionadoscasos de três e de dez. Mesmo a grande indústria chegou a subordinaressa produção, como aconteceu com uma grande empresa de capitalitaliano, a Dell'Acqua, sediada em São Roque, onde pequenosestabelecimentoscompoucostearesdessetipopassarama"funcionarporconta' da grande indústria.31 Nessa época, já havia grandes tecelagens

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ocupandootrabalhodemilharesdeoperários.Umafunçãoimportantedaindustrialização brasileira no século xix foi justamente a de substituir aprodução artesanal e doméstica interna em vários setores de produção.Aindaem1901,oautordoprimeirorelatórioimportantesobreaindústriaemSãoPaulodestacavaasváriasmodalidadesdeconcorrênciaentreessapequenaproduçãoeagrandeindústriarecém-surgida.31

Aentradadoimigranteestrangeiro,principalmenteoimigranteitaliano,nosgrandesnegóciossedeuprincipalmentenosanos1890,crescendonosanos seguintes. Ou seja, as grandes empresas de imigrantes italianossurgiram aomesmo tempo que se deu a entradamais numerosa dessesimigrantes no país, que foi nessamesma década. Autores têm ressaltadomuito o envolvimento do imigrante italiano na formação de empresasindustriais. Ele se envolveu, no entanto, em empresas comerciais e,também, signi icativamente, em empresas bancárias. É bem verdade queosnegóciosbancáriosnãoeramexclusivamentebancáriose icaevidente,naanálisedosdocumentosrespectivos,queosbancoseramfundadospornegociantes e industriais. Entre 1891 e 1905 foram registrados na JuntaComercialdeSãoPaulo42novosbancosconstituídosnoperíodo,alémdeunspoucos,maspoderosos,bancosjáexistentes.Dessesnovosbancos,22eram de propriedade de imigrantes italianos radicados no Brasil. Entre1899 e 1905 foram fundados 23 novos bancos, dos quais 22 eram osreferidos bancos de imigrantes italianos. Além disso, havia acionistasitalianos empelomenos trêsbancosdemaioriabrasileira, doisdosquaispoderosos estabelecimentosde famílias tradicionais de SãoPaulo.33Essefoi um período de crise econômica. Entre 1891 e 1892, houve oEncilhamento, como icou conhecido esse período de forte especulaçãoinanceira e econômica, quando numerosas empresas foram organizadasnovazio,falindoemseguida.Em1898,começaumperíododequatroanosderecessão.Umbancodissolvidoem1901justi icavaoencerramentodasatividadesdevidoà"di ícilcrisequeatravessaocomércioatualmente".Osanos de 1903 e 1904 foram anos de crise igualmente grave que atingiuprofundamente tantobancospoderososquantopequenos, levandoalgunsaencerraremasatividadeseoutrosareduziremoseucapitalemprejuízodosacionistas.

Algunsdosbancosdeimigrantesitalianosnegociavamcomcâmbio.Suas

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atividades destinavam-se em grande parte a canalizar as economias,sobretudo pequenas economias, dosmilhares de imigrantes italianos queviviamemSãoPaulo.Muitosimigrantespreferiamnãoentregarodinheirodiretamente a um banco, depositando-o nas mãos de algum pequenonegociante patrício.34 Este, por sua vez, repassava o dinheiro paranegociantesmaiores, seus fornecedores,ouparaosbancosde imigrantesitalianos.Váriosdessesbancosdeimigrantesseestabeleceramnointeriorde São Paulo, junto às grandes concentrações de trabalhadores italianos.Esses bancos eram, também, o canal para remessa de economias para aItália,paraosparentesdosqueimigraram,fenômenoimportantenoBrasil,embora não tivesse alcançado a amplitude que teve entre imigrantesitalianos na Argentina e nos Estados Unidos da América. Issoprovavelmente porque apesar do retorno de muitos imigrantes ou dareemigração,amaioriadelesveioparaoBrasilnascondiçõesjáindicadasda imigração subvencionada, acompanhados da família, sem muitascondições para agir como imigrantes temporários.Diferente, portanto, daimigração "golondrina", na Argentina, dos que imigravam para trabalharnacolheitadotrigo, indaaqualretornavamàcondiçãocamponesanopaísdeorigem.

Imigrantes italianos organizaram pelo menos dois grandes bancos emSãoPaulo.Umdelesemmaiode1900,comumcapitaldedoismilcontos,reunindo 115 acionistas, foi o Banco Commerciale Italiano di São Paulo.Seusprincipaisacionistaseramindustriais italianos ligadosà indústriadealimentação: Puglisi (moinho de trigo), Falchi (chocolates e confeitos,tecidos,cerâmica),Matarazzo(moinhodetrigo,comércio)ePinottiGamba(moinho de trigo). Mais tarde, em 1905,Matarazzo e Pinotti Gamba, quehaviamseafastadodoBancoCommercialeItalianodiSãoPaulo, fundamoBanco Italiano del Brasile. Nessa ocasião icou clara a importância dasligações entre grandes empresários italianos da capital e os pequenosnegociantesdointerior.OsMatarazzo,queeramosprincipaisacionistasdonovo banco, representaram 52 dos 195 acionistas; 31% dos acionistaseramdointerior.Em1899,umaoutragrande irmaindustrial,deitalianosRegoli, Crespi & Comp. - dedicada à indústria de tecidos, funda a CasaBancáriaeIndustrial.35

Enquantoos grandesbancosde imigrantes italianos se caracterizavam,

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assim como os pequenos, pela identi icação de origem nacional entre osseus acionistas, já as indústrias de propriedade de imigrantes italianoseram predominantemente familiares e sobretudo de família nuclear. Adinâmicadeumgrandegrupoeconômico,comoodeFranciscoMatarazzo,semprefoinosentidodefazerdaempresaumaempresafamiliar.Houveum momento em que Matarazzo se associou aos seus irmãos, mas essaassociação foi quase que inteiramente liquidada em 1911, quando aempresa se reorganizouapenasem tornodeMatarazzoe seus ilhos.Umirmão, André, que se manteve associado a ele, foi alijado alguns anosdepoisparaconstituirsuaprópriaempresa.Dogrupoeconômicooriginal,surgirampelomenostrêsgrandesgruposeconômicos:odelepróprio,odeseu sobrinho Cicillo Matarazzo (Francisco Matarazzo Sobrinho, ilho deAndré)eodeseuneto,FranciscoMatarazzoPignatari (oBabyPignatari).RodolfoCrespiacaboucentralizandoasuaempresadetecidosquandoseusogro decidiu retirar-se da irma Regoli, Crespi & Comp. e voltar para aItália.

Entretanto,ocritériofamilísticonãoeraumcritériofechadonaformaçãode indústriasde imigrantes italianos.QuandoPuglisiCarbone fundoua S.A. Moinho Santista, em outubro de 1905, havia uma participaçãosigni icativadenãoparentesedenãoitalianos,quecontrolavam38%dasações,asrestantesdivididasentreosdiferentesmembrosdafamília.Masaregramesmoeraadaempresa industrial familiarou, então, a associaçãocompatrícios.

Em1901, jáhaviapelomenos36 indústriasde imigrantes italianosemSãoPaulo,amaiorianaCapital,praticamentetodasorganizadassegundoopadrão da grande indústria, reunindo mais de 3.500 operários. Semcontar,éevidente,pequenaso icinasdetrabalhadoresitalianosautônomosespalhadasportodooestado.Apenas4daquelasforamfundadasantesde1880;10foram-noentre1881e1890;20surgiramentre1891e1900.36Ao contrário dos descendentes de alemães, que preferiram dedicar-se àindústriamecânica emetalúrgica, os italianos preferiram, nessa época, aindústriadebensdeconsumo,principalmentetecidos,chapéus,calçadosealimentos.

Há várias indicações de que essas indústrias foram organizadas com

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base em estímulos de bancos estrangeiros, inclusive bancos italianosinteressados em incentivar a exportação de manufaturados de seu país.Quando Francisco Matarazzo instalou o seu grande moinho de trigo, em1900, no bairro do Brás, com equipamento inglês, foi em grande parteporque, sendo importador de farinha de trigo, fora estimulado por umbancoinglêsaindustrializarotrigoaquimesmo,oqueolevoumaistardeaproduzirsacariaparaoseuprópriousonaTecelagemMariângela.

Ésigni icativoquedosgrandesindustriaisdeSãoPaulo,vindosdaItália,apenas dois com certeza tenham sido imigrantes pobres: DanteRamenzoni,umtrabalhadorsocialistaquesetornouprodutordechapéus,e Nicolau Scarpa, industrial têxtil.37 Os demais já chegaram aqui comrecursos. Não eram imigrantes pobres que, através do trabalho árduo,tenham adquirido independência e se tornado grandes industriais. Osdados acima indicados, sobre o período de organização de bancos eindústriasdepropriedadede imigrantes italianos, sãobem indicativosdeque a acumulação individual de capital não pode ter se processado numperíodo tão curto com base estritamente numa obstinada dedicação aotrabalho.Entreoempresáriodeorigemitalianaeotrabalhadordeorigemitaliana havia um abismo grande desde o princípio, mal disfarçado pelaidentidadedeorigemnacionalquesupostamenteosunia.

Asobredeterminaçãodaclassepelanacionalidade

Um viajante, chegando à cidade em 1900, depois de trinta anos deausência, exclamava que "era então São Paulo uma cidade puramentepaulista, hoje é uma cidade italiana!"38 Entre 1886 e 1893, a populaçãoestrangeirapassoude12.085pessoaspara70.978,de25,9%para54,5%da população da cidade.39 Os estrangeiros eram predominantementetrabalhadores e constituíam maioria nos serviços domésticos, nasatividadesmanufatureiras, na produção artesanal, nos transportes e nasatividades comerciais. Em 1893, os operários e os artesãos estrangeirossomavamjuntosmaisde12miltrabalhadores,oquecorrespondiaa82%dostrabalhadoresdessesramosindustriais.40

Nessa época, quando se falava em operário, falava-se no italiano. Em1900, no conjunto do estado de São Paulo, 81% dos trabalhadores

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industriaiseramitalianos.41Numestudode1901,relativoprincipalmenteàs indústriasdacapital,a impressãoeradeque90%dosoperárioseramestrangeirosequasequetotalmenteitalianos.42OsitalianosdacidadedeSãoPaulo, em1897, superavamosbrasileirosnaproporçãodedoisparaum.43 Na pesquisa sobre a composição da força de trabalho de 29indústriastêxteis,realizadaem1911,abrangendoprincipalmentefábricasda capital, foram encontrados 10.204 operários. Desses, 59,2% eramitalianoseapenas18,1%erambrasileiros.Numaúnica fábricaemqueasindagações foram aprofundadas, de 112 operários brasileiros, 106 eramfilhosdeitalianos.44

Enquanto os operários de origem italiana constituíam a grande massados trabalhadores das fábricas e o icinas, nas empresas que BandeiraJuniorinvestigou,nomesmolevantamentoosindustriaisdeorigemitalianaconstituíam 25% do total. Esse é um dado de grande importância, pois éconcepção geralmente difundida a de que os grandes industriais de SãoPaulo eram majoritariamente italianos. A grande maioria dos imigrantesitalianos, no entanto, destinou-se e permaneceu longamente nas posiçõesinferiores da sociedade brasileira, como principal contingente da classetrabalhadora que nasciasob os auspícios daindustrialização propiciadapelocaféepelastransformaçõesnasrelaçõesdetrabalho.

Ser operário e ser italiano, nos insdo século xix e nasduasprimeirasdécadas do século xx, na cidade de São Paulo, era assumir duasidentidadesemcon lito.Ostrabalhadoresitalianos,espanhóis,portuguesese alemães, que eram praticamente a totalidade dos trabalhadoresindustriais, sempreen contravamna suaorigemnacionalumabarreira àplena manifestação da sua condição operária. Um jornal italiano de SãoPauloa irmava,em1907,quearazãodasdi iculdadesparaconstituiraquium partido socialista "consiste no espírito nacionalista, muito vivo entretodos os trabalhadores, que os impede de sentir mais profundamente asolidariedade de classe e dar-lhe prioridade a qualquer outraconsideração".45 As relações entre operários italianos e espanhóis nãoeramboas;eramparticularmentedi íceisentreitalianoseportugueses.Ospreconceitos eram fortes contra os brasileiros pobres, sobretudo emrelaçãoaonegro,recém-saídodaescravidão.41

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Emboraaclassedominanteclassi icasseatodososimigrantesvindosdaItália como italianos, havia na verdade fortes tensões e diferenças entreeles próprios. Havia diferenças dialetais, diferenças de costumes, dealimentação,atédegestos,quemotivavamdiscriminaçãoentreitalianosdediferentes regiões. Assim como portugueses e espanhóis procuraramagrupar-se, cada um em seu lado, em determinadas áreas da cidade, omesmo se deu com os diferentes grupos italianos: os calabresesconcentraram-se no bairro do Bexiga; os vênetos, em São Caetano e noBomRetiro; os bareses, noBrás.OsnapolitanosnaMooca.47Os italianosmeridionais eram depreciados pelos vênetos. E mesmo na Mooca, aindahoje, descendentes de italianos de diferentes regiões da Itália aindafrequentam e se concentram em diferentes igrejas católicas. Houveitalianos que foram compelidos a aprender a língua italiana, e não aportuguesa, quando melhoraram de condição e começaram a ter maiscontato com italianos ricos, para evitar o preconceito contra o uso dodialeto, um sinal claro de inferioridade social entre eles. Mas adiscriminaçãonãoenvolviaapenasalíngua,tambémosgestoseoprópriomodo de conceber as coisas eram observados, para neles colher indíciosdeestigma.48

Os militantes anarquistas e socialistas daquele tempo costumavamimputar a fragilidade política da classe operária local a essasdiferenciações regionalistas.49 Em vez de ver-se como trabalhadorexplorado, o operário via-se antes como um imigrante desta ou daquelaregiãodaItáliaeapartirdaícomoumsuperiorouuminferioremrelaçãoaoseupotencialcompanheirodeclassesocial.Essesectarismoregionalistachegavaamotivarpropensõescorporativascombasenãosónapro issão,mas também com base na origem regional, como indicam as associaçõesnasquaisessaspessoassecongregavam.

Averdade é queo imigrante vindoda Itália, geralmente analfabeto, deorigemcamponesa,semquali icaçãopro issional,50aochegaràcidadedeSão Paulo passava por um duplo processo: ele entrava na "comunidade"italiana e na classe operária. Sofria por isso uma dupla ressocialização.Aqui ele aprendia a seroperário e aprendia a ser italiano, umpoucoporantagonismo em relação aos não italianos.Umpesquisador observouqueem São Paulo o imigrante passou da fala dialetal para uma fala ítalo-

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brasileira,51naqual expressavaa sua identidadenacional.A identidadede italiano des igurava os contornos da situação de classe, forçava-o àsolidariedade, ainda que episódica, com o seu explorador, o seu patrãotambém italiano. O conde Matarazzo tinha uma das suas indústrias, aTecelagemMariângela,nomeiodeumquadriláteroderuasocupadaspormoradores procedentes de Polignano-a-Mare, na região de Bari, sul daItália, muitos dos quais, especialmente moças e menores, eram seusoperários." Esses bareses promoviam (e promovem até hoje) uma festaanual, como em sua terra, dedicada a São Viro Mártir. O conde e outrosimigrantes ricos faziam-se presentes à festa, procurando ostentar ealimentarumaidentidadeacimadasclasses.

Apesar da quase unânime a irmação de que a identidade nacional doimigranteitalianointerferia,eprejudicava,naconstruçãodasualealdadeàclasse operária, há alguns indícios de que o problema não era assim tãosimples. Numa certa época, desenvolveu-se entre os vidreiros de SãoPaulo,deorigemitaliana,o interessepelaorganizaçãodeumacorporaçãodevidreirositalianos.Assimcomoascorporaçõespré-capitalistas,tambémessa seria uma corporação fechada, cujos aprendizes seriam recrutadosentreos ilhosdosprópriosoperários.Amotivaçãoeradirigida contraosvidreiros de origem portuguesa. Os operários dessa nacionalidade eramdiscriminados porque dentre eles os patrões costumavam recrutar fura-greves.53

OcasodafestadeSãoViroMártir,dospolignanensesdobairrodoBrás,também é indicativo de que em determinadas condições a identidade declasse sobrepunha-se à identidade nacional. No início, aí pelo começo doséculoxx,afestaerarealizadaemprivadonascasasdediferentesfamílias.Em 1905, um grupo de jornaleiros decidiu realizá-la num cortiço comofesta pública.A festa foi crescendo, até quehouveumadisputa em tornoda imagem do santo. Um italiano rico que retornava à Itália ofereceu aimagemquemandarabuscaremseupaísàIgrejadoBráspararealizaçãoda festa, vinculando, assim,os festejosdeSãoViroà Igreja institucional eao controle do pároco. A festa já não era realizada em torno da imagemutilizada nas primeiras vezes no cortiço. Houve desentendimento arespeito do assunto: de um lado, os polignanenses pobres (peixeiros,jornaleiros, garrafeiros), de outro, os polignanenses ricos (cerealistas da

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rua Santa Rosa). Em consequência foram fundadas duas associações dedevotos de São Viro, mas depois de uma disputa ardilosa os imigrantespobres conseguiram registrar a sua associação, ganhando com isso ocontroledafestaeproduzindooafastamentodosimigrantesricos.54

Haviaaindao fatodequeumsigni icativonúmerodegrandes fábricas,onde os operários italianos constituíam a imensa maioria dostrabalhadores, pertenciam a capitalistas brasileiros ou de outrasnacionalidadesquenão a italiana, o que impedia odesenvolvimentomaisacentuadodeumasolidariedadevertical.Dequalquermodo,nosgrandesmovimentosgrevistasde1901,1906,1907,1912,1917,os industriaisdeorigemitaliananãoforampoupados.ssNossaqueseincêndiospraticadosem fábricas e armazéns de imigrantes italianos, durante a Revolução de1924, em bairros com grande concentração de trabalhadores dessanacionalidade, como Mooca e Brás, estes não tiveram dúvida quanto aocaráter de vendera social que deram às pilhagens que izeram. Nãoporqueseconsiderassemexplorados,masporqueconsideravaminjustaedescabida a ostentação de riqueza por esses seus patrícios. Por isso, nãolutavamcontraaexploração,apenassaqueavam.

São várias, pois, as indicações de que a identidade nacional dotrabalhadorimigrantetinhaumae icácialimitadaparaconteredes igurarasuaidentidadedeclasse.Àmedidaqueascondiçõesdevidasetornavammais di íceis, especialmente devido a crises econômicas de conjuntura, alinhadeclassesemdúvidasedesenhavanaconsciênciadotrabalhadordeorigem italiana. As conjunturas críticas foram constantes a partir daaboliçãodaescravatura,devidoàsgrandesoscilaçõesnocomérciodocafé,re letindo-sediretamentenaeconomiadaindústria.Nogeral, foramessasmesmas crises que criaram medidas protecionistas diretas ou indiretas,que bene iciaram amplamente os industriais." No imediato, asconsequênciasdascriseseramtransferidasparaostrabalhadores,atravésdareduçãodesaláriosoudareduçãodashorasoudosdiasdetrabalho.Ésigni icativoquegrandesindustriaisbrasileirosouitalianos,comoAntonioda Silva Prado ou Francisco Matarazzo, Rodolfo Crespi e outros, tenhamsaído fortalecidos ao longo das vacilações da economia brasileira nesseperíodo. É possível que este ou aquele empresário tenha sido devoradopelas adversidades econômicas. Mas a indústria, no seu conjunto, saiu

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bene iciada. Os casos individuais também são indicativos de como aindústriasaiufortalecidadascrises.Umexemploéodafábricadetecidosde algodão, lã e meia de Regoli, Crespi & Comp., fundada em 1894.Segundoumatentativadeperiodizaçãodocicloeconômico, feitanaépoca,1888 e 1890 foi um período próspero; 1891 a 1892 foi um período decrise, conhecido como Encilhamento; 1893/1894 foi o período daliquidaçãodeempresas, incluindoofechamentodefábricas.57Portanto,aempresa de Rodolpho Crespi surgiu num períodomuito desfavorável daeconomia brasileira. Em 1901, já no meio de outra crise econômica, suafábricaocupavade280a300operários.58Doisanosdepois,eram400osoperários, entre homens e mulheres.59 Em 1911, já eram 1.305 osoperáriosdafábrica."

Osmilitantes anarquistas e socialistas da época costumavam atribuir afragilidade da classe operária em São Paulo a um outro fator, além dasobreposição da identidade nacional, oumesmo regional, à identidade declasse: a falta de raízes do operário italiano na sociedade brasileira, suaobsessãoderetornoàpátria,defazeraAméricaevoltarricoàItália.Comisso, o imigrante não aprofundava compromissos com as lutas dostrabalhadores, já que se considerava em permanência provisória noBrasil.'

Essa é uma questão que, no meu modo de ver, também deveria seraprofundada, para termos melhor ideia sobre as condições de vida e arealidadesocialdaclasseoperáriaemSãoPaulono inaldoséculoxixenocomeço do século xx. É um período em que se institui a tributação daprodução industrial brasileira, com o imposto de consumo como a novafonte de recursos para sustentação das despesas governamentais, que jánão podiam ser obtidos simplesmente através da tributação do comérciode importação. É também um período de baixa acentuada dos preços docafé,oqueserefletianomercadodosprodutosmanufaturados.12

Essa situação se re letiu de imediato no luxo de entradas e saídas deimigrantes.Entre1882e1914,45%dosimigrantesentradosemSãoPauloretomaramaseuspaísesoureemigraram.63Nocurtoperíodoentre1900e 1907, o retorno foi de 89,7%. Em1900, 1903, 1904, 1907, os retornosultrapassaram o número de imigrantes entrados em São Paulo.64 É

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importante ter em conta que esses retornos não eram necessariamentenem provavelmente retornos dos imigrantes entrados no mesmo ano.Todasasindicaçõessãonosentidodequehaviaumarenovaçãocíclicadaforça de trabalho imigrante, tanto nas fazendas de café, quanto nasindústrias, apesar dosmecanismos sociais de recriaçãode carências, quetinha como objetivo retardar ou impossibilitar a mobilidade dotrabalhador.

Aindaem1896,numdocumentodirigidoaoCongressodaInternacionalSocialista,militantesdiziamque:

A única vantagemde que goza o trabalhador em SãoPaulo étersempre trabalho.Aofertademãodeobraémenos importanteaquidoquenaEuropa.Oexércitodereservaproletárionãoatingeasmesmasdimensões.Entretanto,seaimigraçãoitalianacontinuarno mesmo ritmo atual, nós logo estaremos nos aproximando dasituação europeia, ou até mesmo ultrapassando-a, num futuropróximo.65

Mas a nova crise iniciada em 1898 alterou esse quadro favorável aostrabalhadores:

Acrisebastantelonga,queatravessamos,tem,comoénatural,atuadograndementesobreessaclasse,daíasgrevescontínuaseasdivergências entre os operários e o industrial; este não tendoconsumo para o que produz; aqueles não se conformando com areduçãodosalário,quemal lheschegaparaapertadasubsistência[...].66

AscondiçõesdevidadostrabalhadoresdeSãoPaulo,naquelaépoca,erampéssimas. 0 empresário BandeiraJúnior,váriasvezes citado, constatava em1901que:

Nenhum conforto tem o proletário nesta opulenta e formosaCapital. Os bairros em quemais se concentram por serem os quecontêmmaiornúmerodefábricas,sãoosdoBrásedoBomRetiro.Ascasassãoinfectas,asruas,naquasetotalidade,nãosãocalçadas,háfaltadeáguaparaosmaisnecessáriosmisteres,escassezdeluz

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edeesgotos.67

Nosbairros operários, era comumos trabalhadores imigrados viverememcondições idênticasàsdosnegros libertosdaescravidão,nos famososcortiços ou em porões. Os cortiços eram habitações coletivas,predecessores das favelas dos dias atuais. Pequenos cômodossuperlotados distribuíam-se ao longo de um corredor que desembocavanum pátio onde havia instalações únicas para todos os moradores -sanitário e tanque de lavar roupa. Era frequente que o mesmo cômodoservissedequartodedormirecozinha.68Háindíciosdequeocortiçoeraapenas o lugar demoradia do imigrante recém-chegado com sua família,mais tarde procurando deslocar-se para habitaçõesmelhores.69Mas, dequalquermodo,ocortiçoestevenocentrodavidadoimigranteitalianoemSãoPaulodurantelongosanos.

A vida da família operária não tinha o seu estigmamaior no cortiço. Aindústria de São Paulo nessa época notabilizou-se pela exploração dotrabalho infantil e pela exploração do trabalho da mulher. Bandeira Jr.dizia, em1901, que "é considerável onúmerodemenores, a contarde5anos, que seocupamemserviços fabris [...]".70Muito cedo, antesdos10anosdeidade,ascriançasjáeramencaminhadasàsfábricas,submetendo-seaumregimedetrabalhoemqueajornadaerasempresuperioraonzehoras de trabalho diárias. O inspetor do Departamento Estadual doTrabalho, que realizou o levantamento da situação dos trabalhadores naindústriatêxtil,em1911,diziadosoperáriosmenoresde12anosdeumadas fábricas visitadas: "Esqueléticos, raquíticos, alguns. O tempo detrabalhovariaparaassecçõesde11horasemeiaa12horasemeiapordia".71

Um antigo operário descreve em suas memórias as condições detrabalhodascriançasnas fábricasdevidro.72Nessas fábricas,o trabalhoainda estava organizado segundo o padrão damanufatura e a produçãoera inteiramente artesanal.73 Toda a relação no interior da fábrica sedesenvolvia entre o trabalhador adulto e o aprendiz criança. Tal relaçãoerapermeadapor uma espantosa violência ísica praticadapelo operáriocontraomenor.

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Aviolênciaexistiatambémemoutrosramosdaprodução,nãotendosidopoucasasmanifestaçõesoperáriasmotivadasporcastigos ísicosin ligidosaostrabalhadores.Emmaisdeumaocasiãohouvegrevesdemenores,nasvárias indústrias, contra maus tratos e mesmo contra saláriosexcessivamentebaixos.74

Pode-se dizer que a mulher recebia um salário de aproximadamente2/3 do salário do adulto, enquanto os menores tinham salários quevariavam entremetade do salário do adulto e 1/3 do salário damulher.Matarazzo chegou a ter máquinasmais baixas adaptadas unicamente aotrabalhoinfantil.

Muitosmilitantestinhampresentequeaexploraçãodotrabalhoinfantilerauma formadedesempregaro adulto, criandoassima superofertadeforçadetrabalho,comotécnicaparamanterossaláriosemnívelbaixo.

A exploração do trabalho do menor nos dá um quadro que ajuda aesclarecera situaçãodoconjuntodosoperáriosdeSãoPaulo,quenosdáuma ideia da intensidade da exploração do imigrante nas fábricas e naso icinas da cidade. O mais provável, portanto, é que a proporçãosigni icativa de retornos de imigrantes a seus países de origem ou dereemigraçãoparaaArgentinaouoUruguaidigarespeitoacolonosdecafémais do que a operários.71 As condições de vida dos trabalhadores dacidade não eram as melhores para custear essa nova migração. Aindaassim,háindicaçõesdequeoperáriostambémforamforçados,emfacedasituaçãoeconômicadesfavoráveledosubemprego,motivadopelareduçãodos dias de serviço nas indústrias, a engrossar o número de embarquespara fora do Brasil. Na crise de 1901, "muitos operários emigraram",assinala um observador da época.71 Mas não se trata de trabalhadoresque tenham feito a América, e sim daqueles que mais uma vez foramlevados à migração por força das condições de vida desfavoráveis dostrabalhadoresdeSãoPaulo.

Essas condições estão diretamente relacionadas comas característicasdaindústria e do processo de industrialização em São Paulo nessa época.Ao lado de grandes estabelecimentos, em que o processo de trabalhoestava organizado segundo o padrão da grande indústria,77 havia ainda

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umnúmeroenormedepequenaso icinas,como jávimos,organizadasembasesartesanais,emque,alémdoproprietárioesuafamília, trabalhavamescassos operários, de modo que na maioria dos casos o número dostrabalhadores não chegava a cinco. Amaior parte dos trabalhadores emgreve, em 1907, eram operários desses pequenos estabelecimentos.71 Émuito signi icativo que as lideranças operárias desse tempo fossem emgrande parte recrutadas entre artesãos independentes, donos depequenasoficinas.79

Váriasgrevesdocomeçodoséculoforammotivadaspelamodernizaçãode equipamentos e processos de trabalho, no sentido de implantação dopadrão da grande indústria. Já em 1893, num relatório enviado àInternacional Socialista, dizia-se que, "apesar da instabilidade da vidasocial,nãohaviaextremapobrezaatéagora,masamisériaeapenúriadotrabalhomecanizadocomeçamasefazersentir"."UmadasgrevescontraafábricadetecidosDell'Acqua,nasvizinhançasdeSãoPaulo,pertencenteàSocietá Italiana de Esportazione EnricoDell'Acqua, deMilão, foi realizadaem 1904 justamente em consequência de demissões provocadas portransformaçõesnaorganizaçãodaempresa.81Em1905,casosemelhanteocorreu no setor de calçados. A Fábrica Rocha, por ter importadomaquinismosaperfeiçoadosdoestrangeiro "quevieramsupriro trabalhode muitos operários", a pretexto de evitar dispensas promoveu umadiminuiçãodossalários.82Agrevede1906naCia.PaulistadeEstradasdeFerro teve motivo semelhante; por isso mesmo orientada diretamentecontraoengenheiroMonlevade,promotordasinovaçõesqueredundavamemprejuízodostrabalhadores.83

Mesmoquandonãohouvesseamodernizaçãodoprocessodetrabalhoea introduçãodopadrãoprodutivodagrandeindústria,haviariscorealdesubjugação da produção artesanal pela grande empresa. O iscal detrabalho, na pesquisa de 1911, encontrou um grande número de tearesmanuais instalados no recinto das fábricas, cujo trabalho eraextremamentepenoso, ao ladode equipamentomecânicomoderno.84Naindústriadesacariaederoupas feitas,umaparte importantedotrabalhoera realizado a domicílio, sob empreitada. Havia mesmo industriais queinstalavam teares manuais nas casas dos operários, como verdadeirasextensõesdagrandeempresaindustrial.

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OuniversodostrabalhadoresdeSãoPauloestava,pois,muitocentradonuma experiência de trabalho que era a do trabalho artesanal. Muitosoperáriossecundavamaexploraçãodeseus ilhosmenores,obrigando-osa se empregarem nas fábricas muito cedo, muitas vezes até paratrabalharemgratuitamente,paraqueaprendessemaarteouoo ício,duaspalavras anacrônicas no universo fabril, profundamente comprometidascomaconcepçãodetrabalhodascorporaçõesdeo ício.Porisso,osadultostoleravam em relação a seus ilhos já trabalhadores abusos queescandalizavam os militantes anarquistas e socialistas. Para eles, aspenosas condições da fábrica eram uma escola, com o que, aliás,concordavam os patrões: "têm esses menores a vantagem de adquirirhábitos de trabalho, aprendendo um o ício que lhes garante o futuro, aopassoquenãoaumentamafalangedosmenoresvagabundosqueinfestamestaCidade".85

O caráter artesanal do trabalho impregnou a consciência dostrabalhadores muito mais ativamente do que a sua identidade nacional.Estabeleceuentreelesumaespéciedecultoaotrabalhoquefoipercebidomuito mais facilmente pelos industriais de origem italiana do que pelosintelectuais anarquistas e socialistas. A concepção de trabalho queorganizavaainteligênciadoimigranteitalianoarespeitodassuasrelaçõesna fábrica erauma concepçãode trabalho autônomooude trabalhoque,embora subjugado pelo capital, tinha plena possibilidade de recuperar asuaautonomiadesdequeo trabalhadorpudesse libertar-seda fábrica.Otrabalho que se realiza na grande indústria não apresenta essacaracterística, pois é trabalho coletivo, cada trabalhador realizando umfragmentodoprocessodetrabalhoque,autonomamente,nãotemomenorsentido,poisnão libertao trabalhador. Jáo imigranteconcebiao trabalhocomo atividade artesanal, inteira, que abre a possibilidade da autonomiapara o operário. Acumular e sair da fábrica para organizar a pequenao icina com os irmãos ou com os ilhos; ou então preservar a pequenao icinaaqualquerpreçoequemsabetransformá-lanumagrandefábricafoiosonhodoimigrante.

Matarazzosimbolizouessesonho,oda libertaçãopelotrabalho.Legiõesde operários acreditavam que ele tinha levado uma vida de trabalhointenso, penoso, sofrido, cheio de privações iguais às que milhares de

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imigrantesitalianossofriamemSãoPaulo,paraacumularetornar-seoricoepoderosoindustrialquefoi.Essasuposiçãoerainteiramentefalsa,jáqueMatarazzo procedia de uma família de classe média e chegara ao Brasiltrazendo recursospara instalarse comonegociante.Mais tarde, graçasaoapoio inanceiro de banqueiros ingleses e graças às economias que seuspatríciospobresdepositavamemsuasmãosparaquefossemremetidasàItália,queeleusavatemporariamentecomocapitaldeterceiros,conseguiuampliar e dar grande impulso aos seus empreendimentos.Mesmo assim,elenãoousavadesmentira suposiçãopopular. Semprequesedirigiaaostrabalhadores, falando de simesmo, construía uma autobiogra ia da qualeramcuidadosamenteomitidasreferênciasàscondiçõesreaisdasuavindaparaoBrasil,demodoqueseusouvintesalimentassemasuposiçãodequeelehaviasidoumtrabalhadorquesetornarapatrão.

Para esses operários, a grande di iculdade em ver claramente aexploração que sofriam residia na convicção de que era o trabalho queproduziaariqueza,masnãoconseguiamperceberqueariquezaerafrutodo trabalho explorado do trabalhador assalariado. Como era muitosigni icativo o número de pequenas o icinas e indústrias de fundo dequintal em que o patrão era também um trabalhador, difundia-se aconcepçãodequeotrabalhoproduziaariqueza,ocapitaleraotrabalhodopróprio patrão, o trabalho árduo, submetido aos rigores de uma éticaascética que fazia do patrão o primeiro dos trabalhadores. A acumulaçãodo capital parecia, assim, um processo individual, decorrente do esforçopessoaldotrabalhadoresuafamília,garantidopelasvirtualidadesdeumamodalidadepré-capitalistadetrabalhoqueaindanãohaviasidodestruídapelo capital. Por isso, em vez de transformar-se num crítico radical docapitalista, o operário tendia a legitimar a acumulação individual dariqueza,comoprodutolegítimodotrabalhodoprópriopatrão.Aidentidadede italiano, que os trabalhadores também assumiam, estava na verdadevinculada a esse pressuposto. Conceber-se como italiano era para osimigrantes conceber-se como trabalhador, no duplo sentido de quemtrabalha e trabalha muito. Os italianos e seus descendentes gostavam eaindagostamdedistinguir-sedobrasileironativo,mobilizandoparaissoacategoria "trabalho": eles consideram as outras "raças", como dizem,menos devotadas ao trabalho, indolentes. Consideram-se a si mesmos, esão considerados pelos outros, como pessoas trabalhadoras, isto é,

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devotadasaotrabalho,amantesdotrabalho.Osentidopopulardapalavra"trabalhador" no Brasil devemuito ao imigrante italiano: não quer dizernecessariamenteempregado,masquerdizernecessariamentepessoaquetrabalha muito, que faz do trabalho o centro da sua vida, dos seusprincípios,dasuaética.

TrabalhoapresentadonoSimpósiosobreoPapeldaImigraçãoItaliananoDesenvolvimento Industrial Latinoamericano, Fondazione Luigi Einaudi,Turim (Itália), 29 de setembro a 3 de outubro de 1980. Publicado emDados - Revista de Ciências Sociais, v. 24, n. 2, Rio de Janeiro, Campus,1981,p.237-64.

Notas

Cf.FrancoCenni,op.cit.,p.172.

2Dacartadeumcolonovêneto,deBelémdoDescalvado,escritaem1883àfamíliaque icaranaItália:"metocatrabalharjuntocomosnegros".Cf.Emilio Franzina, op. cit., p. 128; Amelia de Rezende Martins, op. cit., p.325-326:MariaPaesdeBarros,op.cit.,passim.

3 Maurizio Gnerre, "Os italianos do Espírito Santo: de qual Itáliaemigraram?",emRevistadeCultura,ano1,n.II,UniversidadeFederaldoEspírito Santo, 1979, p. 21-31; lhales de Azevedo, Italianos e gaúchos,Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1975; Olívio Manfroi, AcolonizaçãoitaliananoRioGrandedoSul,PortoAlegre,InstitutoEstadualdo Livro, 1975; Vitalina Maria Frosi, Imigração italiana no nordeste doRio Grande do Sul, Porto Alegre,Movimento, 1975; Rovílio Costa et a1.,Imigração italiana no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Livraria Sulina,1975; José Vicente Tavares dos Santos, Colonos do vinho, São Paulo,Hucitec, 1978; Ítalo Dal'Mas, São Caetano do Suleseus fundadores, SãoCaetano do Sul (SP), Grá ica Michalany, 1957; Franco Cenni, op. cit.,passim;JosédeSouzaMartins,AimigraçãoeacrisedoBragilagrário,cit.

SecretariadaAgricultura, IndústriaeCommercio,BoletimdaDiretoriadeTerras, Colonização e Immigração, anno1, n. 1, SãoPaulo, out. 1937;B.Belli, Note sull'emigrazione in America dei contadini della província diTreviso,Oderzo,TipografiadiGiovanniBattistaBianchi,1888.

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CfacoleçãodoBoletimdoDepartamentoEstadualdoTrabalho,SãoPaulo,SecretariadaAgricultura,CommercioeObrasPúblicasdoEstadodeSãoPaulo,anuo1,n.1e2ss.,1912emdiante.

6Cf.CarloCastaldi,"Oajustamentodoimigranteàcomunidadepaulistana:estudodeumgrupodeimigrantesitalianosedeseusdescendentes",emBertramHutchinson (ed.),Mobilidadee trabalho,Riode Janeiro,CentroBrasileirodePesquisasEducacionais,1960,p.281-359.

7 Cf. Michel M. Hall, lhe Italians in São Paulo, 1880-1920, New Orleans,TulaneUniversity,1971,p.1-2,mimeo.

8 Cf. Paula Beiguelman, A formação do povo no complexo cafeeiro, cit.,passim;JosédeSouzaMartins,AimigraçãoeacrisedoBrasilagrário,op.cit.

9Cf.SecretariadaAgricultura,IndustriaeCommercio,loc.cit.

°Cf.NazarethPrado,op.cit.,p.287-8.

°Cf.CaioPradoJunior,"ContribuiçãoparaaanálisedaquestãoagrárianoBrasil",emRevistaBrasiliense,n.28,mar.-abr.1960,p.215e218;CaioPradoJunior,Arevoluçãobrasileira,SãoPaulo,Brasiliense,1966,p.52.

12Cf. JoséGrazianodaSilva,Progresso técnicoe relaçõesde trabalhonaagriculturapaulista,Campinas,Unicamp,1980,v.n,p.155,mimeo.

13Cf.AugustoRamos,OcafénoBrasilenoestrangeiro,cit.,p.207-8.

14Cf.CaioPradoJunior,HistóriaeconômicadoBrasil,cit.

15 Cf. Michael M. Hall, "Reformadores de classe média no Impériobrasileiro:aSociedadeCentraldeImigração",loc.cit.,p.169.

16Cf.MariaTherezaSchorerPetrone,AlavouracanavieiraemSãoPaulo,cit.; Maria Thereza Schorer Petrone, O Barão de Iguape, cit.; Darrel E.Levy,A família Prado, trad. JoséEduardoMendonça, SãoPaulo, Cultura70,1977.

'7 Cf. Adolfo Augusto Pinto, Minha vida, São Paulo, Conselho Estadual de

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Cultura, 1970; Odilon Nogueira de Matos, Café e ferrovias, São Paulo,Alfa-Omega, 1974; Célio, Debes, A caminho do oeste, São Paulo, s. e.,1968.

Is Cf. Nuto Sant'Anna, "A primeira fábrica de tecidos", emO Estado de S.Paulo,24dedezembrode1941;p.5;ENardyFilho,"Aprimeirafábricadetecidos,avapor,emS.Paulo",emOEstadodeS.Paulo,22defevereirode1944,p.3;GaribaldiDantas,Aprimeirafábricadetecidosdealgodãoem São Paulo - Itu ou Sorocaba?", em O Estado de S. Paulo, 26 defevereiro de 1944. p. 4; John Hough, A primeira fábrica de tecidos dealgodão em S. Paulo - Itu ou Sorocaba?", emOEstado de S. Paulo, 9 demarço de 1944, p. 8; F. Nardy Filho, 'A primeira fábrica de tecidos, avapor, emSãoPaulo",OEstadodeS. Paulo, 30demarçode1944,p. 5;AluísiodeAlmeida,'AlgodãodeSorocaba",em0EstadodeS.Paulo,23denovembro de 1944, p. 4; "São Paulo de 1870 e o início da indústria detecidos de algodão", em Digesto Econômico, ano 1, n. 4, AssociaçãoComercial de São Paulo, março de 1945; Sergio Buarque de Holanda,"Fiação e tecelagem em São Paulo na era colonial", em DigestoEconômico, ano rir, n. 36, novembro de 1947; Sergio Buarque deHolanda, 'A mais antiga fábrica de tecidos de São Paulo", em DigestoEconômico, ano iv, n. 41, abril de 1948; Sergio Buarque de Holanda,"Fiação doméstica em São Paulo", emDigesto Econômico, ano rv, n. 47,outubro de 1948; Ernani Silva Bruno, "Indústria e comércio noAlmanaque'de1885",OEstadodeS.Paulo,24dedezembrode1948,p.7;AluísiodeAlmeida, "Primórdiosda indústriapaulista",OEstadodeS.Paulo,1°deabrilde1951,p.8;ErnaniSilvaBruno,Históriae tradiçõesdacidadedeSãoPaulo,RiodeJaneiro,LivrariaJoséOlympio,1954,v.3,p.1.169-86.

'9 David Joslin, op. cit.; FredericM. Halsey, Investments in Latin Americaand the British West Indies, Washington, Department of Commerce,1918.

2°Cf.WarrenDean,7heIndustrializarionofSãoPaulo,1880-1945,Austin&London,UniversityofTexasPress,1969,p.19-33-

Cf.Affonsod'E.Taunay,op.cit.

Cf. José Maria Whitaker, O milagre de minha vida, São Paulo,

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Hucitec,1978,p.27ss.

13Cf.EliasAntonioPachecoeChaveseta1.,op.cit.,p.258-65.

24Cf.ReginaldLloydeta1.,op.cit.,p.630.

25Cf.FrancoCenni,op.cit.,p.182.

26Cf.J.R.deAraújoFilho,loc.cit.

27 Cf. Richard Granam, Britain and theOnset ofModernization in Brazil:1850-1914,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1968,p.135.

28 Cf. Almanak da província de São Paulo para 1873, organizado epublicadoporAntonioJoséBaptistadeLunéePauloDel inodaFonseca,anuo 1, São Paulo, Typographia Americana, 1873. Na organização etabulaçãodosdadosnumerososcontidosnestealmanaque,conteicomaajudainestimáveldeAntonioGonçalvesdeOliveiraeCésarAugustoOllerdoNascimento.

29 Cf. Julio Brandão Sobrinho, "Lavouras de canna e de algodão eIndustrias de assucar e de tecidos, no Estado de S. Paulo", Boletim daAgricultura, 4a série, n. 12, dez. 1903, São Paulo, "Revista Agricola",1903,p.577-8e582

31Idem,p.592e589.

31Idem,p.590-

32 Cf. Antonio Francisco Bandeira Junior, A indústria no estado de SãoPauloem1901,SãoPaulo,TypographiadoDiarioOfficial,1901,p.xi.

33 Dados do Arquivo da Junta Comercial de São Paulo, Secretaria deEstadodosNegóciosdaJustiça.

34CECarloCastaldi,op.cit.

31Cf.JosédeSouzaMartins,CondeMatarazzo-Oempresárioeaempresa,cit.,p.32-4.Cf., também,acoleçãodedocumentosda JuntaComercialdeSãoPaulo.

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36Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,passim;FrancoCenni,op.cit.,p.204-5.

37Cf.WarrenDean,op.cit.,p.51.

38Cf.AlfredoMoreiraPinto,'AcidadedeSãoPauloem1900(impressõesdeviagem),RiodeJaneiro,ImprensaNacional,1900,p.9.

39Cf.FlorestanFemandes,rAintegraçãodonegronasociedadedeclasses,SãoPaulo,Dominus,1965,v.i,p.41.

40Idem,p.11.

41Cf.MichaelM.Hall,ImmigrationandtheEarlySãoPauloWorkingClass,s/d,mimeo.,p.1-2.

42Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.xn;MichaelM.Hall,op.cit.,p.2.

43 Cf. Richard M. Morse, De comunidade a metrópole, trad. MariaAparecida Kerber , São Paulo, Comissão do tv Centenário da Cidade deSãoPaulo,1954,p.189.

44 Cf. "Condições do trabalho na indústria têxtil no Estado de S. Paulo",Boletim do Departamento Estadual do Trabalho, anho 1, n. 1 e 2, SãoPaulo,SecretariadaAgricultura,CommercioeObrasPublicasdoEstadodeSãoPaulo,1912,p.60e74-5.

41Cf.PauloSergioPinheiroeMichaelM.Hall(orgs.),AclasseoperárianoBrasil (documentos: 1889 a 1930), São Paulo, Alfa-Omega, 1979, v. i, p.63.

46Cf.JacobPenteado,Belenzinho,1910,SãoPaulo,LivrariaMartins,1962,p.57e148;FlorestanFernandes,op.cit.

47Cf.FrancoCenni,op.cit.,p.231

48 Cf. Carlo Castaldi, "O ajustamento do imigrante à comunidadepaulistana",op.cit.,p.349-51.

49 Cf. Paulo Sérgio Pinheiro e Michael M. Hall, op. cit., p. 62-3 e 24-5;

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Antonio Piccarolo, II socialismo in Brasile, apud Everardo Dias, HistóriadaslutassociaisnoBrasil,SãoPaulo,Edeglit,1962,p.18;MichaelM.Hall,ImmigrationandtheEarlySãoPauloWorkingClass,op.cit.,p.6.

soCf.MichaelM.Hall,lheItaliansinSãoPaulo,1880-1920,cit.,p.12.

51CfCarloCastaldi,op.cit.,p.291;Constantinolanni,Homenssempaz,SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1963.

52Cf.CarloCastaldi,op.cit.,p.296.

53Cf.JacobPenteado,op.cit.,p.129

s4Cf.CarloCastaldi,op.cit.,passim.

55 Cf. Azis Simão, Sindicato e Estado - Suas relações na formação doproletariadoemSãoPaulo,SãoPaulo,Dominus,1966;EverardoDias,op.cit.;PaulaBeiguelman,OscompanheirosdeSãoPaulo,SãoPaulo,EdiçõesSímbolo, 1977; Silvia I. L.Magnani,A classeoperária vai à luta: a grevede 1907 em São Paulo", Cara a cara, Centro de Estudos EverardoDias,ano 1, n. 1, maio 1978, p. 105-24; Hermínio Linhares, "As grevesoperárias no Brasil durante o primeiro quartel do século ot", EscudosSociais,n.2,jul.-ago.1958,p.215-28;JohnW.Foster-Dulles,AnarquistasecomunistasnoBrasil,trad.CésarParreirasHorta,RiodeJaneiro,NovaFronteira,s/d.

56Cf.J.PandiáCalógeras,op.cit.,p.320-50.

57 Cf. João Pedro da veiga Filho, Estudo econômico e inanceiro sobre oestado de S. Paulo, São Paulo, Typographia do Diario Of icial, 1896, p.119-33.

$8Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.9-10.

59 Cf. Carlos Ruysecco, As nossas industrias: Regou, Crespi & Comp.,Fabrica de Tecelagem e Malharia", Correio Paulistano, 7 de maio de1903, p. 2. Esse artigo é parte de uma interessante série de 26 artigossobreasindústriasdeSãoPaulo,publicadosnomesmojornalduranteoanode1903.Emboraatéhoje, segundosei,nenhumpesquisador tenhalançadomão desses dados sobre a industrialização em São Paulo e de

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outros, como os da Junta Comercial, são informações que atualizam eampliamaquelasqueforamcolhidasporBandeiraJunior,em1901.

60Cf."CondiçõesdotrabalhonaindústriatêxtilnoEstadodeS.Paulo",loc.cit.,p.73.

61 Cf. Paulo Sérgio Pinheiro e Michael M. Hall, op. cit., p. 114; AntonioPiccarolo,loc.cit.,p.18;EverardoDias,op.cit.,p.393-

62Cf.J.PandiáCalógeras,op.cit.

63Cf.MichaelM.Hall,ImmigrationandtheEarlySãoPauloWorkingClass,cit.,p.7e21.

64 Cf. Salvio de Almeida Azevedo, "Imigração e colonização no estado deSão Paulo", em Revista do Arquivo Municipal, v. rxxv, São Paulo,DepartamentodeCultura,abr.1941,p.121.

65Cf.PauloSérgioPinheiroeMichaelM.Hall,op.cit.,p.31-

66Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.xix

67Idem,p.xix.

68 Cf. Richard M. Morse, op. cit., p. 210-211; Ecléa Bosi, Memória esociedade-Lembrançasdevelhos,SãoPaulo,T.A.Queiroz,1979,p.60;Everardo Dias, op. cit., p. 45;MichaelM. Hall, lhe Italiano in São Paulo,1880.1920,cit.,p.10.

69Cf.CarloCastaldi,loc.cit.

70Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.xm.

71Cf."CondiçõesdotrabalhonaindústriatêxtilnoEstadodeS.Paulo",loc.cit.,p.44.

72Cf.JacobPenteado,op.cit.,p.119-38.

73Cf.ReginaldLloyd,op.cit.,p.685ss.

74Cf.PauloSérgioPinheiroeMichaelM.Hall,op.cit.,p.93;EverardoDias,

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op.cit.,p.46; JacobPenteado,op.cit.,p.29,61,79,117,125,130;PaulaBeiguelman,op.cit.,p.22,26-27,63;EcléaBosi,op.cit.,p.84.

75Cf.MichaelHall,ImmigrationandtheEarlySãoPauloWorkingClass,cit.,p.8.

76Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.xv.

77Cf.SergioSilva,ExpansãocafeeiroeorigensdaindústrianoBrasil,cit.

78Cf.SilviaI.L.Magnani,loacit.,p.118-9.

79Cf.EverardoDias,op.cit,p.47.

80Cf.PauloSérgioPinheiroeMichaelM.Hall(orgs.),op.cit.,p.27.

81CfPaulaBeiguelman,op.cit.,p.31.

82Idem,p.32-3.

13Cf.EverardoDias,op.cit.,p.257ss.;PaulaBeiguelman,op.cit.,p.35ss.

84Cf."CondiçõesdotrabalhonaindústriatextilnoEstadodeS.Paulo",loc.cit.

"Cf.AntonioFranciscoBandeiraJunior,op.cit.,p.xiii.

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Antonio Lerario, ilho de camponeses na Itália, que veio jovem para oBrasilecomeçouavidavendendojornaisnasruasdeSãoPaulo,acabariase tornando atacadista de cereais na rua Santa Rosa. Antes de falecer,encomendou a um escultor o conjunto escultórico que, em seu túmulo,narraria a história de sua vida e de sua família. Nesse conjunto, sãocelebradosotriunfodotrabalhoeaascensãosocialqueoexpressa.

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Preparodaterra.

(Fotos:JosédeSouzaMartins)

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Semeaduradotrigo.

Colheita

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Despedida.

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Aviagem.

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PrimeirotrabalhonoBrasil:jornaleiro.

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Últimotrabalho:cerealistanaruaSantaRosa.

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O falecimento do conde FranciscoMatarazzo Júnior (conde Chiquinho),nodomingo,dia27demarçode1977,emseupalacetedaavenidaPaulista(em São Paulo), última residência burguesa de uma via pública tomadahojeporaltosedi íciosdeescritóriosdosgrandesgruposeconômicos,põeapádecalsobreomitodaascensãopelotrabalho.

Ofalecidocondechegouaotopodoimpérioeconômicofundadoporseupai, imigrante italianochegadoaoBrasil em1881,quandodo falecimentodesteúltimoem1937.Ele,naverdade,nãonasceupredestinadoàposiçãoque inalmenteveioaocupar.Seupaitinhaumaconcepçãonadaburguesasobreaempresacapitalista.Emconsequência,atéo imdavidadirigiuosseus negócios de forma autoritária e pessoal, o que o levava a visitar assuasfábricasdiariamente,comoobjetivodecontrolarasdecisõesdosseusauxiliares, especialmente os gerentes e administradores. Por issomesmo,até o im da vida não abriu mão do seu poder de controle do impérioeconômico. Somente em 1934, aos 80 anos, é que decidiu transferirparcela das responsabilidades ao ilho que escolhera, na sua prole, parasubstituí-lo. O escolhido foi o conde Chiquinho que, durante os últimosquarentaanos,dividiu-seentrepreservaroestiloempresarialanacrônicodo pai (na verdade, um estilo de pequena empresa) e, em consequência,levar o império econômico ao desastre, e admitir uma diminuição no seupoderpessoalemfavordeumagerênciacompartilhadaemoderna.

OcondeChiquinho,porém,chegouàdireçãodosnegóciosdeseupaiemconsequência de um acidente. O predestinado à sucessão era seu irmãoErmelino, que viria a falecer num desastre automobilístico na Itália, nosanos 1920. Ermelino estavamuitomais próximo do velho conde, porqueimigrara da Itália com o pai, acompanhara-o nos primeiros anos deconstrução do império econômico. Já o conde Chiquinho nascera quandoseu pai havia se transformado num grande empresário, já residente nopalacetequemandaraerguernaavenidaPaulista,localqueaburguesiadeentãoescolheraparaconstruiroseubairroresidencial,depoisdesaturadoo espaço do pretensioso bairro dos Campos Elíseos. O conde Chiquinhoveioà luznoambientedaspretensõesaristocráticasdeseupai.Defato,o

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velho conde viveu sempre o tormento de uma divisão ideológica, quejamais conseguiu compreender, entre conceberse como o burguês queconquistaraasuaposiçãopelotrabalhoárduoepelaprivaçãoconstanteouconceber-secomooaristocrata, cujasorigensnobresrecuariam(segundoosseuscorifeusintelectuais)atéosremotostemposdeCarlosMagno;quese tornava cada vezmais rico porque esse era o resultadonecessário dasuacondiçãoestamental.'

Nessa altura, já o velho conde estava empenhado não apenas em icarcadavezmaisrico,mas,também,em icarcadavezmaisnobre.NoBrasil,naeradoscoronéisdosertão,chegouaserchamadodecoronel.Masnãoeraissoqueelequeria.Oseuuniversodereferênciafoi,atéo imdavida,a Itália, sua hierarquia social. Os sociólogos encamparam muitasa irmações de literatura teatral dos quatrocentões sobre as tentativas deascensão social e de reconhecimento feitas por essa burguesia imigrante.Confundiram-se, porém, ao imaginar que a pretensão do reconhecimentoestamental voltava-se para o casamento no interior das famílias dosantigosbarõesdocafé.Naverdade, issonãoaconteceunaescalasuposta.Emparticular, entreosMatarazzomais antigos issonão foi verdadeiro.Ovelhocondeestavainteressado, issosim,emvincularseus ilhosaantigasfamíliasitalianas.Eissoeleconseguiu.

Depois de ser "cavaliere uf iciale" (cav. uff.), título que adornou osnomesdemuitosimigrantesdocomeçodoséculo,medianteconcessõesdogoverno italiano, que assim agia para preservar a lealdade dos seussúditosricos,cujasremessasemdinheiroconstituíamimportantefontedereceita, Matarazzo inalmente tornou-se conde. Em reconhecimento pelomuito dinheiro com que ajudou o governo de seu país no período daPrimeira Guerra Mundial, o rei decidiu oferecer-lhe o título. Mas, o seuilho, o conde Chiquinho, só veio a ser conde em consequência de umadecisão de Mussolini, em 1926, que transformou o título originalmenteconcedidopelorei,emcaráterindividual,numtítulohereditário.

ParaissomuitocontribuiuaadesãodeMatarazzoaofascismo.

Do "Duce" ele recebeu várias gentilezas - além de recebê-lo emaudiência privada por mais de uma vez, tinha-o na conta de um

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embaixadorinformalnoBrasil.Porissoepelosrecursosqueempregounaformaçãoda juventude fascista italiana, o velho conde recebeu aTesserad'Onore Fascista, além da Medaglia d'Oro di Benemerenza dell'OperaNazionale Balila. Não por menos é que, quando da sua morte, em 1937,obedeceu-seaopédotúmuloumelaboradoritualfascista.

Justamenteaspretensõesaristocráticasdopai,quetêmmuitoavercomoseupopulismofascista, izeramdo ilhoumaespéciedeintocáveldeouro- umhomem afastado da realidade, das aspirações e do pensamento dosseus 22 mil operários, já para não dizer de toda a classe operária.Enquantoovelhocondeviveudivididoentreoreconhecimentopopulardoburguês que se teria feito pelo trabalho sofrido, de um lado, e oreconhecimento elitista da suanobrezade sangue, o ilho viveu apenas acondiçãodoaristocrata.

Com isso, sem o saber, personi icou a decadência do mais importantemito de sustentação da exploração da classe operária. É essamorte queimporta discutir nesta oportunidade: a deterioração histórica domito daascensão social pelo trabalho árduo e pela privação sistemática. Entre oconde real e o condemítico, omais importante é desvendar este último,istoé,desvendarosmecanismosideológicosdesustentaçãodadominaçãode classe. Mesmo porque, sem a referência ao Matarazzo mítico épraticamente impossível entender o pensamento e a ação da classeoperária em São Paulo, os freios conservadores à sua práticatransformadora.

Aproletarizaçãodasaspiraçõesburguesas

Quando, no século xrx, icou claro que a vigência do trabalho escravoestavachegandoao im,aburguesiaagrária,emparticularosfazendeirosde café, não se inquietou apenas com a necessidade urgente desubstituição do trabalhador cativo pelo trabalhador livre. A sua principalinquietação foi com a forma que deveria assumir a preservação dadominação burguesa.2 De fato, como mostrou Marx, na sua discussãosobre o processo de valorização do capital, o importante não é apenas aextraçãodamais-valia,mas,também,omecanismoideológicoquefazcomque o crescimento da riqueza seja concebido por empresários e

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trabalhadores como produto da própria riqueza. No regime do trabalhoescravo,o trabalhadornãoprecisavadeoutra justi icativapara trabalharalémdocativeiro.Asujeiçãodocativoaocapitaleraprincipalmente ísica,atravésdeinstrumentoseprocedimentosdeviolência ísica.Asujeiçãodotrabalhador livre, ao contrário, é principalmente ideológica. No regimeescravista, o problema de justi icar ideologicamente a coerção ísica e aexploraçãoque,pormeiodela, se fazia, era rebatidoparaadesigualdadedeorigemdebrancosenegros.Éconhecidohojeousoqueentãosefaziada história de Abel e Caim para justi icar essa desigualdade: os brancosseriamfilhosdeAbeleosnegrosseriamfilhosdeCaim,razãoporqueestesúltimosestavamcondenadosaocativeiro-parapurgarocrimeoriginal.3

O advento do trabalho livre, no entanto, separou a pessoa dotrabalhador da sua capacidade de trabalho, da sua força de trabalho. Osmecanismos ideológicos que legitimavam a sujeição da pessoa e adesigualdadedeque ela provinhaperderama sua e icácia.A sujeiçãodapessoa foi substituída pela sujeição do trabalho ao capital. Logo, o mitoanterior da desigualdade de origem entre as pessoas já não servia parajusti icar e legitimar as novas relações, baseadas na compra e venda daforça de trabalho. Através destas últimas instituía-se a igualdade formalentre o patrão e o operário. Como, então, sendo eles formalmente iguais,um icavacadavezmaisricoeooutronão?Essaéaindagaçãoocultaquenorteia todo o debate sobre a Abolição. Como fazer com que o novotrabalhador (isto é, o trabalhador produzido pela nova modalidade desujeição do trabalho ao capital) aceitasse, sob o pretexto da igualdadejurídica,arealidadedadesigualdadeeconômica?

O primeiro passo foi reconhecer abertamente aquilo que todotrabalhador livre sabe, ao menos por intuição: o trabalho é a fonte dariqueza.Mas esse reconhecimentonão ajudava emnadana legitimação ejusti icação da exploração do trabalho. Esse reconhecimento, na verdade,abria caminho para que o trabalhador decidisse trabalhar para si,ocupando a ampla faixa de terras livres que o país então possuía. Paraevitarqueissoocorresse,jáem1850,quandocessaquasecompletamenteotrá iconegreiro(di icultandooabastecimentodas fazendascommãodeobra escrava), a mesma elite fundiária obtém a aprovação da jámencionada Lei n. 601, conhecida como Lei de Terras, que impedia o

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acessoàsterrasdevolutasporoutromeioquenãofosseacompra.ALeideTerras garantiu a mobilização das instituições jurídicas e policiais nadefesa da propriedade fundiária, garantindo, aomesmo tempo, o carátercompulsóriodotrabalho,davendadaforçadetrabalhoaofazendeiroporparte dos trabalhadores que não dispusessem de outro meio de viversenãoasuacapacidadedetrabalhar.

Ora, a "riqueza" da época, para os desprovidos de meios, eraprincipalmenteaterra,nestepaísaindacarentedegrandescapitais.ALeide Terras consagrava aquilo que não existia plenamente: a terra comoequivalente de capital, como renda territorial capitalizada. Ao mesmotempo, torna-se explícito, enfatizado e socialmente reconhecido que otrabalhoéo fundamentoda riqueza,queo trabalhoé a virtudeessencialdo trabalhador. Para se ter acesso à propriedade, isto é, à riqueza, épreciso trabalhar epoupar. JánosdiscursosdeAntoniodaSilvaPrado, ofazendeiro paulista que era ministro do Império quando doencaminhamento da questão abolicionista, essa ideia adquire os seuscontornosde initivosparadaípassara fundamentodapolítica trabalhistadoEstado. JádiziaelequeoBrasilprecisavadeumtrabalhador livrequefossemorigerado,sóbrioelaborioso.Aoqueacrescentavaoutrofazendeiropaulista que o trabalhador com essas características podia ser maisfacilmenteencontradoentreosimigrantesitalianos.4

O caminho da implantação do trabalho livre passou, pois, pela ideia deque era preciso trabalhar para enriquecer. Ao mesmo tempo, ascircunstânciashistóricasde iniramessepercurso:otrabalhadornãotinhacomotrabalharparasi,poisaterraeramonopolizadaconjuntamentepelosproprietários e pelo Estado. Por isso, ele precisava trabalhar para umterceiro,umfazendeiro,umpatrão-aquelequeestavanecessitadodesuaforçadetrabalho.Aideia-chavepassavaaseresta:ofazendeiroprecisavada força de trabalho do trabalhador para enriquecer e o trabalhadorprecisava do emprego do fazendeiro para ganhar o dinheiro quecomprasseaterraquesupostamenteoenriqueceria.Esseenriquecimentodotrabalhadorresultaria,pois,nãosomentedoesforçoparaganhar,mas,também,doesforçoparanãogastar.Ariquezanãofruti icariadotrabalhoqueseacrescentavaàriquezajácriada,àriquezaquesujeitavaotrabalho,mas sim da ética que associava trabalho e privação. A vida penosa e

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sofridaresultantedessasujeição,resultantedaexploraçãodotrabalhador,legitimava-se, pois, na concepção do trabalho como condição da riquezaprópria.

Já se disse, equivocadamente, que essa ética constituía umacaracterísticaculturalepsicológicadotrabalhadorimigrante,umaespéciedeprivilégiocultural,daqualnãoseriapartidáriootrabalhadorbrasileirosNa verdade, entretanto, essa é a versão proletária da ética burguesa,produzidapelaprópriaburguesia.Aliás,elachocavacomasaspiraçõesdetrabalho independentedo trabalhador imigrante.A ética do trabalho temsidoacamisadeforçamedianteaqualotrabalhadorélevadoaverasualibertação (isto é, o trabalho independente, o trabalho não subjugadodiretamentepelocapital)naperspectivadopatrão.

O que a burguesia fez, portanto, foi "democratizar", isto é, traduzir emtermos congruentes coma preservaçãoda legitimidadeda exploraçãodotrabalho, a sua própria necessidade: a necessidade da reproduçãocrescenteeincessantedocapital.

Oaburguesamentodasaspiraçõesoperárias

ÉaíquenasceomitoMatarazzo, oburguêsmíticopor excelência (poishouve em São Paulo outros capitalistas que contribuíram para aelaboração desse mito). De fato, desde o século xix, estabelecidas asgrandescorrentesmigratóriasdetrabalhadoreslivresparaoBrasil,aeliteagráriaempenhouseembuscarevidênciasdequeotrabalhoeaprivaçãocom ele combinada levavam, efetivamente, ao enriquecimento dotrabalhador.Muita literaturadepropaganda foiproduzida, especialmenteparadivulgaçãonaEuropa,noscentrosderecrutamentodetrabalhadores,paraapresentarcasos,provase indicaçõesdequeoenriquecimentopelotrabalho não era apenas uma aspiração, uma ideia, mas um fatocomprovadonoBrasildeentão.

A gênese e a expansão da indústria na área cafeeira abriram umapossibilidade,mais ampla do que a agrícola, de comprovaçãoda validadedessa concepção mítica do trabalho. O pequeno estabelecimento, maisartesanaldoqueindustrial,operadoporpessoasqueestavammuitomais

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próximas da condição proletária do que da condição de capitalista, veiocom muita frequência e durante muitos anos coroar as aspirações deascensão e independência do trabalhador paulista. Aliás, a legislaçãotrabalhista de Getúlio Vargas, instituindo a indenização por tempo deserviçoparao trabalhadordespedidosem justacausa,veioaacrescentarum reforço signi icativo a essa concepção do trabalho. Por esse meio,justamente nomomentomais crítico da vida de um operário, que é o dadispensadoemprego,elerecebiaumpecúlioquepodiaser transformadoem capital de um pequeno empreendimento comercial ou artesanalindependente. Receber a indenização e ser "mandado embora' passou asero sonhodemuitosoperários.Omomento crítico, quedevia expressarastensõesdasrelaçõesdeclasse,passou,aocontrário,aseconstituirnummomentodejúbiloedeadesão.

Osmuitos imigrantes que enriqueceram a partir do inal do século xixintegraram-se na validação da ideia de que o trabalho e a privaçãoenriquecemotrabalhador.Mas,umdelesacabousendodestacadocomoaprova absoluta de que a ideia era verdadeira. Foi o conde FranciscoMatarazzo, o velho, o que viria a falecer em 1937. Um ingredientefundamentalparatantofoiahabilidadecomqueovelhocondetratouessaconcepção. Sempre que se dirigia aos trabalhadores, enfatizava os dadosdasuabiografiaquepodiamsertomadoscomoindicaçãodequehaviasidoum imigrantepobre e sem recursosque enriqueceranoBrasil graças aotrabalhoárduoeàaspiraçãodeindependência.Quando,porém,dirigia-seàprópriaburguesia,procuravaenfatizaroscomponentesdasuabiogra iaque destacavam a sua origem idalga, mais do que burguesa. Emdecorrência, difundiu-se entre os trabalhadores, durante mais de meioséculo, a concepção de que Matarazzo havia sido um imigrante muitopobreque,apóstrabalharsofridamentenasfazendasdecafé,comocolono,tornara-se vendedor ambulante, vivendo de pão e banana. Com issoconseguira guardar dinheiro, montar de início uma pequena fábrica debanha e, depois, outras indústrias, para inalmente tornar-se milionário,donodemuitasempresas,patrãodemilharesdeoperários(em1929,eleseria objeto de uma gigantesca demonstração de apreço por parte de 20mil trabalhadores nas ruas de São Paulo). Numa pesquisa, de 1974, emváriosbairrosda cidadede SãoPaulo, tiveoportunidadede comprovar aamplitude desse mito, compartilhado até mesmo por trabalhadores

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oriundos de remotas regiões do Nordeste, que já o conheciam antes demigrarem.

A industrializaçãobrasileiraencontrounomitodoburguêsenriquecidopelo trabalho e pelavida penosa um ingrediente vital. Ao contrário daburguesia agrária, que tivera que enfrentar o problema da produção eelaboraçãoda ideologiade transiçãodo trabalho escravoparao trabalholivre, a burguesia industrial já encontrou prontas a justi icativa e alegitimação da exploração do trabalhador, ainda que com base numaconcepçãopré-capitalistadetrabalhoindependente.

Foiapartirdaíqueadominaçãoburguesaseapresentoucomolegítimapara o operário. O enriquecimento do burguês foi entendido comoresultadodoseuprópriotrabalho,dassuasprivaçõesesofrimentos,enãocomooprodutodaexploraçãodotrabalhador.Adominaçãoeaexploraçãodocapitalpassaramaserconcebidascomolegítimasporqueariquezanãoseria fruto do trabalho proletário, mas sim do trabalho do empresário.En im,otrabalhoquecriaocapitalnãoseriaotrabalhoexpropriado,esimo trabalho próprio. Em consequência, o emprego oferecido pelo patrãopassou a ser visto como a dádiva do capitalista, a oportunidade dotrabalho, isto é, o acesso ao trabalho redentor - o trabalho que, aoenriquecer, liberta. O paternalismo e o populismo de empresa estãodiretamente fundadosnessa concepçãodo trabalho.O velho conde, aindaque intimamente dividido quanto à ideologia do trabalho, cultivouamplamente esse paternalismo (inclusive por sua adesão ao fascismo)para validar, também ele enquanto patrão, o componente ideológico querevestiadelegitimidadeaexploraçãodotrabalhador.

Avidadoburguêséamortedomito

OsúltimosquarentaanosdevidadocondeChiquinhoforamosquarentaanosdemortedomitoMatarazzo.Nessesanos todos, conformerevelouapesquisa que mencionei, os operários descobriram que, ao contrário doquesupunhamosseuscompanheirosdaprimeirametadedoséculoxx,otrabalhodooperárionãoenriqueceoprópriooperário.Adeterioraçãodomitoburguês foi facilitadapelaconstataçãodequeocondericonãoeraaconsequênciadoseuprópriotrabalho.

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O burguês mítico deixou de ter contrapartidas reais, pessoas vivascomprovandoasuaprocedência,aocontráriodoqueocorrianotempodovelhoconde,queexpunhaaostrabalhadoresumaautobiogra iapontilhadade sacri ícios e mistérios, mediante a qual identi icava o destino dosoperárioscomoseupróprio.Oburguêsmíticoexpressaoperacionalmentea ideologia de reprodução do capitalismo na sua fase de expansão, derecriadas oportunidades para recrutamento de novos capitalistas pelaclasse dominante. A morte do burguês mítico ocorre com a emergênciaampla do processo de concentração do capital. Foi uma longa agonia,marcada pelas vacilações da classe operária que se exprimiram numaconsciência ambígua - consciência que procurou revestir de coerência oantagonismo entre o trabalhoproletário criador e a concepção capitalistadotrabalho.

Uma versão ligeiramente diferente deste trabalho foi publicada no jornalMovimento,n.92,4deabrilde1977,p.11-14.

Notas

1Cf.JosédeSouzaMartins,CondeMatarazzo-Oempresárioeaempresa,cit.,cap.II.

2C£JosédeSouzaMartins,AimigraçãoeacrisedoBrasilagrário,cit.,esp.capI.

C£FlorestanFernandes,Aintegraçãodonegronasociedadedeclasses,cit.

C£PaulaBeiguelman,Aformaçãodopovonocomplexocafeeiro,cit.

5Cf.LeôncioMartinsRodrigues,ConflitoindustrialesindicalismonoBrasil,SãoPaulo,DifusãoEuropeiadoLivro,1966,p.108.

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JosédeSouzaMartins

Éumdosmais importantescientistassociaisdoBrasil.Professor titularde Sociologia da Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas daUniversidadedeSãoPaulo (FFLCH-USP), foieleito fellowdeTrinityHalleprofessordaCátedraSimonBolívardaUniversidadedeCambridge(1993-1994).ÉmestreedoutoremSociologiapelaUSP.FoiprofessorvisitantenaUniversidadedeFlórida(1983)enaUniversidadedeLisboa(2000).Autorde diversos livros de destaque, ganhou o prêmio Jabuti de CiênciasHumanas,em1993-comaobraSubúrbio-eem1994-comAchegadadoestranho.RecebeuoprêmioÉricoVannucciMendesdoConselhoNacionalde Desenvolvimento Cientí ico e Tecnológico (CNPq), em 1993, peloconjunto de sua obra e o prêmio Florestan Fernandes da SociedadeBrasileiradeSociologia,em2007.Em2008,lançouAapariçãododemôniona fábrica. Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homemsimples,SociologiadafotografiaedaimagemeFronteira.